Em que pese existirem diferentes modalidades de divórcio albergadas pelo ordenamento jurídico brasileiro a exigirem, como pressuposto, a separação do casal, aventa-se uma nova perspectiva para análise, qual seja: a decretação do divórcio com os ex-consortes convivendo sob o mesmo teto, porém, sem o elemento fundamental para a continuação do casamento: a affectio maritalis.
Como requisito elementar para o divórcio direto consensual, a Constituição Federal de 1988, no artigo 226, § 6º, determina que o casal esteja separado de fato há, no mínimo, 02 (dois) anos. Também prevê o divórcio indireto, na forma de conversão, desde que estejam os cônjuges separados judicialmente, por lapso temporal superior a 01 (um) ano.
O casamento, na sua expressão mais ampla, contempla a união “voltada para a criação de uma plena e duradoura comunhão de vidas.”1
A acepção dessa plenitude de vida abrange um universo recheado de sentimentos que se traduzem em direitos e obrigações recíprocos em prol da sociedade conjugal. Esses direitos postam-se em seu âmbito patrimonial e não patrimonial, e têm sua expressão na lei, através do artigo 1566 e incisos, do Código Civil Brasileiro.
Os direitos e obrigações matrimoniais aliados à vontade, ao animus de constituir em conjunto uma vida conjugal, são o suporte, o sustentáculo para a existência do casamento e decorrem do estabelecimento da sociedade conjugal.
Por mais que as condições patrimoniais sejam favoráveis e convirjam para o surgimento do matrimônio, o grande diferencial sempre foi e sempre será o elemento denominado affectio maritalis, mais facilmente traduzido por sinônimos como afeto, companheirismo, desprendimento, doação, ou simplesmente amor.
O matrimônio, muito distante de ser apenas um vínculo formal, rico em regras ditadas por lei, as quais envolvem fatores de ordem pública, deve ser analisado no seu aspecto subjetivo, pois foi este que motivou o casal a compartilhar alianças.
A despeito de estar intimamente ligado à norma, pois é a norma que o define, o divórcio, assim como o casamento, envolve uma série de princípios inerentes à constituição da família e, de um modo geral, à constituição da sociedade, eis que sua ocorrência pode importar em extinção da família.
Nesse diapasão é que Yussef Said Cahali bem relembra as palavras de Beviláqua, ao ensinar:
“É assunto em que as opiniões se mostram irredutíveis porque depende da concepção que cada um tem do mundo e, em particular, da sociedade. Discutir o divórcio não é discutir uma questão exclusivamente jurídica. A matéria é, antes, do domínio da sociologia, pois transcende os limites do Direito, e interessa à moral, aos costumes e à educação.“2
É certo que a Constituição da República, bem como o Código Civil, trazem como requisito essencial ao divórcio direto consensual, a separação de fato do casal por dois anos consecutivos.
Entretanto, não se pode considerar esse requisito apenas no seu sentido estrito, ao passo que deve corroborar para tanto a ruptura da vida conjugal em seu aspecto subjetivo.
Assim como a affectio maritalis é o ponto fulcral para a existência do casamento e consiste na sua principal causa, seria ilógico que não fosse apreciado o seu valor quando do rompimento do vínculo conjugal.
Ressalte-se que, a separação de fato não se caracteriza apenas pelo aspecto físico da não convivência do casal sob o mesmo teto. Há razão para se aceitar que a separação de fato seja reconhecida, ainda que o casal coabite fisicamente nas mesmas dependências, desde que esta coabitação já não ocorra com contornos de convivência more uxório.
Sob o ponto de vista sociológico, o que mais importa é se o casal ainda comunga dos mesmos interesses. Falida a sociedade que constituíam, não há mais espaço para manter um casamento de aparências. Nesse sentido é que ensina o insigne Caio Mario da Silva Pereira, ao ponderar que “…razões que se situam no plano da mera manifestação interior, como a incompatibilidade de gênios ou cessação da afinidade, podem caracterizar a ruptura.”3
Conclui a idéia afirmando:
“Por outro lado, a ruptura da vida em comum não exige afastamento físico ou material. Tal seja o ambiente doméstico e o relacionamento pessoal dos cônjuges, que será lícito configurar a ruptura, não obstante permaneçam os cônjuges residindo sob o mesmo teto.”4
Como visto, para cumprir o requisito básico para o divórcio, basta a separação de fato pelo lapso temporal bienal.
O conceito de separação de fato admite interpretação extensiva, de acordo com a situação fática. Ademais, a regra é a interpretação restritiva, compreendida como a não habitação dos (ex) cônjuges na mesma casa. Porém, não se pode fechar os olhos para circunstâncias excepcionais, como se alude no tema centro deste trabalho.
Destarte, no âmbito do Direito de Família, não obstante a predominância dos preceitos normativos, ao tratar-se de relações pessoais, visíveis são as situações que envolvem sentimentos de mágoa, animosidade, decepções, ódios, incompatibilidade de gênios, ou seja, todas as intempéries decorrentes das relações familiares.
Outrossim, não se pode negar uma situação existente por simples primazia da norma. A vivência conjugal, em muitas situações, encontra-se à margem da lei como, por exemplo, na existência da relação concubinária.
Entendendo essa situação com muita clareza, ensina Yussef Said Cahali:
“[…] vivendo cada qual dos cônjuges à margem da lei, em concubinato adulterino, sob o palio candente de uma jurisprudência estranha, que descobre nos deslizes conjugais de um, justa causa ou fator de concorrência para liberar o outro do dever de fidelidade; inexistindo, pois, com a cessação da affectio maritalis, possibilidade de se reconstituir a família, restará apenas o decreto de separação judicial, fazendo de direito aquilo que de fato já havia sido feito pelos próprios cônjuges”5
Como se pode ver, ainda que a lei positivada não disponha sobre hipótese de divórcio consensual direto com os cônjuges coabitando sob o mesmo teto, demonstrando a linha normativista trilhada pelo nosso direito, não se pode desprezar a realidade vivenciada por muitos casais que se amoldam às situações antes descritas e semelhantes.
É evidente que um dos elementos fundantes da hipótese de divórcio consensual direto, em que os cônjuges vivem separados de fato sob o mesmo teto, paira na deficiência econômica encontrada por muitos casais. Em alguns casos será este o fator determinante para o pleito, onde se observa que a manutenção de uma casa já se torna um peso, vislumbra-se a dificuldade de imediata separação e enfrentamento de condições financeiras quase sempre hostis.
Por óbvio que a hipótese aventada não deve se prestar a uma convivência permanente, mas para situações excepcionais que justifiquem, pela carência de recursos, a permanência do casal na estrutura domiciliar já constituída. Porém, essa divisão de espaço domiciliar não pode impedir que requeiram o provimento jurisdicional para a liberação dos ônus decorrentes de seu estado civil, com a conseqüente ruptura da sociedade e do vínculo conjugal.
A titulo de exemplo, suponha-se que os cônjuges coabitem sob o mesmo teto, para cuja manutenção financeira somente um deles colabore, e o outro se invista nos afazeres domésticos, tornando equilibrada a contribuição para a residência de forma que, devido a uma carência de recursos, um dependa do outro. Porém, em detrimento da ausência da affectio maritalis, não cumprem integralmente com os deveres matrimoniais, fazendo-se ausentes o debitum conjugalis e a mútua assistência moral, dentre outros deveres. É certo que permanecerão convivendo sob o mesmo teto até conseguirem a independência financeira um do outro.
Esse período de animosidade deve sopesar para a contagem do prazo para o divorcio direto consensual, independentemente se os (ex) cônjuges, no momento do pedido do provimento jurisdicional, estejam ou não coabitando na mesma residência.
Nem sempre o fator de estar convivendo sob o mesmo teto é algo relevante para a manutenção do casamento. Há várias situações similares, pelas quais pessoas, com o intuito de dividirem despesas, procuram reunir-se sob o mesmo teto, sem, contudo, comungarem dos mesmos interesses.
Sob um enfoque diverso, o próprio dever de coabitação (elencado no rol dos deveres conjugais) não é condição sine qua non para o casamento, eis que, em muitas situações e, especialmente as ligadas ao fator econômico, onde cada cônjuge trabalha em cidades distintas, estes são obrigados a viverem a maior parte do tempo separados, descaracterizando-se a necessidade da coabitação. Em tais casos, todavia, encontrando-se a affectio maritalis de forma veementemente presente, não haverá motivo para a ruptura do vínculo conjugal.
A doutrina, no decorrer dos tempos, vem aceitando essa realidade, que não pode ser escondida, tampouco esquecida no mundo jurídico, tanto que, sobre o assunto, Orlando Gomes, firmou o seguinte posicionamento:
“…tal como entendida a cessação da vida em comum dos cônjuges, em caráter definitivo, sem que a autoridade judicial haja interferido ou, como define Azzolina, “a situação que se verifica quando, por uma razão qualquer, cessa a convivência conjugal, sem que intervenha qualquer disposição legal para regular o novo estado de coisas”. Não basta, para caracterizá-la, a separação material dos cônjuges; é preciso que se acrescente a esse elemento o animus de um se desinteressar do outro, devendo o juiz interpretar a intenção de cada qual deles…”6
Corrobora esse entendimento, o firme argumento de Yussef Said Cahali que, lembrando J. M. Antunes Varela, acrescenta:
“A ruptura da vida em comum exterioriza-se, em geral, por uma separação de fato dos cônjuges desavindos, residindo cada qual em domicílio próprio; melhor se caracterizando naqueles casos em que, por força dessa separação, o marido está sendo compelido judicialmente à prestação de alimentos à família.
Mas isso não impede o reconhecimento de uma ruptura da vida em comum se os cônjuges, embora desavindos, continuam vivendo sob o mesmo teto; pois pode acontecer que, apesar de prosseguirem habitando a mesma residência, não tenham vida em comum, ‘por não coabitarem no mesmo leito, não tomarem em conjunto as suas refeições, não conviverem como marido e mulher.’”7
Não bastasse o entendimento doutrinário, os Tribunais, também têm reconhecido, em casos excepcionais, o elemento subjetivo, como requisito fundamental para a conservação do casamento, dispondo nos seguintes termos: “O fato de estarem os cônjuges residindo sob o mesmo teto por si só, não induz à presunção de que o casamento ainda vem se consumando. É necessário verificar a existência da affectio maritalis, do ânimo de viver conjuntamente.”8
Nesse sentido, a decisão da apelação cível do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:
DIVÓRCIO CONSENSUAL – Cônjuges que, embora sob o mesmo teto, não mais se relacionam sexualmente há três anos – Coabitação que, presentemente, sequer existe, pois a esposa deixou a moradia do casal e está mantendo união estável com outro homem – Sentença de indeferimento do pedido, que comporta reforma, para que homologado – Ausência do débito conjugal, no caso, suficiente para caracterizar a separação de fato – Inexistência de affectio maritalis, não se cuidando de impedimento provocado por questões físicas ou psíquicas de saúde ou pelo exercício de atividade profissional. (TJSP, Apelação Cível n. 002.032-4 – Bauru – 5ª Câmara de Direito Privado – Relator: Marcus Andrade – 13.06.96 – M.V.) 9
Assim sendo, é plenamente viável o manuseio de pretensão consistente no divórcio direto consensual dos cônjuges que vivem sob o mesmo teto. Contudo, por se tratar do desaparecimento de um aspecto subjetivo (affectio maritalis), inerente à vontade, nem sempre é fácil a comprovação da ruptura da vida conjugal, justamente por ainda compartilharem o mesmo ambiente domiciliar.
Em casos como o da separação de fato dos cônjuges, vivendo em lares distintos, a comprovação fica evidente pela simples apresentação de documentos como faturas de energia elétrica ou outros que indiquem os diferentes endereços.
Já nos casos em que o casal, que está prestes a se divorciar, continua convivendo sob o mesmo teto, a prova não é de fácil aferição, vez que as condições suportadas por ambos, muitas vezes não é presenciada por terceiros, mas somente pelos cônjuges.
Esse tipo de prova encontra ainda obstáculo nas fraudes, que têm campo fértil para se desenvolverem, ao passo que, fica exclusivamente ao alvitre do magistrado dar ou não credibilidade às informações prestadas em testemunho.
Não se pode desprezar, também, quanto ao aspecto probatório que, em se tratando de fraude, mesmo as provas documentais não escapam totalmente a esse vício, permitindo dizer que estas também podem ser frágeis e estarão, assim como as provas testemunhais, invariavelmente, adstritas à analise do magistrado.
Nas entrelinhas da vida conjugal, escondem-se, camuflam-se, disfarçam-se ou, por vezes, manifestam-se, revelam-se, evidenciam-se sentimentos mútuos, de forma que não há, no mundo fático, uma regra estabelecida capaz de indicar o grau de interesse de um pelo outro, de sorte que a aparência, em muitos casos, pode não se traduzir na realidade.
Desse modo é que se firma como espécie de prova mais adequada ao procedimento em estudo, a testemunhal. Diante das dificuldades enfrentadas para a comprovação da separação de fato (da ausência da affectio maritalis), os Tribunais têm consentido reiteradamente a prova da ruptura através de testemunhas, pois são estas que podem vislumbrar, ainda que limitadamente, as condições em que se encontra a relação matrimonial.
Cita-se, dessa forma, a titulo de ilustração, os seguintes julgados:
“A prova documental a que se refere o artigo 40, § 2º, I, da Lei 6.515/77, é facultativa e pode ser substituída por outras provas. É o que se fez nestes autos, ouvindo-se testemunhas para confirmar a separação de fato do casal há mais de cinco anos. Aliás, a prova documental deste requisito é dificílima de ser obtida e sua exigência inviabilizaria, na prática, a ação direta de divórcio”10
Outro,
“Divórcio consensual. A prova da separação de fato do casal que pretende divorciar-se pode ser feita mediante documento ou com a ouvida de testemunhas na própria audiência de ratificação do pedido”11
Em conformidade com a postura adotada pelas Cortes, tal entendimento se consolida pela atuação doutrinária em torno do tema. Caio Mário da Silva Pereira lapida e elucida o assunto, nas seguintes palavras, ipsis litteris:
“Não valerá a declaração emanada dos cônjuges ou de um deles, pois que sofrerá a suspeição de prova adrede elaborada. A ouvida de testemunhas é sempre admitida, seja como prova subsidiária ou complementar, seja como prova exclusiva, e deverá ser produzida (o art. 40, § 2º, III, fala equivocadamente em ”traduzida”) na audiência”12
Portanto, a oitiva testemunhal será sempre admitida e utilizada como forma de suprimir e sanar a escassez dos meios de prova enfrentados, formando o convencimento do magistrado. Silvio de Salvo Venosa se manifesta a esse respeito, acrescentando que “A prova mais comum para a comprovação da separação de fato é, sem dúvida, a testemunhal.”13
Como se sabe, dispõe o magistrado de meios para chegar ao prudente convencimento acerca da verdade. Mais uma vez, está ele diante da casuística que o impede de utilizar-se de presunções, ficando atrelado à análise concreta de cada caso, aferindo, como muito já se tem feito – a exemplo dos julgados citados – a veracidade dos fatos.
Os argumentos apresentados nesse breve estudo não têm a intenção de contrariar a lei, tampouco os procedimentos atualmente e de há muito utilizados, no que se refere ao divórcio. Busca-se apenas dar enfoque às situações por que passam muitos casais e, embora não contidas nas leis contemporâneas, essas situações merecem o olhar crítico do operador do direito, para a necessária ponderação de sua viabilidade e, quiçá, inserção no cenário jurídico.
Acreditamos haver plausibilidade no pleito do divórcio direto consensual estando os cônjuges ainda vivendo sob o mesmo teto, diante do substrato sociológico nutrido pela Constituição Federal, ao erigir o princípio da dignidade da pessoa humana a cláusula pétrea, que como tal, sobrepõe-se a todas as leis que com ele conflitem.
Provada a inviabilidade da continuação do casamento, não será necessária a separação física para a concessão do divórcio direto, sobretudo quando se verificar que, pode ser mais digna a vida de ambos, diante do que a situação apresenta, mantenham-se juntos na mesma casa, porém separados pela indesculpável falta de amor.
Advogado em Campo Mourão/PR.
Bacharel em Direito pela Faculdade Integrado de Campo Mourão/PR.
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