A deficiência quanto ao sistema público de assistência à saúde é um dos principais problemas existentes no Brasil, na atualidade. Por ser um problema bastante complexo e por afetar diretamente a vida de todas as pessoas, a busca por soluções torna-se inexorável.
Através do arcabouço oferecido por diplomas normativos recentes, a Constituição Federal e leis ordinárias diretamente relacionadas à prestação dos serviços na área da saúde, busca-se incitar o debate público referente à implementação de um novo instrumento jurídico denominado parceria público-privada com vistas à reestruturação do Sistema Único de Saúde.
Para que tal mister se efetive, os itens iniciais do presente trabalho retratam aspectos relevantes do direito constitucional pátrio concernentes à saúde, assim como posteriores modificações sob a forma de Emendas Constitucionais.
Em seguida, o Sistema Único de Saúde é analisado em relação a seus pontos nodais, com ênfase quanto ao custeio do sistema, assim como quanto à necessidade de cotejo com outros sistemas (neste caso, o sistema norte-americano).
Finalmente, a aplicação dos contratos de parceria público-privada com vistas ao desenvolvimento de melhorias imprescindíveis nesta área, não pode ser obstaculizada por entraves referentes às especificidades inflexíveis constantes na legislação ordinária. Destarte, cumpre demonstrar a possibilidade de reestruturação do Sistema Único de Saúde através de uma mudança de paradigma quanto ao papel dos parceiros privados (efetivamente, os usuários destes serviços) nesta seara.
Sumário: INTRODUÇÃO1A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E A SAÚDE; 1.1.Saúde como direito social; 1.2.Competência; 1.3.Ações e serviços de saúde; 1.4. Financiamento; 2. O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE; 2.1.Princípios e características; 2.2.Disposições da Lei n. 8.080/1990; 2.3.Serviços privados de assistência à saúde; 2.4.Custeio do sistema; 2.5.Sistema norte-americano; 3.A SAÚDE E AS PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS; 3.1.Dos contratos de parceria público-privada na área da saúde; 3.2 Disposições da Lei n. 11.079/2004; 3.3.Das garantias; 3.4 Da sociedade de propósito específico e da licitação; 3.5.Disposições da Lei n. 11.107/2005; 3.6.A reestruturação do SUS nos entes federativos; CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
INTRODUÇÃO
A prestação de serviços públicos relacionados à saúde da população brasileira surge como um dos principais problemas da atualidade. As notícias veiculadas através da mídia apresentam situações absurdas, que demonstram a precariedade existente no sistema de atendimento à saúde, em todos os seus níveis.
A maior parte da população, pertencente às classes sociais menos favorecidas em termos econômicos, vive atemorizada por ter consciência da falta de estrutura à qual necessariamente será submetida, caso venha a adoecer. Há de se ponderar que a saúde dos habitantes de uma nação soberana é o mais forte indicador de sua capacidade de desenvolvimento quanto às condições primárias e elementares de sobrevivência, para efetivamente nutrir a busca do bem-estar social, ínsito à dignidade humana.
O presente trabalho surge como uma tentativa de apresentar caminhos viabilizadores de melhoria das condições existentes na prestação de serviços públicos de saúde, que venham a influenciar igualmente os que a prestam na esfera privada.
Trata-se de um trabalho que se presta à incitação de discussões nesta seara, com o intuito de levar à elaboração de projetos de leis aptos a serem apresentados à sociedade civil, para seu pleno conhecimento e para que possa se transformar em parte ativa quanto à solução dos problemas existentes.
Em um primeiro momento, analisar-se-á o direito constitucional quanto aos aspectos referentes à saúde, com a descrição dos elementos normativos existentes desde o advento da Constituição Federal e suas posteriores modificações.
Posteriormente, o foco se volta ao Sistema Único de Saúde. Apresentar-se-ão características de seu atendimento, relacionando-as aos seus princípios norteadores, emoldurados pela visão da realidade cotidiana. O custeio do sistema é visivelmente insuficiente e, de acordo com o posicionamento de inúmeros administradores públicos, este seria o motivo de sua falibilidade. O custo da corrupção existente eclode como razão primordial à observação de que algo deve ser feito, por todos e por cada um, com a máxima urgência.
Vários diplomas normativos têm sido elaborados, apesar dos momentos de estagnação legislativa. Através deste diplomas, infere-se a possibilidade de modificar o direito posto anteriormente promulgado, em pontos que se mostram incompatíveis com a realidade social. O surgimento da Lei Federal instituidora de normas gerais sobre as parcerias público-privadas, ao final de 2004, suscita interlocuções no pensamento jurídico pátrio, atinentes à viabilização da instituição deste novo tipo contratual em uma área de atendimento primordial, como o é a área de saúde pública.
O escopo do presente trabalho é justamente trazer à baila estas interlocuções, com o intuito de apresentar idéias que venham ao encontro das necessidades sociais prementes, para que todos os brasileiros possam, indistintamente, conhecer o sentido contido no conceito de que a saúde é um estado completo de bem-estar físico, psíquico e social.
1.A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E A SAÚDE
1.1.Saúde como direito social
Na modernidade, a extensão do que se busca ao se referir à saúde, vem sofrendo modificações. No início do século passado, saúde significava ausência de doença. Em 1947, a Organização Mundial da Saúde estendeu o conceito de saúde em três aspectos essenciais: o aspecto físico, o psíquico e o social.
Durante os debates sobre os direitos humanos e o direito à saúde no 7º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, cujo tema foi saúde, justiça e cidadania, realizado em 2003, Dalmo de Abreu Dallari[1], coordenador, na época, da cátedra Unesco/USP de direitos humanos da Universidade de São Paulo e membro da Comissão de Juristas, ONG com sede em Genebra que assessora as Nações Unidas para questões de direitos humanos, pontuava: “o interessante é que o novo olhar de magistrados com uma visão mais ampla dos princípios constitucionais vem sendo fundamentado na questão da saúde”.
A Constituição Federal de 1988 elevou a dignidade da pessoa humana a fundamento do Estado Democrático de Direito, no qual se constitui a República Federativa do Brasil (CF, art. 1º, III). O direito à dignidade, portanto, passa a compreender o direito à saúde, porquanto aquela não será plena, sem a existência desta.
No art. 6º da Constituição há a indicação genérica dos direitos sociais. Estes direitos pertencem aos direitos fundamentais de segunda geração, que correspondem àqueles que devem ser prestados pelo Estado com vistas à diminuição das desigualdades sociais. São direitos sociais, portanto, a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados. Correspondem necessariamente à busca da melhoria das condições de vida, conforme preceitua Alexandre de Moares[2], ao conceituá-los:
Direitos sociais são direitos fundamentais do homem, caracterizando-se como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria de condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, e são consagrados como fundamentos do Estado democrático, pelo art. 1º, IV, da Constituição Federal.
O autor alude ao Estado Social de Direito e o faz adequadamente pois, após o advento da Constituição Federal de 1988, o Estado tornou-se um Estado Social, na esteira evolucionista de inúmeras Constituições modernas. Nesta seara, Carlos Ari Sundfeld[3] tece as seguintes considerações:
O Estado torna-se um Estado Social, positivamente atuante para ensejar o desenvolvimento (não o mero crescimento, mas a elevação do nível cultural e a mudança social) e a realização de justiça social (é dizer, a extinção das injustiças na divisão do produto econômico). O indivíduo adquire o direito de exigir certas prestações positivas do Estado: o direito à educação, à previdência social, à saúde, ao seguro-desemprego e outros mais.
Dessume-se, portanto, que o Estado Social e Democrático de Direito, sob os auspícios da norma constitucional, garante aos indivíduos o oferecimento de serviços de educação, saúde e previdência, possuindo o dever de atingir objetivos sociais. Concomitantemente, aos indivíduos é atribuído o direito de exigir tais serviços.
1.2 Competência
A repartição de competências é uma das características da autonomia das entidades federativas. A Carta Magna elege a predominância do interesse como princípio geral desta repartição.
Moraes[4], ao tecer considerações sobre a organização político-administrativa brasileira, esclarece o seguinte, quando se refere à repartição de competências:
Pelo princípio da predominância do interesse, à União caberá aquelas matérias e questões de predominância do interesse geral ao passo que aos Estados referem-se as matérias de predominante interesse regional, e aos municípios concernem os assuntos de interesse local. Em relação ao Distrito Federal, por expressa disposição constitucional (CF, art. 32, § 1º), acumulam-se, em regra, as competências estaduais e municipais, com a exceção prevista no art. 22, XVII da Constituição.
O legislador constituinte dividiu as competências em administrativas e legislativas. Ao analisarmos as competências relacionadas à área da saúde, surge primeiramente a competência administrativa comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios de cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência (CF, art. 23, II). As competências administrativas comuns também podem ser denominadas competências materiais, que pertencem simultaneamente a mais de uma entidade federativa (competências materiais comuns, cumulativas ou paralelas).
Quanto à competência legislativa, a previdência social, proteção e defesa da saúde, constam no rol das matérias elencadas no artigo 24, da CF (inciso XII), o qual prevê as regras de competência concorrente entre União, Estados e Distrito Federal. A competência da União está restrita ao estabelecimento de normas gerais (competência concorrente não-cumulativa ou vertical), enquanto os Estados e Distrito Federal devem especificá-las, através de suas leis (competência suplementar dos Estados-membros e Distrito Federal, conforme disposto no art. 24, § 2º, da CF).
Devido à predominância do interesse local, compete aos municípios os serviços de atendimento municipais, ou seja, devem os municípios prestar, com cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população (CF, art. 30, VII).
1.3.Ações e serviços de saúde
Ao estabelecer como disposição geral (Capítulo I) do Título VIII da Constituição, que a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais (art. 193), o legislador constituinte corroborou-a através da seguridade social, que compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.
Na Seção II do Capítulo II deste Título são enumeradas as disposições concernentes à saúde. O art. 196 prescreve que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Por serem de relevância pública, as ações e serviços de saúde devem ser regulamentados, fiscalizados e controlados pelo Poder Público. Sua execução deve ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
As ações e serviços públicos de saúde devem integrar uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único. Suas regras estão contidas nos incisos do art. 198. Ao discorrerem acerca do Sistema Único de Saúde, Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior[5], esclarecem:
A Constituição preconizou um regime de cooperação entre União, Estados e Municípios, que devem, em comunhão de esforços, incrementar o atendimento à saúde da população.
Cada uma dessas esferas, embora devam agir em concurso e de forma solidária, uma suplementando a outra, tem a sua competência administrativa definida pela Lei n. 8.080/90.
A direção única em cada esfera de governo revela que o SUS tem como gestor federal o Ministro da Saúde, como gestores estaduais os Secretários Estaduais de Saúde e como gestores municipais os Secretários Municipais de Saúde.
A análise do Sistema Único de Saúde será efetivado de maneira pormenorizada no próximo item geral (n. 2) do presente trabalho, quando se pretende discorrer sobre os principais problemas existentes em sua gestão, assim como as conseqüências destes problemas junto à população.
1.4.Financiamento
Em palestra proferida no seminário sobre desigualdades nos sistemas de saúde, organizado pelo Banco Mundial em Washington, Estados Unidos, no dia 10 de abril de 2001, o então Ministro da Saúde José Serra[6] relatou seus esforços quanto à elaboração de uma ementa constitucional que vinculasse aos orçamentos de saúde nas três esferas de governo, de forma gradual (Emenda Constitucional n. 29/2000):
A questão orçamentária da área de saúde envolve não apenas o montante de recursos, mas também a distribuição do financiamento entre as três esferas de governo.
Vivemos um problema típico de um país federalizado onde as três esferas de governo atuam na área de saúde. Nos últimos anos tem sido observado um claro efeito de substituição: o governo federal tem aumentado suas despesas nessa área e os outros, em média (não todos), diminuindo. Como a execução é descentralizada, isto não traz ônus político nenhum às esferas estaduais e municipais, pois é atribuído a elas o crédito das ações financiadas, por recursos federais crescentes. Então, uma vinculação nas três esferas, no caso brasileiro, torna-se indispensável.
De acordo com a Emenda Constitucional n. 29/00, o Sistema Único de Saúde deve ser financiado com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes.
A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios devem aplicar, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados sobre:
I – no caso da União, na forma definida nos termos da lei complementar prevista no § 3º do art. 198 da C.F.;
II – no caso dos Estados e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de que tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios.
III – no caso dos Municípios e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e § 3º.
Lei complementar, que deve ser reavaliada pelo menos a cada cinco anos, estabelecerá:
I – os percentuais de que trata o § 2º do art. 198;
II – os critérios de rateio dos recursos da União vinculados à saúde, destinados aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, e dos Estados destinados a seus respectivos Municípios, objetivando a progressiva redução das disparidades regionais;
III – as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas esferas federal, estadual, distrital e municipal;
IV – as normas de cálculo do montante a ser aplicado pela União.
Nesta emenda há a previsão de elaboração de lei complementar (supra mencionada) para regulamentar o parágrafo 3º do art. 198, que dispõe sobre a aplicação mínima obrigatória que União, Estados e Municípios devem fazer em saúde, a qual tramita no Congresso Nacional (Projeto de Lei Complementar n. 01/2003) e que se encontra irremediavelmente parada.
2.O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE
2.1.Princípios e características
A parte final do art. 196 da CF contém dois princípios constitucionais relacionados à saúde: o princípio do acesso universal e o princípio do acesso igualitário.
Para sua definição, transcrevemos os ensinamentos de Araújo e Nunes Júnior[7]:
O princípio do acesso universal traduz que os recursos e ações na área de saúde pública devem ser destinados ao ser humano enquanto gênero, não podendo, portanto, ficar restritos a um grupo categoria ou classe de pessoas.
O princípio em pauta é complementado logicamente pelo princípio do acesso igualitário, cujo significado pode ser traduzido pela máxima de que pessoas na mesma situação clínica devem receber igual atendimento, inclusive no que se refere aos recursos utilizados, prazos para internação, para realização de exames, consultas, etc.
Neste sentido, o princípio do acesso universal garante atendimento a todas as pessoas, independentemente de cor, raça, religião, local de moradia, situação financeira, etc. Já o princípio do acesso igualitário serve como garantia de que todo cidadão é igual perante o Sistema Único de Saúde e será atendido conforme as suas necessidades.
Os princípios que regem a organização do SUS são três: a descentralização, com direção única em cada esfera de governo, o atendimento integral e a participação da comunidade.
A descentralização é definida como uma redistribuição das responsabilidades quanto às ações e serviços de saúde entre os vários níveis de governo, a partir da premissa de que quanto mais perto do fato a decisão for tomada, mais chance haverá de acerto.
O atendimento integral permite que as ações de saúde sejam combinadas e voltadas ao mesmo tempo para a prevenção e a cura. Ações de promoção, proteção e recuperação da saúde formam um todo indivisível. Este atendimento integral deve, portanto, ser oferecido pela rede pública de saúde e deve envolver a prevenção, o atendimento médico e hospitalar e a assistência farmacêutica (remédios).
A participação dos cidadãos (controle social) é a garantia constitucional de que a população, através de suas entidades representativas, poderá participar do processo de formulação das políticas de saúde e do controle de sua execução, em todos os níveis (do federal ao local). Esta participação deve ocorrer através dos Conselhos de Saúde, órgãos que, de acordo com a disposição constitucional, possuem caráter deliberativo (Lei n. 8.142/90).
As estratégias do SUS estão relacionadas à sua descentralização, com o objetivo de que a execução dos serviços seja comandada e realizada pelos Municípios e pelos Estados, minimizando o papel da União. Também se referem à unicidade de comando pois, embora descentralizado, o sistema passaria a ter um comando único em cada esfera de governo, evitando a duplicação de ingerências, que existia anteriormente, entre as estruturas do INAMPS, do Ministério da Saúde e das secretarias estaduais e municipais. A participação social, como estratégia, vislumbra a participação da sociedade na gestão do sistema, através dos Conselhos de Saúde organizados em cada esfera de governo, com funções de planejamento e fiscalização das ações de saúde.
O SUS integra não apenas as redes federais de saúde, mas também as redes públicas dos Estados e Municípios, embora os hospitais universitários, por exemplo, continuem a pertencer à estrutura das universidades e do Ministério da Educação. Também o subsistema de assistência médica das forças armadas continua isolado, não integrando o SUS.
Em nível estadual, o SUS passou a ser composto pela fusão dos escritórios regionais de saúde (antigas superintendências) às secretarias estaduais de saúde, sendo que suas ações passaram a ser subordinadas ao comando das secretarias. No entanto, nem todos os Estados absorveram as redes do INAMPS por alegarem dificuldades relacionadas às despesas de custeio necessárias à manutenção destas redes. O mesmo ocorreu com os Municípios, ou seja, poucos deles absorveram os estabelecimentos do INAMPS por razões financeiras e por dificuldades de ordem operacional.
Em palestra proferida na Celebração Presidencial Rotary e Saúde Pública, ocorrida em março de 2005, no Rio de Janeiro, Adib Jatene[8], um dos cardiologistas mais respeitados do mundo, ex-Secretário de Saúde do Estado de São Paulo e Ministro da Saúde por duas vezes, colocou em evidência os principais problemas do atendimento médico do país. Ao discorrer especificamente sobre o SUS, advertiu:
Apesar dos problemas, é preciso reconhecer que o setor de saúde se organizou no Brasil, e eu não tenho dúvida ao dizer que talvez seja o único do país com políticas públicas absolutamente claras e estabelecidas. O problema da saúde no país não é a ausência de recursos de alta tecnologia ou profissionais competentes, porque isso nós temos. O nosso desafio é oferecer o acesso à saúde principalmente às populações de baixa renda.
Oferecer o acesso à saúde de modo igualitário a toda população significa reestruturar o Sistema Único de Saúde, adequando-o a uma forma de acordo social abrangente. Ao contrastar a realidade contida no âmbito do direito posto, existem normas no atual sistema jurídico aptas a oferecer o arcabouço necessário a esta reestruturação.
Através do método descritivo de observação da legislação infra-constitucional, assim como da análise dos serviços privados de assistência à saúde, o foco se direciona para o custeio do sistema brasileiro e uma pequena comparação referente ao sistema de saúde norte-americano. Somente através destes enforques será possível obter modos de adequação para modificar o paradigma existente, com vistas ao seu aperfeiçoamento, através de uma nova realidade: as parcerias público-privadas (item 3).
2.2.Disposições da Lei n. 8.080/90
Coube à Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990 a regulamentação das condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes.
É dividida em cinco títulos, nomeadamente: I – Das Disposições Gerais; II – Do Sistema Único de Saúde; III – Dos serviços privados de assistência à saúde; IV – Dos Recursos Humanos, e V – Do Financiamento.
Ao longo de quinze anos de sua edição, tem sofrido algumas modificações, principalmente quanto ao estabelecimento do Sistema Nacional de Auditoria (através do Decreto n. 1.651, de 1995), do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (incluído pela Lei n. 9.836, de 1999), do Subsistema de Atendimento e Internação Domiciliar (incluído pela Lei n. 10.424, de 2002) e do Subsistema de acompanhamento durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato (incluído pela Lei n. 11.108, de 2005).
De fácil percepção torna-se, portanto, o esforço do legislador ordinário quanto à proteção e promoção da saúde pública, objetivando a flexibilização dos seus métodos de funcionamento.
Cumpre ressaltar que os principais focos de mau funcionamento do sistema estão relacionados aos serviços privados de assistência à saúde e à política de recursos humanos na área da saúde, assuntos esses que possuem vertente específica na questão do financiamento, com enormes problemas advindos da insuficiência de fontes de custeio. No entanto, não ocorreram quaisquer modificações quanto a estes aspectos da Lei em questão.
2.3.Serviços privados de assistência à saúde
O art. 199 da Lei Maior consagra a liberdade da iniciativa privada quanto à assistência à saúde, com a ressalva quanto ao aspecto complementar desta iniciativa, segundo as diretrizes do Sistema Único de Saúde, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fim lucrativo. (§ 1º).
Neste mesmo artigo, em seus §§ 2º e 3º, ocorrem vedações quanto à destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos, assim como quanto à participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no País, salvo nos casos previstos em lei.
A Lei n. 8.080/90 postula que os serviços privados de assistência à saúde caracterizam-se pela atuação, por iniciativa própria, de profissionais liberais, legalmente habilitados, e de pessoas jurídicas de direito privado na promoção, proteção e recuperação da saúde.
No entanto, profissionais de grande expressão na área da saúde retratam a atual situação com relatos alusivos a situações que simplesmente fogem do controle, pela vergonhosa pressão que grupos econômicos exercem junto às instâncias dos Poderes constituídos, sobrepujando o interesse privado em detrimento do público.
Como exemplo, transcrevemos as considerações de Jatene[9] sobre a realidade da medicina nos tempos atuais:
Não tenho dúvidas ao dizer que a medicina hoje não é mais comandada por médicos, mas pela indústria de equipamentos, medicamentos e pelos planos de saúde. O doente e o médico são as vítimas desse sistema, que não tem condições de oferecer às pessoas – principalmente as de baixa renda – aquilo que necessitam.
Quanto aos planos de saúde, José Aristodemo Pinotti[10] evidencia a falácia do atual sistema, ao afirmar que “os médicos não têm aumento há oito anos, mas os planos elevaram as mensalidades muito acima da inflação”.
Os problemas referentes a estes planos possuem inúmeras vertentes, contudo, o cerne da questão está na enorme influência exercida por seu poder econômico, com o objetivo de burlar a lei, ao receber empréstimos de órgãos públicos (prática expressamente vedada pela Constituição, como acima mencionado). Tanto é verdade que Pinotti[11] assevera:
Existem hoje três grandes prejudicados na questão dos planos de saúde: usuários, trabalhadores de saúde e hospitais prestadores de serviço. Todos em crise, sem organização nem recursos suficientes para exercer pressão. E quem o governo federal socorre, por meio do BNDES e do Banco do Brasil, com vultosos empréstimos e juros subsidiados? Planos e operadores, possuidores de fortes lobbies, poupados e protegidos pela ANS (Agência Nacional de Saúde), autora da proposta e preocupada muito mais com a saúde financeira dos planos e pouco com a saúde dos usuários.
A Constituição Federal também tem sido considerada letra morta quando são celebrados convênios entre hospitais públicos e planos de saúde. Neste sentido, Lenir Santos[12] enumera diversas transgressões que vêm ocorrendo quanto ao direito à saúde. Uma destas transgressões se refere a estes tipos de convênios, nomeadamente: “convênios entre hospitais públicos e planos de saúde quando a lei garante a gratuidade nos serviços públicos de saúde e determina às operadoras o ressarcimento aos fundos de saúde pelos atendimentos prestados a seus beneficiários em serviços de saúde públicos.”
Quanto à vedação da participação direta ou indireta de empresas ou de capitais estrangeiros na assistência à saúde, a Lei n. 8.080/90 abre uma exceção: os serviços de saúde mantidos, em finalidade lucrativa, por empresas, para atendimento de seus empregados e
dependentes, sem qualquer ônus para a seguridade social (art. 23, § 2º).
Na realidade, a Lei serviu para imiscuir um tipo de auxílio outorgado pelo governo em prática supostamente legal na Administração Pública. Quanto a esta prática, cumpre transcrever as advertências de Pinotti[13]:
Esse auxílio significa fusões, monopólio e internacionalização da saúde suplementar, proibida pela Constituição e agora, paradoxalmente, incentivada pelo governo, que oferece planos de saúde privados aos funcionários públicos, demonstrando falta de confiança na sua política de saúde, enquanto cria freguês bom-pagador para os planos.
Quanto à preferência outorgada às entidades filantrópicas e às sem fins lucrativos para participar do Sistema Único de Saúde, quando as suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, ocorre um grande desequilíbrio pela defasagem na remuneração dos serviços e tentativa de fraudes quanto à filantropia. Os exemplos de Santos[14] corroboram estes fatos:
– Cobrança por fora nos serviços públicos de saúde – fato introduzido em alguns hospitais públicos pelo artifício das fundações de apoio – e que perdura até os dias de hoje, impunemente, sob o argumento de que as fundações de apoio, como entidades privadas que são, podem cobrar pelos serviços que o hospital público presta ao cidadão, em razão de convênios que uma mantém com a outra;
– Tentativa de criação de hospitais estratégicos para o SUS, com o intuito de obtenção de certificação de entidade beneficente de assistência social, tão somente. Isso garantiria a isenção do pagamento à seguridade social, de contribuições sociais importantes, sem nenhuma contribuição relevante para o SUS.
A defasagem na remuneração dos serviços, sem que as tabelas fossem corrigidas de acordo com o crescimento dos custos hospitalares, também tem sido responsável pela crise neste setor. Quanto a este problema, Antônio Brito[15] salienta:
Faz-se necessário que o governo federal, com o apoio do Congresso Nacional, altere e corrija o rumo desta situação aportando novos recursos financeiros ao SUS, sob pena de ocorrer o fechamento das santas casas e hospitais filantrópicos com conseqüência direta e danosa para a sociedade.
2.4.Custeio do sistema
A falta de recursos na área de saúde representa um dos maiores problemas no cenário nacional. A já mencionada Emenda 29, que vincula recursos para a saúde, foi editada com o propósito de equilibrar despesas e receitas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Contudo, a manutenção do sistema e a defasagem de salários de prestadores de serviços nele inseridos atestam a necessidade premente de se perquirir acerca de novos modos de obtenção de financiamento, aptos a cumprir um verdadeiro papel social a pelo 75% da população brasileira (que dependem exclusivamente do SUS, por não possuírem planos ou seguros de saúde).[16]
Ademais, o que realmente traz à baila uma enorme preocupação com o colapso do sistema está claramente evidenciado por Jatene[17], ao aduzir:
Em 2005, a Previdência vai buscar, além do que arrecada, US$ 40 bilhões do orçamento. O serviço da dívida vai buscar outros US$ 160 bilhões. Portanto, somente com a Previdência e o serviço da dívida são consumidos 2/3 do nosso orçamento. O restante é o que sobra para ser aplicado em tudo o mais. A Saúde, evidentemente, tem o maior contingente nesse 1/3 restante, mas isso ainda é absolutamente insuficiente para mantê-la.
Cumpre também ressaltar que a Emenda 29, ao estabelecer pisos de investimento em saúde para a União, Estados, Distrito Federal e Municípios, previu a intervenção quando não ocorrer o cumprimento do exigido.
O que ocorre na realidade das entidades federativas em sua maioria é justamente o descumprimento desta disposição. Como a intervenção é uma medida de alto custo político, outra punição seria a suspensão das transferências de verbas para as entidades descumpridoras. Porém, caso isto ocorresse, a população seria completamente penalizada.
O Ministério da Saúde decidiu então premiar as entidades que cumprem a lei, ampliando suas verbas, ao invés de puni-las. No entanto, caso todas as entidades a cumpram, não haveria recursos suficientes para todas. A pessoa do administrador descumpridor da lei deve ser punida (como ocorre em leis como a Lei da Responsabilidade Fiscal) para que haja uma real punição do indivíduo desidioso e descumpridor do mandamento constitucional.
2.5.Sistema norte-americano
O Departamento de Saúde e Prestação de Serviços Humanos (Department of Health and Human Services)[18] dos Estados Unidos é a principal agência de proteção à saúde de todos os americanos e fornece serviços essenciais nesta área, especialmente para os hipossuficientes. Este departamento coordena mais de trezentos programas relacionados a uma variedade enorme de atividades, tais como:
– pesquisas nas áreas de saúde e ciências sociais;
– prevenção de doenças, incluindo serviços de imunização;
– fiscalização e inspeção de alimentos e medicamentos;
– sistema público de saúde;
– tecnologia da informação na área da saúde;
– assistência financeira e serviços para famílias hipossuficientes;
– incremento da saúde das mães e das crianças;
– educação e serviços pré-escolares;
– incentivo de iniciativas baseadas nas comunidades;
– prevenção ao abuso de crianças e à violência doméstica;
– prevenção e tratamento quanto ao uso de drogas;
– serviços para a terceira idade, incluindo a entrega de refeições nas residências;
– preparo para emergências médicas, incluindo terrorismo.
A assistência médica é fornecida através de inúmeras entidades públicas ou privadas. Existem hospitais sem fins lucrativos, que são mantidos por Estados, ordens religiosas ou organizações não-governamentais. Existem hospitais com fins lucrativos que geralmente são mantidos por grandes corporações privadas. Existem também muitas clínicas especializadas que podem ser mantidas por quaisquer das entidades mencionadas ou podem ser mantidas por uma sociedade (parceria) de profissionais da área da saúde. Finalmente, alguns profissionais desta área trabalham de modo autônomo, ou em grupos, também de maneira autônoma.
Normalmente, um americano em cada quatro se utiliza do sistema público de saúde (Medicare, para idosos e deficientes e Medicaid, para hipossuficientes). A maior parte da população possui seguros de saúde, os quais distribuem os riscos de doenças e custos do tratamento e assistência entre um grupo de pessoas.
Os profissionais da área de saúde cobram do operador de seguros de saúde quando seus serviços são utilizados. Este processo de cobrança é geralmente considerado como um dos piores procedimentos da assistência médica dos Estados Unidos, pelas seguintes razões: a falta de um cartão de identificação nacional faz com que existam muitos procedimentos burocráticos; os operadores se negam a pagar por alguns tipos de cobertura; a enorme fragmentação do sistema força as entidades a perderem muito tempo e dinheiro no processo e muitas destas entidades ainda operam com documentos em papel (não existe um padrão de transmissão digital de dados mantido pelo governo federal).
A maioria das pessoas que não possuem seguros são trabalhadores cujos empregadores não fornecem um plano de seguro em assistência médica e ganham muito dinheiro para poderem estar classificados para participar de planos de assistência fornecidos pelo governo local ou estadual aos hipossuficientes. Estas pessoas também não ganham suficientemente bem para cobrir o custo de seguros de saúde oferecidos individualmente.
Para que haja uma solução quanto a esta falta de cobertura, muitos médicos e analistas econômicos defendem a idéia de nacionalização do sistema de saúde, solução esta adotada em outros países desenvolvidos. Entretanto, tais propostas são politicamente desconsideradas atualmente, principalmente devido à oposição de corporações poderosas que fabricam medicamentos e administram a maioria dos hospitais.
3.A SAÚDE E AS PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS
3.1.Dos contratos de parceira público-privada na área da saúde
Notadamente estruturadas como uma das principais formas de financiamento em infra-estrutura, as parcerias público-privadas vêm se destacando no cenário mundial como uma das formas de viabilização do desenvolvimento sustentável.
Envolvem o fornecimento de ativos e serviços em infra-estrutura pelo setor privado que tradicionalmente foram fornecidos pelo setor público, sendo que já existem programas que foram bem estabelecidos através desta estrutura em países como o Chile, a Irlanda, o México e o Reino Unido.
A adequada transferência de riscos do setor público ao setor privado é um dos maiores requisitos das parcerias, para que sejam alcançados os objetivos almejados pelos consumidores-usuários e pelo Poder Público (serviços de alta qualidade e baixo custo).
Suas vantagens estão relacionadas ao financiamento de projetos que se tornaram inviáveis devido à escassez de recursos. Ao se referir acerca deste assunto, Roger McCormick[19] aduz:
Tais estruturas apresentam vantagens significativas quando comparadas com os mecanismos tradicionais de financiamento do governo, ou seja, arrecadação mediante tributos e empréstimos. A vantagem de maior destaque provavelmente decorre da própria natureza da PPP, e especialmente do seu financiamento pelo setor privado (que é verificado como regra geral), que demanda uma análise excepcionalmente rigorosa (i) dos custos e cronograma e (ii) da possibilidade dos custos efetivos serem suportados, direta ou indiretamente, pelos beneficiários que usufruirão do projeto uma vez concluído (muito embora seja comum a presença de subsídio parcial para o projeto).
Os contratos de parceria público-privada estão situados como a resposta contemporânea ao processo de evolução das funções do Estado, processo esse que teve seu início com as privatizações. Em um segundo momento, os serviços públicos passaram a ser oferecidos através de contratos de concessão, assim definidos por Hely Lopes Meirelles[20]:
Contrato de concessão é o ajuste pelo qual a Administração delega ao particular a execução remunerada de serviço ou de obra pública ou lhe cede o uso de um bem público, para que o explore por sua conta e risco, pelo prazo e nas condições regulamentares e contratuais. Daí a tripartição da concessão em concessão de serviço público, concessão de obra pública e concessão de uso de bem público, consubstanciadas em contrato administrativo bilateral, comutativo, remunerado e realizado intuitu personae.
Hodiernamente, os contratos de parceria público-privada representam um esforço comum do Estado e do setor privado com vistas à consecução do bem estar social. De acordo com o diploma normativo que institui as normas gerais no âmbito da Administração Pública (Lei n. 11.079, de 30 de dezembro de 2004, sobre a qual discorreremos em item subseqüente), parceria público-privada é o contrato administrativo de concessão, na modalidade patrocinada ou administrativa (art. 2º).
Concessão patrocinada é a concessão de serviços públicos ou de obras públicas de que trata a Lei n. 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, quando envolver, adicionalmente à tarifa cobrada dos usuários contraprestação pecuniária do parceiro público ao parceiro privado (art. 2º, § 1º).
Concessão administrativa é o contrato de prestação de serviços de que a Administração Pública seja a usuária direta ou indireta, ainda que envolva execução de obra ou fornecimento e instalação de bens (art. 2º, § 2º).
Estas duas modalidades viabilizam o uso de parcerias em projetos de grande amplitude social e econômica, principalmente aqueles relacionados à construção e operação de hospitais, escolas, presídios, estradas, pontes, túneis, redes de energia elétrica, sistemas de controle de tráfico aéreo e redes de água e esgoto.
O uso das parcerias público-privadas na área da saúde encontraria óbice na própria Constituição Federal, de acordo com os ensinamentos de Maria Sylvia Zanella Di Pietro[21].
É importante realçar que a Constituição, no art. 199, § 1º, permite a participação de instituições privadas “de forma complementar”, o que afasta a possibilidade de que o contrato tenha por objeto o próprio serviço de saúde, como um todo, de tal modo que o particular assuma a gestão de determinado serviço.
Não obstante a singularidade de seus ensinamentos, ressaltamos que os contratos de parceria público-privada na área da saúde, pactuados como modalidade de concessão administrativa, não representam a gestão do próprio serviço pelo setor privado, pois a Administração Pública celebra o contrato como usuária direta deste serviço para oferecê-lo gratuitamente à população e possui toda a responsabilidade quanto à sua execução.
Portanto, pactuados como contratos administrativos, sob a égide do direito público, os contratos de parceria visam precipuamente à realização da supremacia do interesse púbico sobre o interesse privado e possuem condições reais para modificar completamente o atual cenário calamitoso da área da saúde no Brasil. A escolha do legislador ordinário pelo vocábulo “concessão” não foi feita de modo apropriado, pois o contrato de parceria elaborado nos moldes legais representa um verdadeiro comprometimento entre as partes envolvidas, em todas as fases compreendidas neste processo.
3.2.Disposições da Lei n. 11.079/2004
Ao final do ano de 2003, o Poder Executivo apresentou à apreciação da Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n. 2.546 (PL 2.546/2003), o qual previa normas para licitação e contratação das parcerias público-privadas no âmbito da Administração Pública.
Mais de um ano se passou até que o Congresso Nacional decidiu acerca de pontos controversos contidos no Projeto de Lei original. Os Parlamentares contaram com o apoio técnico de especialistas, potenciais participantes em futuros projetos, entidades de classe e juristas para sua finalização, que culminou com a edição da Lei n. 11.079, de 30 de dezembro de 2004.
A presente Lei possui sete capítulos, divididos da seguinte maneira: I – Disposições preliminares; II – Dos contratos de parceria público-privada; III – Das garantias; IV – Da sociedade de propósito específico; V – Da licitação; VI – Disposições aplicáveis à União e VII – Disposições finais.
Após definir as modalidades de contratos de parceria, a Lei veda a celebração destes contratos se o seu valor for inferior a vinte milhões de reais ou o período de prestação de serviço for inferior a cinco anos. Também há vedação caso o contrato tenha como objeto único o fornecimento e instalação de equipamentos ou a execução de obra pública.
O compartilhamento de riscos também possui disposição expressa na referida Lei, como salientam Júlio César Bueno e Victor Madeira Filho[22]:
Na Lei das PPPs, os artigos que regulam a divisão de riscos entre entes públicos e privados correspondem aos artigos 4º, inciso VI e 5º, inciso III. Nota-se, pelo exame de tais dispositivos que as PPPs tentam reduzir o risco que o setor privado incorreria em uma concessão tradicional ou em uma licitação, por meio do estabelecimento de diretrizes impondo a efetiva divisão de riscos em tais negócios.
Alguns pontos de relevância contidos na Lei devem ser analisados de modo específico, para que seja possível relacioná-los com a implementação deste tipo de parceria, com o escopo de reestruturar o Sistema Único de Saúde, ao final.
3.3.Das garantias
As garantias das obrigações pecuniárias contraídas pela Administração Pública em contrato de parceria público-privada poderão ser efetivadas mediante (art. 8º):
I – vinculação de receitas, observado o disposto no inciso IV do art. 167 da Constituição Federal;
II – instituição ou utilização de fundos especiais previstos em lei;
III – contratação de seguro-garantia com as companhias seguradoras que não sejam controladas pelo Poder Público;
IV – garantia prestada por organismos internacionais ou instituições financeiras que não sejam controladas pelo Poder Público;
V – garantias prestadas por fundo garantidor ou empresa estatal criada para essa finalidade;
VI – outros mecanismos admitidos em lei.
O art. 16 prevê a criação, somente para a União, suas autarquias e fundações públicas, de um Fundo Garantidor de Parcerias Público-Privadas no limite global de seis bilhões de reais, que terá por finalidade prestar garantia de pagamento das obrigações pecuniárias assumidas pelos parceiros públicos federais em virtude das parcerias.
Algumas observações pertinentes ao inciso IV do artigo supra relacionado merecem ser transcritas, por seu caráter inovador. Marcelo Viveiros de Moura e Décio Pio Borges de Castro[23] se referem à garantia prestada por organismos internacionais da seguinte maneira:
Caso a Administração Pública obtenha garantias por parte de órgãos internacionais de financiamento, tais como o Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, a Organização para a Cooperação Econômica e Desenvolvimento – OCDE, a Corporação Financeira Internacional – IFC, o Banco Japonês para a Cooperação Internacional – JBIC ou a Multilateral Investment Guarantee Agency (MIGA), ou de bancos privados que não sejam controlados pelo Poder Público, desde que respeitadas as regras aplicáveis ao contingenciamento de crédito ao setor público, definidas pelo Conselho Monetário Nacional e emitidas pelo Banco Central do Brasil, tais garantias poderão ser oferecidas, também aos financiadores dos projetos de PPPs.
A segurança necessária para atrair o parceiro privado como participante nas parcerias será alcançada através da transparência e facilitação relacionadas à existência destas garantias. O Fundo Garantidor possui forte expressão quanto à concretização do interesse privado. A autorização de integralização de cotas do Fundo Garantidor ocorreu com a publicação do Decreto n. 5.411, de 6 de abril de 2005, mediante ações representativas de participações acionárias da União em sociedades de economia mista disponíveis para venda.
3.4.Da sociedade de propósito específico e da licitação
O art. 9º estabelece a constituição de uma sociedade de propósito específico, incumbida de implantar e gerir o objeto da parceria, antes da celebração do contrato.
Em comentário específico sobre esta sociedade, Toshio Mukai[24] aduz:
Ocorreu aqui uma cópia da idéia prevista na Lei n. 8.987/1995, que obriga, no caso de consórcio, que as empresas consorciadas constituam uma nova empresa para dar execução ao contrato de concessão, tratando-se aí de uma exigência facultativa do poder concedente (art. 20).
No caso da sociedade de propósito específico, ela representa o instrumento legal da parceria público-privada, posto que deveria ser constituída tendo como sócias a empresa vencedora da licitação e o órgão ou entidade que promove a parceria mediante licitação.
Também há disposição específica sobre a possibilidade da sociedade assumir a forma de companhia aberta, com valores mobiliários admitidos a negociação no mercado.
Existem restrições quanto à composição do capital e ao controle da sociedade, que se referem à impossibilidade de a Administração Pública ser a titular da maioria do capital votante da sociedade e à necessidade de autorização prévia da Administração Pública para a transferência de seu controle, nos termos do edital e do contrato, consoante a legislação pertinente.
Guilherme Leite[25] considera estas restrições vantajosas, ao observar:
Dessa forma, o parceiro privado e os financiamentos do projeto terão maior conforto quanto à condução da implantação e da gestão da PPP, que estará a cargo da SPE e seus controladores privados. Conseqüentemente, a estrutura societária da SPE deverá mitigar o risco de ingerência do Estado na implantação e gestão das PPPs.
O capítulo V da Lei n. 11.079/2004 estabelece as regras gerais sobre licitações no âmbito das parcerias. Pela relevância deste tema (forma de escolha do parceiro privado), merecem destaque os comentários de Renato Poltronieri[26]:
Não há qualquer dúvida sobre a necessidade vital para a Administração respeitar o interesse público na destinação dos recursos sob sua responsabilidade, atender com eficiência as necessidades supridas pelo serviço público, fazer valer sua função constitucionalmente prevista de “poder executivo”, sem delegá-la em hipótese alguma, e respeitar as demais normas que norteiam sua atuação, com destaque especial e peremptório para a legalidade das parcerias, como a Lei de Responsabilidade Fiscal, a Lei de Licitação e Contratos Administrativos e a Lei de Concessão de serviços públicos.
O controle fiscal deste novo instrumento de contratação é um dos principais pontos de manifestação de seu grau de falibilidade. A Lei evidencia a observância dos limites e condições decorrentes da aplicação da Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal) como condicionamento da abertura do processo licitatório (art. 10, I, b), sendo que a responsabilidade fiscal surge como diretriz à contratação das parcerias (art. 4, IV).
A transparência objetivada pelo controle fiscal somente pode ser atingida com a aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal na celebração e execução das parcerias, tema oportunamente analisado por Vanice Lírio do Valle[27], que preleciona:
Se a observância aos parâmetros da gestão fiscal responsável constitui elemento de legitimação da escolha pela particular modalidade das parcerias público-privadas, a modificação dessas mesmas condições subtrai da opção administrativa o seu fundamento de legitimidade, devendo determinar as ações corretivas que a situação em concreto exija.
Isso significa dizer que tão importante quanto os esforços iniciais de planejamento da parceria serão aqueles de acompanhamento dos termos de sua execução.
As peculiaridades existentes na Lei quanto à licitação das parcerias são enumeradas por Ricardo Pagliari Levy e Vânia Marques Ribeiro[28], da seguinte maneira:
– Licitação por concorrência;
– Inversão das fases de habilitação e propostas;
– Lances em viva voz;
– Proposta técnica eliminatória;
– Condições de celebração do contrato de PPP pelo segundo colocado;
– Saneamento de falhas na habilitação e propostas.
Será instituído, por decreto, órgão gestor de parcerias público-privadas federais, com competência para (art. 14):
I – definir os serviços prioritários para execução no regime de parceria público-privada;
II – disciplinar os procedimentos para celebração desses contratos;
III – autorizar a abertura da licitação e aprovar seu edital;
IV – apreciar os relatórios de execução dos contratos.
O decreto referido foi publicado em 4 de março de 2005, sob o número 5.385.
3.5. Disposições da Lei n. 11.107/2005
A Lei n. 11.107, de 6 de abril de 2005, dispõe sobre normas gerais de contratação de consórcios públicos para a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, para a realização de objetivos de interesse comum.
Este diploma legal é de suma importância para a perfeita organização, direção e gestão do Sistema Único de Saúde e vem preencher uma lacuna há muito tempo existente na legislação pátria. Tanto é assim que existe disposição de aplicação na referida Lei quanto ao SUS (art. 1º, § 3º).
Os principais pontos de relevo estão relacionados à atribuição de personalidade jurídica aos consórcios públicos e à possibilidade de serem integrados por entes de níveis federativos distintos.
Consoante o estabelecido no art. 6º desta Lei, o consórcio público adquirirá personalidade jurídica:
I – de direito público, no caso de constituir associação pública, mediante a vigência das leis de ratificação do protocolo de intenções;
II – de direito privado, mediante o atendimento dos requisitos da legislação civil.
O consórcio público com personalidade jurídica de direito público integra a administração indireta de todos os entes da Federação consociados (art. 6º, § 1º).
No caso de se revestir de personalidade jurídica de direito privado, o consórcio público observará as normas de direito público no que concerne à realização de licitação, celebração de contratos, prestação de contas e admissão de pessoal, que será regida pela Consolidação das Leis do Trabalho – CLT (art. 6º, § 2º).
Antes do advento desta Lei, os consórcios públicos poderiam ser formados tão somente por entes federativos da mesma espécie, sendo esta a principal diferença entre os convênios, que admitiriam entes de níveis federativos diferentes.
Doravante, a distinção entre eles deve se embasar na atribuição de personalidade jurídica aos consórcios, estando os convênios caracterizados como acordos de atuação conjunta com limitação temporal.
A título de ilustração, Ribamar Oliveira[29] descreve o surgimento do primeiro consórcio público após a publicação da nova Lei:
O governo federal, o governo do Piauí e 36 prefeituras do sul daquele Estado vão assinar, no dia 6 de junho, o primeiro consórcio público constituído com base nas regras da Lei 11.107, aprovada em abril. O consórcio será criado para levar água potável aos moradores daqueles municípios, que se encontram em uma das regiões de pior IDH do País. O investimento previsto é de R$ 10 milhões, sendo que a União entrará com 90% dos recursos e o Piauí com 10%.
3.6.A reestruturação do SUS nos entes federativos
Em face de todos os aspectos adrede dispostos, vicejamos a possibilidade de iniciar digressões acerca de uma nova estrutura do Sistema Único de Saúde, que se adeque às urgentes necessidades de serviços que correspondam aos anseios de toda a população brasileira.
Primeiramente, gostaríamos de elevar a prevenção nesta área a um patamar muito mais abrangente. A prevenção universal na área da saúde está diretamente relacionada à qualificação continuada de todos os profissionais da saúde.
Ao se perquirir sobre uma estimativa do custo humano de profissionais despreparados, verificamos dados divulgados através da mídia sobre estudo recém-divulgado pela empresa norte-americana Health-Grades Inc., que sugere que cento e noventa e cinco mil pessoas morram por ano em hospitais dos Estados Unidos devido a erros médicos preveníveis.
No Brasil, notícias sobre problemas de atendimento envolvendo erros médicos são constantes em todos os veículos de comunicação. Destarte, posicionamo-nos inteiramente a favor da criação de um exame de habilitação para a prática da medicina, nos moldes idealizados por Pinotti[30], ao discorrer sobre a proteção de pacientes e médicos:
A única crítica que fiz ao provão do ministro Paulo Renato foi a da timidez de não avançar para o exame de Estado, que significa a proteção que o governo tem obrigação de dar aos cidadãos, garantindo-lhes profissionais competentes em áreas essenciais – entre as quais a principal é a saúde. Quase todos os países desenvolvidos já o praticam com muita seriedade. Em vários deles a permissão do exercício da medicina é renovada periodicamente e um exame é realizado especificamente para a prática da maioria das especialidades.
Aludimos, a seguir, à implantação de um sistema de organização, planejamento e fiscalização na área da saúde embasado nos diplomas legais até então analisados.
Tal sistema pode ser elaborado de acordo com o uso de instrumentos legais como os consórcios públicos, corroborando a descentralização necessária à execução de serviços e concomitantemente, unificando a gestão, com vistas à fiscalização imprescindível nesta seara.
Salientamos exatamente o que está contido na própria Lei 8.080/1990, art. 10, § 2º, in verbis:
Art. 10. Os municípios poderão constituir consórcios para desenvolver em conjunto as ações e os serviços de saúde que lhes correspondam § 2º. No nível municipal, o Sistema Único de Saúde (SUS), poderá organizar-se em distritos de forma a integrar e articular recursos, técnicas e práticas voltadas para a cobertura total das ações de saúde.
A eficácia plena do dispositivo transcrito pode ser atingida através da personificação dos consórcios públicos doravante contratados e conseqüente ratificação do protocolo de intenções dos entes federados envolvidos.
Este passo se afigura como o primeiro para uma real modificação do atual Sistema. O segundo, e mais importante passo se refere ao maior problema contido neste Sistema: seu financiamento. A população se encontra, atualmente, perplexa diante da descoberta de uma série de acontecimentos que levam a crer que uma das razões pelas quais não existem recursos suficientes para o custeio do Sistema é a corrupção escandalosa, capaz de retirar um mínimo de esperança que todos os brasileiros ainda possuíam em um futuro melhor.
Se o atual sistema político favorece o desvio de dinheiro público por maneiras bastante diversificadas, resta à população varrer do cenário nacional aqueles que o incentivam e vivem às suas custas, com sua exemplar punição e perpétua inelegibilidade. A outra mobilização está relacionada à união da classe média em torno de soluções viáveis ao alcance do bem estar social. Esta mobilização é possível caso haja interesse da classe média em se unir de maneira organizada para poder participar do financiamento direto das parcerias público-privadas na área da saúde, desvinculando-se de planos oferecidos por operadoras que não possuem limitações para seus lucros absurdos.
Sugerimos a possibilidade de regulamentação para viabilizar a formação de sociedades anônimas de profissionais da saúde, que possuam condições econômicas de participação em processos licitatórios de parcerias público-privadas, através do incentivo de oferta de ações localizadas em cidades que sejam sedes administrativas de distritos do Sistema Única de Saúde.
A principal vantagem desta possibilidade de participação e abertura de oferta de ações é a conscientização da população que possui recursos para investir, em um sistema que atenda à suas necessidades e às necessidades daqueles que habitam naquela mesma região.
Após o processo licitatório e conseqüente escolha do parceiro privado representado por uma sociedade (ou até mesmo joint ventures em grandes centros), o aporte de recursos para incremento de todas as ações e serviços relacionados ao atendimento à saúde podem ser viabilizados através da utilização dos direitos creditórios (ou recebíveis) decorrentes dos projetos de PPP para captar recursos junto ao mercado, através de operações de securitização de recebíveis, disponibilizadas pelas sociedades de propósito específico.
A regulamentação objetiva o incremento da pulverização de valores mobiliários junto a pequenos investidores para que um maior número de pessoas possam se beneficiar. Os rendimentos recebidos por estes investidores podem cobrir os custos da utilização do sistema de saúde que eles mesmos sustentam através de seu investimento, caso assim lhes aprouver.
As operações de securitização de recebíveis são efetivadas através de Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDCs), criados através da Resolução n. 2.907, emitida pelo Banco Central em 29 de novembro de 2001 e regulamentada pela Instrução n. 356, da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), em 17 de dezembro de 2001.
As características dos FIDCs são descritas por Simone Gordon e Bruno Dalarossa Amatuzzi[31]:
Os FIDCs têm, entre outras características, o dever de destinar parcela preponderante de seu patrimônio líquido, ou seja, mais de 50% de sua carteira, à aplicação em direitos creditórios. Interessante notar ainda que, de acordo com as regras aplicáveis aos FIDCs, praticamente todo tipo de recebível, quer seja originado no setor público, quer seja originado no setor privado, pode ser objeto de securitização via FIDC.
O art. 23 da Lei das parcerias autoriza a União a conceder incentivo, nos termos do Programa de Incentivo à Implementação de Projetos de Interesse Social (PIPS), instituído pela Lei 10.735, de 11 de setembro de 2003, às aplicações em fundos de investimento, criados por instituições financeiras, em direitos creditórios provenientes dos contratos de parcerias público-privadas.
O incentivo à formação de sociedade em regiões nas áreas correspondentes ao Norte, Nordeste e Centro-Oeste, para participação nos projetos de parcerias na área da saúde contará com fontes de recursos financeiros disponibilizadas pela própria Lei das parcerias (art. 27, § 1º).
É possível antever o uso legitimador do princípio da eficiência pela Administração Pública, caso as propostas alhures detalhadas possam ser implementadas, devido ao incremento de recursos para o atendimento aos usuários do Sistema Único de Saúde em hospitais, ambulatórios, laboratórios e demais dependências necessárias, que façam parte de cada distrito pertencente ao consórcio público (parceiro público) contratado com o parceiro privado, e a total transparência quanto ao recebimento dos recursos públicos, viabilizada pela fiscalização permanente de todos os acionistas envolvidos.
O princípio da eficiência não conterá mais um sentido retórico, como salientado por Maria Paula Dallari Bucci[32]:
Diga-se que o desmantelamento de setores do serviço público-particularmente notável nas áreas da educação (universidades federais), previdência e saúde, concomitantemente ao estímulo estatal à formação de mercados privados nesses mesmos campos (universidades privadas, previdência privada, saúde privada) -, sob o discurso da maior eficiência das formas privadas, justifica temores em relação a esse uso retórico do princípio.
O entrelaçamento do interesse público com o interesse privado, especificamente através deste novo tipo de parceria público-privada na área da saúde é fruto da expansão e perda de homogeneidade do conceito primário de interesse público. E é com o intuito de oferecer uma proposta de solução passível de adaptação a um ordenamento inflexível como o ordenamento jurídico pátrio, que não pode mais co-existir em face da realidade dos fatos sociais, que nos socorremos das lições de Diogo de Figueiredo Moreira Neto[33] para finalizar nosso pensamento:
Em razão dessa expansão e perda de homogeneidade, tanto podem existir interesses privados submetidos a tutela e representação pública, como interesses públicos eventualmente submetidos a tutela e representação privadas. As interpenetrações são de todo tipo, produzindo, no amplíssimo campo dos direitos difusos, caracterizados pela comunhão de interesses de fato, inumeráveis entidades de toda natureza, compreendidas no novo conceito do continuum Sociedade-Estado. Tais entidades já não se afiguram nem totalmente estatais nem totalmente privadas, co-participando, simultaneamente, da natureza pública e da privada, daí a sua submissão a diversas modalidades de regimes mistos, existentes e em surgimento.
CONCLUSÃO
Em face do exposto, conclui-se que a dignidade da pessoa humana alcançada através do direito à saúde existirá caso não ocorra a privatização disfarçada de políticas públicas fundamentais sob a ingerência de fortes lobbies protegidos pela alta cúpula dos Poderes constituídos e os ocupantes de seus cargos de confiança.
O poder de controle social a ser exercido por uma parcela significativa da população é capaz de desencadear uma série de reações aptas a organizar entidades que efetivamente se preocupem e mobilizem, para que aqueles que majoritariamente estão à margem de qualquer pequeno indício de justiça social, sejam conscientizados de seus direitos constitucionalmente disponibilizados.
Homens públicos que já possuíram o dever de administrar a saúde se manifestaram quanto à importância da passagem do financiamento à saúde baseado na oferta de serviços ao atendimento baseado na demanda de serviços. Esta passagem pode ser executada através da implementação das parcerias público-privadas na área da saúde, pois com o atual Sistema, a falta de controle e regulação levam a situações em que as pessoas que recebem o serviço não sabem se o que está sendo pago corresponde ao que recebeu e o Estado pagador não sabe se o serviço foi prestado.
Os princípios do acesso universal e do acesso igualitário serão respeitados em sua plenitude, pois é possível aumentar o aporte de recursos para a saúde com a flexibilização de seu financiamento para investidores pessoas físicas e pessoas jurídicas de modo pulverizado, para que a idéia de monopólio de fato seja afastada.
Quando pequenos investidores se unirem para apresentar um projeto de estruturação de um plano de saúde a ser oferecido por cada distrito pertencente a um contrato de parceria público-privada, poderão apresentar propostas que estejam realmente adequadas à realidade e os fortes lobbies existentes na atualidade não possuirão clientes para explorar. O mesmo pode certamente ocorrer com grandes corporações transnacionais da indústria farmacológica.
Contudo, a maior conquista deste novo sistema será a inclusão de entidades filantrópicas deficitárias para reformá-las, adaptá-las e modernizá-las, com um corpo de profissionais adequadamente habilitados com recursos provenientes deste mesmo sistema. Esta conquista torna-se-á realidade devido a um processo de fiscalização jamais concebido, pois existirão tantos interesses em jogo, que um mínimo desvio ou tentativa de fraude será escancarada por aqueles que estão trabalhando naquele local específico e que, como co-participante e colaborador do sistema, será penalizado economicamente e administrativamente, em caso de fraudes ou desvios.
O uso impróprio do termo “concessão” para caracterizar as parcerias público-privadas no direito pátrio não poderá estar acima do interesse de toda a população. Neste momento ressalte-se que embora haja certos pontos em comum entre as PPPs e as concessões, há numerosas divergências que não permitem a utilização da legislação criada para reger as concessões sem que se crie um ambiente legal específico para as PPPs. Lutamos para que este ambiente legal seja criado na área da saúde, para que, em um futuro próximo, não compartilhemos da dor e desesperança de todos os que sofrem por não terem total acesso a seu direito fundamental à saúde.
Mestre em Direito Administrativo, com ênfase em Obrigações Públicas pela Universidade Estadual Paulista (UNESP); Bacharel em Direito pela Universidade Estadual Paulista (UNESP); Advogada militante em Franca (SP), também atuando junto à Procuradoria Geral do Estado, através do Convênio com a Ordem dos Advogados (São Paulo); autora de artigos jurídicos no âmbito do Direito Obrigacional Público, Direito Administrativo, Direito Comercial e Direito Internacional e colaboradora do Jornal “Comércio da Franca”.
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