1 – Considerações iniciais. No curso de um processo de recuperação extrajudicial, judicial ou falimentar sempre haverá decisões no âmbito cível que guardarão estreita reverberação no campo penal. Pode, por exemplo, o juiz, no curso de um processo de recuperação, decretar a prisão preventiva do devedor quando decide decretar sua falência, atendendo pedido ministerial (Lei 11.101/05, art. 99, VII). Situações como estas exigem ação imediata do Ministério Público no sentido de ajuizar a ação penal contra o devedor, especialmente se preso, e eventuais agentes que, em concurso, possam ter participado de crimes contra a massa de credores ou contra outros bens jurídicos tutelados pela LREF.
Tem-se nessa hipótese o desdobramento de duas ações – uma de natureza cível e outra de índole penal – com finalidades distintas, oriundas de um mesmo contexto fático.
O processo civil permite uma série de medidas processuais para que a parte mostre seu inconformismo frente a toda e qualquer decisão judicial desfavorável. Por óbvio, os decretos de falência e de prisão preventiva representam marcos desastrosos na vida de um empresário que, certamente, valer-se-á dos meios processuais disponíveis para reverter esta conjugação de situações incômodas para sua vida pessoal e profissional.
Se conseguir reverter o decreto de quebra, por intermédio de recurso ou mandado de segurança, como ficará o processo-crime em curso? Mesma indagação caberá se anulada a pedido do devedor ou de credores a recuperação judicial em curso.
Como se sabe no procedimento anterior (CPP, art. 507), existia previsão legal disciplinando o tema em estudo. No entanto, houve revogação expressa pelo atual art. 200 da LREF de todo o procedimento então previsto para processo e julgamento dos crimes falimentares sob a égide do DL 7661/45[1].
Este é o cerne do tema que trazemos à baila para análise daqueles que militam na área do direito falimentar, com ênfase na criminal.
2 – A reforma das sentenças. Motivação. O Tribunal de Justiça ou Tribunal Superior pode reformar ou decretar a nulidade de uma das três sentenças pelos mais variados motivos, a saber: por vício de citação (STJ – REsp 180349/SP, Ministro Cesar Asfor Rocha, DJU 15.10.01; ou ainda, TJSP – Ap. Cív. 165.651-4 – Rel. Cezar Peluso – 20.03.01); por ausência dos requisitos legais para decretação (RT 643/81); ou por irregularidade nos créditos habilitados (JTJ 138/370) etc.
Como se infere das situações apontadas, motivos sempre existiram, e de sobra, para devolver o devedor ao statu quo ante.
Atualmente, a exegese maior, a teleologia da Lei de Recuperação de Empresas e Falência sintoniza-se com novos parâmetros tendentes à manutenção da atividade produtiva, do emprego e dos interesses dos credores, com vistas à preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica (art. 47). Este novo paradigma por certo exigirá preocupação mais acentuada dos magistrados quando da avaliação de pedidos de recuperação e falência.
De todo modo, uma vez homologada, concedida a recuperação judicial ou declarada a falência, o devedor e terceiros, considerados co-autores ou partícipes, podem sofrer a imputação de eventuais crimes.
De se notar que o legislador definiu o juiz criminal da jurisdição onde foi prolatada uma das sentenças como o competente para conhecer da ação penal (LREF, art. 183). A par de o dispositivo, em nosso sentir, padecer de inconstitucionalidade por ferir o disposto no art. 24, § 1º, da CF, alguns Estados da nação, dentre eles São Paulo, têm na Vara cível em que se processa a recuperação ou a falência o juízo competente para conhecer da ação penal. Cumula-se no juiz cível, além da sua, por óbvio, a competência criminal falimentar.
3 – Condição específica de punibilidade. Ação Penal. Prescreve o art. 180 da Lei 11.101/05 que “A sentença que decreta a falência, concede a recuperação judicial ou concede a recuperação extrajudicial de que trata o artigo 163 desta Lei é condição objetiva de punibilidade das infrações penais descritas nesta Lei”.
A ação penal, no DL 7661/45, exigia como pressuposto indissociável o decreto de falência, caracterizado pelo estado de insolvência do devedor. Atualmente, são três decisões que constituem condição objetiva de punibilidade: a sentença declaratória de falência, a concessiva de recuperação judicial e a homologatória de recuperação extrajudicial.
Muito se discutiu na doutrina a respeito da natureza jurídica da sentença declaratória da falência. Para uns, afigurava-se elemento constitutivo do crime, pois a sentença integrava a figura típica da incriminação legal; para outros, seria condição objetiva de procedibilidade, pois o art. 507 do CPP pressupunha que a ação penal não podia iniciar-se antes de declarada a falência; para uma terceira corrente, tratava-se de condição objetiva de punibilidade. Este sempre foi o entendimento prevalente e, agora, concebido expressamente pelo legislador falitário.
Condição objetiva de punibilidade é a circunstância que se encontra fora do tipo do injusto e da culpabilidade, mas de cuja existência depende a punibilidade do fato[2]. Situa-se fora do dolo do agente e está sujeita a um acontecimento incerto e posterior ao fato criminoso[3].
Em citação de Frederico Marques, para Von Lizst, são circunstâncias externas que nada têm a ver com a ação delituosa, mas de cuja presença depende a aplicabilidade da sanção; para Delitala, são as circunstâncias que se situam fora do fato, visto que não se inserem na relação de causalidade, nem influem sobre a culpabilidade[4].
Ao diferenciar as condições de punibilidade com as de procedibilidade, Frederico Marques ensina que “Enquanto as condições de punibilidade se enquadram diretamente no meritum causae, as de procedibilidade se referem de maneira imediata à instauração do processo. Por isso, se uma sentença declarar inexistente uma condição de procedibilidade, não há decisão definitiva ou julgamento sobre o mérito, e sim decisão de conteúdo processual e de caráter interlocutório misto”[5].
Quanto à aplicabilidade das normas de superdireito sobre interpretação da lei e integração da ordem legal, Frederico Marques conclui que enquanto as condições de procedibilidade se sujeitam às regras de Processo Penal, as de punibilidade se submetem às regras de Direito Penal.
Em suma, quando o magistrado decidir pela ausência da condição de punibilidade, julgará o mérito da pretensão acusatória ofertada pelo órgão ministerial ou em vias de sê-lo.
4 – A revogação do art. 507 do Código de Processo Penal. Como já aduzido, a redação do art. 507 do CPP ao preconizar que “A ação penal não poderá iniciar-se antes de declarada a falência e extinguir-se-á quando reformada a sentença que a tiver decretado” evidenciava que uma vez reformada a sentença declaratória, impunha-se ao Estado-Juiz extinguir a punibilidade do suspeito, réu ou condenado. Equivale dizer, aquela sentença era de extinção da punibilidade do agente. E agora, revogada a norma que autorizava a declaração de extinção da punibilidade, admite-se manter o mesmo entendimento? Em outras palavras, pode-se extinguir a punibilidade sem um dispositivo autorizador expresso neste sentido, ainda que a considerasse uma causa de extinção da punibilidade sui generis?
Basileu Garcia já dizia “mesmo que não seja inocente, pode o acusado de infração à lei penal eximir-se de pena, por influência de variadas causas, ditas extintivas de punibilidade. São acontecimentos que surgem depois da conduta delituosa, nos quais a lei reconhece eficácia excludente da pretensão punitiva do Estado”[6]. Por seu turno, Bento de Faria aludia que a extinção da punibilidade assenta em razões de política criminal, das quais o Estado é o único juiz, como titular exclusivo do direito de punir[7].
Quando Basileu Garcia teceu aquelas considerações, preocupava-se com o momento da ocorrência da causa de extinção da punibilidade, contudo lhe era indissociável que unicamente lei poderia retirar do Estado o seu direito de punir.
A punibilidade é a possibilidade jurídica de o Estado impor a sanção[8].
Mirabete leciona sobre as causas objetivas de punibilidade e assevera que praticado o delito, pode a lei exigir a existência de condição objetiva a fim de ser punível o fato praticado. Mas, argumenta que a lei brasileira não registra disposição geral expressa sobre elas. Reflete que do jus puniendi concretizado com a prática de um crime, podem ocorrer causas que obstem a aplicação das sanções penais pela renúncia do Estado em punir o autor do delito, falando-se, então, em causas de extinção da punibilidade[9].
Em síntese, as causas extintivas da punibilidade, independentemente do diploma em que estejam previstas (Código Penal, Código de Processo Penal, leis especiais etc.), somente podem ser reconhecidas judicialmente quando insertas em lei. Agregue-se que para Damásio sequer medida provisória configuraria instrumento normativo hábil para a criação de causas extintivas da punibilidade. O mestre faz referência ao art. 62, § 1º, I, “b”, da CR e ao julgado do STJ, no REsp. 433.390, de 16.06.03[10].
Aliás, em analogia ao nosso estudo, temos que a recente revogação dos incisos VII e VIII, do art. 107, do Código Penal[11], retirou do mundo jurídico a possibilidade de se extinguir a punibilidade naquelas hipóteses.
E não se pode ter outra interpretação no caso em estudo.
Vejamos.
Façamos o cotejo entre os dispositivos legais que situam o tema em debate, o art. 507 do CPP e o art. 180 da LREF.
Se de um lado o revogado art. 507 previa condição objetiva para início da ação penal ao estatuir: “A ação penal não poderá iniciar-se antes de declarada a falência”, o art. 180 da LREF faz o mesmo ao preconizar: “A sentença que decreta a falência, concede a recuperação judicial ou concede a recuperação extrajudicial de que trata o artigo 163 desta Lei é condição objetiva de punibilidade das infrações penais descritas nesta Lei”. De outro lado, enquanto o dispositivo revogado disciplinava estar extinta a punibilidade em eventual reforma da sentença de falência, ao exprimir “e extinguir-se-á quando reformada a sentença que a tiver decretado”, a LREF nada disciplina a respeito.
Em outras palavras, uma vez revogada a norma que autorizava a extinção da punibilidade (CPP, art. 507), desapareceu do mundo jurídico essa benesse de política criminal. Mas, como na realidade processual atual, a convivência de ação civil e penal é fora de dúvida, impõe-se ao juiz, valer-se de decisões catalogadas nos diplomas processuais vigentes para solucionar cada processo-crime quando uma das sentenças for reformada ou anulada em grau de recurso ou por ele próprio.
E nem se olvide que o juiz decidirá o mérito do crime falimentar.
Vicente Greco Filho orienta que “referem-se ao mérito e extinguem a pretensão punitiva, ainda que posteriores à ação penal, porque quebram a relação natural existente entre a prática de uma infração penal e a imposição de pena. Todavia, se o fato extintivo da punibilidade (CP, art. 107) ocorre antes da instauração da ação penal, ele se torna uma condição negativa de procedibilidade, de modo que a própria ação penal fica proibida.”[12]
Antes da ação penal, a condição negativa de procedibilidade, traduz-se em ausência de justa causa para a ação penal por se confundir com falta de legítimo interesse de agir do MP, na interpretação de Frederico Marques[13]. E o que representa a perda do jus puniendi estatal no curso de uma ação penal ou após seu trânsito em julgado? A perda do direito de punir acarreta a extinção da punibilidade. Mais, o Estado-juiz deve julgar o mérito da ação penal, como o fazia ao decretar extinta a punibilidade. No entanto, sem lei, quid inde?
Sopesando que a condição de punibilidade que conferia ao Estado o poder de imposição de pena foi retirada pelo próprio Estado-Juiz, entendemos que o fato se tornou um indiferente penal para o próprio Estado, tornando-se atípico.
5 – As alternativas fáticas e suas conseqüências. Como é cediço, com o fim do inquérito judicial, atualmente os crimes falimentares podem ser apurados em parte pela polícia judiciária (LREF, art. 187, caput)[14]. Assim, vislumbramos até o momento quatro situações a serem avaliadas quanto às conseqüências de reforma de uma das sentenças da LREF. Estudemos cada uma:
a) Durante o inquérito policial. Figurando o devedor como suspeito ou indiciado da prática de crime falimentar, retirado do Estado o direito de punir, ao Ministério Público nada resta, senão pedir o arquivamento do feito, haja vista a ausência de justa causa para a ação penal. Explica-se. Sem a condição objetiva falta o legítimo interesse de agir ao órgão acusatório;
b) Antes do recebimento da denúncia. O juiz deverá rejeitar a denúncia oferecida com fulcro no art. 43, III, do diploma processual, pois ausente justa causa para a ação penal.
Como dito anteriormente, sem a condição objetiva falta o legítimo interesse de agir ao órgão acusatório, que também se transmuda em falta de condição de procedibilidade, na lição de Vicente Greco Filho, que adotamos. Nas duas hipóteses em estudo (a e b), se o crime falimentar transmudar-se em crime comum, o feito deverá ser remetido para a justiça comum. Ex.: nas diversas modalidades de crime de fraude contra credores, com ênfase nas previstas no § 1º e incisos e § 2º (contabilidade paralela)[15], além de prejudicar credores, o devedor, via de regra, objetiva prejudicar a arrecadação tributária estatal (federal, estadual e/ou municipal);
c) Durante a ação penal. Sobrevindo a decisão que retira do Estado o direito de punir, o magistrado deve tomar uma de duas medidas: por ausente condição específica de punibilidade, o fato pode se tornar um indiferente penal, cabendo-lhe absolver o réu com fulcro no art. 386, III, do CPP (o fato não constitui infração penal), como no caso de acusação por crime de divulgação de informações falsas (art. 170). Caso o fato constitua, igualmente crime comum, como habilitação ilegal de crédito (art. 175) que pode caracterizar crime de falsidade ideológica (CP, art. 299), o feito deve ser encaminhado à justiça comum; no concurso de crime falimentar e comum – fraude a credores e quadrilha, por exemplo –, após a definição quanto ao crime falimentar, competirá ao juiz remeter o processo ao juiz criminal, estadual ou federal, competente para prosseguimento.
Todo o descrito neste item se aplica aos processos em grau de recurso;
d) Após o trânsito em julgado. Tendo sido o réu condenado em definitivo, única alternativa que lhe resta é a ação de Revisão Criminal. E a questão que se põe é: sob qual fundamento jurídico da revisão deverá o condenado fundar seu pedido? Entendemos que o raciocínio lógico a adotar é o de que sem a condição objetiva de punibilidade o feito ultimado padece de nulidade insanável. Quando da vigência do art. 507 do CPP, reformada a sentença de falência, impunha-se decretar extinta a punibilidade do réu, vez que desaparecida a pretensão punitiva do Estado. E se já houvesse o trânsito em julgado, dizia Tourinho, via habeas corpus ou revisão criminal[16]. Atualmente, o remédio único é a revisão criminal, uma vez que somente nulidade manifesta autoriza o uso do remédio heróico. Porém, se preso, caberá a impetração do remédio heróico, ante o constrangimento ilegal por ausência de justa causa.
Na revisão criminal, competirá ao peticionário fundar o pedido na parte final do art. 626, do CPP, rogando pela declaração de nulidade do processo-crime pelo qual se viu condenado, justificando que a condição específica de punibilidade perdeu sua eficácia quando reformada uma das sentenças estatuídas no art. 180, da LREF, rogando a procedência da revisão com a conseqüente absolvição por atipicidade do fato.
6 – Conclusões.
a) A revogação do art. 507 do CPP inviabilizou o decreto de extinção da punibilidade dos crimes falimentares tipificados na Lei 11.101/05, porquanto retirada do ordenamento o correspondente permissivo legal;
b) A reforma ou declaração de nulidade das sentenças homologatória de recuperação judicial, concessiva de recuperação judicial e declaratória de falência no curso de ação penal exigirá do juiz análise individualizada para pôr fim ao processo-crime.
Antes de iniciada a ação penal: a reforma das sentenças falimentares (condição objetiva de punibilidade) remeteria à decretação de extinção da punibilidade. A presença de causa extintiva de punibilidade equivale à ausência de condição de procedibilidade, ou seja, o MP não tem legitimidade para denunciar, diante da causa impeditiva. Logo, de se concluir, sem condição de punibilidade inexiste justa causa para a ação penal.
Durante a ação penal: estando o réu sendo processado unicamente por crime falimentar, o juiz decidirá o mérito, absolvendo-o por atipicidade do fato, salvo se o fato também é crime comum. Existindo conexão entre crime falimentar e comum, também decidirá o mérito quanto ao falimentar e desmembrará o feito, remetendo ao juízo competente para o devido prosseguimento quanto ao crime conexo.
c) Entendemos não ser correta a interpretação no sentido de que se a LREF criou uma condição objetiva de punibilidade no art. 180, sendo esta reformada ou nulificada, deveria ser extinta a punibilidade, por interpretação a contrario sensu, admitindo-se, por conseguinte, causa sui generis de extinção da punibilidade. Defendemos ser equivocado este entendimento, porquanto negaria validade ao sistema jurídico que exige indeclinavelmente lei específica para se reconhecer uma causa de extinção da punibilidade. O sistema normativo deve transmitir segurança jurídica e não o contrário. Cabe ao intérprete buscar soluções para equacionar as lacunas legais sem atentar ao ordenamento sistematizado.
Informações Sobre o Autor
Jayme Walmer de Freitas
juiz criminal, mestre em Processo Penal pela PUC/SP. Professor de Leis Especiais, Penal Especial e Processo Penal. Autor de artigos jurídicos e dos livros Prisão Temporária e OAB – 2ª Fase – Área Penal, ambos pela Editora Saraiva. Coordenador da Coleção OAB – 2ª Fase, pela mesma Editora. Foi coordenador pedagógico do Curso Triumphus – preparatório para Carreiras Jurídicas e Exame de Ordem, por 14 anos. Professor de Leis Especiais na Rede LFG