Resumo: A desapropriação de vários imóveis é necessária para a construção da ferrovia Transnordestina, obra que é uma realização da iniciativa privada em parceria com a União. No tocante as questões de desapropriação, a entidade federal fez um convênio com o Governo Estadual. Entretanto, um Juiz de Direito, ao ter que decidir sobre um dos casos de desapropriação, julgou que a ação era de competência da Justiça Federal. O presente artigo analisa essa decisão sob a ótica do Direito Alternativo, com o objetivo de discutir sobre a distancia entre o direito e a realidade social, propondo uma nova interpretação do sistema jurídico, mais comprometido a promover a igualdade e o bem comum da sociedade. Este trabalho foi orientado pela Professora Dra. Sueli Rodrigues.
Sumário: 1. Introdução: prós e contras da Transnordestina. 2. A questão social por trás do benefício. 3. O que é o direito alternativo. 4. Conclusão: uma reflexão sobre a função social do Direito. Referências bibliográficas.
1. Introdução: prós e contras da Transnordestina
A Transnordestina é uma ferrovia que ligará o município de Eliseu Martins (PI) ao Porto de Suape (PE) e ao Porto do Pecém (CE), cruzando praticamente todo o território dos estados de Pernambuco e Ceará. As obras tiveram início em 2006 e a previsão do Governo Federal para sua conclusão é em 2013.
Em 1998, a União assinou um contrato de concessão em favor de uma empresa privada, a Companhia Ferroviária do Nordeste, para que esta fosse a responsável por executar a construção e administração da Transnordestina. Com essa iniciativa, o Governo Federal pretende incentivar o agronegócio desenvolvido no sul do Piauí. A região do município de Bom Jesus, que fica a 150 quilômetros de Eliseu Martins, se destaca na produção de soja e terá seu custo de produção reduzido em 20% com a construção da estrada de ferro.
Além de Eliseu Martins, a Transnordestina também passa pelos municípios piauienses dePavussú, Rio Grande do Piauí, Itaueira, Flores do Piauí, Pajeú do Piauí, Ribeira do Piauí, São José do Peixe, São Miguel do Fidalgo, Paes Landim, Simplício Mendes, Bela Vista do Piauí, Nova Santa Rita, Campo Alegre do Fidalgo, Paulistana, Betânia do Piauí, Curral Novo do Piauí e Simões.
Para a realização da obra, várias famílias desses municípios sofreramprocessos de desapropriação de seus imóveis, tendo em vista a supremacia do interesse público em detrimento dos direitos de moradia e trabalho dos donos das propriedades afetadas. A União, nesse caso representada pelo Departamento Nacional de Infraestrutura e Transporte (DNIT), delegou ao Estado do Piauí a competência para promover as desapropriações necessárias.
Contudo, o Meritíssimo Juiz de Direito da Comarca de Simplício Mendes no ano de 2009, ao julgar uma das ações de desapropriação, declarou que a competência de julgamento cabia a Justiça Federal, e não ao Estado, uma vez que o DNIT é o órgão público envolvido na construção da Transnordestina, e é uma autarquia federal.
O presente artigo tem o objetivo de analisar essa decisão e suas consequências sob a ótica do Direito Alternativo, de modo a discutir mais profundamente a questão e aproximar o direito da realidade social, ação tão necessária nos dias atuais.
2. A questão social por trás do benefício
No Piauí, a Transnordestina terá como função primordial o transporte de insumos agrícolas produzidos nos cerrados, principalmente soja, cana-de-açúcar e álcool.Outra finalidade da estrada de ferro será o transporte dos minérios a serem extraídos da região, uma vez que os municípios piauienses situados na área de abrangência da ferrovia estão sobre promissoras jazidas de níquel, calcário e fosfato. Portanto, o empreendimento ajudará o crescimento da economia piauiense, aumentando a circulação monetária e aumentando o PIB do Estado.
Não obstante os benefícios, várias famílias tiveram seus imóveis desapropriados para que a obra pudesse ser realizada. Alegando necessidade pública, o Estado do Piauí propôs, até 2009, 483 (quatrocentas e oitenta e três) ações de desapropriação nas Comarcas situadas nos municípios pelos quais a ferrovia vai passar. A grande maioria dessas ações encontra-se em tramitação, mas de acordo com a Procuradoria Geral do Estado, nas ações que chegaram ao fim houve concordância dos expropriados com a indenização proposta.
Contudo, na Comarca de Simplício Mendes, o Meritíssimo Juiz de Direito declarou-se incompetente para julgar a ação de desapropriação do imóvel da Senhora Antonieta Isabel Dias, atribuindo a competência a Justiça Federal. Em sua argumentação, o Juiz alega que a entidade governamental envolvida na construção da Transnordestina é o DNIT, uma autarquia federal, e que é inegável a existência de interesse por parte desse departamento na obra, tendo em vista que ‘’ qualquer provimento jurisdicional que não acolha ou embarace a pretensão autoral irá repercutir diretamente na construção de obra levada a cabo por aquela entidade’’.
Ainda no tocante a argumentação, o magistrado afirma que o convênio feito pelo DNIT com o Estado do Piauí, cujo objetivo era a transferência de competências para propor as ações de desapropriação, não pode ser levado em consideração, pois ultrapassa os critérios legais de fixação de competência estabelecidos antes do surgimento do conflito. Ao final, o Juiz recorre ajurisprudência do STF, que deixa claro a competência da Justiça Federal para decidir quando há interesse jurídico da União, suas autarquias ou empresas públicas.
Diante dessa decisão inusitada e contrária a jurisprudência das demais comarcas, o Estado do Piauí utilizou-se de um recurso, no Tribunal de Justiça do Estado do Piauí, pedindo que o Juiz da Comarca de Simplício Mendes aceitasse a competência de julgar a ação de desapropriação, uma vez que o convênio realizado entre a autarquia federal e o Estado do Piauí tem sua viabilidade jurídica declarada no art. 241 da Constituição da República. Além disso, o deslocamento de competência para a Justiça Federal seria bastante inoportuno, pois a construção da estrada de ferro já se encontrava em um estado avançado e a transferência causaria um retorno ao início das apurações judiciais do justo valor de indenização aos expropriados.
Ainda assim, a decisão anteriormente descrita revela uma quebra a lógica formal aristotélica utilizada pela maior parte dos juristas, em que a lei, doutrina e jurisprudência são a premissa maior e fato social é apenas a premissa menor. De um modo geral, a lógica é fruto da formação dada ao jurista, em que o direito é concebido estritamente como norma e o aplicador do direito é apenas um instrumento frio e distante da realidade social. Acredita-se que essa formação, designada como positivismo jurídico-legalista, faz com que o direito seja aplicado de forma neutra e justa, por ser baseado no direito positivado. Assim, os juristas passam a aceitar dogmaticamente as premissas, sem se darem ao trabalho de analisá-las utilizando o crivo crítico da razão.
3. O que é o Direito Alternativo?
Foi com o intuito de modificar a prática jurídica desligada da realidade social que surgiram,na Itália da década de 70, a partir dos trabalhos de Pietro Barcellona ( L’uso Alternativo Del Diritto – 1973; Stato e giuristiTraCrisi e Riforma, com Giuseppe Cotturri – 1974), o movimento do ‘’uso alternativo do direito’’, que buscava instaurar a consciência crítica e reflexiva nos operadores do direito. Na Espanha, o movimento de magistrados ganhou mais força, na medida em que rompeu de modo mais evidente com a neutralidade jurídica e com a dogmática positivista.
O Direito Alternativo é embasado na negação da neutralidade política dos juízes, na utilização das contradições e lacunas do direito em benefício dos menos favorecidos, na servidão ao processo de emancipação da classe trabalhadora, na busca pelo privilégio dos interesses e práticas dos dominados, no desenvolvimento de interpretações jurídico-progressistas, na tomada de consciência da interdependência do direito com as relações socioeconômicas, na sua utilização diversa do usual predominante e na sua idoneidade como fator de mudança social.
A atuação da interpretação alternativa do juiz torna-se mais próxima dos conflitos humanos reais, admite a não neutralidade do magistrado, participamais ativamente na política, questiona a ordem estabelecida e suas leis legitimadoras, e propõe novas soluções aos conflitos.
Nos casos de desapropriação movidos pelo Estado do Piauí, pouco levou-se em consideração os transtornos causados as pessoas que teriam seus imóveis desapropriados, não somente de cunho econômico-financeiro, mas também sociais. No caso da Senhora Antonieta Isabel Dias, o Estado desejava desapropriar seu terreno de cento e setenta e seis hectares e vinte e sete acres, onde se localiza tanto sua moradia como seu roçado, fonte de renda da agricultora. A indenização proposta para ré foi 1.890 reais, embora ela tenha comprado a propriedade por cinco mil reais. Fica, portanto, evidente o quão prejudicial essa situação é não só para Antonieta Isabel Dias, mas também para as quase quinhentas famílias, na sua maioria de baixo poder aquisitivo, que foram deslocadas de suas propriedades em troca de quantias muito menores do que as que realmente deveriam ser pagas.
Com o deslocamento de competência da Justiça Estadual para a Justiça Federal, as ações já finalizadas seriam novamente abertas, as perícias e laudos sobre as propriedades atingidas teriam de ser refeitos e os valores das indenizações revisados, de tal modo que quantias mais justas poderiam ser pagas aos réus.
Na presente situação é evidente o desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, em face do mau uso dos artigos 241 da Constituição Federal e 95 do Código de Processo Civil. Dessa forma, a proposta do Direito Alternativo é justamente impedir que a lei seja aplicada de maneira injusta, sem que a realidade social seja levada em conta.
4. Conclusão: uma reflexão sobre a função social do direito
A alternatividade do direito consiste na adoção de uma posição crítica por parte da magistratura, para que o direito e a realidade social não sejam cada vez mais afastados. Cumpre, então, que o juiz abandone a suposta neutralidade política do direito e utilize as contradições e incompletudes deste em benefício da classe dominada, para não permitir que o sistema jurídico se transforme em um instrumento de dominação que funciona conforme a vontade da classe dominante.
O primeiro passo para aqueles que tomam a consciência do papel social do direito é justamente contestar a lei, jurisprudência e doutrina até então aceitas de maneira dogmática. O juiz, enquanto poder judiciário, não pode jamais assumir uma posição passiva de apenas aplicar a lei, tendo em vista que esta é passível de desatualização e ineficácia, tornando, assim, sua aplicação um ato de injustiça.
A decisão do Juiz da Comarca de Simplício Mendes foi coerente com o movimento do uso alternativo do direito quando não aceitou a jurisprudência dos tribunais das demais Comarcas piauienses e lançando mão de uma interpretação jurídico-progressista, embasada na jurisprudência do STF.
Para que o direito possa tornar-se realmente democrático, será necessário que mais operadores do direito adquiram essa consciência jurídico-social, tornando a discussão mais difundida e trabalhada. Somente dessa forma o direito poderá atender verdadeiramente as demandas sociais, modificando a realidade desigual da sociedade brasileira.
Informações Sobre os Autores
Aline Bona de Alencar Araripe
Estudante de Direito.
Bruna Stéfanni
Estudante de Direito.