Resumo: O presente artigo analisa a súmula vinculante frente à Constituição Federal do Brasil, buscando formar a convicção de que referido instituto jurídico não é compatível com ela. Tal incompatibilidade advém do fato de que a vinculação de provimentos judiciais nunca foi da tradição do direito brasileiro, cujas raízes estão fincadas no sistema jurídico de tradição romana, que tem a lei como sua força vinculativa. Portanto, da análise que este arrazoado fez, verificou-se que a súmula vinculante viola os princípios da legalidade, separação de poderes, acesso ao Poder Judiciário, devido processo legal, coisa julgada e independência do juiz. Objetiva este trabalho revelar os motivos da inconstitucionalidade da súmula vinculante, buscando assim, defender a ordem constitucional. Para bem cumprir o intento, escolheu-se como método de pesquisa o bibliográfico, já que fizemos uma extensa análise de obras e artigos doutrinários. Bem se sabe que o conhecimento é ilimitado, mas também é sabido que para alcançar determinado propósito é preciso delimitá-lo, razão pela qual se promove um corte metodológico, evitando delongas quanto aos aspectos legislativos da súmula vinculante.
Palavras-chave: Súmula vinculante. Inconstitucionalidade.
Abstract: This paper analyzes the binding precedent to show that it is not compatible with the Brazilian Federal Constitution. The conflict exists because the incidence of binding court order is not natural in the Brazilian legal system, which is affiliated with the legal system of the Roman tradition, which has the law as binding force. Therefore, analyzing the issue, it is understood that the binding precedent violates the principles of legality, separation of powers, access to the courts, due process of law, res judicata and the judge’s independence. The purpose of this paper is to tell the reasons of unconstitutionality of the binding precedent, defending the constitutional order. To achieve this purpose we choose the bibliographic research method because we did an extensive analysis of doctrinal books and articles. The knowledge is unlimited but in order to reach such purpose it is necessary to delimit it, therefore it is useful a methodological approach to avoid analyzing the legal aspects of the binding precedent.
Keywords: Binding precedent. Unconstitutionality.
Sumário: Introdução; 1. Conceito de súmula vinculante;1.1. Natureza jurídica; 1.2. Finalidade; 2. A origem histórica do efeito vinculante dos provimentos judiciais; 2.1. A origem histórica do precedente judicial vinculante no contexto brasileiro; 3. Análise do pressuposto e dos elementos condicionais de edição da súmula vinculante; 3.1. Pressuposto necessário à criação da súmula vinculante; 3.2. Elementos condicionantes da súmula vinculante; 3.3. Da abrangência da súmula vinculante; 3.4. Da competência para a edição da súmula vinculante; 3.5. Dos legitimados para provocar a edição, revisão ou cancelamento da súmula vinculante; 3.6. Do descumprimento da súmula vinculante; 4. A inconstitucionalidade da súmula vinculante; 4.1. Análise das famílias fundamentais do Direito; 4.1.1. Das violações ao princípio da legalidade e ao princípio da separação de poderes; 4.1.2. Das violações aos princípios do acesso ao Poder Judiciário e do devido processo legal; 4.1.3. Da violação ao instituto da coisa julgada; 4.1.4. Da violação ao princípio da independência do juiz; 5. Da afastabilidade da súmula vinculante; 5.1. Do instituto do distinguishing; 5.2. Da declaração incidental de inconstitucionalidade; Conclusão; Referências bibliográficas.
“Um judiciário verticalmente militarizado é tão aberrante e perigoso quanto um exército horizontalizado.” Eugenio Raúl Zaffaroni
Introdução
O presente trabalho tem por objetivo demonstrar e defender a inconstitucionalidade da súmula vinculante, instituto jurídico introduzido em nosso ordenamento pela Emenda Constitucional n. 45 de 2004 e, ao depois, regulamentado pela Lei 11.417 de 2006. Ao longo das páginas a seguir arroladas, serão constatados diversos motivos que nos levam a defender a proposta apresentada.
Tais motivos, seguramente, indignarão aqueles que, como nós, veem na Constituição da República Federativa do Brasil o recipiente que acondiciona os direitos e garantias individuais, que se constituem no elemento central do Estado Democrático de Direito.
Essa indignação decorre de um fato bastante simples: o uso da súmula vinculante implica em atentado a esses direitos, constituindo-se, numa análise ampla, em violação ao nosso Estado de Direito.
Eis aqui mais um razão para entendermos o Brasil como sendo um lugar extremamente paradoxal, já que de um lado temos uma carta política que nos garante amplos direitos, mas em seguida temos que conviver com um mecanismo jurídico que os mitigam e por vezes os aniquilam.
Portanto, com essa situação temos o que a doutrina chama de antinomia jurídica. E como podemos solvê-la? A nosso ver, de forma bastante fácil. Não temos dúvida de que devem prevalecer os direitos e garantias individuais, pois eles se constituem cláusula pétrea, não podendo ser abolidas, modificadas ou restringidas.
Entendemos que a Emenda Constitucional 45, ao criar a súmula de efeito vinculante, violou a regra constante no artigo 60, § 4º, IV da Constituição Federal, isto porque referido instituto, no caso concreto, pode suprimir direitos constantes no rol do artigo 5º da Lei Maior.
Para justificar a assertiva, trazemos a excelente lição de Evandro Lins e Silva (SILVA; 1998, p. 83), para quem “a súmula com efeito vinculante absoluto para os juízes de primeira instância significa a introdução em nosso sistema jurídico de um sucedâneo da lei, que produzirá a superposição ou conflito de atribuições entre os Poderes Legislativo e Judiciário. A segunda garantia constitucional afrontada pelas súmulas vinculantes é a liberdade de todos os magistrados de decidir os litígios segundo a lei e de acordo com o seu convencimento pessoal.”
Por essa razão e a bem da verdade, a proposta que originou essa emenda, nesse particular, sequer poderia ter sido discutida, votada, aprovada e nem promulgada. Essa proposta, sob o rigor de nossa Lei Fundamental deveria ter sido barrada pelo controle preventivo de constitucionalidade.
Como não o foi, resta-nos divulgar essas violações para formar a convicção geral de que a súmula vinculante não é o melhor caminho para a resolução dos problemas do nosso sistema judiciário, conforme alegam os defensores da medida, que sustentam que o enunciado vinculante é o instrumento correto para acabar com a morosidade do nosso sistema.
Veremos em nossas conclusões que isso não é verdadeiro. Mesmo que fosse, nada justifica a violação ao texto constitucional, principalmente no que toca aos direitos e garantias fundamentais. A bem do princípio da supremacia da constituição e da segurança jurídica, nada pode violar o texto.
Para bem cumprir nosso intento, abordaremos a temática de forma clara, concisa e, acima de tudo, objetiva. O trabalho foi realizado via método bibliográfico de pesquisa, já que fizemos uma extensa análise de obras doutrinárias.
Bem sabemos que o conhecimento é ilimitado, mas também sabemos que para alcançar o nosso propósito é preciso delimitá-lo.
Por essa razão, promovemos um corte metodológico no qual evitamos delongas quanto aos aspectos legislativos da súmula vinculante. Tratamos desse assunto de forma rápida, mas respeitando a sua essência. Assim, procedemos para manter íntegra a finalidade deste arrazoado, qual seja: informar os motivos pelas quais tachamos de inconstitucional a súmula de efeito vinculante.
Assim sendo, desenvolvemos o estudo em cinco capítulos. Nos três primeiros informaremos o leitor sobre o conceito, finalidade, a natureza jurídica, origem histórica e sobre os elementos procedimentais trazidos pela Lei 11.417 de 2006. Procedemos dessa maneira, pois entendemos ser impossível, a quem quer que seja, expressar um juízo de valor sobre o que quer que seja sem antes conhecê-lo.
No quarto capítulo, chegando ao clímax do trabalho, discorremos acerca das violações advindas pelo uso da súmula de efeito vinculante. É nesse ponto que oferecemos ao leitor as razões de nosso entendimento.
O último capítulo, apesar de despretensioso, trata de um assunto que se revela muito importante. Nele damos algumas pequenas sugestões para que os operadores do direito, precisamente os advogados, livrem-se da incidência das súmulas de efeito vinculante.
1. Conceito de súmula vinculante
Antes de adentrarmos nos tópicos centrais do presente trabalho, é forçoso estabelecer o seguinte entendimento: súmula é gênero da qual súmula vinculante é espécie. Tendo isso em vista, é preciso fazer distinção entre ambas, pois como veremos em seguida, entre elas existe um abismo.
No sistema jurídico brasileiro, de origem romana, a súmula enquanto gênero, é um pequeno enunciado em que os tribunais superiores exaram um entendimento sobre determinada matéria a que já tenham decidido pela mesma maneira diversas vezes, demonstrando à sociedade como pensa e como se pronuncia o tribunal diante de casos que tem como objeto o seu tema.
Nesse sentido, conforme demonstra Teresa Arruda Alvim Wambier (1985, p.225), as súmulas “consistem num resumo da jurisprudência predominante do Supremo Tribunal Federal, expressando a interpretação da maioria absoluta dos ministros a respeito de questões julgadas, ainda que as decisões precedentes não tenham sido unânimes. Representam a orientação pacífica deste Tribunal, no que concerne à exegese de leis, quer de Direito material, quer de Direito processual, e no que diz com assuntos não tratados de forma específica pelo texto do Direito positivo.”
É o que também ensina Kildare Gonçalves Carvalho, definindo as súmulas como enunciados concisos que, de maneira objetiva, explicam a interpretação de tribunal superior a respeito de determinada matéria (2008, p. 522). Em última análise, a súmula é síntese da atividade judicante.
Portanto, pode-se afirmar que a súmula tem caráter demonstrativo de uma determinada situação jurídica. Não tem caráter permanente, pois apenas indica a forma como pensa o tribunal em ocasião e composição determinadas, servindo ao operador do direito como fonte de convencimento acerca de determinada matéria de direito. Bem por isso, a doutrina costuma denominá-la de súmula de caráter persuasivo. Uma vez refeita a composição do tribunal muitos entendimentos mudam, porque cada magistrado pensa de uma forma, o que enseja o cancelamento de algumas e a edição de outras novas.
Já a súmula vinculante, por ser espécie da súmula genérica, guarda todas essas características, mas a ela se acrescenta o caráter da observância obrigatória face a todos os demais órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública, em todas as esferas, conforme se infere do artigo 103-A da Constituição.
Ibsen Noronha e Ronald Bicca (2006, p. 73) demonstram a diferença entre a súmula comum e a de efeito vinculante: “a súmula vinculante, cuja previsão legal encontra-se no art. 103-A da EC 45/04, sendo aprovada, a observância não é mais facultativa, como ocorre com a jurisprudência e a súmula antes mencionada, pois deve obrigatoriamente ser observada, não podendo ser contrariada, ou seja, tem efeito vinculante. Cumpre ressaltara que somente o Supremo Tribunal Federal pode aprovar uma súmula vinculante, sendo seu procedimento prescrito no artigo constitucional supracitado.”
Dessa, o efeito vinculante pode ser entendido, em geral, como a eficácia de uma decisão judicial preferida sobre uma questão de fato e de direito, mas que ultrapassa o caso concreto (CARVALHO; 2008, p. 524).
Em termos mais técnicos, Guilherme Peña de Moraes (2008) conceitua o instituto da seguinte forma: “os enunciados da súmula da jurisprudência predominante com eficácia vinculante são conceituados como proposições aprovadas ou revisadas, de ofício ou por iniciativa de legitimado ativo para a ação direta de inconstitucionalidade, por dois terços dos membros do Supremo Tribunal Federal, quanto à interpretação, validade e eficácia de normas determinadas, em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e Administração Pública, direta ou indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, sob pena do uso de reclamação.”
Daí porque podemos verificar que a súmula vinculante tem alcance dúplice, temática que abordaremos no capítulo atinente aos aspectos estruturais do instituto.
1.1. Natureza jurídica
Nesse tópico nos deparamos com um dos mais intrincados temais do atual direito brasileiro, pois definir a natureza jurídica desse instituto não é tarefa fácil. Tentaremos fazê-lo da melhor forma possível.
Nessa seara, destacam-se duas correntes doutrinárias. A primeira delas afirma que a súmula, qualquer que seja a espécie, tem natureza jurisdicional. Essa corrente se fundamenta no fato de ser a súmula vinculante uma emanação da mais alta corte jurisdicional do país, o Supremo Tribunal Federal, tendo como pressuposto a existência de diversos julgamentos proferidos pela mesma razão de direito.
Portanto, por esse entendimento, o que confere o caráter jurisdicional ao instituto é a necessidade de que exista jurisprudência consolidada e pacificada numa determinada direção jurídica, compelindo a corte competente à edição do enunciado sumular, seja ele com caráter vinculante ou não.
Nesse sentido, citamos Jorge Miranda (1996, p. 196): “o assento é resultado da função jurisdicional, pois a causa da lei interpretativa, como a de qualquer outra lei, vem a ser a realização do interesse público, ao passo que a causa do assento consiste no cumprimento da lei, de ajunte com critérios meramente jurídicos, não devendo ser olvidado que o assento nem traduz liberdade de conteúdo, nem liberdade de formação, sendo a decisão final de um processo judicial.”
A segunda corrente doutrinária, à qual nos filiamos, por seu turno, afirma que a súmula tem caráter normativo. Essa corrente justifica seu entendimento com esteio na jurisprudência enquanto fonte do direito, pois a súmula decorre diretamente dela, materializando a jurisprudência, sendo sua síntese.
Seguindo esse raciocínio, temos o entendimento de Noronha e Bicca, para os quais: “se a jurisprudência se torna pacífica em um tribunal é editada uma súmula” (2006, p. 73).
Para Miguel Reale a jurisprudência, além de fonte do direito, é norma aplicada ao caso concreto. Vejamos o brilhante raciocínio: “a jurisprudência, muitas vezes, inova em matéria jurídica, estabelecendo normas que não se contém estritamente na lei, mas resultam de uma construção obtida graças à conexão de dispositivos até então consideramos separadamente, ou, ao contrário, mediante a separação de preceitos por largo tempo unidas entre si. Nessas oportunidades, o juiz compõe, para o caso concreto, uma norma que vem a completar o sistema objetivo do Direito” (1995, p. 168).
É preciso considerar que a produção jurisprudencial, via precedentes, e consequente edição sumular jamais podem estar desvinculadas da lei, senão teremos um judiciário com poder legiferante em sua essência, o que contraria o sentido da tripartição das funções estatais, concebida por Aristóteles e melhor desenvolvida por Charles-Louis de Secondat, barão de Montesquieu.
Isso ocorre, inclusive, nos países que seguem o sistema da common law, pois mesmo esses têm ao menos um constituição ou sistemática constitucional que deve ser seguida.
Nesse sentido temos o entendimento de Joseph Raz: “even when discretion is not limited or guided in any specific direction the courts are still legally bound to act as they think is best according to their beliefs and values. If they do not, if they give arbitrary judgment by tossing a coin, for example, they violate a legal duty. A judge must always invoke some general reason” (1972, p. 837)
Assim, o juiz sempre deve invocar um razão jurídico-legal, ainda que genérica, para estabelecimento do precedente.
Concluímos, portanto, que em sendo a jurisprudência norma de direito também o será a súmula, já que essa decorre daquela.
Para nós brasileiros que seguimos o direito de tradição romana, codificado (civil law), contrariamente ao modelo anglo-americano, a súmula será norma aplicada ao caso concreto, tal qual preconizado por Miguel Reale e, acima de tudo, orientada pelos ditames legais e pela necessidade de complementação das leis, que não raro são lacunosas e de interpretação múltipla.
Hodiernamente, esse entendimento deve ser aplicado somente às súmulas genéricas ou persuasivas, pois, após a edição da Emenda Constitucional 45, tivemos a criação da súmula de efeito vinculante, razão pela qual terá ela outra classificação no que concerne à sua natureza jurídica.
É de conhecimento geral que essa espécie de súmula tem efeito vinculante face aos órgãos do Poder Judiciário e de toda a Administração Pública, em todas as esferas, ou seja, ela é de observância obrigatória.
Assim, não é loucura afirmar que a súmula vinculante é ato normativo de caráter genérico e abstrato, tal qual a lei, razão pela qual entendemos residir aí um dos pontos que expressam sua inconstitucionalidade (SIFUENTE; 2005, p. 277), pelos motivos que veremos no tópico específico. Nessa linha, verificando o porquê entendemos que a súmula vinculante é inconstitucional temos a lição de Vicente Ráo, para quem “por maior que seja a influência dos precedentes judiciais, jamais eles adquirem o valor de uma norma obrigatória e universal, podendo, quando muito, propiciar reformas ou inovações legislativas, como também poder fazer a ciência jurídica” (1952, p. 303).
Na doutrina, verificando a natureza normativa da súmula vinculante, temos o entendimento de Marco Antônio Duarte de Azevedo, para quem “é forçoso concluir que a súmula é síntese do entendimento do tribunal prolator, de natureza normativa” (2009, p. 85).
1.2. Finalidade
As súmulas foram criadas em 1963 por iniciativa dos ministros do Supremo Tribunal Federal Victor Nunes Leal, Gonçalves de Oliveira e Pedro Chaves, para os quais elas tinham por fim a estabilização e a uniformização da jurisprudência daquela corte, com caráter meramente organizacional, isto é, apenas para facilitar o trabalho dos ministros no julgamento das lides, e os trabalhos do próprio tribunal e dos operadores do direito.
Além disso, elas se prestavam a organizar a coletânea de jurisprudência, indicando o posicionamento predominante na corte.
O que justificou a criação do instituto foi o demasiado fluxo de demandas idênticas, que já naquela época se processavam em nossa suprema corte, exigindo dos ministros, a cada processo, uma dolorosa pesquisa jurídica para se chegar à prestação jurisdicional, que se configurava, no mais das vezes, mera repetição de outras tantas que ali foram prolatadas.
Então, pensou-se um mecanismo que pudesse agilizar a entrega da prestação jurisdicional, tornando o trabalho dos ministros mais dinâmico.
Vislumbrou-se tal mecanismo nas súmulas. Assim, sempre que os ministros se deparassem com questões repetidas aplicar-se-iam as súmulas, pois elas demonstravam a reação da corte diante do caso em foco, isto é, através das súmulas a corte informava qual a interpretação correta que se deveria dar à norma frente à Constituição Federal.
Nesse sentido, temos a lição de José Tracízio de Almeida Melo, afirmando que a finalidade da súmula vinculante “não é somente proporcionar mais estabilidade à jurisprudência, mas também facilitar o trabalho dos advogados e do Tribunal, simplificando o julgamento das questões mais frequentes” (2008, p. 892).
Importante registrar que, em sua origem, a súmula tinha índole eminentemente regimental. Era expediente interno do Supremo Tribunal Federal, e depois estendido aos demais tribunais superiores que compõem o Poder Judiciário brasileiro.
Até então não tinham caráter vinculante. Ninguém estava obrigado a seguir suas prescrições, razão por que vários juízes e outras cortes decidiam as lides sem dar tanta importância a elas.
Se de um lado as súmulas agilizavam o desenvolvimento dos processos, pois se sabia facilmente como a corte se posicionava diante de um caso, de outro lado não impedia o grande fluxo de demandas idênticas, que, como se sabe, atulhavam (e atulham) os tribunais.
Diante disso, intensificou-se o lobby que exigia a criação do efeito vinculante para a súmula editada pelo Supremo Tribunal Federal, como forma de, efetivamente, agilizar o processo, tornando a entrega da prestação jurisdicional mais célere, porque, com esse efeito, impede-se ou o nascimento de ações judiciais sobre as quais há entendimento sumulado pela corte suprema ou faz com a que sentença seja dada mais rápido.
Seus defensores argumentam que a súmula de efeito vinculante tem como objetivo último impedir que uma questão judicial, cujo conteúdo essencial já tenha sido alvo de análise e julgamento pelo Poder Judiciário em outras e diversas demandas, seja novamente posta a julgamento.
Afirmam que a medida privilegia o senso de justiça, sendo inclusive um mecanismo lógico, pois onde existe a mesma razão deve imperar o mesmo direito.
Assim, nesse contexto e pretextando uma atitude jurídica para melhorar o processo judicial no Brasil foi criada a súmula com efeito vinculante, cuja finalidade pode ser verificada na lição de Kildare Gonçalves Carvalho, que afirma: “a súmula de efeito vinculante serviria, nesse cenário, como ‘filtro’ capaz de eliminar a morosidade, e concorrer para um decréscimo significativo no volume de processos” (2008, p. 526).
Marcelo Vicente de Alkmin Pimenta traz entendimento similar: “a súmula vinculante, inserida no Texto Constitucional pela Emenda n. 45/2004, apresenta-se como um instrumento que busca dar maior eficiência ao Judiciário, uma vez que o Supremo Tribunal Federal poderá criar regras aplicáveis a todos os juízes sobre como atuar em casos recorrentes na justiça brasileira. A medida objetiva fazer com que os processos julgados obedeçam a um padrão de decisão definido pela instância superior, o que funcionará, em tese, para diminuir a morosidade da Justiça” (2007, p. 349).
A medida, portanto, foi um simples modo de desafogar o Poder Judiciário de seus inúmeros processos, que ficam parados anos a fio por inúmeros razões, sem haver julgamento. Os defensores do instituto levantam essa bandeira, afirmando que com ela a entrega da prestação jurisdicional é mais célere, o que beneficia aquele que busca socorro jurídico.
Nesse passo, José Anchieta da Silva lembra bem que esse argumento não tem razão de ser, pois estabelecida a súmula com efeito vinculante, facultado fica à parte pleitear no caso concreto, a bem do princípio da inafastabilidade da jurisdição, a aplicação do instituto do distinguishing cujo fim é afastar a aplicação do efeito vinculante, sob o argumento de que a causa sub judice não é objeto de referida súmula.
Eis o que ilustra referido doutrinador: “diante dessa antevisão, antevisão do óbvio, já se percebe que não haverá a propalada substancial redução de processos. O argumento estandarte patrocinador da instalação de um efeito vinculante amplo não se sustenta em si mesmo, pois… Não se tenha dúvida de que, para se contornar a aplicação da súmula de efeito vinculante amplo, será necessário abrir caminhos e picadas, utilizando-se de toda a habilidade de argumentação possível, com os meios e recursos que a legislação outorga aos demandantes, e só assim se transporá a aplicação fria e prévia das chamadas súmulas de efeito vinculante” (SILVA; 1998, p. 64).
Por fim, arremata o raciocínio: “esta orientação de caráter eminentemente prático, serve de advertência àqueles que defendem a implantação da súmula de efeito vinculante a qualquer custo, para a constatação do óbvio: com ou sem súmula de efeito vinculante, onde houver um direito a ser postulado, processo haverá. Então, o argumento da utilização da súmula para evitar processos é um argumento vazio” (SILVA; 1998, p. 65).
De nossa parte não podemos nos furtar a criticar a súmula de efeito vinculante, porque ela não te viés jurídico, sendo inconstitucional e, portanto, incabível em nosso sistema jurídico.
A criação da súmula com efeito vinculante foi uma manobra com finalidade extremamente política, isto é, foi uma opção feita no intuito de resolver os problemas estruturais do Poder Judiciário, pois, como bem sabemos, ele é deficiente, porque é moroso, vez que existem cerca de 86,6 milhões de processos judiciais em tramitação que serão analisados por número proporcionalmente pequeno de juízes, cera de 14.000.
Estamos ilustrando a desproporcionalidade sem levar em conta a falta de servidores da justiça, com ânimo real para o trabalho e questões estruturais, como, por exemplo, falta de equipamentos básicos a ser oferecido ao servidor.
Quem já teve de ir a um balcão de fórum consegue assimilar perfeitamente a crítica que fazemos.
Portanto, em verdade a súmula com efeito vinculante é um ato deliberadamente político, já que é mais barato ao Poder Judiciário tolher o direito de o juiz julgar a lide conforme seu livre convencimento — o que implica no não desenvolvimento de diversas ações e na extinção de outras tantas — do que investir em infra-estrutura para melhor o serviço da justiça.
Sai bem mais caro investir pesado na contratação de pessoal, abertura de varas judiciais e melhoramento da estrutura física dos foros. Sendo assim, também entendemos que a medida não ataca as causas que fazem a crise do Poder Judiciário, mas tão somente seus efeitos (SÁ; 1996, p. 84), o que por certo não resolve problema algum.
A súmula vinculante se configura num produto de opção política e, para não fugir à regra brasileira, toda escolha que se pauta pela política é incorreta. No presente caso o erro reside no fato de que a súmula vinculante não encontra guarida no texto constitucional, pelos fundamentos que veremos oportunamente.
Assim, temos nitidamente a interferência política em questões de direito e, conforme dizia François Guizot, sempre que a política adentra o recinto dos tribunais, a Justiça sai pela porta dos fundos.
2. A origem histórica do efeito vinculante dos provimentos judiciais
O uso do precedente judicial vinculativo, ideia que gira em torno da súmula vinculante, é milenar, datando do século XI, quando ocorreu a unificação da Bretanha, campanha empreendida por Guilherme da Normandia, rei da Inglaterra entre 1066 a 1087.
Naquela região a cultura romana no que concerne ao direito não havia rendido frutos, de modo que quase não existiam leis postas. Por essa razão, os conflitos de interesses, num primeiro momento, passaram a ser resolvidos pelo próprio monarca, respeitando-se os costumes de cada localidade (counties) de onde provinham as lides.
Nesse sentido, temos a lição da doutrina: “na falta de um Direito legislado e de uma cultura com suficiente influência romana ou presença eclesiástica para tanto, a submissão dos litígios aos Tribunais do rei (a existência desses tribunais, e não apenas da justiça do senhor feudal do local é em si um fruto do fortalecimento da Coroa, originando o que alguns autores chamam de feudalismo centralizante) era resolvida pela utilização do costume local, e se não lhe desse solução, aplicava-se o costume geral do reino” (AZEVEDO; 2009, p. 37).
Estavam aí lançadas as bases do sistema jurídico da common law, ou direito costumeiro, no qual, originariamente, as questões jurídicas são resolvidas levando-se em conta não a lei escrita, mas sim os usos do povo (AZEVEDO; 2009, p. 36-38). Com o passar do tempo, aquela sociedade evoluiu, tornando-se mais complexa, de sorte que se tornou humanamente impossível ao rei ser o árbitro de todas as questões controvertidas que nasciam no seio da sociedade.
Convencionou-se, então, a instituição de tribunais, que exerciam por delegação a atividade real de resolver as lides. Dentre essas cortes a que se tornou mais famosa foi o Tribunal de Westminster.
Ainda nesse período histórico não haviam leis postas. As decisões judiciais nada mais eram do que meras construções das experiências humanas de cada magistrado, respeitando-se, como visto, os usos e costumes de cada lugar. Entretanto os tribunais reais começaram a receber demandas muito similares, senão idênticas a outras tantas que por ali já haviam passado.
Assim, tornou-se prática usual citar as sentenças desses tribunais para aplicá-las aos casos análogos em que foram prolatadas, para se obter o mesmo resultado, garantindo-se, com isso, a uniformidade do direito. Foi nessa época, século XIII, que o jurista britânico, Henry de Bracton, lançou o seu famoso Note Book (ROSS; 2000, p. 112), que era uma coletânea de duas mil decisões judiciais. Tal coletânea tinha a mesma finalidade prática que a dos atuais ementários de jurisprudência que todo operador do direito usa.
Nascia, nesse contexto, a doutrina jurídica do precedente, doutrina consistente no uso de provimentos judiciais como fonte direta do direito para julgar outros casos. Isso ocorreu diante da necessidade de existência de algum regramento a ser aplicado aos casos que se apresentavam ao tribunal, já que não havia direito legislado. Com a contínua evolução da sociedade britânica, tornou-se imperioso o estabelecimento da jurisdição em instâncias, de modo que haviam as superiores e as inferiores.
Aqui, também buscando uniformizar o direito, conferindo segurança jurídica às lides apresentadas aos tribunais, convencionou-se que os provimentos de cortes superiores deveriam, obrigatoriamente, ser repetidos aos casos análogos que se apresentavam às cortes inferiores. Nascia, então, o efeito vinculante dos precedentes judiciais, ideia dentro da qual resida a súmula vinculante.
Esse efeito é decorrente do princípio stare decisis et non quiet movere, o que se viabiliza pela seguinte proposição do sistema jurídica da common law: a decision by the highest court in any jurisdiction is binding on all lower in the same jurisdiction (CAPPELLETTI; 1984, p. 80).
Sobre esse assunto, Alf Ross tece o seguinte comentário: “a doutrina atualmente objeto do reconhecimento geral, denominada stare decisis pode ser sintetizada como segue: 1) um tribunal é obrigado pelas decisões dos tribunais superiores e na Inglaterra a Câmara dos Lords e a Corte de Apelação estão obrigadas por suas próprias decisões” (2000, p. 112).
Nesse sistema, esse efeito ocorre em virtude de o direito legislado ser um expediente raro, fazendo com que o precedente judicial se torne a principal fonte do direito. Daí a necessidade de cortes superiores de justiça promanarem decisões que vinculem as cortes inferiores, estabelecendo precedentes para que um caso análogo seja ecidido da mesma forma. Em razão disso, dizemos que o sistema da common law se estabelece pelo primado do precedente judicial, isto é, tem sua raiz fundada no que hoje conhecemos por jurisprudência.
Portanto, em apertada síntese, significa dizer que no âmbito da common law, dada à sua escassez de leis escritas, os precedentes judiciais e a consequente jurisprudência têm papéis fundamentais na aplicação do direito, posto que é a fonte direta deste, e para assegurar a sua aplicação e a sua soberania se faz necessário o efeito vinculante das decisões judiciais superiores, cujos precedentes devem ser seguidas em casos concretos iguais ou bastante semelhantes.
É o que pensa Walber de Moura Agra, para quem “o sistema do Common Law, de tradição anglo-saxônica, onde prepondera o stare decisis (et quieta non movere), o precedente judiciário é fonte de direito, isto é, tem valor normativo” (2005, p. 122-123).
No mesmo sentido leciona Rodolfo de Camargo Mancuso: “se o ponto de referência estabelecido é o precedente judiciário, então o caso análogo, pendente ou futuro, será resolvido de acordo com o princípio ou fundamento (ratio decidendi no Direito inglês; holding, no Direito norte-americano) extraído do paradigma (leading, binding case), e, nesse caso, não haveria demasia afirmar que a jurisprudência assim exponenciada passa a operar como fonte principal do Direito” (2001, p. 190-191).
Por essa razão, Lenio Streck conclui que os juristas ingleses e americanos desenvolvem o Direito a partir da jurisprudência, sendo que as regras jurídicas produzidas pelo legislador (statutes) é expediente anormal no sistema (1998, p. 51-52).
Tendo isso em vista, a ordem jurídica para se estabelecer precisa do efeito vinculante dos provimentos jurisdicionais. Somente assim, a ordem jurídico-social de um sistema com poucas leis escritas se mantém.
É o que ensina José Tarcízio de Almeida Melo: “em seu estudo da stare decisis, Edward D. Re atribuiu a relevância da doutrina ao common law. Desenvolvendo-se o Direito segundo a intepretação dos juízes, a doutrina é essencial para preservar a estabilidade e permitir o desenvolvimento de um sistema consistente e coerente. O stare decisis assegura a igualdade de tratamento aos litigantes em idêntica situação e poupa os juízes da tarefa de reexaminar as regras de Direito a cada caso” (2008, p. 892).
Sem o efeito vinculante, portanto, teríamos a anarquia em matéria de Direito, pois facultado estaria aos juízes decidirem as lides como bem entendessem, pois não haveria um mandamento a seguir.
É o entendimento de Pedro Lenza: “nesse sentido, para evitar o risco da instabilidade (já que os juízes poderiam decidir de maneira divergente, criando várias leis contraditórias), estabeleceu-se o instituto dos precedentes, devendo todos os demais juízes julgar conforme o decidido no caso concreto e pelo órgão hierárquico superior” (2009, p. 579).
Nesse sentido é possível dizer que o precedente cumpre papel fundamental, pois cria a norma material, ao passo que seu efeito vinculante além de dar efetividade ao direito, concede segurança jurídica às relações, pois inibe a atividade criativa dos magistrados, que pode, muitas vezes, mais prejudicar que ajudar as partes.
2.1. A origem histórica do precedente judicial vinculante no contexto brasileiro
No Brasil a adoção obrigatória de entendimentos judiciais prolatados por cortes superiores também vem de longa data.
Nesse contexto, para instituir um marco histórico, podemos dizer que o efeito vinculante de provimento judicial surgiu quando o Brasil ainda era colônia portuguesa.
Nesse sentido, podemos citar lição da doutrina acerca desse efeito: “sua adoção data do período colonial, quando no Brasil vigoravam as Ordenações do Rein o, com previsão dos assentos, regulamentados no Título V, § 5º, Livro I, das Ordenações Filipinas. Em 1769, a Lei da Boa Razão dispunha que os assentos aprovados pelas Relações somente teriam força vinculante depois de aprovados pela Casa de Suplicação de Lisboa, sendo certo que uma lei de 10 de março de 1808 conferiu à Relação do Rio de Janeiro status de Casa de Suplicação para o Brasil, com poderes para aprovar assentos” (2008, p. 522).
Já no Brasil independente, a primeira emanação dos provimentos jurisdicionais vinculantes deu-se em 1823 por força de um decreto imperial emitido em 20 de outubro, cuja finalidade foi imprimir um mínimo de normatização ao incipiente Estado, que não contava com as menos uma constituição.
Eis o que dizia o artigo 2º do dito decreto: todos os Decretos publicados pelas Côrtes de Portugal, que vão especificados na Tabella junta, ficam igualmente valiosos, enquanto não forem expressamente revogados.
Por esta medida os assentos emanados pela Casa de Suplicação de Lisboa seriam aplicados em nossa terra. Como já visto, tal medida se justificava em virtude da falta de leis genuinamente brasileiras, já que há bem pouco tempo o Imperador Dom Pedro I proclamara a independência.
Os assentos eram similares ao que nós conhecemos por súmula, servindo para fixar a inteligência da lei, tendo caráter vinculativo. Nesse ponto temos o comentário de Canotilho: “os assentos eram normas materiais ‘recompostas’ através de uma decisão jurisprudencial ditada pelo Supremo Tribunal de Justiça sempre que houvesse contradição de julgados sobre as mesmas questões de Direito” (1998, p. 613).
Tal situação se manteve mesmo diante da Constituição Imperial de 1824, a qual ficou silente quanto a isso, de modo que, à época, entendeu-se que se o Texto Maior não proibia a utilização dos julgados portugueses era porque permitido estava, entendendo que o dito decreto de 20 de outubro de 1823 fora recepcionado.
Referida omissão foi sanada em 23 de outubro de 1875 com o Decreto Legislativo 2.684. Por esse diploma o Supremo Tribunal de Justiça, à época a maior corte judicial, ficava obrigado (efeito vinculante) a levar em conta os assentos das cortes portuguesas.
Portanto, os assentos portugueses incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro seriam de observância obrigatória, isso em razão de aqui ainda não contar com um arcabouço legal que suprisse todas as necessidades sociais.
Posto isso, podemos concluir que no princípio de nossa independência política o sistema jurídico adotado se aproximava muito da common law, pois nós padecíamos do mesmo problema que os anglo-americanos: falta de leis e inatividade legislativa. Não tínhamos um direito nacional posto, nem o fazíamos. Importante ressaltar que essa situação perdurou até 1889 quando da Proclamação da República, a partir da qual nosso país já continha um aparato de leis escritas mais robusto, razão pela qual não mais necessitávamos dos assentos portugueses.
Desse ponto em diante fomos nos despindo da ideia de vinculação de decisões judiciais superiores, passando a abraçar mais intensamente o modelo romano (civil law), o qual se estabelece pelo primado da lei e não pelo primado do precedente judicial.
Nesse sentido, citamos a doutrina: “o legislador brasileiro republicano optou, assim, por afastar-se da tradição até então imperante no Brasil, aproximando-se mais dos outros ordenamentos romano-germânicos” (AZEVEDO; 2009, p. 60-61).
Cumpre ressaltar que a Constituição de 1934 se desvinculou completamente da doutrina stare decisis.
Portanto, podemos concluir que o Brasil passou, até meados do século XX, por dois momentos distintos em sua ordem jurídica. Num primeiro momento, que vai da independência até a república, aderimos em parte ao modelo anglo-americano, pois nos vinculávamos aos assentos portugueses. Depois, com a proclamação da República, abolimos o sistema anglo-americano e nos voltamos mais ainda para o sistema civil law, no qual, como regra geral, não há efeito vinculante das decisões judiciais, posto que se vislumbra sempre a disposição da lei, aquela considerada em seu sentido formal, ou seja, aquela que passa pelo crivo procedimental das instituições com função legiferante.
A discussão em torno do respeito obrigatório dos precedentes judiciais só voltou à tona em 1946, quando o Instituto dos Advogados Brasileiros apresentou um projeto de nova Constituição, de autoria de Haroldo Valladão.
Por esse projeto as decisões do Supremo Tribunal Federal, em sede de recurso extraordinário, deveriam ser de observância obrigatória por todos os demais órgãos do Poder Judiciário.
Pretendia a medida dar maior efetividade à Lex Major, fazendo com que o entendimento da Supremo Corte sobre ela não fosse distorcido por outro juízo ou tribunal. Justifica-se a medida por ser o Supremo Tribunal Federal o guardião da Constituição. (Referido projeto, ao tempo de sua apresentação, não logrou êxito, porém a ideia foi aproveitada para fundamentar o instituto da repercussão geral.).
A expressão súmula surgiu no Brasil pela primeira vez em 1963 por criação do Ministro Victor Nunes Leal, à época presidente da Comissão de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Importante ressaltar que aquelas súmulas não continham caráter de observância compulsória. Estas só surgiram no país em 2004, com a edição da Emenda Constitucional n. 45, popularmente conhecida como “reforma do Poder Judiciário”, que incluiu o artigo 103-A na Constituição Federal que vem assim descrito: “o Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.”
No ano de 2006 foi sancionada a Lei 11.417 que regulamentou o artigo 103-A da Constituição Federal.
3. Análise do pressuposto e dos elementos condicionais de edição da súmula vinculante
Muito embora entendamos ser a súmula vinculante um expediente inconstitucional, não podemos nos furtar à análise dos seus pressupostos e elementos condicionais de sua existência, visto que o instituto existe e, ainda que envolto em controvérsia quanto à sua legitimidade, está sendo aplicado, tanto o é que, a desde a sua regulamentação, trinta e dois enunciados foram editados.
Dessa forma, seria irresponsabilidade apenas criticar o instituto sem explicá-lo.
Para o bem desse intento, analisaremos em conjunto o artigo 103-A da Constituição Federal — introduzido pela Emenda Constitucional 45 — e a Lei 11.417 de 2006, que regulamente referida norma contida no Texto Político.
Nossa análise, ressalte-se, será breve, en passant, vez que o presente tópico não se constitui no escopo do trabalho além de que pouco há para se dizer sobre dita lei, já que “os legisladores da Emenda Constitucional n. 45 procuram deixa pouca margem ao legislador ordinário, o que se com que se repetisse boa parte dos vetores constantes na Constituição” (ARAUJO; NUNES JÚNIOR; 2007, p. 393).
3.1. Pressuposto necessário à criação da súmula vinculante
Em linhas bem simples, pressuposto é todo fato ou circunstâncias necessárias que antecede uma medida qualquer.
Nesse sentido, entendemos ser a existência de reiteradas decisões sobre matéria constitucional o pressuposto da criação do enunciado sumular vinculante, desde que tais decisões produzam controvérsias entre os órgãos do Judiciário ou entre esses e a Administração Pública, capazes de promover insegurança jurídica e/ou multiplicação de processos sobre idêntica questão (CARVALHO; 2008, p. 525).
Conforme leciona José Tarcízio de Almeida Melo, não bastam poucas decisões para configurar o qualificativo “reiteradas” (2008; p. 904). A reiteração, a nosso entender, ocorre dentro de um espaço longo de tempo, isto é, tempo necessário para que se instaure a controvérsia entre os órgãos representativos do poder estatal.
Ressalte-se que referida controvérsia deve ser atual e real, não havendo que se editar súmula vinculante com base em controvérsia presumida (MELO; 2008, p. 905).
Assim dispõem as dicções da primeira parte do artigo 103-A da Constituição Federal e do artigo 2º da lei de regência, bem como de seu parágrafo primeiro, que seguem transcritos:
“Art. 2º. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, editar enunciado de súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma prevista nesta Lei”.
§ 1º. O enunciado da súmula terá por objeto a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja, entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública, controvérsia atual que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre idêntica questão.
A seguir analisaremos os elementos condicionantes da súmula vinculante.
3.2. Elementos condicionantes da súmula vinculante
Acerca dessa temática e após uma análise das normas que regem a matéria, podemos dizer que são três os elementos condicionantes da súmula vinculante, quais sejam: elemento material, temporal e regimental. O elemento material está ligado ao objeto da súmula, que é o assunto sobre o qual o seu enunciado incidirá. Diante disso, a súmula versará sobre a validade, interpretação e eficácia de normas determinadas, mas desde que exista entre o Poder Judiciário ou entre ele e a Administração Pública controvérsia hábil a ensejar insegurança jurídica de natureza grave e/ou multiplicação de processos sobre questões iguais, conforme verificado anteriormente.
José Tarcízio de Almeida Melo explica o sentido e o alcance do elemento material do seguinte modo: “a Súmula Vinculante terá por objetivos determinar a validade, a interpretação e a eficácia das normas que forem investigadas. A validade diz respeito à licitude, cuja maior expressão é a constitucionalidade ou adequação à Constituição. A interpretação é a dicção do conteúdo, mediante a eliminação dos sentidos que não sejam juridicamente corretos. A eficácia é a verificação de sua aplicabilidade ante as mutações ocorridas desde sua edição. A norma é dita eficaz quando tem possibilidade de se ajustar à realidade, não for utópica ou irreal” (2008; p. 906).
Cabe salientar que a súmula poderá versar sobre a eficácia de qualquer norma, seja ela de natureza legislativa ou não, dos âmbitos federal, estadual ou municipal.
Essa situação provocou repulsa para a doutrina geral, pois se ampliou demasiadamente o foco da súmula vinculante, que deveria servir, segundo aqueles que a entendem válida, tão somente como instrumento apto a dimensionar o sentido e o alcance das normas face à Constituição Federal, ou seja, tendo o caráter interpretativo das normas.
Nesse sentido, André Ramos Tavares diz que: “o alcance concedido à realização da súmula foi impressionante, extrapolando a mera validade e interpretação da Constituição e das leis (em face da Constituição) para alcançar a eficácia de atos normativos. Para ficar mais claro: acresceu-se a possibilidade de (i) dispor sobre a eficácia, e; (ii) ter como objeto qualquer ato normativo, e não apenas a lei ou a Constituição” (2007).
Assim é a disposição da Lei 11.417 de 2006, que no § 1º de seu artigo 2º aborda essa situação.
Em nossas considerações, o elemento temporal, por seu turno, refere-se ao momento em que a súmula vinculante produzirá os seus efeitos. Pela regra geral, a súmula vinculante teme eficácia imediata, contudo o Supremo Tribunal Federal pode decidir de maneira diversa, indicando o momento oportuno para que a medida tenha incidência, tal qual ocorre na modulação de efeito do controle de constitucionalidade. Essa deliberação deve ser aprovada por dois terços do tribunal pleno, levando-se em conta razões de segurança jurídica e/ou interesse público.
Esse elemento está disposto no artigo 4º da lei de regência.
Há que se falar também nas disposições legais que compõem o elemento regimental, que, a nosso sentir, expressa as regras que instrumentalizam a súmula vinculante.
Assim, enquanto o elemento material se refere ao escopo da medida, o temporal ao momento em que ela terá incidência, o elemento a ser estudado agora traz as regras gerais do processo de criação da súmula vinculante.
Dentre essas disposições, a lei nos traz uma regra importante, calhando com o ideário republicano, que é a necessidade de manifestação do Procurador-Geral da República nas propostas de edição, revisão ou cancelamento da súmula, nos casos, obviamente, em que não houver sido ele o pretendente (art. 2º, §2º).
Essa regra é reflexo do artigo 127 da Constituição Federal que afirma incumbir ao Ministério Público o dever de fiscalização da ordem jurídica e dos interesses sociais. Como a súmula vinculante afeta por demais essas instituições sociais importantíssimas, faz-se necessária a oitiva do fiscal da lei.
Por essas mesmas razões, a lei (art. 3º, § 2º) autoriza o relator por decisão irrecorrível, nos procedimentos de edição, cancelamento ou revisão da súmula vinculante, a admitir a manifestação de terceiros.
Outra questão atinente às regras instrumentais da medida é a que diz respeito ao quórum necessário da votação relativa à edição, cancelamento ou revisão da o enunciado vinculante. O quórum é qualificado, exigindo-se dois terços do plenário do Supremo Tribunal Federal (art. 2º, § 3º).
Interessante registrar que não se exige que as decisões prévias que darão ensejo à súmula vinculante sejam proferidas por maioria qualificada, bastando a maioria absoluta.
É digno de nota o ensinamento de André Ramos Tavares: “assim, é necessária uma maioria qualificada de 2/3 (oito ministros) para aprovar a súmula e atribuir-lhe efeito vinculante. As decisões prévias, que ensejam a súmula, contudo, poderão ter sido adotadas pela maioria de seis ministros (maioria absoluta atualmente exigida, no controle de constitucionalidade, consoante dicção do artigo 97 da Constituição do Brasil)” (2007).
É importante registrar que, em caso algum, a discussão acerca da edição, revisão ou cancelamento da súmula com efeito vinculante ensejará a suspensão de processos nos quais se discuta a mesma questão, conforme disposição do artigo 6º da lei de regência.
3.3. Da abrangência da súmula vinculante
Diante das expressas disposições dos artigos 103-A da Constituição do Brasil e 2º da Lei 11.417/2006 as súmulas terão abrangência, isto é, terão seus efeitos reproduzidos sobre os órgãos do Poder Judiciário e sobre a Administração Pública, direta ou indireta, das esferas federal, estadual e municipal.
Portanto, verifica-se que a súmula com efeito vinculante tem caráter dúplice, na medida em que afeta órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública, em seu sentido mais amplo.
Diante dos referidos comandos normativos, e analisando pouco detidamente a matéria, poderíamos concluir que uma vez editada a súmula vinculante ela afetaria todos os órgãos ou entidades que compõem as funções do Estado (funções executiva, judiciária e legislativa), em todas as suas esferas, mas isso não corresponde à verdade, porque, como demonstraremos em seguida, o efeito vinculante não afetará o Supremo Tribunal Federal e a função legiferante federal.
Fazendo uma interpretação literal do artigo 2º da Lei 11.417/2006, podemos comprovar que a súmula vinculante não vincula a suprema corte. Eis o que traz dita disposição: “o Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, editar enunciado de súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma prevista nesta Lei.”
Destacando-se a locução “em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário” presente no dispositivo acima, fica evidenciado que o Supremo Tribunal não se vincula à sumula que ele próprio editou.
Em interpretação teleológica também é possível comprovar isso. Basta pensarmos no seguinte: ao STF compete a edição da súmula vinculante, porque ele é o guardião da Constituição Federal. Utiliza-se da súmula para adequar em uma só as diversas interpretações que existem frente ao texto constitucional. A essa finalidade se presta a súmula.
Desse modo, não faria o menor sentido haver a instituição de mecanismo que tolhesse essa competência, sob pena de não cumprir com a finalidade da corte, contradizendo em última análise o próprio texto constitucional.
Nesse sentido, Jorge Miranda professa que a corte suprema não se jogaria em amarras que mais tarde não pudesse se desvencilhar (1996, p. 200), daí porque é incabível dizer que a súmula vincula o Supremo Tribunal Federal.
Portanto, em relação ao STF não há que se falar em efeito vinculante de súmula, restando-lhe a faculdade de modificar o entendimento da medida sempre que encontrar argumentos.
Também não podemos dizer que a súmula vinculante afetará o Poder Legislativo federal, quando atuar em função típica — poder legiferante. Devemos ter em mente que nem a Constituição Federal nem a lei 11.417/2006 autorizam o contrário.
Mais uma vez comprovamos a assertiva, fazendo uma interpretação literal dos artigos 103-A da Constituição Federal e 2º da lei de regência.
Expressamente, ambas as normas vinculam a súmula à Administração Pública e, como é de sabença trivial, a função legiferante não se inclui no rol das atividades da administração, conforme assevera Maria Sylvia Zanella Di Pietro: “basicamente, são dois o sentidos que se utiliza mais comumente a expressão Administração Pública: a) em sentido subjetivo, formal ou orgânico, ela designa o entes que exercem atividades administrativas; compreende pessoas jurídicas, órgãos e agene públicos incumbidos de exercer uma das funções em que se triparte a atividade estaal: a função administrativa; b) em sentido objetivo, material ou funcional, ela designa a natureza da atividade exercida pelos referidos entes; nesse sentido, a Administração Pública é a própria função administrativa que incumbe, predominantemente, ao Poder Executivo” (2009, p. 49).
Pedro Lenza é pragmático ao definir que o efeito vinculante não acomete o Poder Legislativo e o Supremo Tribunal Federal, dizendo: “assim, a vinculação repercute somente em relação ao Poder Executivo e aos demais órgãos do Poder Judiciário, não atingindo o Legislativo, sob pena de se configurar o ‘inconcebível fenômeno da fossilização da Constituição’, conforme anotado pelo Ministro Peluso na análise dos efeitos da ADI (Rcl 2617, Inf. 386/STF), nem mesmo em relação ao próprio STF, sob pena de se inviabilizar, como visto, a possibilidade de revisão e cancelamento de ofício pelo STF e, assim, a adequação da súmula à evolução social” (2009, p. 585).
3.4. Da competência para edição da súmula vinculante
Conforme já ficou demonstrando até este ponto, o órgão competente para editar, revisar e cancelar a súmula vinculante é o Supremo Tribunal Federal, conforme disposição do artigo 103-A da Constituição do Brasil. Importante registrar que o STF terá competência ex officio apenas para o caso de edição, pois os casos de revisão e cancelamento ficarão vinculados à provocação dos legitimados ativos para a ação direta de inconstitucionalidade (TAVARES; 2007).
3.5. Dos legitimados para provocar a edição, revisão ou cancelamento da súmula vinculante
Primordialmente, devemos entender como legitimado toda a pessoa ou ente que detém o direito de deflagrar os procedimentos relativos à súmula vinculante.
Nesse contexto, o artigo 3º da lei de regência, em rol exaustivo, elenca os legitimados, quais sejam: o Presidente da República, as Mesas do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, o Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, o Defensor Público-Geral da União, partido político com representação no Congresso Nacional, confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional, a Mesa da Assembleia Legislativa ou Câmara Legislativa do Distrito Federal, o Governador de Estado ou do Distrito Federal, os Tribunais Superiores, os Tribunais de Justiça de Estados ou do Distrito Federal e Territórios, os Tribunais Regionais Federais, os Tribunais Regionais do Trabalho, os Tribunais Regionais Eleitorais e os Tribunais Militares.
Importante registrar que o município também tem legitimidade para deflagrar o procedimento, mas de forma incidental no curso de processo em que for parte, a teor do que dispõe o parágrafo primeiro do artigo 3º da Lei 11.417/2006.
3.6. Do descumprimento da súmula vinculante
Verificamos que a súmula vinculante produz seus efeitos em relação à Administração Pública e em relação ao Poder Judiciário, com exceção do Supremo Tribunal Federal, de modo que é bastante difícil que dentre todos esses órgãos e entidades ocorra o cumprimento regular da medida.
Por essa razão, há a previsão no § 3º do artigo 103-A da Constituição do uso do instituto da reclamação, regulamentado, no caso presente, pelo artigo 7º da Lei 11.417/2006, com a seguinte disposição: “da decisão judicial ou do ato administrativo que contrariar enunciado de súmula vinculante, negar-lhe vigência ou aplicá0lo indevidamente caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal, sem prejuízo dos recursos ou outros meios admissíveis de impugnação.”
A esse respeito, André Ramos Tavares assevera o seguinte: “pretendeu a EC 45/04 solucionar essa delicada questão por meio da previsão do cabimento da reclamação nos casos de descumprimento da súmula vinculante. Essa reclamação, conforme entendimento do STF para o controle abstrato (Arg. Regimental na Reclamação n. 2143 e Reclamação n. 1880), pode ser proposta por qualquer interessado, prejudicado concretamente por decisão judicial (ou administrativa) contrária a súmula vinculante” (2007).
De forma técnica, temos a lição de Kildare Gonçalves Carvalho: “da decisão judicial ou do ato administrativo que contrariar enunciado de súmula vinculante, negar-lhe vigência ou aplicá-lo indevidamente caberá reclamação ao Supremo Tribunal, sem prejuízo dos recursos ou outros meios admissíveis de impugnação (art. 7º). Em se tratando de omissão ou ato da administração pública, o uso da reclamação só será admitido após o esgotamento das vias administrativas (art. 7º, § 1º). Ao julgar procedente a reclamação, o Supremo Tribunal anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial impugnada, determinando que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso (art. 7º, § 2º)” (2008, p. 528).
Agora, analisaremos as razões pelas quais entendemos ser a súmula vinculante um expediente inconstitucional.
4. A inconstitucionalidade da súmula vinculante
Enfim chegamos ao ponto nevrálgico do presente trabalho. Cuidaremos nesse capítulo dos motivos que determinam a inconstitucionalidade da súmula com efeito vinculante, explicitando-os de modo lógico, crível e, acima de tudo, com amparo da doutrina, procurando, assim, contribuir para o melhor entendimento da matéria.
Desse ponto em diante, esperamos oferecer ao leitor subsídios capazes de convencê-lo acerca do mal que representa, para o nosso Direito, o instituto em análise.
Assim expressamos entendimento, porque (jamais cansaremos de repetir), com a súmula vinculante temos o sacrifício de diversos e, extremamente importantes, direitos e garantias individuais.
4.1. Análise das famílias fundamentais do Direito
É de conhecimento geral que, fundamentalmente, existem duas famílias do Direito. Uma é de origem romana e a outra é de origem anglicana.
Conforme vimos no segundo capítulo, o direito de tradição romana (jus civil) se vincula ao primado da lei, enquanto o direito legislado de tradição anglicana (common law) se vincula aos costumes e ao precedente judicial, porque nessa família o direito legislado não é essencial e por vezes inexistente.
Por essa razão, portanto, verificou-se a necessidade de os precedentes judiciais das cortes superiores terem, em relação às cortes inferiores, efeito vinculante, como forma de garantir a estabilidade do Direito e, por consequência, segurança jurídica.
Assim, é-nos forçoso concluir que o efeito vinculante é necessidade do sistema common law, porque lá não há direito legislado, sendo certo que os precedentes tem natureza de fonte direta do direito. Pelo inverso, tal efeito não é necessidade dos sistema de natureza romana, porque nesses somente a lei, em sentido formal, tem o atributo da obrigatoriedade.
É nesse ponto que surgem as maiores críticas à adoção do instituto, com bem anota Kildare Gonçalves Carvalho: “o questionamento inicial da adoção da súmula vinculante no modelo de direito codificado, como o do Brasil, ao contrário do modelo do precedente judicial anlgo-saxão (common law), está em que nosso sistema jurídico se baseia essencialmente na primazia da lei, e não na decisão judicial” (2008, p. 525).
Vê-se que o constituinte reformador “misturou as estações” ao enxertar em nosso sistema elemento próprio de outro, provocando, sobretudo, a violação ao princípio da legalidade.
Portanto, a inovação trazida pela Emenda Constitucional 45 não tem razão de ser.
4.1.1. Das violações ao princípio da legalidade e ao princípio da separação de poderes
No sistema jurídico de natureza romana, como o brasileiro, o que vale abstrata e genericamente é a lei, tanto que a Constituição Federal no inciso II do artigo 5º preconiza que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, consagrando, dessa maneira, o princípio da legalidade (que cláusula pétrea), cuja definição pode ser extraída da lição de Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior: “o inciso II do art. 5º da Constituição da República incorporou o princípio da legalidade, prescrevendo que ninguém pode ser compelido a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Com isso, a mensagem foi clara: os comandos de proibição (deixar de fazer) e de obrigação (fazer) só podem ser veiculados por meio de uma lei” (2007, p. 134-135).
Ora, nesse passo, a simples existência da súmula vinculante contraria o nosso texto constitucional, que garante aos indivíduos submissão apenas em relação à lei, em seu sentido formal. Somente a lei pode criar ou restringir direitos. Isso é da essência de nosso modelo democrático de Estado. Lei em sentido formal é aquela que é aprovada pelo Poder Legislativo, após o devido processo que compreende as fases da iniciativa, deliberação, aprovação nas casas legislativas, promulgação, sanção e publicação.
Considerar a constitucionalidade as súmula é transformá-la em lei, mas ignorando o processo legislativo exigido pela Constituição Federal no artigo 61. Além disso, considerá-la constitucional importa em jogar ao léu o entendimento sobre o fim a que se destina o princípio da legalidade, tão bem descrito por Celso Ribeiro Bastos: “o princípio da legalidade mais se aproxima de uma garantia constitucional do que de um direito individual, já que ele não tutela, especificamente, um bem da vida, mas assegura ao particular, a prerrogativa de repelir as injunções que lhe sejam impostas por uma outra via que não seja a lei” (BASTOS; MARTINS; 1989, p. 23, apud ARAUJO; NUNES JÚNIOR; 2007, p. 393).
Desse modo, o instituto cria uma contradição no sistema, pois a Constituição nos afirma que os indivíduos só se obrigam perante a lei como forma de conter abusos de um grupo sobre outro, mas depois tenta subjugá-los pela súmula vinculante, que tem os mesmos efeitos daquela, mas não tem a mesma facção, sendo uma emanação de uma corte jurisdicional e não dos legítimos representantes do povo ou dos Estados (Deputados Federais e Senadores).
Por essa razão também podemos considerar que há infração ao princípio da separação de poderes, posto que com a súmula temos o Poder Judiciário atuando como legislador positivo. A esse respeito, novamente vem à lume a sapiência de Kildare Gonçalves Carvalho: “a súmula vinculante possibilita que o Supremo Tribunal Federal defina o alcance, em abstrato, das normas editadas pelo Congresso Nacional, cujos efeitos irão restringir não só os litigantes, mas a sociedade em geral, comprometendo o próprio objeto do ato legislativo, a lei, esta sim, de caráter geral, abstrato e obrigatório. Por isso é que a súmula contraria o princípio da separação de poderes, já que é da competência do Poder Legislativo a função de legislar” (2008, p. 526).
No mesmo sentido, temos o entendimento do professor Streck, para quem “ao editar a súmula vinculante, oponível erga omnes, o Supremo Tribunal Federal assume funções legiferantes, agregando a produto legislado a prévia interpretação (1998, p. 13).
O jusfilósofo português Antônio Castanheira Neves também entende haver infração ao princípio da separação de poderes, dizendo que “ao ser atribuída aos supremos tribunais, através do assentos, a função legislatiava, o sentido com que a lei deve ser entendida e aplicada veio a estabelecer-se não só uma mediação, como até uma interposição” (1983, p. 315).
Com a súmula vinculante nos deparamos com uma grande incongruência, definida muito bem nas palavras de Evandro Lins e Silva, Ministro-aposentado do STF, para quem os juízes não têm legitimidade democrática para criar o Direito, porque o povo não lhes delegou esse poder, concluindo que: “editar leis ou súmulas com força impositiva, obrigatória, com força de lei me parece contrariar disposições transparentes da constituição. As súmulas, se vinculantes, se assemelhariam aos velhos assentos da Casa de Suplicação” (Cadernos do Senado, apud. SILVA; 1998, p. 77).
Nesse aspecto, faz total sentido as palavras de Renato Marcão: “o desconhecimento ou simples desrespeito aos limites de atuação de cada um dos ‘Poderes’ do Estado, patrocinado pelos mesmos em detrimento da própria força ou de um em relação ao outro ou aos demais, evidencia contrariedade ao ideal desejado pela sociedade e desafina o concerto democrático. Se já não bastasse o desafinamento que decorre das constantes ingerências de um ‘Poder’ na esfera de competência do outro, são ainda mais preocupantes os resultados colhidos da atuação de cada um deles, ainda quando observadas as medidas de sua competência” (2005).
Sintamos o abuso. A teoria da separação de poderes foi desenvolvida para coibir o abuso de direito, evitar que o controle do Estado ficasse preso a uma única pessoa ou único grupo. É o que se denota do entendimento de Chaïm Perelman: “é para evitar tais abusos que Montesquieu preconiza, como ideal político, a doutrina da separação de poderes, não devendo ao poder legislativo ser concedido nem ao poder executivo, que dele poderia aproveitar-se para contrariar seus adversários, nem aos juízes, que, por ocasião dos litígios, poderiam formular regulamentos que favorecessem, por razões muitas vezes inconfessáveis, alguma das partes” (1998, p. 21).
E, de repente, aprovam uma medida que contraria todo esse ideário, que fora insculpido quando das revoluções liberais-burguesas.
A separação de poderes foi instituída para evitar a existência de um super-órgão. Ora, sabemos que na estrutura do poder, o Judiciário representa essencialmente a função de vigia do sistema. Agora, se ele tiver super-poderes, quem o vigiará?
4.1.2. Das violações aos princípios do acesso ao Poder Judiciário e do devido processo legal
Uma das maiores conquistas no homem que vive em sociedade organizada é o direito de bater às portas do Poder Judiciário para deduzir suas pretensões à base de alegações e formulação de conjunto probatório, esperando do Estado, personificado na pessoa do juiz, uma resposta, uma conclusão acerca daquela lide da qual faz parte.
Nessa linha, temos Cintra, Grinover e Dinamarco: “seja nos casos de controle jurisdicional indispensável, seja quando simplesmente uma pretensão deixou de ser satisfeita por quem podia satisfazê-la, a pretensão trazida pela parte ao processo clama por uma solução que faça justiça a ambos os participantes do conflito e do processo. Por isso é que se diz que o processo deve ser manipulado de modo a proporcionar às partes o acesso à justiça” (1999, p. 33).
O direito de acessar o Poder Judiciário, em sua evolução histórica se constitui em um mecanismo civilizatório, voltado a evitar que o indivíduo que tivesse uma pretensão resistida não fizesse justiça com as próprias mãos, como ocorria nos tempos mais remotos.
Portanto, podemos verificar que o acesso ao Poder Judiciário tem extrema utilidade pública, razão pela qual as sociedades, com exceção daquelas que se pautam por arbitrariedades, tendem a consagrá-lo como um direito fundamental. Entretanto, este direito ao longo dos últimos anos passou, erradamente, a sofrer gravíssimas violações por causa das contínuas súmulas vinculantes que o Supremo Tribunal vem editando.
Assim entendemos, pois a súmula vinculante pode impedir tanto a instauração de processo judicial quanto o seu regular trâmite. Se o STF editar determinada súmula sobre determinada matéria a que algum litigante proponha ação em sentido contrário, o juiz deverá indeferir a petição inicial sob a alegação de falta de condição de ação, isto é, pedido juridicamente impossível.
Dessa constatação podemos extrair, seguramente, a seguinte assertiva: tal medida é incompatível com o artigo 5º, XXXV, que consagra o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário. Na dicção constitucional esse princípio vem nos seguintes termos: a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Logo, respeitando-se o rigor da Constituição da República, ninguém pode condicionar o uso deste direito, por qualquer que seja o motivo, sendo certo que nem mesmo a lei pode fazê-lo.
Ocorre que a súmula vinculante vai na contramão desse entendimento estabelecido desde há muito, já que restringe a sua incidência. E o faz, lembramos, de maneira errada, pois o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário é uma garantia individual, que como tal jamais deveria sofrer restrições, posto que garantias individuais devem ser interpretadas da forma mais ampla possível. Isso é uma regra basilar de hermenêutica jurídica, que infelizmente está sendo desprezada, sem sequer ser levado em conta os riscos que tal medida pode implicar à segurança jurídica, pois é isso que ocorre quando se condiciona o acesso à jurisdição.
Quem defende a medida afirma que o princípio da inafastabilidade de jurisdição permanece intacto, pois a súmula de efeito vinculante, ao trazer determinada interpretação sobre normas, nada mais faz do que incluir algum outro requisito ao rol, amplamente conhecido, das condições de ação e pressupostos processuais.
Essa argumentação para nós é bastante vazia, razão porque não concordamos. A nosso sentir, as condições de ação e os pressupostos processuais não condicionam o acesso ao Poder Judiciário, mas tão somente regram a maneira de fazê-lo. Até o aparecimento da dita súmula, qualquer que fosse a pretensão, o indivíduo teria o amplo direito de jurisdicioná-la. Agora, esse direito resiste desde que não vá de encontro com a súmula vinculante. Abriu-se uma grave exceção para o exercício desse sagrado direito.
Claríssima para nós, portanto, a violação aos ditames do artigo 5º, XXXV, que deve ser visto sob o correto enfoque de Nelson Nery Júnior: “em que pese o destinatário principal desta norma seja o legislador,o comando constitucional atinge a todos indistintamente, vale dizer, não pode o legislador e ninguém mais impedir que o jurisdicionado vá a juízo deduzir pretensão” (1996, p. 93).
Não existe direito se o cidadão não puder deduzir a sua pretensão em juízo. O direito morre quando as portas da justiça não se abrem ao indivíduo. Dessa maneira, portanto, cria-se um estado de insegurança jurídica, pois pode ocorrer a criação de súmula casuística prejudicial a determinado grupo, retirando-lhe inclusive o direito de ir reclamar na justiça.
Os defensores do instituo aqui atacado poderão argumentar que estamos a fazer conjecturas por demais pesadas, ao que responderemos: em matéria de direito individual, deve-se considerar todas as hipóteses, para se evitar lesões.
Ainda, é preciso considerar que violando a regra do livre acesso ao Poder Judiciário, viola-se o princípio do devido processo legal, que compreende outros princípios importantíssimos ao nosso sistema jurídico, conforme o entendimento de Luiz Guilherme da Costa Júnior: “esse princípio, então, se materializa em vários outros princípios, como o do contraditório e o da ampla defesa, da isonomia, da publicidade” (2008, p. 41).
A doutrina majoritária entende que o devido processo legal é importantíssimo, pois asseguram às partes litigantes o direito ao processo justo, no sentido de lhes serem permitidos expor qualquer que seja suas demandas, assegurando-lhes, inclusive, os meios jurídicos para a consecução desse fim.
O princípio do devido processo legal é de tamanha importância, vez que representa a salvaguarda do processo, conforme se verifica na seguinte lição: “o conjunto de garantias constitucionais que, de um lado, asseguram às partes o exercício de suas faculdades e poderes processuais e, de outro, são indispensáveis ao correto exercício da jurisdição. Garantias que não servem apenas aos interesses das partes, como direitos públicos subjetivos (ou poderes e faculdades processuais) destas, mas que configuram, antes de mais nada, a salvaguarda do próprio processo, objetivamente considerado, como fator legitimante do exercício da jurisdição” (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO; 1999, p. 82).
Bem por isso que José Anchieta da Silva destaca, de forma cabal, a consequência de sua violação: “o texto constitucional homenageia ainda, em benefício do cidadão, este como esfera jurídica, o devido processo legal, o due process of law. Em relação ao cidadão comum, o que não é parte, adotando-se a súmula, não haverá qualquer processo. Haverá apenas uma decisão. Os cidadãos sobre cujas cabeças recairá o tal efeito vinculante estarão reduzidos à figura do personagem de Kafka no seu clássico O Processo” (1998, p. 76).
Aqui vale uma reflexão: com a Constituição Federal de 1988, o Brasil se tornou, após o violento período da Revolução Militar (1964-1985), um Estado libertário, focado nas questões sociais e acima de tudo na prevalência dos direitos e garantias individuais, que se revelam cláusulas pétreas, impossíveis de serem modificadas ou restringidas.
Onde estão os entendimentos sobre cláusula pétrea? Nesse passo, como pode existir um mecanismo jurídico que contraria tudo isso? Certamente à base de coerção, que avilta nossa cultura jurídica insculpida no Texto Magno. Devemos entender, pelas razões aduzidas e de uma vez por todas, que a súmula vinculante contraria os legisladores originários, que queriam dar ampla proteção aos indivíduos, através do Poder Judiciário, seja não restringindo o acesso à ele, seja garantindo ao litigante o devido processo, nos termos aqui abordados.
Os nossos constituintes, em 1988, quiseram evitar o que se repetiu na ditadura militar, isto é, amplo cerceamento de defesa e o afastamento do Poder Judiciário para aqueles que se encontravam nos porões da polícia política, sofrendo torturas. Tais pessoas não tinham a quem se socorrer.
O pior de tudo é que esse aviltamento não se restringe aos pontos até aqui dissecados, conforme veremos em seguida.
4.1.3. Da violação ao instituto da coisa julgada
José Anchieta da Silva complementa o último raciocínio aventado, afirmando que, sem o devido processo legal, a súmula de efeito vinculante também compromete o entendimento sobre a coisa julgada, uma vez que a estende para aqueles que não fizeram parte de qualquer relação processual (1998, p. 75).
Subverte-se, portanto, o consolidado entendimento de que a coisa julgada só se estabelece para as pessoas dos litigantes. Nesse aspecto temos a lição de Carvalho, que entende que a súmula vinculante estabelece a coisa julgada para além do processo (2008, p. 527).
De fato, tal situação é totalmente inconcebível e intolerável, vez que a coisa julgada, em regra, somente se estabelece pelo trânsito em julgado de determinada sentença ou, de forma fatal, quando do esgotamento do prazo para intentar a ação rescisória, afetando somente os litigantes.
Renato Marcão toca nesse assunto de forma bastante segura, dizendo que com a súmula vinculante o Poder Judiciário deixa de dizer o direito no caso concreto para dizê-lo em tese, o que por óbvio não se coaduna com as suas competências, outorgadas pela Constituição da República. Então, o que temos aqui é a superposição de um poder estatal sobre outro, justificando também o que foi dito no tópico anterior.
Vejamos o que diz referido doutrinador: “a súmula vinculante, além de outras sérias implicações que não comportam abordagem nas linhas deste trabalho, mitigou de forma significativa os limites da coisa julgada e impôs ao órgão jurisdicional de Superior Instância a tarefa de ‘dizer o direito em tese’, em caráter genérico e universal, atribuição para a qual nunca esteve autorizado politicamente, carecendo de legitimação democrática, a configurar, ainda, perigoso desvio de sua missão de dizer o direito caso a caso, compondo os conflitos de interesse na exata medida de suas realidades” (2005).
Podemos perceber que a súmula vinculante se traduz em verdadeiro show de violações ao Magno Texto. Vendo-a pelo enfoque aqui exposto, verifica-se a extinção do processo em nosso sistema jurídico, uma verdadeira aberração.
Vejamos o que pensa José Anchieta: “a instalação do efeito vinculante amplo haverá compreender, exatamente, a possibilidade de uma sentenciação maciça, por intermédio da vinculação, sem processo sequer ou, pelo menos, sem o processo na singularidade que as relações jurídicas e segurança jurídica mínima o exigem. E isto sem se levar em conta um outro e fundamental aspecto, qual seja, o de uma competência originária para processos que envolvem questões que serão ou não questões comuns. O efeito vinculante assim e então, tal como proposto, estará a conter a mais histórica e aberrante das supressões de instâncias de que se terá notícia” (1998; p. 75-76).
É nessa medida a lição de Sérgio Sérvulo da Cunha: “é impossível, em face desse direito fundamental, proferir-se decisão judicial cuja execução alcance quem não foi litigante, quem não teve a oportunidade de se defender, fazer prova, expor suas razões, discutir o fato e o Direito. […] a força obrigatória (efeito vinculante) das decisões judiciais, o alcance executório da coisa julgada, restringe-se, portanto, aos que foram parte no respectivo processo” (1999, p. 48).
Deveras perversa é essa súmula, que condiciona o acesso ao Poder Judiciário e por reflexo extermina o processo, enquanto instituição jurídica, de nosso sistema.
4.1.4. Da violação ao princípio da independência do juiz
Dois elementos essenciais constituem o nervo central da liberdade de um país: o júri e a autonomia e independência dos juízes. Tais palavras não são nossas, mas sim do grande jurista Rui Barbosa. Esse entendimento sempre foi usual e corrente no meio jurídico pátrio. Sempre se defendeu essa tese. Tanto que nosso sistema jurídico sempre consagrou o princípio da liberdade amplas dos juízes para proferir julgamentos. Liberdade consubstanciada na independência para proferir sentença, de acordo com a convicção que formou no curso do processo.
A doutrina, majoritariamente, entendeu que a liberdade dos juízes se traduzia em garantias à sociedade e ao Estado livre, pois dificilmente se impõe ao magistrado, quando do julgamento, razões das quais discorda. Ao juiz sempre foi deferido o direito de adotar a razão jurídica que entendesse mais adequada ao caso concreto, privilegiando o sentido de justiça, inerente à sua função. Por essa razão, sempre se disse que o juiz está (ou estava), vinculada, única e exclusivamente à lei e à sua consciência.
Exemplificativamente temos o escólio de Luiz Flávio Gomes, para quem: “a garantia de independência dos juízes deve consistir na previsão de mecanismos capazes de assegurar que o juiz seja efetivamente sujeito à Constituição e a lei” (1997).
No mesmo sentido, anotam Sgarbossa e Jensen, dizendo que a liberdade é premissa básica ao exercício da magistratura: “assim sendo, é premissa básica às teses a seguir expostas a ampla possibilidade de o juiz decidir a lide de conformidade com seu convencimento, valorando, para tanto, não só as provas com liberdade, mas também interpretando a totalidade do ordenamento jurídico com ampla liberdade e meticulosamente” (2005).
Processualmente, explica a doutrina, que a independência do juiz se traduz no princípio da livre convencimento motivado, o qual se refere à aferição da prova por parte do juízo. De forma simples, o princípio pode ser conceituado da seguinte forma: assiste-se ao juízo o direito de formar seu convencimento usando, da forma que achar conveniente, as provas contidas nos autos do processo.
Todavia, com a instituição da súmula de efeito vinculante, essa ideia passou a sofrer gravíssima restrição, pois com ela, juízes, desembargadores e até mesmo os ministros dos tribunais superiores ao proferirem seus julgamentos, estarão, em muitos casos, vinculados não mais à sua consciência, mas sim à súmula vinculante, que pode trazer a razão para o julgamento de determinada lide, bem como dizer ao magistrado qual prova deve prevalecer em determinado processo.
É o que entende Zuenir de Oliveira Neves: “a súmula de efeito vinculante ameaça também o Princípio da Persuasão Racional, que determina que o Juiz, ao sentenciar, deve formar livremente o seu convencimento desde que o fundamente (artigo 131 do CPC). Trata-se de forte e desleal imposição sobre os juízes inferiores” (2006).
Devido a essa sucessão de efeitos, que constrange o sacerdócio da magistratura, arriscamos dizer que a situação pode se agravar a ponto de termos uma ditadura jurídica comandada pelo Supremo Tribunal Federal.
Percebe-se que a súmula de efeito vinculante, por esse prisma, ataca de forma aguda o nosso sistema jurídico, o que compromete o ideal que temos sobre Estado Democrático de Direito, que, em nossa humilde opinião, deve zelar pelos direitos constantes na Lei Fundamental.
Por essa razão Sílvio Nazareno Costa, quando da discussão da proposta emenda constitucional que incluiu o nefasto artigo 103-A na Constituição Federal, afirmou: “por restringir, ainda que apenas em determinados casos, a independência de que se deve desfrutar o juiz para o exercício da atividade jurisdicional, é materialmente inconstitucional” (2002, p. 196).
No mesmo sentido temos o raciocínio de Luiz Flávio Gomes, para quem: “em primeiro lugar e, sobretudo ela ofende a independência do juiz. Mais precisamente a independência pessoal, interna e ‘funcional’, que é instrumento do Estado Democrático de Direito, que visa preservá-lo de ingerências que possam dentro da própria instituição, principalmente de cima para baixo” (1997, p. 130).
Com a súmula de efeito vinculante o juiz torna-se mero burocrata. Mero cumpridor de ordens superiores. Portanto, a magistratura, com exceção do Supremo Tribunal Federal, perde a qualidade de ente jurisdicional, passando a ter um viés administrativo, deixando de dizer o direito no caso concreto, para, inscrever “no processo” uma decisão pronta e acabada, pouco importando as alegações das partes.
Não foi para esse fim que a Constituição Federal que a Constituição Federal organizou a magistratura. E evidentemente que não foi essa a intenção do legislador originário.
Evidentemente que isso não se coaduna com os preceitos de direito que versam sobre a matéria. O juiz não pode, em qualquer grau de jurisdição, ser submetido a esse tratamento. Por certo que tal situação passa ao largo da Constituição Federal e da tradição de nosso direito.
Muito embora estejamos tratando a presente questão do ponto de vista principiológico e finalístico, torna-se importante frisar a consequência do bloqueio do princípio em análise: destruição da justiça.
Devemos ter em mente que o direito é fato social, e como tal está em constante mutação. Essas mudanças são sentidas, primeiramente, pelo juiz de primeiro grau, pois é ele quem primeiro toma conhecimento sobre determinada demanda.
São das discussões ocorridas nesses juízos que o direito evolui, pois esses juízes aplicam o direito na medida certa, a depender da lide. E o fazem por estarem próximos da comunidade. Fazem-no por vivenciarem os problemas e as aspirações dos jurisdicionados.
Os juízes sempre procederam assim, porque garantida estava a sua independência. Com o instituto da súmula vinculante isso tende a mudar, pelas razões vistas anteriormente.
Portanto, entendemos que o referido instituto impede a evolução do direito. Engessa a interpretação legislativa. Submete toda a magistratura nacional ao que acordam onze pessoas que compõem o Supremo Tribunal Federal. Isso é um completo absurdo, pois com o devido respeito, os ministros daquela corte não são infalíveis e nem sempre tem razão naquilo que fazem. O STF não é o Monte Olimpo.
Em nossas considerações não estamos sozinhos. José Anchieta da Silva traz à luz a opinião do então senador Roberto Freire, proferida na Comissão de Constituição Justiça e Cidadania, quando da discussão da proposta de emenda constitucional que originou o instituto em análise: “com o efeito vinculante retira-se muito a capacidade de se discutir os fatos, que não são iguais, podem ter semelhanças, analogia, mas são distintos. E o juiz, na primeira instância, discute fatos. No momento em que se tem a interpretação, a hermenêutica dos tribunais superiores, através dos efeitos vinculantes, determinando como se resolver, estamos diminuindo a capacidade de os juízes interpretarem a realidade dos fatos” (1998, p. 82).
O distinto professor colaciona também a opinião do decano e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello: “a independência do juiz, para decidir com autonomina as controvérsias, traduz prerrogativa destinada à proteção da coletividade contra eventuais interferências ilegítimas do poder estatal” (1998, p. 83).
Em suma, essas são as terríveis violações ao texto constitucional que constatamos. Queremos ressaltar que essas agressões são muito nocivas ao nosso Estado Democrático de Direito, porque afeta por demais a instituição do processo judicial, gerando um sentimento de insegurança jurídica.
5. Da afastabilidade da súmula vinculante
Até o presente momento verificamos que a súmula de efeito vinculante é de observância obrigatória, de modo que não deve o juiz, nos termos da Lei 11.417/2006, escusar-se da aplicação da súmula.
Todavia, com base em dois institutos jurídicos entendemos que, no caso concreto, pode ocorrer a inaplicabilidade da súmula vinculante.
Tais institutos, a seguir estudados, são o distinguishing e a declaração de inconstitucionalidade do artigo 103-A da Constituição Federal, havida no exercício do controle difuso de constitucionalidade.
5.1. Do instituto do distinguishing
Também conhecido como instituto da distinção, é um mecanismo que tem como objetivo, conforme visto nesse estudo, afastar a aplicação da súmula vinculante sobre algum caso, entendendo que referida súmula não versa sobre o objeto da causa.
José Anchieta da Silva o define muito, dizendo que: “a empreitada processual tem por finalidade evitar a aplicação do stare decisis sobre determinado caso é o distinguishing, ou em português, o distínguo” (1998, p. 63).
Conforme ensinam Sgarbossa e Jensen, nesse empreitada processual “o juízo se convence, ao analisar o caso concreto para julgamento, convence-se de que, a despeito de aparente aplicabilidade de determinada súmula ao mesmo, ou da postulação em tal sentido por uma das partes, estão ausentes um ou mais pressupostos fáticos ou jurídicos essenciais à sua aplicação” (2005).
É interessante notar que a distinção pode ser aplicada por provocação da parte interessada, quanto por ato ex officio do julgador. A parte poderá fazê-lo, porque tem o amplo direito submeter seus pedidos para apreciação. O magistrado, por seu turno, pode afastar a súmula vinculante, porque, de forma geral, tem a obrigação de adequar ao caso sub judice o melhor direito.
Em análise crua a distinção é, simplesmente, uma técnica de argumentação, quando vista pela visão do advogado e uma obrigação quando vista pela óptica do julgador. Nesse último casão, torna-se conveniente o importante alerta de Frederick Schauer, que em linhas gerais diz que o magistrado nunca deve descuidar de analisar as particularidades do caso concreto, buscando evitar, dessa maneira, a aplicação do precedente vinculante em situação indevida (1987, p. 599).
Em verdade, preferiríamos que não fosse necessária a existência desse instrumento, já que é inconcebível que a súmula vinculante produza efeitos jurídicos. Todavia, como não temos o poder de extirpar os males advindos dela, sugerimos o uso da distinção, muito embora a entendamos um mecanismo bastante complexo, porque demandará, demasiadamente, o poder de argumentação do advogado, que deverá demonstrar em juízo que o objeto da súmula vinculante não é o mesmo da causa, isto é, demonstrar que a ratio da súmula vinculante não é a ratio da causa. É nisso que consiste o instituto da distinção.
5.2. Da declaração incidental de inconstitucionalidade
Todo magistrado tem, como dever de função, a preservação da ordem constitucional. Bem por isso o juiz ou tribunal pode, no curso de um processo judicial qualquer, reconhecer a inconstitucionalidade de qualquer ato normativo, deixando-o sem eficácia. A esta possibilidade dá-se o nome de controle difuso de constitucionalidade, que é o mecanismo processual pelo qual se busca afastar a incidência de uma norma jurídica que não guarda compatibilidade com a Constituição Federal.
A decisão de inconstitucionalidade, no controle difuso, é incidental, isto é, ocorre dentro de um processo judicial qualquer, antecedendo ao mérito da causa, promovendo, em regra, efeitos inter partes.
Nesse sentido temos Araujo e Nunes Júnior: “nesta forma de controle, discute-se o caso concreto. Deve haver uma situação concreto onde o interessado peça a prestação jurisdicional para escapar da incidência da norma. Os efeitos dessa decisão operam-se entre as partes” (2007, p. 28).
Após esse breve introito e levando-se em consideração que a súmula vinculante é um ato normativo, conforme visto, dotado de generalidade e abstração, entendemos que ela pode ser objeto de controle de constitucionalidade.
Nesse sentido, podemos citar Gregório Assagra de Almeida: “também entendemos que é possível o exercício do controle incidental ou difuso de constitucionalidade das súmulas vinculantes, as quais poderão ser editadas pelo STF por força da Emenda Constitucional 45/2004, que se refere à Reforma do Poder Judiciário. Essa Emenda Constitucional fez inserir, dentre outros dispositivos, o art. 103-A na CF, que permite ao Pretório Excelso a edição de súmulas em caráter vinculante. Todavia, poderá ocorrer que a súmula editada pelo STF em caráter vinculante possa, diante de uma determinada situação concreta, gerar lesão ou ameaça a direito e, assim, nada impede o seu afastamento, diante de determinada situação concreta, pelo juízo competente com base no art. 5º, XXXV, da CF, que é, repita-se, garantia constitucional fundamental de aplicabilidade imediata, além de estar inserido dentro da categoria de cláusulas pétreas (2008).
A título de reflexão: com o instituto da distinção e com o uso coerente do controle de constitucionalidade é possível afastar a incidência da súmula vinculante, porém isso é um trabalho penoso, que demanda muita argumentação por parte do patrono e muita sensibilidade por parte do julgador, de modo que, diante de tais incidentes, o pretendido argumento que fundamentou a criação da súmula vinculante (agilizar a entrega da prestação jurisdicional) cai por terra.
Conclusão
Do que foi exposto é possível, claramente, verificar que a súmula vinculante não é inconstitucional, somente. Ela contraria sobremaneira a tradição de nosso direito, que, desde a proclamação da República, se estabeleceu sobre três alicerces: o primado da lei, o direito de deduzir lides em juízo e a consagração da separação de poderes, que sempre foi defendida nas sociedades livres.
Com este arrazoado ficou muito bem evidenciado que o instituto da súmula vinculante não guarda qualquer compatibilidade com esses valores. Ao contrário, ele, se ainda não o fez, tem forte potencial para suprimi-los.
A súmula vinculante é um completo absurdo. Simplesmente ela é uma autorização, irregular, para o Poder Judiciário legislar. Que segurança jurídica existe nessa situação? Nenhuma, pois em sendo o Supremo Tribunal Federal o órgão competente para criá-la e se ao fazê-lo todos os demais órgãos do Poder Judiciário deverão aplicá-la cegamente, a quem, então, poderá se socorrer aquele indivíduo que se vê prejudicado por ela? Na prática: a ninguém. Este sujeito está desamparado.
Tal situação é inconstitucional, pois a ideia do legislador originário, ao confeccionar a Constituição da República, foi a de distribuir os poderes para órgãos distintos, visando a que um não pude se sobrepor ao outro (teoria do checks and balances).
A súmula de efeito vinculante amplia por demais o poder do Supremo Tribunal Federal. Ao menos em tese, essa situação poderá redundar em uma ditadura de juízes, ou melhor, de ministros. É o que ocorre quando os poderes se concentram na esfera de um só órgão.
Tal raciocínio parece inverossímil, porém entendemos que questões delicadas como essa, que abordam a supressão de poder constituído por outro e restrição a direitos individuais, devem ser tratadas de maneira muito rigorosa, cuidando para que o menor direito não seja violado.
Nosso posicionamento não é retrógado. Não somos contrários ao constante aperfeiçoamento do direito. Entendemos, inclusive, que é necessária a sua evolução, acomodando-se às necessidades sociais, contudo entendemos que a necessidade de evolução não pode prejudicar os direitos e garantias constantes nos incisos do artigo 5º da Constituição da República, que, como bem sabemos, traz conteúdo mínimo, porém de observância obrigatória. Tais disposições são consideradas cláusulas pétreas, de modo que não podem sofrer restrição, mas sim devem ser interpretadas ao largo, para que atinjam o fim a que se propuseram: limitar a atuação dos poderes estatais, defendendo o ser humano de quaisquer arbitrariedades.
Informações Sobre o Autor
Emílio Gutierrez Sobrinho
Bacharel em Direito; Especialista em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus; Especialista em Direito Processual Civil pela Escola Paulista da Magistratura; Curso de Extensão em Direito Constitucional Inglês pela Universidade de Londres