A racionalidade na prática das ciências jurídicas

Resumo: O presente artigo trata da necessidade de reformulação do conceito de método jurídico à luz das formulações teóricas das recentes correntes filosóficas e sociológicas que tratam a seu respeito, em contraposição ao simples silogismo irracional da norma, enaltecido pelo positivismo jurídico e por muitos pregado até os dias de hoje.


Palavras-chave: Segurança jurídica – Método jurídico – Lógica dialética.


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Abstract: This article aims to analyze the necessity of reformulation of the concept of Law’s method, according to the recent philosophical and sociological theories on this issue, in opposition to syllogism model, created by legal positivism and followed by many lawyers even today.


Keywords: Law’s security – Law’s method – Dialectical logic.


A razão, no direito da modernidade tardia, se desvencilhou dos pressupostos herméticos da lógica formal e se aproximou da práxis humana, contextualizou-se no tempo e no espaço, em atendimento às demandas pelas quais movimentos sociais lutaram, atinentes ao efetivo cumprimento das funções do Estado, oriundas do pacto social.


Cumpre observar, a despeito de ser algo de notório conhecimento da ciência política, que seguido de certa forma por Locke, Rousseau e Bodin, Thomas Hobbes preconizava a idéia de unidade de poder contra a anarquia, através do temível Leviathan, monstro de origem bíblica e nome a ele dado ao Estado, este, impróprio e horrendo, mas necessário. Assim cada cidadão renunciaria a sua parcela de vontade para a construção deste monstro, ignóbil, porém imprescindível (SOARES, 2001, p. 83).


A fórmula do poder comum, entre os homens, pode ser expressada através da seguinte passagem: “Autorizo e cedo meu direito de governar a mim mesmo a este homem (Leviathan), com a seguinte condição: que tu cedas também teu direito e tuas ações do mesmo modo” (SOARES, 2001, p. 84), que transmite a noção de pacto social, através da concessão por todos os cidadãos de parte do seu direito de auto-governo, a um ente voltado à manutenção da paz e da defesa comuns, e da recíproca submissão do Estado à vontade de seus cidadãos.


Ignorar ou negar tal pacto, a despeito de assim não pensar Gontijo (2006, p. 9), é negar as condições do comum e os deveres do próprio Estado em relação à sociedade. A esse respeito, observa Boaventura de Sousa Santos: (2006, p. 321):


“A idéia do contrato social e os seus princípios reguladores são o fundamento ideológico e político da contratualidade real que organiza a sociabilidade e a política nas sociedades modernas. (…) O contrato social visa criar um paradigma sócio político que produz de maneira normal, constante e consistente quatro bens públicos: legitimidade da governação, bem-estar econômico e social, segurança e identidade cultural nacional. Estes bens públicos só são realizáveis em conjunto: são, no fundo, modos diferentes mas convergentes de realizar o bem comum e a vontade geral.”


 E pouco antes, ressalta o autor lusitano (2006, p. 317):


“O contrato social é assim a expressão dialética entre regulação social e emancipação social que se reproduz pela polarização constante entre vontade individual e vontade geral, colectiva, entre o interesse particular e o bem comum. (…) Quanto mais violento e anárquico é o estado de natureza, maiores são os poderes investidos no Estado saído do contrato social.”


O fundamento de tal pacto encontramos também em Galuppo, que aqui passo a citar: “é o sentido essencial da ‘autonomia’ que caracteriza a regulação jurídica moderna: o direito que criamos é legítimo porque visa regular nossa própria vida, ou, dito de outra forma, o direito que regula nossa própria vida é legítimo porque criado por nós” (GALUPPO, 2002, p. 205), o que damanda do sistema social criação e aplicação coerente do direito, por um método socialmente adequado. Voltemos ao tema das mudanças paradigmáticas da razão a partir da segunda metade do século XX.


Assim, essa razão dialética na ciência jurídica, pôs em cheque o tradicional método juspositivista até então dominante, relativo ao silogismo, que foi importante à época do surgimento do movimento iluminista, de expoente cartesiano, tanto no direito como nas ciências do ser, no século XVII, cuja tônica era a garantia de legalidade frente ao poder monárquico, para se buscar formas de razão que fossem mais adequadas ao pleno desenvolvimento da personalidade humana, levando-se em consideração as particularidades de cada caso e de cada época. Vale citar a preciosa lição de Gontijo (2006, p. 18):


“A visão dogmática está equivocada. Pretendendo-se garantir ao direito uma sistematicidade própria, a dogmática tradicional o faz a partir de um mau entendimento do que vem a ser sistematicidade. Não é o texto da norma, na forma de premissas, que determina o que é ou não jurídico, mas, sim, uma racionalidade específica que pode se aplicar ao caso, tornando-o fato jurídico.”


Novas e velhas formas de atribuição de racionalidade à ciência do direito surgiram, com o intuito de atender às demandas sociais por justiça material nos casos concretos, frente à caducidade do mero argumento de autoridade na institucionalização de expectativas normativas pelo sistema social parcial jurídico.


Tal legitimidade pela racionalidade se objetivou através da busca por coerência das comunicações internas do sistema jurídico, e por um processo de institucionalização de expectativas que realmente refletisse a configuração normativa da sociedade. A esse respeito, também citamos Margarida Camargo (2003, p. 251), “o pensamento jurídico não se conforma com um tipo de raciocínio linear que ignora a dialética e os valores que informam a hermenêutica”.


Desta forma, a procura por um método da ciência do direito que atendesse a esse novo paradigma de racionalidade clamado pela sociedade fez com que a teoria da argumentação tomasse corpo e roubasse a cena, cujos postulados de persuasão racional e adesão coadunam com os moldes da nova ordem social (GONTIJO, 2007, p. 2), marcada pela necessidade de segurança jurídica socialmente orientada.


Por sua vez, contrariamente ao que defende Gontijo (2006), a segurança jurídica, a nosso ver, não é um mito, mas sim, uma emergência social, não expressa somente nos postulados do positivismo jurídico, mas na demanda social em relação a um Estado que seja capaz de manter ordem suficiente para que a vida em sociedade ocorra.


A despeito da tentativa de parresia à brasileira operada por alguns autores, tais como Gontijo (2006), não há vida em sociedade se não temos um mínimo de segurança jurídica e confiança nas relações sociais expressas em expectativas institucionalizadas, que possibilitam não só a nossa subsistência, mas a existência digna todos os seres humanos que compõe a sociedade. Assim leciona Günther Jakobs (2003, p. 18):


“Não se trata de que a sociedade, entendida como algo feito e determinado, anteponha-se ao sujeito, mas também fica excluído o contrário. Dizendo de outro modo, a subjetividade não só é um pressuposto, mas também uma conseqüência. Sem um mundo objetivo vinculante não há subjetividade e vice-versa.”


Ainda ressalta o mestre alemão que não é correto contrapor as condições de constituição da subjetividade às condições da constituição da socialidade, no sentido de “aqui liberdade” versus “aqui coletivismo”. Sem uma sociedade em funcionamento, faltam condições empíricas para o surgimento da subjetividade.


Também não procede, em nosso entendimento, a tentativa neoderridariana de Gontijo (2006, p. 16) de negar qualquer argumento jurídico a priori. Temos a priori, ao menos, o argumento de existência do direito. Para que seja possível a existência de qualquer outra argumentação jurídica, o direito deve existir a priori, como pressuposto de quaisquer outras ilações. Não se trata de um determinado direito, mas sim, a própria ciência jurídica, que somente existe no plano metafísico, oriunda de um argumento.


Nesse ínterim, calcado na necessidade de garantia da segurança jurídica no meio social, cabe esboçar um conceito de método jurídico, de criação e aplicação do direito, de cuja influência funcionalista não conseguimos nos desvencilhar: método é o caminho pelo qual o sistema social parcial jurídico apreende a realidade social e a institucionaliza na forma de determinadas expectativas normativas de conduta, através de um processo racional, tornando-as de observância obrigatória (LUHMANN, 1983), e assegura a confiança em sua vigência nos casos concretos, por um procedimento também institucionalizado.


 


Referências

SANTOS, B. de S. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006.

CAMARGO, M. M. L. Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

GALUPPO, M. C. Igualdade e diferença: estado democrático de direito a partir do pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002.

GONTIJO, L. A. Lógica dialética-discursiva e teoria do direito: Ensaio crítico sobre metodologia jurídica, in: Anais do XVI Congresso Nacional do CONPEDI. Florianopolis: Fundacao Boiteux, 2007.

GONTIJO, L. A. Metodologia jurídica da racionalidade e da autonomia: valores e particularidades como circunstâncias especiais que revelam o direito, in: O Brasil que queremos reflexões sobre o Estado Democrático de Direito, 1, Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2006.

JAKOBS, G. Sociedade, Norma e Pessoa: teoria de um direito penal funcional. Trad. M. A. R. Lopes. Barueri: Manole, 2003.

LUHMANN, N. Sociologia do Direito II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.

SOARES, M. L. Q. Teoria do Estado. O substrato clássico e os novos paradigmas. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.


Informações Sobre o Autor

André Pedrolli Serretti

Bacharel em Direito em Faculdade de Direito Milton Campos. Ex-Pesquisador Bolsista pela FAPEMIG. Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Membro do Instituto de Ciências Penais de Minas Gerais. Membro do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito

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