A responsabilidade civil do estado por atos jurisdicionais

O cerne deste trabalho não é esgotar a matéria, mas tão-somente incitar uma reflexão acerca da problemática em torno do tema, qual seja, a responsabilização estatal por danos advindos de atos jurisdicionais, questionando-se o seu cabimento e amplitude no ordenamento jurídico brasileiro, bem como analisar os aspectos doutrinários e jurisprudenciais mediata e imediatamente atrelados à matéria.

Ao acompanhar a evolução dessa vertente específica da responsabilidade do Estado, nota-se uma tendência de elastecimento da seara abrangida, em relação ao entendimento sustentado pela doutrina majoritária. Lentamente observamos a obrigação de indenizar por parte da Administração se expandir para além das atividades decorrentes do Poder Executivo, abarcando também o Legislativo e mormente o Judiciário.

O Estado-juiz ao prestar seu serviço público à sociedade, não raras vezes gera prejuízos aos jurisdicionados, os quais não devem suportar esses danos indevidos, que podem decorrer, dentre outros: do erro judiciário, da atuação culposa ou dolosa do magistrado ou mesmo da própria denegação de justiça.

A questão apresenta relevo acadêmico, não se olvidando da paralela significação social, já que diante da facilitação do acesso ao Judiciário elevou-se substancialmente a quantidade de cidadãos em busca da tutela jurisdicional, que, por via de conseqüência, fez aumentar a potencialidade e ocorrência de danos oriundos dessa atividade pública. Assim, uma maior compreensão do tema possibilitará aos jurisdicionados a defesa não apenas de seus direitos, mas também da ordem jurídica e das instituições basilares do Estado, contribuindo para o fortalecimento da sociedade.

Nesse contexto, não é de se admitir a tese de irresponsabilidade do Estado por atos jurisdicionais e nem a tese majoritária que prega a responsabilidade parcial, somente naqueles casos especificados em lei, vez que a inteira responsabilização do Estado por danos que ocasione ao administrado, independe do Poder que esteja agindo em nome dele, sendo pressuposto fundamental do Estado de Direito e instrumento de defesa dos direitos e garantias fundamentais de todo o corpo social.

O princípio geral que norteia todo o campo da responsabilidade civil é aquele que impõe, a quem causa dano a outrem, o dever de reparar. Tal princípio encontra-se consignado no art. 927 do Código Civil de 2002 que assim dispõe: “Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.

Prima facie é importante enfatizar que nem todo fato social é capaz de fazer nascer um direito e, por via de conseqüência, a responsabilidade, para isso mister se faz a produção de efetivas conseqüências no mundo jurídico. Esse fato jurígeno é aquele que se ajusta à hipótese prevista na lei (fato abstrato) e que por isso lhe é atribuído efeito jurídico.

Na lição de Cavalieri Filho os fatos jurídicos podem ser de duas ordens: “naturais, quando decorrem de acontecimentos da própria natureza, como o nascimento, a morte, a tempestade etc., e voluntários, quando têm origem em condutas humanas capazes de produzir efeitos jurídicos”.[1]

Concluindo seu pensamento assevera ainda que: “Os fatos jurídicos voluntários, por sua vez, dividem-se em lícitos e ilícitos. Lícito é o fato praticado em harmonia com a lei; ilícito, a contrario sensu, é o fato que afronta o direito, o fato violador do dever imposto pela norma jurídica”.[2]

O ato ilícito, por ser o principal fato gerador da responsabilidade civil, merece destaque nesse estudo, atentando-se para a grande dificuldade da doutrina em defini-lo precisa e uniformemente.

Ressalte-se, porém, que os atos lícitos também podem resultar em indenização, nos casos especialmente previstos em lei como, por exemplo, os cometidos em estado de necessidade (arts. 188, II, 929 e 930 do Código Civil). É também o caso do exercício de direito de forma abusiva, previsto no art. 187 do Código Civil. Nessa situação parte-se de atividade lícita, mas que pelo seu desvirtuamento social expressado no excesso da conduta, acarreta a ilicitude.

A responsabilidade estatal já fora objeto de diversas modificações até chegar ao contexto atual, partiu-se de uma fase onde se pregava a total irresponsabilidade do Estado até se chegar ao atual estágio, onde predomina a chamada responsabilidade pública objetiva.[3]

Por longo período o Estado não esteve sob a égide dos princípios basilares da responsabilidade civil e do Estado Democrático de Direito, podendo, portanto, causar danos a terceiros sem que lhe fosse impingido qualquer dever de reparação.[4]

A atribuição de responsabilidade ao Estado teve como pressuposto necessário o reconhecimento de sua personalidade jurídica[5]. Destarte, o Estado passou a ser pessoa jurídica de direito público e por conseqüência titular de direitos e obrigações devendo, portanto, estar sujeito às normas jurídicas tanto quanto os particulares[6].

Aos poucos as teorias fundamentadas na responsabilidade do Estado ganharam terreno, defendendo que em um estado de direito o Poder Público está sujeito ao ordenamento jurídico vigente e caso venha a causar lesão injusta a bens jurídicos de terceiros, tem o dever de reparação.[7] Além disso, também se levantou a bandeira da justiça, pois não seria justo que apenas uma pessoa sofresse os encargos de ato danoso praticado em nome da coletividade, devendo este ser suportado por todos indistintamente, por meio da figura do Estado.[8]

Destaca-se que a teoria da irresponsabilidade estatal já está inteiramente sufragada, vez que seus dois últimos redutos já a abandonaram: a Inglaterra e os Estados Unidos, por meio do Crown Proceeding Act (1947) e do Federal Tort Claim Act (1946), respectivamente.[9]

A professora Di Pietro com propriedade alerta acerca do contexto histórico que servia de pano de fundo a teoria da irresponsabilidade: “A teoria da irresponsabilidade foi adotada na época dos Estados absolutos e repousava fundamentalmente na idéia de soberania: o Estado dispõe de autoridade incontestável perante o súdito (…)”.[10]

Defendia-se a idéia de que o Estado ao gerir os súditos estava exercitando sua própria soberania e, não era suscetível de erros. Devendo, portanto, o lesado buscar reparação em face do funcionário, que ao praticar ato ilícito o fazia em seu nome e não em nome do Estado.[11]

Outro argumento para embasar a teoria em comento seria o fato de não se poder atribuir responsabilidade ao Estado sem colocá-lo no mesmo plano dos administrados, sendo tal atitude incompatível com a soberania e com a natural superioridade estatal.[12]

Como visto alhures, havia muitas justificativas de cunho político utilizadas pelos partidários da teoria da irresponsabilidade. Contudo, advindo o desenvolvimento do Estado de Direito, desaguou-se em sua insustentabilidade e na proliferação do pensamento que o ato de o Estado indenizar é questão não só de justiça como também social.[13]

Diante da alteração das ideologias de governo dominantes no mundo, também houve alteração no que pertine às teorias que embasavam a responsabilização estatal por dano causado ao súdito. Importando observar que mesmo sendo afastada aos poucos a irresponsabilidade do Estado, restaram questionamentos acerca dos limites da neófita responsabilidade e das normas que deveriam ser aplicadas.[14] Todas essas mudanças políticas recaíram sobre a responsabilidade do Estado fazendo com que a teoria da irresponsabilidade fosse substituída pela responsabilidade subjetiva.

A aplicação inicial da responsabilidade do Estado veio lastreada nos princípios do Direito Civil, privilegiando-se a idéia de culpa e, nesse contexto é que se fala em teoria civilista da culpa.[15] Nesse primeiro momento fazia-se a distinção entre atos de império e atos de gestão.

Diante dessa divisão, os atos danosos praticados em nome da soberania, chamados atos de império, não eram suscetíveis de responsabilização e por eles não respondia o Estado. Noutro turno, admitia-se a composição dos danos oriundos de atos de gestão, desde que devidamente comprovada a culpa do agente que agia em nome da Administração.[16] Essa primeira fase da teoria civilista começou a ser criticada pelo fato de não haver como cindir a personalidade do Estado, tal pretensão não passaria de mera ficção, haja vista os agentes públicos agirem na qualidade de Estado.[17]

Posteriormente, a teoria civilista evoluiu e passou a permitir a responsabilização do Estado, independentemente de tratar-se de ato de gestão ou de império, mas ainda condicionada a prova da culpa do funcionário na ocorrência do dano. Entendia-se a relação entre Estado e funcionário como equiparada a patrão e empregado, justificando, assim, o dever de indenizar.[18]

Tratando-se de responsabilidade subjetiva, ao lesado incumbia o ônus de demonstrar além do dano e do nexo causal, a atuação culposa do agente público, sob pena de não restar caracterizada a obrigação de indenizar.[19] Frente às peculiaridades da responsabilidade estatal e da necessidade de princípios próprios, a teoria civilista demonstrou-se inadequada, evoluindo-se então para a fase publicista da responsabilidade da Administração.

Nessa fase, a responsabilidade estatal não mais é tratada sobre o prisma do Direito Civil, passa agora a ser observada em um enfoque advindo do Direito Público.[20] Essa mudança de paradigma se deu em razão de um emblemático caso, levado a apreciação nas Cortes Francesas, em 1873. A menina Agnès Blanco, ao atravessar a rua, foi atingida por um veículo da Cia. Nacional de Manufatura do Fumo, fato que levou seu pai ao ajuizamento de ação de reparação de danos baseada no dever do Estado indenizar o prejuízo suportado em decorrência de ação danosa de agente público.[21]

Entendeu-se que a responsabilidade do Estado possui características próprias e especiais, que não poderiam ser regidas pelos princípios do direito privado, a partir daí surgiram as teorias publicistas: teoria da culpa administrativa ou culpa do serviço e teoria do risco.[22]

Tendo a culpa civilística sido ultrapassada, nos deparamos com a chamada culpa do serviço ou falta do serviço, que ocorre quando o serviço público não funciona, funciona mal ou atrasado. Nessa modalidade é suficiente a ausência ou funcionamento defeituoso do serviço devido para configurar a responsabilidade da Administração.[23]

Nessa teoria observa-se uma mudança do ponto de apoio, é deixado de lado o foco principal incidindo sobre a pessoa do agente público, passando-se a tomar como referência a abstração do serviço público mal prestado.

Impende destacar que a teoria da culpa administrativa não estabelece uma presunção de culpa da Administração, razão pela qual deve ser provado o mau funcionamento e, por óbvio, o nexo de causalidade entre o dano e a má prestação do serviço.[24] Questão relevante a ser observada é a completa dissociação entre teoria da culpa administrativa e responsabilidade objetiva, que apesar de não se confundirem estão bastante próximas, nesse sentido adverte Oswaldo Bandeira de Mello:

“É mister acentuar que a responsabilidade por falta de serviço, falha do serviço ou culpa do serviço (faute du service, seja qual for a tradução que se lhe dê) não é, de modo algum, modalidade de responsabilidade objetiva, ao contrário do que entre nós e alhures, às vezes, tem-se inadvertidamente suposto. É responsabilidade subjetiva porque baseada na culpa (ou dolo)”.[25]

Ainda no contexto publicista surgiu a teoria do risco, na qual a idéia centralizada na culpa é substituída pela de nexo de causalidade entre a ação ou omissão do serviço público e o prejuízo sofrido pelo administrado, prescindindo a verificação de regular ou irregular funcionamento do mesmo.[26]

Hely Lopes defende a bipartição de teoria do risco em: risco administrativo e risco integral; a primeira permitia que o Estado elidisse o dever de indenizar quando presente alguma excludente, como culpa da vítima ou por motivo de força maior, já a segunda vincularia a Administração ao dever indenizatório em toda e qualquer situação.[27]

Hodiernamente tem-se entendido pela falta de implicação prática dessa distinção, vez que até mesmo os autores que advogam a existência da teoria do risco integral, admitem as causas excludentes da responsabilidade.[28] Yussef Said Cahali adverte acerca da desnecessidade dessa divisão:

“a distinção entre risco administrativo e risco integral não é ali estabelecida em função de uma distinção conceitual ou ontológica entre as duas modalidades de risco pretendidas, mas simplesmente em função das conseqüências irrogadas a uma outra modalidade: o risco é qualificado pelo seu efeito de permitir a contraprova de excludente de responsabilidade, efeito que seria inadimissível se qualificado como risco integral, sem que nada seja enunciado quanto à base ou natureza da distinção”.[29]

Diante desse panorama, forçoso concluir que a teoria do risco administrativo serviu de base para a emersão da responsabilidade civil objetiva do Estado, na qual se prescinde da avaliação do elemento culpa, deslocando-se, assim, o enfoque para o nexo de causalidade.

A ficção jurídica do Estado surgiu a partir da necessidade de ordenar o relacionamento social e, para facilitar a promoção de seu intento utiliza-se de uma tripartição em três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. Ante a unicidade e soberania do poder estatal, não se pode conceber que qualquer de suas vertentes possa causar dano ao administrado sem a respectiva obrigação de indenizar, conforme preceitua a Constituição.

Cada um dos poderes possui a sua função precípua, mas também é dotado de atividades distintas desta, a despeito de estarem em segundo plano. O poder Judiciário tem a função principal de entregar a prestação jurisdicional, ou seja, de compor as lides que por ventura venham a sua apreciação, promovendo, assim, a pacificação social. Entretanto, este também exerce atividades de cunho administrativo, bem como legiferante, quando da edição de portarias e regimentos internos.

Impende ressaltar a distinção existente entre atos jurisdicionais e atos judiciais, já que o objeto do presente trabalho é relacionado somente aos atos decorrentes do efetivo exercício jurisdicional. Os atos jurisdicionais são aqueles atinentes à própria função julgadora do Estado, enquanto os judiciais são os atos de administração, sendo ambos espécies do gênero atos judiciários[30]. Essa distinção também se faz relevante na medida que há grande reserva da jurisprudência em aceitar a responsabilização do estado por atos jurisdicionais em situações diversas do erro em matéria penal.

Importante analisar o enquadramento da prestação jurisdicional como serviço público ou não, haja vista parte da doutrina ainda hesitar em considerar a atividade judiciária como tal, bem como a figura do juiz como agente público, ainda que em sentido amplo.[31]

Indubitável que a função jurisdicional trata-se de serviço público, apesar de suas peculiaridades, monopolizado pelo Estado e indelegável. Não é outra a lição de Cretella Júnior:

“A responsabilidade do Estado por atos judiciais é espécie do gênero responsabilidade do Estado por atos decorrentes do serviço público, porque o ato judicial é, antes de tudo, um ato público, ato de pessoa que exerce o serviço público judiciário. Equipara-se o magistrado ao funcionário público para efeitos de responsabilização e o serviço de justiça ao serviço público, numa relação de gênero (público) a espécie (judicial)”.[32]

Outra questão fundamental e que não se pode olvidar é a relativa a responsabilidade do Poder Público por ato lícito, vez que a entrega da prestação jurisdicional aqui se insere e, considerando que quanto aos atos ilícitos é indiscutível a obrigação de indenizar. É plenamente reconhecida na doutrina a possibilidade de indenização por conta de dano oriundo de ato lícito do Estado.

Nessa esteira apenas nos resta aclarar o pensamento para verificar qual o âmbito dessa responsabilidade, quando ela estaria efetivamente presente? Em se tratando de dano causado por ato lícito da Administração, a doutrina tem entendido que, somente são passíveis de reparação aqueles que estejam enquadrados nos requisitos específicos: dano anormal e especial.[33]

Não obstante a ausência de delimitação firme acerca desses requisitos Bandeira de Melo[34] assevera que dano especial: “corresponde a um agravo patrimonial que incide especificamente sobre certo ou certos indivíduos, e não sobre a coletividade ou genérica e abstrata categoria de pessoas”, enquanto o dano anormal “(…) é aquele que supera os meros agravos patrimoniais pequenos e inerentes às condições de convívio social”.

O principal dispositivo normativo que cuida da responsabilidade civil do Estado é o § 6 do art. 37 da Constituição Federal, estabelecendo a regra da responsabilidade objetiva, com base na teoria do risco administrativo. Contudo, em sede de responsabilidade da Administração, o ordenamento jurídico pátrio não se desenvolveu completamente, vez que em relação aos atos jurisdicionais, a obrigação de reparar o dano nem sempre é admitida.[35]

Assim reza o dispositivo acima referenciado:

“Art. 37. (…) omissis

§ 6 – As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.[36]

Observe-se que não há no texto qualquer distinção atinente aos atos do judiciário, portanto, seria possível a responsabilização, vez que o magistrado é um agente público como qualquer outro.

Diante de todas as questões que circunscrevem a responsabilidade objetiva da Administração no ordenamento jurídico brasileiro, mister se faz algumas considerações em relação ao alcance da norma insculpida na Constituição. O art. 37, § 6 abrangeria somente as atividades administrativas do Estado, qual seria o fundamento para um tratamento diferenciado da atividade jurisdicional? Uma vez ocorrido dano decorrente da prestação da tutela jurisdicional, o prejudicado deveria dirigir-se diretamente ao juiz, nos casos previstos no art.133 do Código de Processo Civil, ou contra o Estado, tendo esse direito regressivo?

Destaca-se que o Supremo Tribunal Federal, infelizmente, tem entendido que o Estado é civilmente responsável pelos atos do Poder Judiciário apenas nos casos expressamente declarados em Lei.[37] Salientando que, a orientação do STF refere-se à atividade típica do judiciário, vez que a responsabilidade por atos judiciais (administrativos) já está pacificada.

A atividade jurisdicional é serviço público e os danos que advierem de seu mau funcionamento, até quando não se identifique falta pessoal de agente judiciário, deverão ser indenizados. Ademais, prestando com exclusividade esses serviços, o Estado assumiu os riscos de arcar com eventuais danos oriundos, quer da falta pessoal do agente judiciário, quer da falta anônima dos referidos serviços.[38]

Frente a esse arcabouço normativo e também às discussões doutrinárias e jurisprudenciais é necessário que situemos a posição do magistrado nesse cenário extremamente controvertido e de conotação jurídico – política.

Entende a doutrina que o juiz apenas pode ser alcançado pessoalmente pela obrigação de reparar o dano naquelas hipóteses previstas no art. 133 do CPC, nunca fora delas, sob pena de ter afetada sua função judicante, conforme acentua Yussef Said Cahali: “A independência funcional, inerente à Magistratura, tornar-se-ia letra morta se o juiz, pelo fato de ter proferido decisão neste ou naquele sentido, pudesse ser acionado para compor perdas e danos”.[39]

Apesar de existirem aqueles que pregam a revogação do dispositivo infraconstitucional após o advento da Carta de 1988, o posicionamento que nos parece mais acertado é o que visa uma interpretação harmoniosa entre o art. 133 do CPC e o art. 37 § 6 da Constituição Federal, já que são dispositivos que se complementam.

Neste caso, os danos resultantes da atividade jurisdicional seriam suportados pelo Estado, conforme preceitua o dispositivo constitucional, não se falando em responsabilidade pessoal do juiz. Todavia, o Estado apenas poderia acionar o magistrado regressivamente se houvesse a comprovação de que o ato praticado subsumiu-se àquelas hipóteses previstas no art. 133 do CPC, vale dizer, quando tiver agido com dolo, fraude, ou ainda, quando tiver recusado, omitido ou retardado, injustificadamente, providência que deveria ordenar de ofício ou a requerimento da parte.[40]

É sabido que a responsabilização do Estado por atos jurisdicionais é terreno árido e que ainda reserva muitas discussões acerca de sua admissibilidade ou não, sendo válido ressaltar que ambas as correntes possuem notáveis e árduos defensores. Registre-se também, que diante do Estado de Direito atualmente vivenciado em nosso ordenamento jurídico, entendemos não haver espaço para a irresponsabilidade da Administração nesse tocante.

É fundamental ter claro, que a aceitação da responsabilidade por atos jurisdicionais, não desaguaria em uma responsabilização absoluta, ao revés está apenas poderia surgir diante de determinados pressupostos. Enfatizando-se que não se deseja e nem ocorrerá o tolhimento da imprescindível independência funcional do magistrado.

O longo caminho para se chegar a um efetivo Estado Democrático de Direito necessariamente passa pela responsabilização estatal pelos danos causados pela ação ou omissão de seus agentes. Partindo-se da unidade da soberania, que é tripartida em funções distintas a fim de potencializar a defesa do interesse público, forçoso admitir que independentemente do Poder que esteja causando o dano a obrigação de restituir o administrado ao statu quo ante é do Estado, que não pode se furtar desse dever.

A caracterização da atividade judiciária como espécie de serviço público, bem como da condição de juiz como agente público, valida sua submissão aos ditames do art. 37, § 6º da Constituição da República de 1988. A despeito disso em nosso ordenamento jurídico ainda há hesitação em reconhecer a responsabilização por esse tipo de atividade, mas já houveram tímidos avanços no sentido de mitigar o retrogrado entendimento de total irresponsabilidade do Estado-juiz.

Hodiernamente há uma conjugação de dois regimes: o da responsabilidade pessoal do juiz, com base no art. 133 do Código de Processo Civil e a responsabilidade objetiva do Estado, cabendo ao lesado a escolha de qual expediente pretende se utilizar. Sendo a norma prevista no Código de ritos complementar em relação ao dispositivo constitucional, pelo que não se cogita de antinomia. O que ocorre é a possibilidade do prejudicado acionar diretamente o magistrado, nos casos especificados em lei.

Enfim, não é o jurisdicionado que está obrigado a assumir o risco da atividade jurisdicional danosa, ao revés, quem avoca esse ônus para si é o Estado, legítimo detentor do monopólio do serviço judiciário, que nesse sentido também assume as possíveis mazelas do sistema.

 

Notas:
[1] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 36.
[2] Ibidem, p. 29.
[3] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 31. ed. São Paulo, Malheiros, 2005, p.643-644
[4] LEITE, Rosimeire Ventura. Responsabilidade do Estado por atos jurisdicionais, Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor, 2002, p.49.
[5] Apud LEITE, Rosimeire Ventura. op. cit, p. 50.
[6] Ibidem, p. 48.
[7] SERRANO JÚNIOR, Odoné. Responsabilidade Civil do Estado por atos judiciais, Curitiba, Juruá Editora, 1996, p. 48.
[8] SIQUEIRA, Marcelo Sampaio. Responsabilidade do Estado – Erro Judicial Praticado em Ação Cível, Belo Horizonte, Mandamentos Editora, 2001, p. 66.
[9] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 31. ed. São Paulo, Malheiros, 2005, p.644
[10] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 14 . ed., São Paulo, Editora Atlas, 2002, p.525.
[11] LEITE, Rosimeire Ventura. Responsabilidade do Estado por atos jurisdicionais, Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor, 2002, p.51.
[12] SERRANO JÚNIOR, Odoné. Responsabilidade Civil do Estado por atos judiciais, Curitiba, Juruá Editora, 1996, p. 53.
[13] SIQUEIRA, Marcelo Sampaio. Responsabilidade do Estado – Erro Judicial Praticado em Ação Cível, Belo Horizonte, Mandamentos Editora, 2001, p. 66.
[14] LEITE, Rosimeire Ventura. Responsabilidade do Estado por atos jurisdicionais, Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor, 2002, p.52.
[15] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 14 . ed., São Paulo, Editora Atlas, 2002, p.525.
[16] SCHLESINGER, Patsy. Responsabilidade civil do Estado por ato do juiz. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 41.
[17] SERRANO JÚNIOR, Odoné. Responsabilidade Civil do Estado por atos judiciais, Curitiba, Juruá Editora, 1996, p. 53.
[18] LEITE, Rosimeire Ventura. Responsabilidade do Estado por atos jurisdicionais, Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor, 2002, p.55.
[19] SERRANO JÚNIOR, Odoné. Responsabilidade Civil do Estado por atos judiciais, Curitiba, Juruá Editora, 1996, p. 55.
[20] CARVALHO NETO, Inácio de. Responsabilidade do Estado por Atos de Seus Agentes, São Paulo, Atlas, 2000.
[21] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 14 . ed., São Paulo, Editora Atlas, 2002, p. 526.
[22] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 14. ed. São Paulo, Editora Atlas, 2002, p.525-526.
[23] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros , 2005, p. 250.
[24] LOUREIRO FILHO, Lair da Silva. Responsabilidade Pública por Atividade Judiciária. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2005.
[25] Apud MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 12. ed. São Paulo: Malheiros,
    1999, p. 785.
[26]DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 14. ed. São Paulo, Editora Atlas, 2002, p.525-527.
[27] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 31. ed. São Paulo, Malheiros, 2005, p.646.
[28]DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 14. ed. São Paulo, Editora Atlas, 2002, p.525-527.
[29] CAHALI, Yussef  Said. Responsabilidade civil do Estado, São Paulo: Malheiros, 1995.
[30] LOUREIRO FILHO, Lair da Silva. Responsabilidade Pública por Atividade Judiciária. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 195.
[31] Ibidem, p. 87.
[32] Apud LOUREIRO FILHO, Lair da Silva. op. cit, p. 90.
[33] LEITE, Rosimeire Ventura. Responsabilidade do Estado por atos jurisdicionais, Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor, 2002, p.78.
[34] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Malheiros,1998, p.633.
[35] LEITE, Rosimeire Ventura. Responsabilidade do Estado por atos jurisdicionais, Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor, 2002, p.83.
[36] Constituição Federal de 1988
[37] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil, 6. ed. São Paulo, Malheiros, 2005, p. 279.
[38]SERRANO JÚNIOR, Odoné. Responsabilidade Civil do Estado por atos judiciais, Curitiba, Juruá Editora, 1996, p. 104.
[39]Apud CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil, 6. ed. São Paulo, Malheiros, 2005, p. 285.
[40]LEITE, Rosimeire Ventura. Responsabilidade do Estado por atos jurisdicionais, Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor, 2002, p.131.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Stanley Sikva Ribeiro

 

Advogado em Brasília-DF Assessor Juridico da Associação Brasileira de Rádio e Televisão – ABERT

 


 

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