Resumo: O objetivo deste ensaio é evidenciar e discutir a aplicação da nova figura da absolvição sumária no âmbito da Justiça Militar brasileira. Essa discussão tem início com o advento da Lei nº 11.719, de 20 de junho de 2008, incluída no rol daquelas que compõem a chamada reforma do processo penal, a qual fez surgir uma nova espécie de resolução antecipada do mérito no Código de Processo Penal — a absolvição sumária. Até então, existia um instituto semelhante no CPP, todavia com alcance restrito ao rito especial do tribunal do júri. Já a nova figura, a partir da edição da novel Lei 11.719/08, teve sua utilização ampliada para todos os outros procedimentos. Desse modo, cumpre verificar, e este é o ponto central deste trabalho, se esse recente instituto é aplicável ao processo penal militar, já que este se pauta no Código de Processo Penal Militar, ou seja, uma lei especial. Outrossim, essa nova absolvição sumária terá sua incidência, pondo fim ao processo logo no seu início, quando houver, dentre outras hipóteses, a manifesta existência de uma causa excludente da ilicitude do fato, por exemplo. Assim, já se pode vislumbrar a importância do mecanismo em tela, por tornar possível a extinção do processo criminal logo após o início da sua formação, interrompendo os seus danosos efeitos para o réu. Em relação a essa função também será dado um destaque especial.
Palavras-chave: Absolvição sumária. Código de Processo Penal Militar. Justiça militar. Reforma do CPP.
Sumário: Introdução; 1 A nova absolvição sumária: características do instituto; 2 Absolvição sumária e sua aplicação na Justiça Militar: enfrentamento da questão; 3 A relevância da absolvição sumária; 4 Conclusão.
INTRODUÇÃO
O processo penal militar brasileiro, tanto na esfera federal quanto na estadual, é dirigido pelas normas do Decreto-lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969, Código de Processo Penal Militar. Isto é o que se depreende do seu art. 1º, o qual estabelece: “O processo penal militar reger-se-á pelas normas contidas neste código, assim em tempo de paz como em tempo de guerra, salvo legislação especial que lhe for estritamente aplicável”.
A partir dessa premissa, convém examinar se a Lei nº 11.719, de 20 de junho de 2008, que compõe, juntamente com as Leis 11.689 e 11.690, a denominada reforma processual penal, tem alguma aplicação no processo penal militar. A causa dessa discussão advém da redação do novo § 4º do art. 394 do Código de Processo Penal comum, inserido pela Lei nº 11.719/08. Esse dispositivo prevê a incidência de alguns dos artigos do CPP, mais precisamente dos arts. 395 a 398, mesmo nos procedimentos penais de primeiro grau que não sejam regulados por este Código.
Contudo, observa-se que a questão transcende a mera previsão legal, principalmente quando se trata da absolvição sumária, que é o foco do estudo. Isto porque esse instituto tem por escopo pôr fim ao processo penal, nos casos em que haja subsídios para isso, logo no seu início.
Por tais razões, conhecendo-se todos os dissabores que um processo criminal traz para o acusado, a absolvição sumária mostra-se como importante instrumento de garantia. Essa qualidade do mecanismo em apreço será aprofundada no decorrer desta explanação, evidenciando seu caráter garantista, de extrema importância em um Estado Democrático de Direito.
Por sua vez, apresentar-se-á também a posição doutrinária sobre o assunto em foco. Consoante poderá ser percebido, ainda existem divergências, entre os estudiosos do tema, sobre a aplicabilidade ou não da absolvição sumária na Justiça Militar.
1 A nova Absolvição sumária: características do instituto
A Lei nº 11.719/08, uma das legislações responsáveis pela chamada reforma processual penal de 2008, inaugurou um novo tipo de resolução antecipada do mérito no processo penal: a absolvição sumária. Na verdade, ampliou a utilização de um instituto semelhante já existente, só que de menor abrangência, antes restrito ao procedimento especial do júri. O anterior era previsto no art. 411 do CPP [hoje, passou a ser regido no art. 415].
A nova figura da absolvição sumária encontra-se na redação do atual art. 397 do Código de Processo Penal. Esse dispositivo elenca em seus quatro incisos as hipóteses em que o magistrado, se verificar alguma delas, deverá absolver sumariamente o acusado. São elas: a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato; a evidência de que o fato narrado não constitui crime (fato atípico); a extinção da punibilidade do agente; a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente (exceto inimputabilidade).
Em relação à última hipótese de absolvição sumária, qual seja, a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade, vale verificar o porquê da exceção da inimputabilidade do agente. Luiz Flávio Gomes, Rogério Sanches e Ronaldo Batista (2008, p. 340) explicam:
“A razão é óbvia: sendo inimputável o agente (por doença mental, v. g.), há necessidade de que o processo seja regularmente instaurado, com a respectiva produção de prova em juízo e observância de todo o trâmite legal, que culminará ou com a absolvição própria do réu ou com a absolvição imprópria, assim entendida aquela que reconhece que o fato é típico, ilícito, mas não impõe pena, senão medida de segurança.”
Dessa maneira, conforme precisa lição de Andrey Borges de Mendonça (2008, p. 275), “a nova sistemática, diversamente da anterior, permite ao juiz absolver o acusado se comprovada qualquer situação prevista no artigo em análise, especialmente em razão dos elementos trazidos pela defesa inicial”.
Quanto a essa defesa inical, citada pelo autor, ela está presente, também a partir da Lei nº 11.719/08, nos arts. 396 e 396-A do CPP. Esses artigos estabelecem a apresentação de uma defesa escrita pelo acusado, depois de recebida a denúncia, no prazo de dez dias. Segundo leciona Ivan Luís Marques da Silva (2008, p. 36-37):
“Poderá a defesa argüir preliminares (como as exceções de incompetência, litispendência e coisa julgada) e alegar tudo o que interessar, ou para reforçar uma tese defensiva ou para fragilizar o alegado pela acusação na denúncia/queixa já regularmente recebida pelo magistrado.”
Assim sendo, a partir da entrega da resposta escrita, logo após o recebimento da peça acusatória inicial, o magistrado, com base nessa defesa, poderá absolver sumariamente o acusado. Isto é, conforme ensinamento de Yordan Moreira Delgado e Werton Magalhães Costa (2009, p. 84), “se o juiz, ao ter o primeiro contato com a denúncia no procedimento ordinário, poderia tê-la rejeitado, mas a recebeu, poderá, neste segundo momento, tendo contato com a resposta escrita do acusado, absolvê-lo sumariamente […]”. E isso impedirá o desenrolar de todo um processo criminal que já poderia ter sido extinguido antes mesmo da sua formação.
Em última análise, a Lei 11.719/08 dispôs expressamente, através da inclusão do § 4º no art. 394 do CPP, que alguns dos novos procedimentos seriam empregados também fora deste Código. Mais precisamente, esse novel parágrafo “estabelece que as disposições dos arts. 395 a 397 do CPP (o art. 398 foi revogado) aplicam-se a todos os procedimentos penais de primeiro grau, ainda que não regulados no CPP” (FEITOZA, 2008, p. 75). Logo, como a absolvição sumária está inserida no art. 397 do CPP, enquadra-se nessas regras e reclama sua aplicação em qualquer procedimento penal de primeiro grau.
Neste momento, surge a discussão sobre a aplicabilidade da absolvição sumária no âmbito da Justiça Militar, sendo que a competência desta é, em regra, pautada nas normas do Código de Processo Penal Militar. Isso é o que será examinado a seguir.
2 Absolvição sumária e sua aplicação na justiça militar: enfrentamento da questão
Com o advento da Lei nº 11.719/2008, sobreveio o seguinte questionamento: a absolvição sumária aplica-se na esfera da Justiça Militar? Posta assim a questão, ver-se-á que a mesma ainda não é pacífica entre os doutrinadores, o que demanda um estudo pormenorizado dessa nova espécie de resolução antecipada do mérito no processo penal e seus reflexos na Justiça Militar.
Assim, posicionando-se sobre a nova reforma do CPP e sua relação com a Justiça Militar, Célio Lobão (2009, p. 502) expõe:
“[…] não se justifica a adoção, na Justiça Militar, das alterações do Código de Processo Penal constantes das referidas Leis 11.690 e 11.719, dentre as quais destacamos: a resposta por escrito da acusação (art. 396 do CPP); absolvição sumária (art. 397 do CPP); interrogatório do réu, após a produção de prova testemunhal (art. 531 do CPP). […]
Não se justifica porque […] o art. 1º das duas leis citadas dispõe, claramente, que os artigos do Código de Processo Penal enumerados “passam a vigorar com a seguinte redação”, ou com “as seguintes alterações”. Portanto, “alterações” ou nova “redação” somente dos artigos do Código de Processo Penal citados expressamente nos dois diplomas legais, e não, igualmente, do Código de Processo Penal Militar.”
Em que pese o entendimento do eminente autor, essa não parece ser a melhor interpretação. Realmente o art. 1º da Lei nº 11.719/08 explicita que a lei traz “nova redação” para os artigos do CPP ali indicados. Ora, acontece que justamente uma dessas novas redações, mais especificamente a do § 4º do art. 394 do CPP, dispôs expressamente que as regras dos arts. 395 a 398 devem ser utilizadas em todos os outros procedimentos de primeiro grau. E isso independentemente de serem regulados pelo Código de Processo Penal comum.
Em conseqüência disso, a absolvição sumária, que está prevista no art. 397 do CPP (logo, entre os arts. 395 e 398) deve ser aplicada em qualquer procedimento de primeiro grau, inclusive naqueles estabelecidos pelo Código de Processo Penal Militar.
Ademais, esse fenômeno não é novidade no nosso direito. A Lei nº 9.099/95, Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, por exemplo, em seu art. 88, modificou a ação penal nos crimes de lesão corporal leve ou culposa. Nessas situações, a ação penal passou a ser pública condicionada à representação (antes era incondicionada) em todos os outros procedimentos penais. A exceção ficou apenas restrita à Justiça Militar, mas, nesse caso em especial, por vedação expressa do art. 90-A da própria Lei nº 9.099/95. Como se vê, uma lei específica trouxe um dispositivo aplicável a qualquer outro procedimento penal. Foi exatamente isto que ocorreu com a figura da absolvição sumária, só que, desta vez, sem nenhuma reserva quanto ao seu uso na Justiça Militar.
Nesse sentido, Denilson Feitoza (2009, p. 1000-1001) leciona:
“Pensamos que a absolvição sumária é aplicável a quaisquer processos penais, sejam comuns, eleitorais ou militares, tendo em vista a forma categórica e abrangente com que o art. 394, § 4º, do CPP afirmou sua aplicabilidade a todos os procedimentos penais de primeiro grau, ainda que não regulados no CPP […].
Nessa linha, qual seria o fator diferencial entre um réu no processo penal comum e outro no processo penal militar que justificaria que o primeiro pudesse ser protegido, via absolvição sumária, contra denúncias “manifestamente ilegais” (já que manifesta existência de causa excludente de ilicitude ou culpabilidade etc.), inclusive com o status de absolvido, enquanto o último não?”
Além do mais, a questão não pode ficar limitada ao aspecto legal, ou melhor, à sua previsão em lei. Esse pode até ser o ponto de partida da discussão, mas não deve representar a sua delimitação. A absolvição sumária possui um caráter garantista em favor do acusado, quando este se acha manifestamente amparado por uma norma legal, tal como o estado de necessidade, v. g. Pois, se o magistrado já tem elementos suficientes para produzir uma cognição exauriente logo no início da ação penal, não tem motivos para aguardar todo o desenrolar do processo e só então proferir a decisão absolutória.
Sobre esse aspecto, vale conferir as palavras de Gilmar Mendes, Inocêncio Coelho e Paulo Gustavo Branco (2009, p. 537):
“Assim, não se afigura admissível o uso do processo penal como substitutivo de uma pena que se revela tecnicamente inaplicável ou a preservação de ações penais ou de investigações criminais cuja inviabilidade já se divisa de plano. Tem-se, nesses casos, flagrante ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana.”
Como se observa, a questão está intimamente ligada ao princípio da dignidade da pessoa humana. De outra forma, submeter um indivíduo a um processo criminal desnecessário, seja na justiça comum ou militar, mostra-se algo flagrantemente ofensivo a esse princípio fundamental, que é um dos alicerces do Estado Democrático de Direito.
3 A relevância da absolvição sumária
Ao tecer comentário acerca dos efeitos do tempo e do espaço durante a execução da pena privativa de liberdade, Ana Messuti (2003, p. 44) analisa que:
“A qualidade do tempo que se vive durante a pena, por ser precisamente “o tempo da pena”, não pode ser a mesma daquele que vive livre de pena. Qualquer atividade que se realize durante esse tempo não será verdadeira atividade, estará impregnada do tempo e do espaço da pena. Ainda que aparentemente esteja em movimento, o sujeito da pena está imobilizado em determinado espaço, no qual transcorre um tempo diferente. E esta imobilidade poder-se-ia qualificar de espera”.
Ocorre que aqueles que respondem a um processo criminal são afetados de igual forma por efeitos parecidos. No tempo em que perdura a ação penal, o acusado não vive, em toda sua plenitude, o seu direito à liberdade, pois sempre há o temor de vir a ser condenado ao término da ação penal. Essa dúvida somente será dissolvida por completo no momento da sentença. Porém, até lá, já se terá experimentado todas as agruras trazidas pelo enfrentamento, na condição de réu, a um processo penal, com todos os seus efeitos estigmatizantes.
Justamente aí reside a grande importância do instituto da absolvição sumária. Isto é, em se evitar todos esses constrangimentos para um indivíduo que agiu nitidamente acobertado pela legítima defesa, por exemplo. Se existe a possibilidade de formação de um juízo de certeza sobre essa excludente logo no início do processo, não há razão em absolvê-lo somente após todo o trâmite do processo criminal. E isso vale, certamente, também para o processo penal militar, pois não existem justificativas plausíveis para um entendimento contrário.
Ao tratar da resolução antecipada do mérito no processo penal, da qual é espécie a absolvição sumária, Nestor Távora (2009, p. 27) ressalta a importância desse mecanismo, in verbis:
“O julgamento antecipado do mérito pode ser adequado a situações que imponham decisões absolutórias. A atual redação do art. 397 [dispositivo da absolvição sumária], do Código de Processo Penal, não merece reparos no ponto. No entanto, quando se está diante de julgamento antecipado que implique restrições às liberdades individuais, a visão instrumentalista deve sofrer restrições, pois o processo não se resume a simples meio de realização do direito penal [seja penal comum, seja penal militar], mas antes é fim, especialmente porque viabiliza rol de garantias constitucionais processuais penais.”
Tendo em vista essa carga garantista é que o legislador ampliou a utilização da absolvição sumária para quaisquer procedimentos penais de primeiro grau, sem distinções. Modificação esta que evidentemente não excluiu o direito processual penal militar. E não poderia ser diferente, uma vez que aquele que é réu em um processo penal militar sofre das mesmas mazelas e estigmas enfrentados por quem é submetido a um processo penal comum.
4 conclusão
Em suma, como foi observado até aqui, o nobre instituto da absolvição sumária passa a ter incidência também no processo penal militar. Tanto à luz do texto da nova reforma processual penal, quanto pela sua relevância como garantia processual intimamente ligada à própria liberdade do réu, a absolvição sumária não poderia ficar restrita ao âmbito da Justiça Criminal comum.
Afinal, como aduz Paula Bajer da Costa (2001, p. 14), “na medida em que todos são iguais perante a lei, todos os que tiverem praticado conduta típica, ilícita e culpável, deverão participar de processo penal”. Porém, “há justiça processual, também, quando os regramentos processuais são os mesmos para todos os acusados” (Id., 2001, p. 14).
É certo que, em alguns momentos, o processo penal militar, devido às suas peculiaridades, propocionará um tratamento diferenciado para o acusado que nele figure. Entretanto, essas diferenças não poderão atingir negativamente os aspectos relacionados à efetivação da própria dignidade da pessoa humana. Não se pode esquecer que “no interior do processo aflora e pulsa a vida, há seres humanos que entram, saem e retornam ao banquete processual, em conexões internas e extraprocessuais” (GIACOMOLLI, 2008, P. 59).
Em razão disso, a possibilidade de se absolver sumariamente o acusado, logo no princípio da ação penal, mostra-se — também no âmbito da Justiça Militar — como garantia inafastável do indivíduo. Ao contrário, havendo elementos probatórios suficientes, que permitam sustar o processo criminal antecipadamente, e não fazê-lo, postergando-o desnecessariamente, constitui uma nítida violação ao princípio da dignidade da pessoa humana, e conseqüentemente, ao próprio Estado Democrático de Direito.
Mestre em Segurança Pública Justiça e Cidadania pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia UFBA; Pós-Graduado em Direito Penal Militar e Processual Penal Militar; Pós-Graduado em Ciências Criminais; Bacharel em Direito; Professor de Direito Penal Militar e de Direito Penal; Sócio Especial da Associação de Magistrados das Justiças Militares Estaduais AMAJME
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