A sociedade atual vem sofrendo uma série de profundas mudanças comportamentais, decorrentes da introdução de novas tecnologias, nas mais diversas áreas do conhecimento. O homem de hoje se posiciona de uma maneira bem mais independente, buscando sua liberdade. A conquista da liberdade, um dos direitos do homem, teve seu maior marco, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Outrora, a sociedade era reprimida pelo Estado e regulada de modo a se comportar como aquele desejava, os anseios humanos eram tolidos em nome de uma dada justiça social. Ocorre que a evolução humana se deu internamente, pois o indivíduo assumiu o seu lugar na sociedade de modo a criar as possibilidades de uma convivência mais justa e equilibrada, de forma efetiva.
Neste contexto o Direito tem a tarefa de conhecer, compreender a sociedade humana e buscar normatizar esta sociedade, refletindo a ordem que regulará a conduta humana[1]. A convivência dessa sociedade deverá ser regrada, fundando-se nos fatos sociais, na perspectiva de fazer com que pesem nesses fatos conseqüências jurídicas[2], sendo essas limitadoras dos abusos que possam vir a ser praticados. Segundo Emmanuel Kant, o Direito é o complexo das condições que possibilitam a coexistência do arbítrio de cada um com o arbítrio dos outros, segundo uma lei universal de liberdade[3].
A tarefa do Direito é criar as regras de conduta que conciliem a liberdade individual com a convivência do grupo, de modo a possibilitar o acesso de todos aos recursos disponíveis naquela sociedade. Na busca deste equilíbrio, é necessário respeitar as aspirações de cada um, bem como possibilitar o desenvolvimento de suas aptidões a fim de que seja preservada a personalidade da pessoa humana, que é o substrato da sociedade.
O direito a liberdade tem como sujeito, a pessoa humana, o ser racional e livre, objetivando as condições de desenvolvimento da própria pessoa, podendo estas serem negativas – ausência de atividades, restrições e limitações estatais ou sociais- e positivas – prestações e condições de cooperação na relação pessoal. O conteúdo histórico da liberdade vem se ampliando ao longo da sua trajetória, com a evolução humana, pois a medida que a atividade humana se alarga a liberdade é conquistada[4].
Pode-se definir liberdade, segundo J. H. Meirelles Teixeira, como:
…o direito de viver e de desenvolver exprimem a nossa personalidade da maneira mais completa, conforme as leis da Natureza e da Razão e a essencial dignidade da pessoa humana, no que for compatível com igual direito dos nossos semelhantes e com as necessidades e interesses do Bem Comum, mediante o adequado conjunto de permissões e de prestações positivas do Estado[5].
No desenvolvimento destas normas, um outro obstáculo há que ser superado: a desigualdade, inerente ao próprio ser humano. Os homens nascem iguais por sua própria natureza, com as prerrogativas ligadas a esta qualidade, idêntica em cada um, mas também, desiguais pela diversidade de condições de vida na Terra, seja na ordem física, psíquica, moral, econômica e social. Conclui-se que o ser humano possui uma essência única, e seus atributos pessoais, tais como: inteligência, idade, raça, sociabilidade, instrução e fortuna, o tornam desigual perante seus semelhantes[6]. Uma vez que cada ser humano é um indivíduo único, como garantir a igualdade a todos? O que se procura fazer é igualizar os desiguais, garantindo-lhes condições iguais para o pleno desenvolvimento[7].
O fundamento do princípio da igualdade é criar critérios de diferenciação no tratamento jurídico e, não equiparar todos os homens face as leis existentes. No pensamento de Ruiz de Castillo, tem o sentido de justiça distributiva, um princípio moderador da liberdade, pois, permite a coexistência das liberdades, dando-lhes direção exterior, encerrando-as em seus verdadeiros limites, intervindo para corrigir seus desvios[8].
As descobertas científicas, tais como: inseminação artificial, alimentos transgênicos e clonagem, alteraram sobremaneira a vida em sociedade, surgindo daí uma série de questionamentos individuais e coletivos, fazendo com que se vislumbrasse a necessidade de um disciplinamento destas experiências em face do princípio do direito à vida, regulados não só pelo Direito, como também pela Moral, fazendo nascer a disciplina denominada Biodireito. Na busca deste equilíbrio as futuras normas reguladoras da conduta humana precisam acompanhar a evolução sem deixar de impor limites à pesquisa científica, para que a sociedade não sofra com os excessos. Neste novo contexto, alguns temas que a legislação não enfrentou estão sendo revistos: a clonagem humana, o aluguel de útero, a cessão de segmentos ou produtos do corpo humano e a iatrogenia[9].
A interdisciplinariedade do Biodireito denota a necessidade de se considerar o fato como um todo, não particularizando cada etapa, visto que os princípios fundamentais devem constituir toda a estrutura baseados na filosofia de vida. Até que o Biodireito surgisse, a Bioética[10] procurava solucionar as questões existentes entre os seres humanos e o ecossistema, num primeiro momento e, posteriormente, analisar os problemas éticos dos pacientes, de médicos e de todos os envolvidos na assistência médica e pesquisas científicas relacionadas com o início, a continuação e o fim da vida, como a engenharia genética, os transplantes de órgãos, a reprodução humana assistida, os direitos dos pacientes terminais, morte encefálica, eutanásia, dentre outros fenômenos[11].
1.Os primórdios da Bioética
Nascida nos Estados Unidos a Bioética é um conhecimento complexo que busca respostas para os problemas trazidos pelos novos progressos tecnológicos e biomédicos[12]. Num primeiro momento, o impacto que essas novas tecnologias provocaram levou médicos e biólogos a uma procura pela definição do que é bom e pela faculdade que dá poder e fundamenta uma autoridade para estabelecer o que é ou não é bom[13]. Posteriormente, verificou-se que a discussão deveria ser travada em dimensões amplas, com diálogos interdisciplinares.
Na década de 70 o oncólogo Van Renssealer Potter, empregou o termo “Bioética” em seu artigo The science of survival e no ano seguinte, no volume do mesmo autor com o título Bioethics brigde to the future. O pensamento bioético deste período se fundamentava na criação de uma ponte entre a ética e a biologia, entre os valores éticos e os fatos biológicos para a sobrevivência do ecossistema, mas não só com relação às intervenções sobre o homem como também sobre todas as intervenções na biosfera[14]. Da fusão da ética com a ciência da vida, que objetiva estudar de forma multidisciplinar os reflexos do comportamento humano ante o progresso das ciência da saúde[15] surgiu um novo ramo da Ética – Bioética voltada para moralidade incidente na ciência da vida, procurando definir o que é lícito, científico ou tecnicamente possível, de maneira prática, ou seja, não se preocupando apenas com o que é bom ou mau, mas no agir bem, de forma correta. E para tanto formulou alguns princípios gerais[16], que são: a beneficência, a autonomia e a justiça, insculpidos no Relatório Belmont[17]. Tais princípios não foram estabelecidos para juntos solucionar as questões conflituosas surgidas em decorrência dos experimentos e das novas tecnologias. Eles privilegiavam a relação indivíduo e o profissional da área da saúde, sendo que o da beneficência enfatizava o papel do médico ou do pesquisador que lida com o corpo e a mente da pessoa humana. O princípio da beneficência não consagra a idéia clássica da beneficência como caridade e, sim, a considera como uma obrigação. Em decorrência foram formuladas duas regras: a) não causar danos, e b) maximizar os benefícios e minimizar os possíveis riscos. O princípio da autonomia é relativo a capacidade de decisão da pessoa humana em se submeter ou não a um tratamento ou ser objeto de pesquisa e, finalmente, o da justiça que busca a justiça distributiva[18], fundado na imparcialidade na distribuição dos riscos e benefícios, ou seja, os iguais devem ser tratados igualmente[19].
Em 1979, foi publicada a obra Principles of Biomedical Ethics (Princípios de Ética Biomédica), de Tom L. Beauchamp, um dos consultores da Comissão do Relatório Belmont e James F. Childress que propuseram quatro princípios para a Bioética, separando a beneficência da não-maleficência[20], resultando nos seguintes princípios bioéticos: o respeito à autonomia, a beneficência, a não-maleficência e a justiça, tendo os dois primeiros caráter teleológico e os dois últimos deontológicos.
No Brasil, o Conselho Nacional de Saúde, através da Resolução nº 196/96, incorporou os quatro princípios da bioética, com o fito de assegurar os direitos e deveres relacionados à comunidade científica, aos sujeitos da pesquisa e ao Estado. Entendendo como autonomia o livre e esclarecido conhecimento do indivíduo sobre a pesquisa a ser realizada, bem como respeitar a sua dignidade e sua vulnerabilidade; beneficência, comprometendo-se com o máximo de benefícios e o mínimo de danos e riscos; não-maleficência, garantia de que danos previsíveis serão evitados; e justiça, como equidade que garanta igualdade nos interesses envolvidos, não perdendo o sentido de sua destinação sócio-humanitária[21].
O respeito à autonomia do paciente procura garantir-lhe a liberdade de escolha sobre seu bem-estar. Mas ser autônomo não pressupõe só a liberdade de agir, mas também a capacidade de agir em consonância com as escolhas feitas e as decisões tomadas. É certo que os avanços tecnológicos abrem um leque enorme para a cura de diversas doenças, a busca do médico é pela cura do paciente, princípio da beneficência, mas por outro lado o paciente também tem o direito de optar por uma ou outra terapia que melhor lhe satisfaça. Esta autonomia, também, não é absoluta, há limites a serem respeitados, como a dignidade e a liberdade dos outros e da coletividade. A decisão do paciente, fundada no princípio da autonomia não poderá causar dano a outras pessoas ou à saúde pública. O paciente para agir fundado no princípio da autonomia precisa ser capaz de entender tanto sobre os males da doença como os benefícios e malefícios que a cura poderá trazer.
A informação é a base deste princípio, pois o paciente só poderá agir, isto é, consentir livremente, se tiver compreendido as dimensões de sua decisão, se atuar de forma voluntária, ou seja, o livre consentimento depende do esclarecimento anterior, que deverá ser realizado em linguagem acessível ao paciente e contar com todos os elementos para uma decisão correta, tais como: os procedimentos a serem utilizados, demonstrando os objetivos e justificativas; os riscos, o desconforto e os possíveis benefícios; métodos alternativos existentes; liberdade de recusar ou retirar seu consentimento, sem qualquer penalização e/ou prejuízo à sua assistência; e a assinatura ou identificação do paciente ou seu representante legal[22].
O segundo princípio, o da beneficência, nada mais é do que a manifestação da benevolência, ou seja, a boa vontade para com alguém, a complacência. A beneficência busca, na medida do possível, fazer o bem, pois este é uma obrigação moral em benefício de outros deveres do profissional. Este princípio norteia a prática da ciência de saúde, a busca do bem-estar e os interesses do paciente, de acordo com os critérios do bem fornecidos pela própria ciência. O que se deseja é que todo bem que a ciência pode propiciar ao paciente deve ser esgotado desde que não prejudique o bem-estar geral, ou seja, deve-se levar em conta o que é bom para o paciente dentro do contexto que a ciência puder oferecer.
O terceiro princípio, o da não-maleficência, é não infringir mal ou não causar o mal de forma proposital, o que não significa fazer o bem, complementar ao princípio da beneficência. Enquanto neste há a obrigação de prevenir danos, retirar danos e promover o bem, naquele a obrigação é de não causar o dano. Ambos os princípios expostos, devem andar de mãos dadas, pois o princípio da beneficência busca o bem no seu limite máximo dentro da tecnologia disponível, enquanto o da não-maleficência busca não causar o dano.
O quarto é último princípio é o da justiça, que busca estabelecer com igualdade critérios na distribuição dos riscos e benefícios de forma equânime e imparcial, a fim de que a sociedade possua as condições suficientes para lidar com as suas incertezas, sem recorrer a soluções absurdas e constrangedoras[23]. Este princípio enfoca a justiça distributiva, que procura resolver o conflito entre liberdade versus desigualdades sociais. No que tange a uma justiça sanitária, segundo a qual deve haver acesso aos recursos sanitários de forma justa para toda a sociedade, o papel do Estado varia segundo sua própria sociedade. Nos quatro princípios abordados, o primeiro refere-se ao paciente, o segundo e terceiro ao atuar do médico e o último à sociedade.
John Rawls marca a década de 70, procurando estabelecer uma teoria de justiça com equidade, onde expressa que todas as pessoas são livres e racionais, preocupadas em promover seus próprios interesses, aceitando uma posição inicial de igualdade como definidoras dos termos fundamentais dessa associação. A teoria de Rawls parte do pressuposto de que todos os indivíduos que alcançarem a idade da razão serão autônomos e, por isso mesmo, possuirão um senso de justiça[24].
Uma vez que todos têm seus próprios interesses a serem satisfeitos, se colocam num mesmo patamar que os demais e a partir daí, sem qualquer interesse nos interesses dos demais envolvidos, decidem que tipo de justiça desejam, delineando então sua justiça, isto é, a justiça daquela sociedade. É certo que uma sociedade só será considerada justa a partir do momento em que liberdades e oportunidades sejam dadas a todos os indivíduos, permitindo-lhes ter acesso às riquezas, às bases sociais e ao respeito a si mesmo, ou seja, tornando-os iguais. Por outro lado, a desigualdade na distribuição desses valores só terá significado se beneficiar os mais necessitados.
2.O papel do Biodireito
As situações criadas decorrentes das novas tecnologias empregadas nas soluções dos diversos males que afligem tanto o físico como o psíquico e o moral de cada indivíduo, necessitam de regulação, mas não um regulamento que impeça o usufruir de tais técnicas, mas sim um ordenamento em que os direitos individuais sejam garantidos e que as soluções tecnológicas sejam empregadas em prol de toda a sociedade. Assim, surge o Biodireito para disciplinar os diversos aspectos jurídicos decorrentes das relações entre médico-paciente, médico-família do paciente, médico-sociedade, médico-intituições, pesquisa-protocolo de pesquisa, custo-benefício na gestão pública e/ou privada etc.
O Biodireito entende, portanto, que determinados princípios são fundamentais: o respeito a dignidade do ser humano em todas as etapas do seu desenvolvimento; a proibição de efetuar aplicações contrárias aos valores fundamentais da humanidade; o acesso eqüitativo aos benefícios derivados das ciências biomédicas; a proibição de tratar o corpo humano ou partes do mesmo como uma mercadoria; o respeito a autonomia das pessoas que estão submetidas a tratamento médico, o que inclui as provas genéticas e o assessoramento e confidencialidade dos dados genéticos; a obrigação dos Estados de respeitar e não por em perigo a biodiversidade, como foi ratificado solenemente no Tratado sobre Diversidade Biológica, subscrito no Rio de Janeiro, em 22 de maio de 1992; e o princípio de que a herança genética do homem não deverá ser objeto de manipulação e nem de modificação.
Uma vez ultrapassadas estas questões resta lembrar que as situações criadas pelas novas tecnologias obriga o Direito a se manifestar para que a sensação de insegurança não se instale. Mais do que criar normas regulamentadoras da vida privada atual, deve-se ter em mente a necessidade de voltar os olhos para o futuro. Pois é necessário aprofundar os estudos e viabilizar uma legislação útil aos anseios de uma sociedade em constante desenvolvimento e transformação. É certo que a esfera da vida privada dos cidadãos não está a cargo do Estado, mas é necessário impor determinados limites para não haver exacerbação de direitos, violando o espaço de terceiros.
A proteção do direito a vida encontra-se expressa nos artigos 2º, do Código Civil e 5º, da Constituição Federal de 1988, sendo que este garante a sua inviolabilidade. Mas é certo que não só o direito à vida é importante, mas outros direitos abordados pela jurisprudência devem ser considerados, tais como: o direito de escolher o próprio momento da morte (o direito moral de morrer); o direito a não receber transfusão de sangue por motivo de convicção religiosa (caso das Testemunhas de Jeová); o direito de escolher, num laboratório as características físicas de seu filho; o direito de não ter o filho naquele momento ou situação; o direito de não nascer com defeito genético; o direito a mudar de sexo etc.
As limitações às experiências biológicas ou médicas devem ser analisadas pela ótica constitucional, mas precisamente pelos direitos fundamentais, em razão da repercussão causada pelo tema que atinge o equilíbrio vital entre a vida humana, a ética e os direitos do cidadão. Não se pode esquecer que os princípios constitucionais e infraconstitucionais baseiam-se na dignidade, no respeito, na inviolabilidade, na integridade e na proteção ao corpo humano. Alexandre Moraes ensina:
a Constituição Federal prevê duas espécies de pesquisas: científica e tecnológica. A pesquisa científica básica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso das ciências. A pesquisa tecnológica voltar-se-á preponderantemente para a solução dos problemas brasileiros e para o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional[25].
O que se tem na norma constitucional é a consagração da liberdade de pesquisa, seja ela científica ou tecnológica, sendo o Estado o incentivador do desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológica, como preceitua o artigo 218, da Carta Magna. Essa liberdade científica garante o direito de se dizer ou não qualquer verdade científica, mas, principalmente, garantir o de não sofrer quaisquer empecilhos no processo de investigação científica.
É óbvio que a liberdade científica, garantida como direito fundamental, não tem caráter ilimitado, como ocorre com qualquer outra garantia, tais como: vida, integridade física e moral, privacidade etc., pois quando estes limites entram em conflito, um com o outro, a solução será a predominância de um sobre outro, estando aí o limite aos direitos fundamentais.
O princípio norteador da discussão sobre os avanços da ciência biomédica é o da dignidade do ser humano, uma vez que este é o verdadeiro destinatário da ordem social e jurídica do país. Portanto, o Estado, através da sua constituição deverá delinear os princípios e regras básicas para a solução das eventuais questões emergentes.
Segundo Maria Celina Bondin de Moraes, o chamado direito pós-moderno, é o resultado da mudança do paradigma do “mundo da segurança” e da ética da autonomia ou da liberdade, do séc. XVIII, para um mundo de inseguranças e incertezas e ética da responsabilidade ou da solidariedade, ou seja, substitui a tutela da liberdade do indivíduo, sua autonomia, pela idéia de proteção à dignidade da pessoa humana:
O princípio constitucional visa garantir o respeito e a proteção da dignidade humana não só no sentido de assegurar um tratamento humano e não degradante, e nem tampouco conduz exclusivamente ao oferecimento de garantias à integridade física do ser humano. Dado o caráter normativo dos princípios constitucionais, princípios que contêm os valores ético-jurídicos fornecidos pela democracia, isto vem a significar a completa transformação (rectius, transmutação) do direito civil, de um direito que deixou de encontrar nos valores individualistas codificados o seu fundamento axiológico.
É, com efeito, este o princípio ético-jurídico capaz de atribuir unidade valorativa e sistemática ao direito civil, ao contemplar espaços de liberdade no respeito à solidariedade social. Tal é, justamente, a medida de aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana: a ponderação, a ser feita em cada caso, entre liberdade e solidariedade, termos que, stricto sensu, são considerados contrapostos. De fato, a imposição de solidariedade, se excessiva, anula a liberdade; a liberdade desmedida é incompatível com a solidariedade. Todavia, quando ponderados, seus conteúdos se tornam complementares: regulamenta-se a liberdade em prol da solidariedade social, isto é, da relação de cada um com o interesse geral, o que, reduzindo a desigualdade, possibilita o livre desenvolvimento da personalidade de cada um dos membros da comunidade[26].
A Primeira Convenção dos Direitos do Homem e da Biomedicina, assinada em 04 de abril de 1997, em Oviedo, Espanha, por vinte e um países membros do Conselho da Europa, aberta a países de todas as regiões do mundo, tendo a previsão de revisão a cada cinco anos, face a velocidade com que as inovações científicas ocorrem, proíbe a clonagem de seres humanos; a manipulação genética de modo a alterar o patrimônio genético da descendência; permite a escolha do sexo dos filhos, exclusivamente com a finalidade de evitar doenças hereditárias graves relacionadas a eles; veda o uso lucrativo de qualquer parte do corpo humano e a criação de embriões humanos para pesquisa; exige o consentimento informado, livre e esclarecido para qualquer intervenção médica, excetuando as de emergência; e assegura a privacidade relativa as informações sobre a saúde da pessoa.
O artigo 2º da referida Convenção prevê: “Os interesses e o bem-estar do ser humano deverão prevalecer sobre o interesse exclusivo da sociedade ou da ciência”, esta proposição vai em sentido oposto à regra geral dos princípios que visam a coletividade. Este artigo privilegia o indivíduo, significa a “não-instrumentalização” do ser humano, este jamais poderá ser considerado objeto de intervenções e experiências, pois é sempre sujeito de seu destino e de suas próprias escolhas.
Em uma democracia humanista, respeitar o indivíduo em sua individualidade em confronto com a sociedade na qual está inserido, tem-se como, talvez, o único princípio coerente o respeito à dignidade da pessoa humana. É esta a razão pela qual as descobertas biomédicas devem ser, sempre, analisadas pela ótica dos Direitos Fundamentais, face a necessidade de equilíbrio entre a vida humana, a moral e os direitos do cidadão.
Informações Sobre o Autor
Angélica Teresa Pereira