1. Introdução
O ser humano é um ser social, não vive de forma isolada. Dessa necessidade primária, aliada à de auto-preservação, de forma remota, tem-se a origem do Estado, sob a sistemática de um contrato social, como garantidor da ordem social em contrapartida à concessão feita pelos indivíduos de algumas de suas liberdades.
O Estado, atendendo a tendências epocais, foi assumindo ao longo dos tempos, variadas formas e foi, com isso, adotando posições em relação aos direitos a que fazem jus os indivíduos. A princípio se tem os direitos humanos, que são a eles inerentes e decorrentes da própria condição de “ser humano”. Com o passar do tempo e à medida que foram sendo reconhecidos pelas ordens jurídicas dos diversos Estados, através de sua positivação em textos constitucionais, tornaram-se eles, então, direitos fundamentais.
No Brasil, eles se mostram garantidos pelo texto constitucional. O Estado Brasileiro, quando sob a égide do liberalismo, os consagrava apenas como direitos negativos. A partir do Estado de Direito Social, adotaram uma posição de direitos positivos, ou seja, passaram a exigir uma atuação prática e efetiva do aparato econômico estatal. Surge a figura do Estado Garantidor, responsável pela implementação positiva dos direitos fundamentais.
Contudo, a efetivação desses direitos implica em, não singelos, gastos econômicos. Porem, na atualidade, enfrenta, o poder público, uma situação econômica precária, surgindo então um grave conflito entre a necessidade dos indivíduos de verem seus direitos garantidos e a impossibilidade econômica do Estado de prestá-los, frente a escassez de recursos financeiros.
Na busca de solução concreta surge a concepção da “Reserva do Possível” e dentro desta, a concepção do “Mínimo Existencial”.
O conflito, no entanto, acaba ficando nas mãos do Poder Judiciário, que, no caso concreto, obriga-se a analisar a questão e eleger a solução que se mostrar mais adequada.
O homem é um ser social cujo instinto primeiro é a auto-conservação e, como não é auto-suficiente, une-se aos demais com esse propósito. A partir daí, viu-se a formação de grupos, que foram originando os grupos sociais. Como esse tipo de interação exige certa disciplina, necessárias se fazem regras de conduta que organizam a vida em sociedade.
Nas sociedades primitivas imperava a lei do mais forte, ou seja, através da força física, o mais forte impunha aos mais fracos, respeito e obediência.
A partir do momento em que esta atitude não mais produziu efeito, abre ela lugar, à diplomacia.
A partir daí, surge a idéia do “contrato social”, que tem como objetivo: “encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associação de qualquer força comum, e pela qual, cada um, unindo-se a todos, não obedeça, portanto, senão a si mesmo, ficando assim tão livre como dantes”[1]. Surge então, o Estado.
A primeira menção que se tem notícia acerca do termo “Estado”, foi no livro “O Príncipe”, de Maquiavel, onde era empregado no sentido de uma sociedade politicamente organizada.
O Estado pode ser definido como uma “ordem jurídica soberana, que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território”[2].
O Estado, em apertada análise, é composto por três elementos, o povo, que é seu componente humano; o território, seu componente, sua base fixa; e ainda um governo soberano, através do qual exerce o poder de autodeterminação e auto-organização emanado do povo.
O Estado apresenta-se como uma instituição criada pela sociedade com o objetivo de promover a defesa, a ordem, e o bem-estar social. Possui então como objetivo, o bem comum do povo.
O Estado, desde sua instituição até os tempos atuais, assumiu posições variadas em relação aos direitos dos membros da sociedade.
A princípio, após a positivação dos direitos humanos, que passaram então à direitos fundamentais, se tinha o Estado Liberal, pregando uma intervenção mínima nas atividades econômicas e no qual, os direitos fundamentais se mostravam como direitos negativos, exigindo apenas a abstenção estatal.
Contudo, em virtude de mudanças sociais e econômicas, em especial, após a Revolução Industrial, o Estado Liberal começou a entrar em crise. Uma superprodução econômica provocada pelo sistema de produção denominado fordismo, deu origem ao que chamamos de primeira crise mundial, onde o setor privado não mais possuía condições de proporcionar aos indivíduos, o atendimento da diversas necessidades por eles apresentadas.
O Estado então viu-se obrigado a sair de sua posição estática e foi chamado a assumir um papel ativo na vida social. Surge o Estado do Bem-Estar Social, que é aquele que se baseia no
“desenvolvimento econômico, social e cultural e na supressão das desigualdades previamente existentes, abrangendo a democracia econômica (coexistência de diversos setores econômicos, planejamento democrático da economia e autogestão ou controle da gestão econômica, pelos trabalhadores, de uma unidade de produção), democracia social (igualdade de oportunidade e acesso às prestações oferecidas pelo Poder público) e democracia cultural (gestão democrática da cultura e da educação)”[3].
A partir daí os direitos fundamentais passaram a exigir prestações positivas do Estado, ou seja, este passou a ser responsável pela implementação de práticas tendentes a garantir a efetividade dos direitos inseridos em seus textos constitucionais, não mais por meras abstenções.
Os direitos fundamentais são aqueles direitos dos indivíduos inseridos na ordem jurídica de dada sociedade. A partir dessa delimitação, pode-se então identificar quem são os titulares desses direitos, dizendo serem eles, todas as pessoas sujeitas ao ordenamento jurídico vigente em um dado local.
No direito brasileiro os destinatários dos direitos fundamentais são todos os brasileiros, natos e os naturalizados.
Tais direitos podem ser classificados como[4]: a) Direitos de Primeira Geração, assim entendidos os direitos civis e as liberdades; b) Direitos de Segunda Geração, que são os direitos políticos e encerram participação da vida política; c) Direitos de Terceira Geração, consubstanciados em direitos econômicos, sociais e culturais; d) Direitos de Quarta Geração, que seriam aqueles direitos de solidariedade, com âmbito internacional, supranacional; e) Novíssimos Direitos, cujos entraram para classificação de forma mais recente, e que seriam aqueles que ainda não estão em fase de reivindicação, como os relativos à informática e à inteligência artificial.
Os Direitos Fundamentais possuem certas características que lhe são peculiares e incontroversas. São elas: a historicidade, pois conquistados ao longo dos tempos; a inalienabilidade, por serem intransferíveis e inegociáveis; a irrenunciabilidade, pois podem não ser exercidos, mas nunca renunciados; e a imprescritibilidade, pois podem, a todo tempo, serem exigidos, não estando sujeitos a prescrição.
Como dito acima, os direitos conquistados ao longo dos anos foram sendo incorporados nas ordens jurídicas dos Estados através de normas constitucionais, passando a direitos fundamentais e exigindo, por muitas vezes, atuação positiva por parte do poder público.
A Constituição pátria insere neste contexto histórico, e consagra como fundamento do Estado Brasileiro, a dignidade da pessoa humana, que se apresenta[5] como um princípio fundamental, e dessa forma, torna-se um valor-guia de toda a ordem jurídica, mostrado-se indispensável para a ordem social, pois em não havendo em havendo condições mínimas para uma existência digna, onde não forem, os direitos fundamentais respeitados e reconhecidos, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana.
No texto constitucional pátrio, sob a espécie de normas, tem-se princípios e regras.
As regras possuem um conteúdo diversificado e não, necessariamente, moral, cuja validade que deriva de outras regras. Possuem como característica a contingência e a relatividade de seus conteúdos, variando conforme o contexto e meio social. São mais concretas, bem delineadas, ou se aplicam, ou não se aplicam, dependendo de sua validade[6].
Os princípios possuem uma idéia de valor, de moralidade, sua validade decorre de seu próprio conteúdo. Possuem uma maior estabilidade ao longo das mudanças. No ordenamento jurídico, funcionam como justificadores das regras, ou seja, são essas feitas com base nos ditames daqueles. São abstratos, dirigidos a um número indeterminado de situações. Quanto a aplicação, admitem uma aplicação mais flexível.[7]
Segundo Kelsen[8] , a existência, empregada no mesmo sentido de vigência das normas jurídicas, “é o modo pelo qual elas ingressam no mundo jurídico, decorrente de um processo legislativo válido e regular, desenvolvido em estrita obediência às regras constitucionais”.
A validade se dá, por sua vez, quando a norma, no seu processo de formação, seguiu todos os procedimentos e requisitos necessários e legais, estando assim de acordo com os ditames da ordem jurídica. Em relação as normas constitucionais deve-se dizer que o poder constituinte derivado, ao elaborar normas, deve respeitar eventuais cláusulas de limitação de poder de emendar a Constituição. Já, em se tratando de legislação infraconstitucional, deve-se observar tanto o fenômeno da recepção quanto a constitucionalidade da legislação superveniente, ou seja, deve ela estar de acordo, com os ditames constitucionais. [9]
A eficácia, por sua vez, possui dois sentidos, um social e outro jurídico. A eficácia social é quando a sociedade reconhece a norma, que aplicada, é obedecida. A eficácia jurídica é a possibilidade de produzir efeitos jurídicos, sendo executável e exigível. Em relação à eficácia, as regras obedecem a regra geral, ou seja, como são normas com efeitos já pré-definidos, e ainda, por serem concretas, com aplicação delineada, pode-se exigir do Judiciário exatamente o efeito que ela pretendia causar. Em relação aos princípios, três são as modalidades de eficácia, reconhecidas: a interpretativa; a negativa; e a vedativa de retrocesso.[10]
A principal característica das normas jurídicas é a sua imperatividade, embora não se manifeste em todas as normas com a mesma intensidade, existindo assim, normas cogentes e normas dispositivas.. As primeiras, impõe determinada conduta e não lhes dá oportunidade de dispor de maneira diferente. As normas dispositivas, por sua vez, permitem aos destinatários, que eles disponham de maneira diversa acerca da situação tipificada na norma, que somente se aplica em caso de obscuridade ou omissão na manifestação da vontade dos interessados.
Em síntese, quando se fala em efetividade da norma, está se falando em eficácia social, acima já citada. Efetividade significa a realização do Direito, o desempenho de sua função social, o reconhecimento de sua necessidade e sua obediência social, cumprimento espontâneo da norma. Ela depende, em primeiro lugar, da eficácia jurídica da norma. E ainda levando-se em consideração que a norma, de certo, nunca atende aos interesses de todos os cidadãos, sempre poderá haver uma resistência em sua aceitação, à qual, deve agir o poder público, levando-se em consideração que as normas jurídicas sempre possuem eficácia jurídica, são imperativas e que sua inobservância espontânea enseja aplicação coativa.
Os direitos fundamentais se apresentam como direitos de defesa pois asseguram a esfera de liberdade individual contra interferências ilegítimas do Poder Público. Se o Estado violar esse princípio, pode o indivíduo exercer diversas pretensões: pretensão de abstenção; pretensão de revogação; pretensão de anulação; ou pretensão de consideração[11].
O Estado possui como obrigação, além de não intervir na esfera de liberdade pessoal dos indivíduos, a tarefa de colocar à disposição dos mesmos os meios materiais e condições de materialização para possibilitar o efetivo exercício das liberdades fundamentais.
Os direitos a prestações positivas possuem grande relevância em nossas normas constitucionais, tendo inclusive, um capítulo próprio, destinado aos direitos sociais.
Contudo, em que pese terem sido, os direitos humanos, positivados, a sociedade, simplesmente, em muitos casos, não os tem, atendidos. A positivação não foi suficiente para a efetividade dos direitos relacionados a uma vida digna.
Muitos dos direitos fundamentais, dependem de prestações positivas, ensejando gastos financeiros por parte do Estado, que por sua vez, enfrenta o problema da escassez de recursos públicos.
Há um conflito entre a necessidade de intervenção do Estado para a garantia dos direitos fundamentais e a impossibilidade financeira desse.
Canotilho[12] vê a limitação de recursos públicos como um verdadeiro limite fático a efetivação dos direitos sociais prestacionais. Ele vê a efetivação desses direitos dentro de uma “reserva do possível”, onde condiciona essa efetividade à existência de recursos econômicos.
Segundo essa doutrina, é necessário que além de uma previsão legal para a prestação desse direito haja também recursos materiais disponíveis para sua satisfação, motivo pelo qual, em fase judicial, defende que os juízes não teriam capacidade funcional necessária para garantir a efetivação das prestações dos direitos sociais, tratando-se que questão que foge dos âmbitos judiciais.
Essa teoria surgiu a partir da jurisprudência constitucional alemã, segundo a qual a construção dos direitos às prestações materiais por parte do Poder Público está sujeita à condição de disponibilidade dos respectivos recursos. Nesse entender, a decisão sobre a disponibilidade, ou não, desses recursos, é discricionária, governamental e parlamentar, através da composição dos orçamentos públicos[13].
“A expressão reserva do possível procura identificar o fenômeno econômico da limitação dos recursos disponíveis diante das necessidades quase sempre infinitas a serem por eles supridas”[14]. (grifo no original).
Assim, o que essa teoria significa, é que há um limite de possibilidades materiais para esses direitos, independentemente da previsão legal, ou seja, do ponto de vista prático, de nada adianta a previsão constitucional para garantia desses direitos se não houver recursos para custear as despesas que a prestação exige[15].
Em relação as normas que prevêem direitos e garantias fundamentais, segundo o disposto no art. 5º, parágrafo primeiro, da Constituição Federal de 88, possuem “aplicação imediata”. Para que ocorra a real concretização da eficácia dessas normas definidoras de direitos fundamentais, existem os mecanismos de controle de constitucionalidade de normas. O Poder Judiciário é o órgão competente para proporcionar a concreta observância dos preceitos constitucionais, já que, não obstante tais normas tenham imperatividade, na prática social, não raras vezes, são eles, descumpridos.
“A efetividade da proteção dos direitos fundamentais para as minorias socialmente discriminadas e grupos não privilegiados depende em última instância da atuação do Poder Judiciário”[16].
Cumpre asseverar ainda, que os direitos fundamentais reclamam especial proteção da ordem jurídica, já que nosso texto constitucional elegeu-os como cláusulas pétreas (art. 60, 4º, IV).
Os indivíduos, em casos concretos, pretendendo fazer valer um direito fundamental que deveria o Estado, prestar, recorre ao judiciário, na esperança de obrigar este a cumprir seu papel. Ou seja, esse conflito acaba ficando a cargo do poder judiciário, o que encerra uma questão extremamente delicada, pois a ação do Judiciário determinando ao executivo alguma prestação prática pode ser encarada como quebra do princípio da separação dos poderes, que é visto, pelo ordenamento jurídico, como fundamental.
A doutrina se divide diante dessa concepção da Reserva do Possível. Sob a ótica de parte dela, todos os direitos classificados pela Constituição como fundamentais são passíveis de tutela jurídica imediata. Sob uma segunda visão, tem-se que apenas os direitos negativos são passíveis dessa tutela, pois os direitos positivos, por demandarem recursos, estariam sujeitos a reversa do possível. Uma terceira posição, defende a idéia do chamado “mínimo existencial”, segundo o qual, existiria um núcleo de direitos positivos ligados ao mínimo existencial que seria sempre e imediatamente tutelável, ficando os demais, sob a órbita da reserva do possível.
Quanto a primeira posição, como são direitos garantidos pela lei máxima de um país, devem ser sempre, observados e garantidos, por possuírem aplicação imediata.
A segunda reporta-se a própria teoria da reserva do possível, devendo-se contudo acrescentar que trata-se de posição sem base sedimentada, na medida em que não são somente os direitos positivos que exigem um gasto de recursos materiais, em que pese para sua garantia ser maior o custo.
Quanto è idéia do Mínimo Existencial, muitas considerações devem ser feitas.
Gustavo Amaral[17], diz que na aplicação do caso concreto os juízes e tribunais, quando tiverem que decidir acerca da efetividade e eficácia das normas, devem fundamentar suas decisões admitindo o modo como os custos afetam a intensidade e consistência dos direitos, devendo examinar a competição de recursos, pois não se pode somente levar em consideração a escassez de recursos como único elemento de base na concretização dos direitos sociais, sendo necessário levar em consideração elementos éticos e políticos, para que então o judiciário possa permitir a evolução das condições econômicas e sociais para beneficiar o maior número de pessoas.
Para Ana Paula de Barcellos[18], por sua vez, o Judiciário deve determinar o fornecimento do “mínimo existencial” independentemente de qualquer coisa, por força das normas constitucionais sobre a dignidade da pessoa humana, eficácia simétrica ou positiva. Firma ainda, que cabe também ao Judiciário implementar as opções políticas juridicizadas que vierem a ser tomadas na matéria além do mínimo existencial, na forma das leis editadas, além de zelar pela aplicação das outras modalidades de eficácia: negativa, interpretativa e vedativa de retrocesso, que serão explicadas logo adiante.
Pode-se dizer, em relação a alegada quebra da separação dos poderes, que, em se tratando de ato necessário a preservação da dignidade da pessoa humana, é possível a intervenção do Poder Judiciário no Poder Executivo para que os princípios básicos necessários sejam garantidos. Importa ressaltar, que “a atividade jurisdicional, que é a única que se legitima com o exercício da sua atividade propriamente dita, deve tomar a postura de realizar a justiça social e não permitir ser controlada politicamente pelos outros poderes”[19].
A justificativa legal estaria no artigo 3°, da CF, que contém os objetivos, que também são objetivos a serem cumpridos pelo Poder Judiciário. Assim, para o ilustre doutrinador logo acima citado (p.82), necessário se faz a “cisão à doutrina tradicional da separação dos poderes”, para que se possa permitir à jurisdição que obrigue o Poder Executivo cumprir os programas sociais determinados e aprovados no orçamento público e legislar no caso concreto ante a omissão legislativa. Por isso, aceita-se a intervenção judicial em assuntos da administração pública quando forem lesados ou ameaçados interesses sociais; assim como aceita-se a intervenção judicial em assuntos legislativos quando houver omissão legislativa na regulamentação do direito constitucional, devendo contudo, ficarem bem delineados os limites de intervenção judicial.[20]
Ana Paula de Barcellos é concludente[21] e afirma que “nem a separação de poderes nem o princípio majoritário são absolutos em si mesmos, sendo possível excepcioná-los em determinadas hipóteses, especialmente quando se tratar de garantia dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana”, pois esses dois subsistemas não justificam a alegada impossibilidade de se reconhecer a eficácia positiva às normas pertinentes à dignidade da pessoa humana em seu aspecto material, sendo assim possível, se reconhecer ao judiciário a legitimidade de sindicar algum efeito mediante provocação.
As delimitações clássicas ente os poderes, acabou perdendo a nitidez frente as leis-medida. No moderno Estado Social, apresenta-se uma necessidade regular, por via de lei, situações concretas da vida social e econômica.
Tem-se uma diminuição na nitidez dos limites de cada poder, o que faz com que seja alcançada a verdadeira finalidade da divisão dos poderes, onde os diversos órgãos se controlam reciprocamente e com eficácia, podendo ser desenvolvida através de técnicas cooperativas.
Coloca-se também a questão de saber até que ponto o Estado está vinculado aos direitos fundamentais quando participa na vida jurídica apenas em moldes do direito privado. Se nos orientarmos segundo os requisitos reais da proteção da liberdade, então, parece necessária uma vinculação aos direitos fundamentais, também em relação a algumas destas atuações jurídico-privadas. Quando o Estado e entidades da administração para-estatal assumem materialmente funções públicas, não é admissível que ‘refugiando-se no direito privado’ (F.Fleimer), possam subtrair-se áquelas vinculações aos direitos fundamentais que, em virtude da constituição de Estado de Direto vigente, se aplicam no cumprimento das funções públicas[22]. (grifo nosso)
Assim, as vinculações que se reclamam em relação a todos os direitos sociais mostram-se indispensáveis para vim de garantir os direitos conquistados ao longo dos tempos pela sociedade, e fazem parte da esfera da dignidade da pessoa humana.
Tendo em vista a possibilidade de aplicação efetiva da concepção da Reserva do Possível, necessário a análise, ainda que breve, sobre o “Mínimo Existencial”, que seria um conjunto de direitos básicos formado pela seleção dos direitos sociais, econômicos e culturais considerados mais relevantes, por integrarem o núcleo da dignidade da pessoa humana, ou por decorrerem do direito básico da liberdade, que teriam efetividade imediata, deveriam ser sempre, garantidos pelo poder público, independentemente de recursos orçamentários.
O mínimo existencial seria formado pelas condições materiais básicas para a existência, correspondente a “uma fração nuclear da dignidade da pessoa humana”. A esse núcleo, deve-se garantir a eficácia jurídica e assimétrica.[23]
Os fundamentos dessa ideologia podem ser encontrados, de forma simplificada, primeiro, no fato de que a sociedade atual que possui por base a democracia e postulados humanistas, a dignidade da pessoa humana constitui o valor mais fundamental e depois, não se pode esquecer que a Constituição Federal de 88 elegeu o princípio da dignidade da pessoa humana como princípio máximo da ordem jurídica e a finalidade principal do Estado.
Como o princípio em questão possui um campo livre para deliberação política, não se faz necessário determinar todo o seu conteúdo ou pretensões. Contudo necessário se faz identificar esse núcleo mínimo de efeitos pretendidos, ao qual estaria garantida a eficácia e imposto o cumprimento coativo.
Gustavo Amaral[24] não concorda com a idéia de se diferenciar um núcleo essencial de direitos, pois segundo ele, a terminologia empregada “mínimo existencial” induziria a uma aplicação binária: exigível versus não exigível, além de ser difícil a definição de seus contornos e limites, já que em cada local as condições econômicas e sociais são diferenciadas. Critica ainda, a unidimensionalidade do enfoque, pos a exigibilidade decorreria, além das características ônticas da necessidade, da excepcionalidade da situação concreta.
Acerca da delineação desse núcleo existencial, Canotilho[25] (1997, p.470) assevera que todos têm direito a um “núcleo básico de direitos sociais”. Para ele, nesse contexto, o “rendimento mínimo garantido”, as “prestações de assistência social básica”, o “subsídio de desemprego”, são verdadeiros direitos sociais, constituindo o núcleo mínimo de existência indispensável à fruição de qualquer direito.
Alexy[26] Afirma que podem ser encontrados argumentos de ambos os lados, devendo a questão ser resolvida com base na ponderação. Apresenta um modelo que defende a idéia de que os direitos fundamentais são posições jurídicas muito relevantes e por isso, a concessão ou não dos mesmos não podem ficar nas mãos da simples maioria parlamentar. Segundo ele, o princípio da reserva parlamentar em matéria orçamentária também não é absoluto, sendo possível que os direitos individuais apresentem mais peso que as razões de política financeira. Alexy afirma ser necessário a existência de um padrão mínimo de existência digna a ser garantido por meio dos direitos sociais fundamentais, e ainda, que quando houver conflito entre o princípio da reserva do possível e o princípio democrático, de vê sempre prevalecer o reconhecimento do direito subjetivo a prestações sociais básicas, indispensáveis a uma vida digna.
A questão, contudo, no entender de Sarlet[27], reside menos do grau de completude da norma do que no aspecto da alegada ausência de legitimação dos tribunais para a determinação do objeto e do quantum da prestação, na medida que a decisão sobre a aplicação de recursos públicos incumbiria precipuamente ao legislador. Para ele, deve-se levar em consideração a norma presente no art. 5º, parágrafo primeiro da CF/88, que pretende a potencialização da eficácia dos Direitos Fundamentais. Fazendo uma análise do caso, Sarlet chega a conclusão de que em todas as situações em que se estiver pleiteando a prestação de direitos fundamentais e for usado o argumento da reserva do possível e Ainda, quando nas hipóteses em que, da análise dos bens constitucionais colidentes resultar a prevalência do direito social prestacional, poderá ser reconhecido um direito subjetivo definitivo, podendo-se impor ao Estado, inclusive sob a esfera judicial, a realização da prestação das condições materiais necessárias. A partir daí, ou seja afora as condições mínimas de uma vida digna, haveria tão somente um Direito subjetivo prima facie.
Em relação aos direitos que fariam parte desse núcleo essencial, Torres[28], por sua vez, elege como integrantes do núcleo existencial, os direitos: à alimentação, à saúde e à educação, assim se expressando: “Os direitos à alimentação, saúde e educação, embora não sejam originariamente fundamentais, adquirem o status daqueles no que concerne à parcela mínima sema qual o homem não sobrevive”.
Já, para a ilustre doutrinadora Ana Paula de Barcellos[29] o mínimo existencial, ao qual, cumpre-se frizar se reconhece a eficácia jurídica positiva e, portanto, constitui um direito exigível diante do Poder Judiciário, é composto por quatro elementos: educação fundamental, saúde básica, assistência aos desamparados e acesso à justiça. Afirma pois, que a escolha destes como integrantes do mínimo existencial não foi orientada por critérios aleatórios nem meramente normativistas e que os dois primeiros formam um primeiro momento da dignidade humana, garantindo as condições iniciais para a dignidade. A assistência aos desamparados, por sua vez, representa um conjunto de pretensões que procuram evitar a “indignidade em termos absolutos”. O acesso à justiça, por fim, se mostra como elemento indispensável da eficácia positiva reconhecida aos elementos constituintes do mínimo existencial.
5. Considerações finais
A necessidade de intervenção do Estado para a efetivação dos direitos fundamentais é uma certeza pois cada vez mais a população se vê desapossada dessas condições. Contudo, real também, é a escassez de recursos financeiros por qual o Estado passa, fazendo com que este não consiga cumprir seu papel de Estado de Direito Social na tarefa de proporcionar aos indivíduos a garantia dos direitos fundamentais que lhe são garantidos constitucionalmente.
A concepção denominada de Reserva do Possível surge como uma proposta de resolução prática desta questão, defendendo a idéia de que os direitos fundamentais só poderão ser exigidos do Estado diante da possibilidade financeira deste, ou seja, estariam eles sujeitos à verba orçamentária disponível.
Admitindo a aplicação dessa concepção, mas pretendendo restringi-la de forma a proteger o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana surge a idéia do Mínimo Existencial, segundo a qual, pelo menos um núcleo mínimo de direitos, que seriam necessários para a garantia desse princípio, não estariam condicionados à verba orçamentária, devendo ser garantido em qualquer hipótese.
Nesse contexto, entra o Poder Judiciário, como uma forma de promover a efetivação dos direitos fundamentais e garantir a aplicação deles, já que inseridos na lei maior, texto constitucional, surgindo a partir daí, o questionamento da possibilidade do Poder Judiciário, através das decisões no caso concreto, interferir nos demais poderes. Argumento este que entende-se afastável quando entra em questão o princípio da dignidade da pessoa humana.
6. Referências bibliográficas
Notas:
Informações Sobre o Autor
Simone Aparecida Rech