Resumo: Este artigo apresenta a discussão de um tema até hoje muito debatido, a denominada multiparentalidade que decorre da filiação socioafetiva. Até bem pouco tempo desconhecida, decorre da evolução dos formatos familiares contemporâneos. Ademais, o que se verá a seguir é a questão dos aspectos legais, doutrinários e jurisprudenciais relativos à sucessão dos descendentes e principalmente dos ascendentes que decorre da multiparentalidade e que não foi objeto de atualização em novo ordenamento constitucional e civil.
Palavras-chave: Ascendentes. Evolução. Família Contemporânea. Multiparentalidade. Socioafetividade. Sucessão.
Abstract: This article presents the discussion of a subject until present days many times debated, the named multiparentality,which elapses from the socioaffective filiation. Until now almost unknown, elapses from the evolution of the contemporaneous familiars formats. Moreover, what we will see is the legal aspects question, doctrine e jurisprudence, related to the succession of the descendants and mainly the ascendants, due to the multiparentality that was not subject of the actualization in the in constitutional and civil legal order.
Keywords: Ascendants. Evolution.Contemporary Family. Socio-affectivity. Succession.
Sumário:
1 Filiação Socioafetiva. 1.1 Conceito. 1.2 O reconhecimento da filiação socioafetiva. 1.3 Os princípios constitucionais e a relações jurídicas familiares. 2 Sucessão na multiparentalidade. 2.1 A sucessão dos descendentes na multiparentalidade. 2.2 A sucessão dos acendentes.
Introdução
“Constituir” família nos tempos modernos, pode ter diversos significados, ou seja, depende do ponto de vista.
A família pode advir do casamento, da união estável, da poliafetividade ou de qualquer outra forma. Porém, a filiação socioafetiva tem um significado ainda mais amplo. Já nem se ousa mais discutir o jargão “pai (mãe) é quem cria”.
Assim, para que ocorra o reconhecimento da filiação, basta que ocorra a posse do estado de filho. Vale dizer: não decorre apenas do biológico, mas dos laços que acabam por ser mais importantes. Decorre do amor, do afeto e não apenas dos aspectos econômicos.
Para Mônica HaydeeGalano (2014, p. 81), no Brasil, a família tem características heterogêneas, não existe um tipo de família senão diversas maneiras de viver os laços de parentesco.
Referida autora elenca os vários tipos de famílias, sendo no momento interessante trazer à baila o conceito de famílias homoafetivas, as quais, segundo ela, são famílias formadaspor pessoas do mesmo sexo, que compartilhamcuidados cotidianos, uma econômica conjunta, relaçõesemocionais e sexuais. Hoje, com as novastecnologias eles podem ter filhos pela inseminaçãoartificial, a fertilização in vitro etc. que permitema utilização de técnicas de reprodução assistida.Mas tanto essa possibilidade, quanto a aceitaçãode uma adoção conjunta ainda passa por resoluçõeslegais, seja dos conselhos regionais de medicinae psicologia, seja pelos juízes da Infância eda Juventude.
Assim, corroborando tudo o que será discutido no presente artigo, os formatos familiares contemporâneos são muito diferentes dos existentes e reconhecidos até meados do século XX.
Destarte, nosso principal interesse é discutir o tema relativo à poliafetividade, com relação dos aspectos sucessórios dos descendentes e, principalmente, no que concerne à lacuna existente na legislação, para os casos de sucessão dos ascendentes.
1 Filiação Socioafetiva
O artigo 1.593 do Código Civil estatui:
“Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem.”
Em seu comentário ao referido artigo, Cezar Peluso (2015, p. 1.649) nos ensina que “o dispositivo classifica o parentesco, distinguindo os que resultam da consanguinidade dos que tenham outra origem. De acordo com a regra em exame, o parentesco civil é todo aquele que não tem origem biológica”.
O próprio § 6º do artigo 227 da Constituição Federal determina que: “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.
Para José Afonso da Silva (2014, p. 882), “é proibido falar em filho legítimo, ou filho ilegítimo, ou filho natural, ou mesmo em filho adotado. E os mesmos direitos incluem os sucessórios. Lembre-se que essa regra se aplica aos filhos havidos dentro ou fora das uniões estáveis”.
Ainda, conforme Cezar Peluso (2015, p. 1.649), “o termo ‘outra origem’, usado pelo legislador, admite como fontes de parentesco os casos de reprodução artificial e as relações socioafetivas, sem vínculo biológico ou de adoção”.
1.1 Conceito
Para Julie Cristine Delinski (apud Madaleno, p. 525), essa nova estrutura da família brasileira que passa a dar maior importância aos laços afetivos, e aduz já não ser suficiente a descendência genética, ou civil, sendo fundamental para a família atual a integração dos pais e filhos através do sublime sentimento da afeição. Acresce possuírem a paternidade e a maternidade um significado mais profundo do que a verdade biológica, onde o zelo, o amor filial e a natural dedicação ao filho revelam uma verdade afetiva.
O Enunciado nº519 da V Jornada de Direito Civil (CEJ do CJF) posicionou-se no sentido de que o reconhecimento judicial do vínculo de parentesco em virtude de socioafetividade deve ocorrer a partir da relação entre pai(s) e filho(s), com base na posse do estado de filho, para que produza efeitos pessoais e patrimoniais.
A jurisprudência vem acompanhando a evolução da sociedade brasileira e com ela das famílias, no sentido de reconhecer a filiação socioafetiva, sobrepondo-a inclusive à filiação biológica, considerando sempre que pai (ou mãe) é quem cria, dá carinho, afeto e amparo aos filhos, não importando a sua origem. Assim, faz-se importante citar a seguinte decisão do TJMT, publicada em 03.05.2014, para quem filiação socioafetiva deve ser fundada na posse do estado de filho, a saber:
“Jurisprudência: Embargos infringentes. Preliminar de não conhecimento rejeitada. Ação declaratória para o reconhecimento de vínculo de parentesco post-mortem. Filiação socioafetiva. Possibilidade. Art. 1.593 do CC. Caracterização da posse do estado de filho. Recurso provido. Não há que se falar em não conhecimento dos embargos infringentes, quando constatado que a matéria recursal encontra-se em consonância com o voto vencido, o qual serve de paradigma para a oposição do presente recurso. A filiação socioafetiva não se encontra lastreada no fator biológico/genético, mas em ato de vontade, que se constrói a partir de um respeito recíproco de tratamento afetivo paterno-filial, revelada pela convivência estreita e duradoura, que, no plano jurídico, recupera a noção de posse de estado de filho, há muito esquecida no limbo do Direito. O art. 1.593 do CC, ao prever a formação do estado filiativo adindo de outras espécies de parentesco civil que não necessariamente a consanguínea, permite a interpretação do alcance da expressão “outra origem” como sendo adoção, a filiação proveniente das técnicas de reprodução assistida, bem como a filiação socioafetiva, fundada na posse de estado de filho”. (TJMT, Emb. Infring. n. 118476/2013, rel. Des. Cleuci Terezinha Chagas, DJe 09.05.2014, p. 93).
Como muito bem nos ensina Belmiro Pedro Welter, apud Maria Berenice Dias (2015, p. 406), a filiação que resulta da posse do estado de filho constitui modalidade de parentesco civil de “outra origem”, isto é, de origem afetiva (CC 1.593). A filiação socioafetiva corresponde à verdade aparente e decorre do direito de filiação. A consagração da afetividade com direito fundamental subtrai a resistência em admitir a igualdade entre a filiação biológica e a socioafetiva.
1.2 O reconhecimento da filiação socioafetiva
Alguns Estados brasileiros já reconhecem a filiação socioafetiva, nos quais segundo os provimentos que seguem, o registro pode ser feito diretamente no Cartório de Registro Civil, sendo desnecessária qualquer outra providência. São os seguintes os provimentos:
a) Provimento nº 09/2013 – Pernambuco
b) Provimento nº 15/2013 – Ceará
c) Provimento nº 21/2013 – Maranhão
d) Provimento nº 11/2014 – Santa Catarina
Nelson Shikicima (2014, p. 70) ensina que hodiernamente, o direito de família brasileiroestá passando por transformações, por quebrade barreiras, principalmente perante a famíliatradicional, como por exemplo casamentohomoafetivo, a poliafetividade e também a filiaçãosocioafetiva, que neste caso o direito valoriza maisos laços afetivos, qual seja a relação de criação,de amor e dedicação pelo próximo, do que aquelesque mesmo tendo os mesmos laços de sangue,não tem estas benevolências e dever com seuspróprios filhos.
Nossos tribunais vêm decidindo no sentido de que, em virtude da origem da paternidade (ou maternidade), mesmo que resulte de outra origem, tal como previsto no art. 1.593 do Código Civil, a parentalidade socioafetiva envolve o aspecto sentimental criado entre parentes não biológicos, pelo ato de convivência, de vontade e de amor prepondera em relação à biológica.
Para Rosenvald e Farias (2015, p. 591), o pai afetivo é aquele de ocupa, na vida do filho, o lugar do pai (a função). É uma espécie de adoção de fato.
E, continua doutrinando que, é aquele que ao dar abrigo, carinho, educação, amorao filho, expõe o foro intimo da filiação, apresentando-se em todos os momentos, inclusive naqueles em que se toma a lição de casa ou verifica o boletim escolar.
1.3 Os princípios constitucionais e as relações jurídicas familiares
Segundo Mariana Andrade Sobral (2010), são os seguintes os princípios norteadores da família:
a) Princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1º, III, da Constituição Federal;
b) Princípio da igualdade absoluta entre os filhos, previsto no artigo 227, §6º da CF;
c) Princípio da afetividade, previsto nos artigos 226, § 4º, 227, caput, § 5º c/c § 6º;
d) Princípio da solidariedade familiar, conforme artigo 3º, I da CF;
e) Princípio da proteção da criança e do adolescente – art. 227, caput da CF e art. 3º da Lei nº 8.069/90 (ECA);
f) Princípio do melhor interesse da criança e do adolescente – art. 227, caput da CF e art. 4º, caput e 5º do ECA;
g) Princípio da paternidade responsável – art. 226, §7º da CF.
Para Flávio Tartuce (2015, p. 6), alguns dos princípios do Direito de Família foram aniquilados, surgindo outros, dentro dessa proposta de constitucionalização e personalização, remodelando esse ramo jurídico. Por isso, o Estatuto das Famílias, prescrevendo o seu art. 5º que são seus princípios fundamentais a dignidade da pessoa humana, a solidariedade familiar, a igualdade de gêneros, de filhos e das entidades familiares, a convivência familiar, o melhor interesse da criança e do adolescente e a afetividade.
2. Sucessão na multiparentalidade
Para Yves Zamataro (2013), a multiparentalidade deve ser entendida como a possibilidade de uma pessoa possuir mais de um pai e/ou mais de uma mãe, simultaneamente, produzindo efeitos jurídicos em relação a todos eles. Inclusive, no que se refere a eventual pedido de alimentos e herança de ambos os pais.Exemplificando, podemos citar a surpreendente decisão proferida pelo Poder Judiciário do Estado de Rondônia ao decidir pelo registro, em certidão de nascimento, de dupla filiação paterna (biológica e socioafetiva) de uma criança que, comprovadamente, reconhecia os dois homens como pais e deles recebia, ao mesmo tempo, assistência emocional e alimentar.
E, continua a nos ensinar que, de fato, o reconhecimento da multiparentalidade e, principalmente, a prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento à paternidade biológica representa um avanço significativo no Direito de Família. Consagram-se os princípios da dignidade humana e da afetividade, afastando-se a preocupação inicial com a proteção ao patrimônio, voltando-se à proteção das pessoas e, por consequência, passando a prevalecer, no âmbito jurídico, o trinômio amor, afeto e atenção.
A multiparentalidade é a coexistência jurídica do vínculo biológico com o afetivo.
A questão da sucessão na multiparentalidade é um tema que tem hodiernamente merecido elevado grau de atenção, principalmente no que se refere aos ascendentes, pois não foi objeto de consideração pelo legislador.
A seguir, sem pretensão de esgotar o assunto, discutiremos os dois temas, levando em conta a legislação, o pensamento dos doutrinadores e algumas decisões jurisprudenciais.
Segundo Flávio Tartuce (2015, p. 399 e 400), outras decisões jurisprudenciais devem surgir nos próximos anos, sendo a multiparentalidade um caminho sem volta do Direito de Família Contemporâneo, consolidando-se as novas teorias e os princípios constitucionais nesse campo do pensamento jurídico.
Já, para Kirch e Copatti (2013), o reconhecimento da multiparentalidade significa um avanço do Direito de Família no Brasil, pois efetiva o princípio da dignidade da pessoa humana de seus envolvidos, bem como demonstra o respeito pelo princípio da afetividade. A Constituição Federal assume a opção pela família socioafetiva e dessa forma entende-se que o liame afetivo se sobrepõe ao liame biológico.
Para os mesmos autores, a multiparentalidade significa a legitimação da paternidade/maternidade do padrasto ou madrasta que ama, cria e cuida de seu enteado(a) como se seu filho fosse, enquanto que ao mesmo tempo o enteado(a) o ama e o(a) tem como pai/mãe, sem que para isso, se desconsidere o pai ou mãe biológicos. A proposta é a inclusão no registro de nascimento do pai ou mãe socioafetivo permanecendo o nome de ambos os pais biológicos.
Nelson Shikicima (2014, p. 73) ensina que multiparentalidade é umavanço do Direito de Família, tendo em vista que,efetiva o princípio da dignidade da pessoa humanade todas as pessoas envolvidas, demonstrando quea afetividade é a principal razão do desenvolvimentopsicológico, físico e emocional. A Carta Magnaassume a opção pela família socioafetiva e dessa forma entende-se que o liame afetivo se sobrepõeao liame biológico, inclusive é o entendimentomajoritário dos nossos Tribunais.
Conforme Farias e Rosenvald (2015, p. 227), sob o prisma do direito positivo brasileiro, a sucessão dos descendentes está submetida a duas regras fundamentais: i) a regra da igualdade substancial; ii) a regra da proximidade.
2.1 A sucessão dos descendentes na multiparentalidade
O artigo 1.829 do Código Civil estabelece:
“Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III – ao cônjuge sobrevivente;
IV – aos colaterais.”
Segundo Cezar Peluso (2015, p. 2.093), a sucessão legítima é aquela na qual os herdeiros são designados diretamente pela lei, sem concurso da manifestação de vontade do autor da herança. Contrapõe-se à sucessão testamentária, na qual são designados pelo autor da herança, em testamento ou codicilo. Para maiores detalhes sobre essa distinção e para as hipóteses em que pode haver concomitância, confiram-se os comentários dos arts. 1.786 e 1.788.
Para Flávio Tartuce (2015, p. 205), a parentalidade socioafetiva vem sendo reconhecida como nova forma de parentesco civil, ao lado da adoção e daquela havida da técnica de reprodução heteróloga assistida.
Como visto acima e, de acordo com o mesmo autor (2015, p. 206), a parentalidade socioafetiva está fundada na posse de estado de filho, que vem a ser a situação fática e social de serem as pessoas envolvidas reconhecidas como unidas pelo vínculo de filiação.
Já, para Rolf Madaleno (2015, p. 525 e 526), não obstante a codificação em vigor não reconheça a filiação socioafetiva, inquestionavelmente a jurisprudência dos pretórios brasileiros vem paulatina e reiteradamente prestigiando a prevalência da chamada posse do estado de filho, representando em essência o substrato fático da verdadeira e única filiação, sustentada no amor e no desejo de ser pai ou ser mãe, em suma, de estabelecer espontaneamente os vínculos da cristalina relação filial. Trouxe, ainda, à colação a seguinte jurisprudência:
“Maternidade socioafetiva. Preservação da maternidade biológica. Respeito à memória da mãe biológica, falecida em decorrência do parto, e de sua família. Enteado criado como filho desde os dois anos de idade. Filiação socioafetiva que tem amparo no art. 1.593 do Código Civil e decorre da posse do estado de filho, fruto de longa convivência, aliado ao afeto e considerações mútuos, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes. A formação da família moderna não consanguínea tem sua base na afetividade e nos princípios da dignidade da pessoa humana e na solidariedade. Recurso provido” (TJSP. Apelação Cível n. 0006422-26.2011.8.26.0286. Primeira Câmara de Direito Privado. Relator: Juiz Alcides Leopoldo e Silva Júnior. Julgado em 14.08.2012).
Portanto, considerando que a Constituição Federal ampliou o conceito de família e que extirpou de nosso ordenamento jurídico a classificação da prole em legítima, ilegitimada e ilegítima, e que uma vez reconhecido o estado da posse de filho, este tem imediatos direitos e deveres em termos de Direito de Família, assim como das Sucessões.
Nesse sentido, a lição de Nelson Shikicima (2014, p. 74) nos ensina que reconhecida a filiação multiparental, ou seja,duas mães e um pai ou dois pais e uma mãe, comojá citado acima e conforme decisões em diversosTribunais dos Estados no Brasil, bem como oSuperior Tribunal de Justiça trará efeitos quantoaos direitos e deveres, principalmente nos aspectodo direito de família e sucessões, tais como guarda,visitas, alimentos, filiação, sobrenome e herança.
2.2 A sucessão dos ascendentes
Os formatos familiares atuais vêm evoluindo em velocidade espantosa. Assim, muito embora o nosso Código Civil atual tenha inovado em muitos temas e matérias, não previu as famílias multiparentais, onde temos a possibilidade da ocorrência de dois pais e uma mãe ou duas mães e um pai. Isso acabou por ocorrer como decorrência da socioafetividade.
Mas, como a sociedade acompanha essa evolução, acaba por exigir decisões e amparo da tutela jurisdicional para a resolução de eventuais conflitos. Desta forma, os Tribunais Estaduais e o próprio STJ vêm decidindo sobre tais conflitos, quer seja em termos de reconhecimento da filiação socioafetiva ou de sucessão.
Quando se trata de sucessão dos descendentes, a própria regra já existente é válida também na hipótese de multiparentalidade.
Porém, na mesma esteira e a despeito da evolução comentada, ainda pairam dúvidas sobre a sucessão dos ascendentes, em decorrência dessa multiparentalidade.
De acordo com Nelson Shikicima (2014, p. 74), as novas famílias se constituemnuma “caixinha de surpresas” e o código civilde 2002 não previu essa nova modalidade de“família multiparental”, portanto não há normasaplicáveis, principalmente no que diz respeito
ao direito das sucessões.
E continua, com sua costumeira sabedoria: assim, indagamos, como ficaria a sucessãodo falecido que não deixou descendente, masdeixou ascendentes multiparentais? Como seriamdivididos entre esses, os quinhões hereditários?Questionamentos que ainda pairam dúvidas e nãotemos decisões judiciais.
Segundo o artigo 1.790, III, do Código Civil, que trata da União Estável:
“Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:…
III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança.”
Já, conforme o artigo 1.836, § 3º do Código Civil, temos:
“Art. 1.836. Na falta de descendentes, são chamados à sucessão os ascendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente….
§ 2o Havendo igualdade em grau e diversidade em linha, os ascendentes da linha paterna herdam a metade, cabendo a outra aos da linha materna.”
Porém, o artigo 1.837 do Código Civil, determina:
“Art. 1.837. Concorrendo com ascendente em primeiro grau, ao cônjuge tocará um terço da herança; caber-lhe-á a metade desta se houver um só ascendente, ou se maior for aquele grau.”
A despeito de todas essas previsões legais, segundo Nelson Shikicima (2014, p. 75), ao enfrentar essa lacuna, não havendo esta previsão legal, nosartigos 1.836,§ 2º, 1837, e 1.790, III, CC, ospais multiparentais na sucessão de seu filhoteriam direitos sucessórios em partes diferentes eaté sairiam em desvantagem com o cônjuge ouconvivente sobrevivente em determinada situação.Portanto, necessário fazer constar as quotaspartes de cada um ou constar a concorrência empartes iguais.
Como se percebe, corroborando nossa afirmação anterior, ainda há carência de atualização de nossa legislação no que tange aos novos formatos familiares, principalmente o decorrente da socioafetividade, os quais já estão clamando pela necessidade de se acompanhar as evoluções no âmbito do Direto das Famílias e das Sucessões.
Conclusão
Apesar de recentemente definidos, os termos socioafetividade, filiação socioafetiva,multiparentalidade, dentre outros, suas existências já são recorrentes em nossa realidadefamiliar.
Pela teoria Tridimensional do Direito de Família, onde retrata que o ser humano é, ao mesmo tempo, biológico, afetivo e ontológico e que, por isso, é possível se constituir três vínculos paternos. Aliás, o ser humano é tridimensional, pois é reflexo da condição e da realidade humana.
A velocidade das transformações sociais é espantosa e os formatos familiares também têm acompanhado essa evolução. Filhos não são os apenas havidos dentro do casamento e isso foi sabiamente tratado pela nossa Constituição Federal de 1988, quando se pode definir que filhos não aqueles considerados legítimos, e sendo, portanto, proibido segregar os ilegítimos ou outras denominações.
Essas profundas mudanças no Direito de Família, a despeito do própria lei, foram rapidamente absorvidas pela sociedade e por nosso tribunais, a ponto de se reconhecer, até com certa tranquilidade, a socioafetividade e a multiparentalidade. Vale o indivíduo, seu sentimento, o afeto, o amor, sobrepondo-se tudo isso ao tão somente denominado liame biológico, até então considerado.
A questão da sucessão dos descendentes oriundos da multiparentalidade nos parece tranquila e pacífica e já não se corre nenhum risco de sermos injustos quando tratamos da mesma. Nossa legislação e tribunais já a consideram normal em nosso ordenamento jurídico. E a maioria da nossa corrente doutrinária também.
Porém, quando se fala nos direitos de pais multiparentais, em caso de sucessão de seus filhos, principalmente na concorrência com o cônjuge ou convivente sobrevivente, pode-se incorrer em injustiças, pois fala-se em concorrência em partes iguais.
Nossa legislação precisa ser atualizada e adaptada, para que se possa determinar a previsão da partilha em quotas partes para cada um ou constar a concorrência em partes iguais.
Até lá nossos Tribunais devem se ater a esta possibilidade de se cometer a já tão discutida justiça.
Informações Sobre o Autor
Ademar Lucas
Pós graduado em Direito de Família e Sucessões. Advogado em São Paulo.