A superação do poder patriarcal como demarcador das relações familiares

Resumo O estudo trata da diferença identificada no Direito concernente ao despertar, aprimoramento, aperfeiçoamento das entidades familiares na sociedade, a partir do patriarcado. Busca identificar que o esforço ocidental que não se mostra evolutivo, mas desvelador (alethéia – αλεθέια). Traz a proposta da renovação do olhar sobre os mesmos institutos. O Direito, notadamente, de família, é expresso em uma envergadura social impressionante, sendo base da sociedade e, por conseguinte, do Estado. Assim, diante da desenvoltura e alcance do referido ramo do Direito assomado ao ambiente de discussão acerca dos novos direitos no seio dos direitos fundamentais, especialmente sociais, convergem reflexões desenvolvidas neste estudo nas expectativas de um ordenamento jurídico igualmente oxigenado pela sábia e prudente orientação humana no advento de um novo olhar sobre o assunto. Portanto, o ambiente sócio-afetivo com colaborações psicológicas e psicanalíticas, além das sociológicas, antropológicas, políticas e filosóficas, implica realidade jurídica de família diferenciada e beneficamente inovadora.

Palavras-chave: entidades familiares; evolução; novos direitos; sócio-afetividade

Abstract – The study addresses the gap identified in the law concerning the awakening, enhancement, improvement of family entities in society, from the patriarchy. Seeks to identify the Western effort not shown rolling, but developer (Alethia – αλεθέια). Brings the proposed renewal of the eye on the same institutes. The law, notably family, is expressed in a striking social scale, being the foundation of society and therefore the State. So, considering the ease and scope of that branch of law loomed to the discussion of new rights within the core, especially social rights environment, reflections developed in this study converge on expectations of a legal system also oxygenated by the wise and prudent human orientation in advent of a new look at the subject. Therefore, the socio-emotional relationships with psychological and psychoanalytic collaborations beyond the sociological, anthropological, political and philosophical, involving legal reality of differentiated and innovative family beneficially.

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Keywords: family entities; evolution; new rights; socio-affective

Sumário: Introdução; 1. As formações familiares entre o matriarcado e o patriarcado; 2. Pessoa, família, dignidade da pessoa humana e afeto; 3. A família patriarcal – uma análise necessária; 4. O conteúdo conceitual da família e o Direito; 5. A pavimentação do caminho da democratização do núcleo familiar; Considerações finais; Referencias.

Introdução

O início das reflexões a que se propõe o desenvolvimento do tema enuncia, desde já, a isonomia valorativa da pessoa constituinte da entidade familiar, independentemente do gênero. A posição de estabelecimento do patriarcado sugere uma silhueta masculina a conduzir e delinear a história em geral e da família em especial. A expressão pendular, oscilatória, entretanto, não se afastou como realidade coetânea. O preliminar da temática a ser problematizada é a euro-ocidental; trata-se da questão do gênero. Esta que ora preserva, e em outro momento desestabiliza relativamente papéis na relação familiar, desnudando a importância de ações de ambos os envolvidos na presumida vida em comum que acima fora mencionada, apresentando um de seus constituintes como diretivos da entidade.

A despeito das muitas modificações recentes, muitos paradigmas permanecem; como é possível identificar na tradição judaico-cristã. O evangelho de Mateus apresenta a genealogia do messias a partir da figura masculina ascendente para provar a linhagem abraâmica e davídica na direção da prova de que o messias cristão descende de linhagem judaica e real; com a curiosidade de que são mencionados apenas o nome do ascendente paterno. As mudanças sociais na concepção de entidade familiar e os reflexos do afeto como valor jusfilosófico têm impacto sobre a referida instituição e move-se a corroborar naturalmente com a discussão sobre a afetividade e sua relevância no que diz respeito à condição humana, na medida em que o ser humano não é apenas um animal racional, mas também afetivo.

O conhecimento da família como conceito fechado é impreciso e frágil, sobretudo, nos termos de seu desdobramento histórico e cultural, uma vez que ambas as bases podem estar equivocadas; a primeira, porque não é possível determinar se os povos selvagens passaram por estágios de processos comuns a toda humanidade e a segunda, pela insuficiência dos referidos dados e sua confusão com os emergentes de períodos já históricos.

.Os estudos realizados no contexto temporal de Friedrich Engels são, por ele mesmo, sustentados no sentido de que até a década de 60, não se poderia pensar em uma história da família, pois as ciências históricas ainda se achavam sob a influência dos cinco livros de Moisés (ENGELS, 1892, p. 6-7). E com respeito às formas mais antigas, a patriarcal é recorrente em apontamentos primordiais. A forma patriarcal da família era admitida não só como a mais antiga, como também se identificava – não fosse a poligamia – com a família burguesa de hoje, como se não tivesse havido evolução alguma através dos tempos. Admitia-se, no máximo, que em períodos primitivos pudesse ter havido certa promiscuidade sexual. Além da monogamia, reconheciam-se simultaneamente a poligamia no Oriente e a poliandria na Índia e no Tibete. (WALDYR, 2010, p. 41).

“Estes fatos eram todos conhecidos mas não estudados naquela época, e em alguns povos primitivos como em algumas tribos selvagens ainda existentes, a descendência contava-se, exclusivamente, pela linha materna e o casamento era proibido dentro de determinados grupos maiores, descritos por E. B. Tylor como “costumes exóticos” (WALDYR FILHO, 2010, p. 42).[1]

É importante considerar a concepção puramente racional do homem, especialmente no ambiente filosófico, antropológico, psicológico e psicanalítico. Isso porque, primeiramente, a racionalidade não é o único constituinte do homem. Para tanto, basta recordar, em um segmento cristão da sociedade dos primeiros idos medievais, a problematização da liberdade a partir da dialética envolvendo a visão platônica, desenvolvida por Plotino, a culminar em Santo Agostinho. Para tanto, o patrístico proveniente de Cartago defende ser a vontade e não a razão que aperfeiçoa o livre-arbítrio e, por conseguinte, qualquer relação da pessoa com a realidade, notadamente com outra pessoa, o que se desdobra nas tramas contratuais. Em suas confissões Agostinho de Hipona afirma que, não obstante o prévio conhecimento divino de todas as coisas em uma concepção judaico-cristã, na vontade o homem é livre e, desse modo, ainda que não se possa realizar tudo que se deseja, a vontade de realizar, em si, não pode ser impedida (AGOSTINHO, 2008, p. 173).

Não menos importante que a vontade é o sentimento. Blaise Pascal, em sua celebre sentença, lega ao homem a reflexão de que o coração tem razões que a própria razão desconhece (PASCAL, 2007, p. 212). No desenvolvimento dessa compreensão está ínsita já a exigência da isonomia, que também leva à alteridade, cujos riscos de inobservância, olvidam o dever de cuidado. A sociedade, em suas paradoxais manifestações de viver gregário e destaque para o indivíduo, não se porta, necessariamente, como estrita interpretação de negligência, imprudência ou imperícia, mas de esquecimento de laços importantes que na atualidade dá indícios de individualidade nociva, a saber, individualismo. Em nosso mundo de "individualização" em excesso, as iden­tidades são bênçãos ambíguas. Oscilam entre o sonho e o pesa­delo, e não há como dizer quando um se transforma no outro. Na maior parte do tempo, essas duas modalidades líquido-modernas de identidade coabitam, mesmo que localizadas em diferentes níveis de consciência:

“Num ambiente de vida líquido-moderno, as identidades talvez sejam as encarnações mais comuns, mais aguçadas, mais profundamente sentidas e perturbadoras da am­bivalência. É por isso, diria eu, que estão firmemente assentadas no próprio cerne da atenção dos indivíduos líquido-modernos e colocadas no topo de seus debates existenciais”. (BAUMAN, 2005a, p. 42)

A pluralidade dos idos judaico-cristãos e greco-romanos encontra-se em ambivalência no seu lugar na história conjugando diferenciadas culturas que distavam do patriarcalismo. Por sua vez, o patriarcado também estaria ligado não apenas à tradição, mas ao sustento, dando ensejo a uma perspectiva patrimonialista que ainda encontra oscilações (FROMM, 2011, p. 186). Fromm revela sua preocupação com a sobreposição dos gêneros e a influência das circunstâncias ou dos objetos de sedução do mundo do consumo e falsos insinuadores de superioridade. Ele afirma com objetividade que as mulheres devem ser libertas do domínio patriarcal. (FROMM, 2011, p. 186).

A libertação da mulher do domínio patriarcal é fator fundamental na humanização da sociedade. Entende-se que tal sujeição é milenar, exploratória e vexatória. Dizem que a sujeição das mulheres pelos homens começou apenas há cerca de seis mil anos em várias partes do mundo e quando o excedente na agricultura permitia a contratação e exploração de trabalhadores, a organização de exér­citos e a edificação de poderosas cidades-estado (FROMM, 2011, p. 186). Sustenta-se ainda que, de plano, já suscitavam sutilmente a problemática do gênero e patrimonialismo como que sugerindo, a depósito de certo anacronismo, a necessidade do personalismo e, posteriormente, o repersonalismo que serão abordados no estudo que ora se desenvolve. A partir de então, não apenas as sociedades do Oriente Médio como as europeias e a maioria das culturas do planeta, foram conquistadas pelos "machos associados" que subjugaram as mulheres (FROMM, 2011, p. 186). Essa vi­tória dos machos sobre as fêmeas da espécie humana baseou-se no poder econômico dos homens e na máquina militar por eles montada. A guerra entre os sexos é tão antiga quanto a luta de classes, mas suas formas são mais complicadas, visto que os homens têm precisado das mulheres não apenas como bestas de carga, mas também como mães, amantes, consoladoras (FROMM, 2011, p. 187). As formas da guerra entre os sexos são, não raro, abertas e brutais, e no mais das vezes ocultas. Falta às mulheres força superior, mas elas reagem com suas próprias armas; a principal destas é o ridículo dos homens.

“A subjugação de metade da espécie humana pela outra me­tade tem causado, e continua causando, imenso prejuízo a ambos os sexos: os homens assumem as características do vencedor, e as mulheres as da vítima. Nenhuma relação entre um homem e uma mulher, mesmo hoje, e mesmo entre os que conscientemente protestam contra a hegemonia masculina, está isenta da maldição ou do sentimento de superioridade por parte dos homens, ou de inferioridade por parte das mulheres [..]” (FROMM, 2011, p187)[2]

Naturalmente que, aos suscitar o problema acima, não seria razoável considerar que, de fato, a postura beligerante seja o caminho de construção de uma relação equilibrada e, portanto, sadia. Embora Zygmunt Bauman (2005 a) faça suas considerações também acerca do patrimonialismo e da economia, apresenta uma abordagem da justiça social, envolvidos homem e mulher, pai e mãe, com uma perspectiva curiosamente trabalhada sob o anseio do reconhecimento. O pensador polonês argumenta que a guerra por justiça social foi, portanto, reduzida a um exces­so de batalhas por reconhecimento. "Reconhecimento" pode ser aquilo que mais faça falta a um ou outro grupo dos bem-sucedidos – a única coisa que parece estar faltando no inventário ra­pidamente preenchido dos fatores da felicidade. Mas, para uma parcela ampla e em rápido crescimento da humanidade, trata-se de uma ideia obscura, que assim continuará sendo enquanto o dinheiro for evitado como tema de conversa. Ponderando as profecias não cumpridas do passado e as gloriosas, embora mal-orientadas, esperanças do presente, Ror­ty conclama as pessoas a recuperarem a sensatez e despertarem para as causas da miséria humana. (BAUMAN, 2005a, p. 43)

As abordagens psicológica e psicanalítica são de singular importância pelos moldes comportamentais desvelados pela presença do inconsciente, trazem à tona, respectivamente as ações de afirmação ou afirmativas e o que se oculta por trás da consciência extremadamente racionalizadora da realidade e das relações humanas. A racionalidade, portanto, deve estar em companhia do constituinte afetivo da natureza humana a fim de imprimir valor e reconhecer o necessário compartilhamento de responsabilidades para uma sociedade em que os direitos não se instaurem para unicamente coibir práticas lesivas à própria sociedade, mas a garantir e facultar ações que reafirmem a relevância da família.

As mudanças na estrutura familiar constituem renovada lição de aprimoramento das relações que se projetam na sociedade e, mais tarde, no Estado. Na história do Direito, especialmente do Direito Romano, o parter familias é o ícone cultural e o patrono, a diretriz, o orientador e detentor do poder, inclusive sobre o sui iuris.

O status familiae era a condição que a pessoa tinha dentro da pró­pria família: ou era sui iúris (não subordinada a ninguém e, portanto, livre para a prática direta de qualquer ato na vida civil), ou alieni iuris (submetida a qualquer espécie de autoridade familiar, necessitando, pois, de seu consentimento para a prática de qualquer ato na socie­dade romana). Família, nos primórdios do Direito Romano, significava tanto o conjunto de pessoas que viviam sob a dependência de um chefe (o pater familias) como a totalidade dos bens que constituíam a sua propriedade. "A palavra família está, certamente, entendida com va­riedade, porque se aplica às coisas e às pessoas", definiu Ulpiano. Como reunião de pessoas, a família romana foi eminentemente patriarcal nos tempos da Realeza e do Império, com todos os seus membros sujeitos ao poder do pater familias, que era, sempre, o as­cendente masculino mais antigo e que, enquanto vivesse, tinha sobre os demais o poder de vida e morte (jus vitae necisque). As esposas, os filhos, noras, genros ou escravos – todos eram subordinados ao chefe de suas famílias, e os bens por eles adquiridos integravam-se automaticamente ao patrimônio familiar[3].

Os pater familias exerciam os seguintes poderes no âmbito fa­miliar: a patris potestas sobre todos os filhos; o manus ou potestas maritalis sobre a mulher casada, no casamento cum manu; a dominica potestas sobre os escravos e o mancipium sobre os homens livres que viviam, provisoriamente, em condições de escravidão. Ele era o senhor absoluto e também o sacerdote do culto familiar. Cada família possuía seus deuses próprios (lares e manus); que eram transmitidos de geração a geração. Se uma família obtivesse sucesso na política e nos negócios, tal progresso era atribuído a seus deuses, que, dessa forma, ganhavam notoriedade, sendo "adotados", então, por outras famílias, e, conforme o grau de sucesso, até mesmo como protetor de toda a cidade. Para ser pater familias era necessário ser do sexo masculino e não estar subordinado a um outro ascendente masculino. Assim, um órfão, solteiro e sem descendentes, podia ser pater familias de si mesmo. Evidentemente, essas condições impediam as mulheres de galgarem essa posição na família romana. Os poderes do pater familias somente se extinguiam com a sua morte. Quando ele morria, a família se multiplicava em tantas novas famílias quantos fossem os descendentes do sexo masculino, que, por sua vez, se transformavam em novos pater familias. Esse rigorismo do patriarcado romano só começou a ser ame­nizado no período do Principado, influenciado pelas novas ideais trazidas pela filosofia grega e, principalmente, pelo cristianismo. No Dominato os poderes do pater famílias foram sendo absorvidos pelo Estado, que passou a ditar as normas de convivência e relacionamento no seio familiar. (ROLIM, 2010, p. 173).

Com relação ao status familiae, o Direito Romano classificava as pessoas em duas classes distintas: sui iúris e alieni iúris. Sui iúris era o indivíduo que não estava subordinado a qual­quer poder familiar, tendo plena capacidade jurídica para praticar todos os atos da vida civil, sem depender de quem quer que fosse. Geralmente eram os cidadãos que não tinham nenhum ascendente do sexo masculino ou que haviam sido liberados do poder paterno através da emancipação (emancipatio). Os sui iuris possuíam o status familiae. Os alieni iuris eram os relativamente incapazes, os que estavam submetidos ao poder familiar, dependendo dos pater familias, tuto­res ou curadores para celebrar os atos da vida civil; como exemplo, podemos citar os menores de idade e as mulheres. Os alieni iuris não podiam contrair matrimônio sem o consentimento do pater, e os bens que adquirissem eram incorporados ao patrimônio do chefe da família.

O parentesco envolvia as relações de parentesco, a saber, os agnatos e cognatos como agnação (agnatio) e cognação (cognatio). A agnação era o parentesco que não se fundamentava em laços de sangue, mas sim na sujeição da pessoa a um mesmo pater familias. Eram, pois, agnatos todos aqueles que, mesmo não descendendo di­retamente uns dos outros, pertenciam a uma mesma família, sujeitos ao mesmo pater familias. Assim, os parentes por afinidade: na linha ascendente, o sogro e a sogra (socer e socrus), o padrasto (vitricus) e a madastra (novercà) e, na linha descendente, o genro (gener) e a nora (nurus), o enteado (privignus) e a enteada (privigna) e ainda, na linha colateral, o cunhado (levir) e a cunhada (gios). Quanto à cognação, era o parentesco natural; os indivíduos eram ligados pelos laços de san­gue. O parentesco cognatício em linha reta compreendia o filho e a filha (filius, filia), o neto e a neta (nepos e neptis), o bisneto e a bisneta (pronepos e proneptis), o trineto e a trineta (abnepos e abneptis}, e tam­bém o avô e a avó (avus e avia), o bisavô e a bisavó (proavus e proavia), o trisavô e a trisavó (abavus e abavia); em linha colateral eram cognatos o tio e a tia paternos (patruus e amita), o tio e a tia maternos (avunculus e matertera) e os primos (consobrini, consobrinae). O ius civile – modalidade de Direito Romano que vigorou du­rante os períodos da Realeza e da República – considerava parentes para efeitos civis somente os agnatos.

Dessa forma, somente eles ti­nham direito à sucessão dos bens deixados pelo pater familias. Os cognatos, apesar de serem parentes de sangue do falecido, estavam fora do direito sucessório. Esse rigorismo do ius civile foi abrandado em fins da República pelo direito pretoriano, que, aos poucos, foi concedendo direitos he­reditários também aos cognatos. Os privilégios do parentesco agnatício foram abolidos por Justiniano, por volta de 570 d.C. A partir de então, passaram a ser conside­rados parentes, para efeitos sucessórios, somente os cognatos.

As modificações de um quadro em que a silhueta paterna denotava poder e paradigma atravessaram o desenvolvimento cultural e antropológico, bem como jurídico da trajetória do pensamento ocidental. Por outro lado, não sempre se deu desse modo e, de maneira coetânea, outros povos manifestavam uma estrutura sensivelmente diferenciada, o que, em casos singulares, não se revelava necessariamente contributivo ou nocivo.

A mutabilidade da família eleva-a continuamente de um nível inferior a outro superior, como resultado do desenvol­vimento da técnica e da economia. Reconhece-se que antes da etapa da civilização, na qual se impõe definitivamente o casamento monogâmico, o homem viveu em um estado selvagem e outro de bar­bárie.

O primeiro foi caracterizado por um estágio de promiscuidade sexual, que evolui para os casamentos de grupos inteiros de homens e mulheres que se pertenciam reciprocamente, dando origem à família consanguínea, significando já um progresso sobre a promiscuidade inicial ao excluir-se do tráfego sexual as mães e os filhos. Esta forma de família, consanguínea, seguramente, não tem exemplos dignos na história, mas se reconhece que deva ter existido porque o sistema de parentesco consanguíneo encontrado entre os havaianos só se explica com essa forma (WALDYR FILHO, 2010, p. 43).

As expressões e alcance dos gêneros, pelo que se apresentam não denotam, por si mesmos, um determinante da coerência do trato à questão do poder. Curiosamente, a pesquisa em curso desvela que uma conjugação de esforços ou de responsabilidades se perfaz, seja por harmonia da relação, por cultura, ou mesmo por determinação. A esse respeito, cabe ter em vista a reflexão que se desenvolverá no fluxo textual a seguir, ou seja, qual a medida de ação do homem, visto que prerrogativas que avocava para si, ou para ele eram destinadas não possuem um fundamento definitivo ou base ontológica.

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2. Pessoa, família, dignidade da pessoa humana e afeto

A despeito de todo anacronismo a ser praticado como digressões pontuais por analogia preocupada em compreender a profundidade das relações familiares, importa considerar as relações de poder e, por fim, as relações promovidas por um poder incorruptível, isto é, o verdadeiro afeto; os apontamentos seguintes não deixam de lado quaisquer hipóteses de releitura de desempenho e cuidado no esteio da frágil condição humana.

O pacto que se estabelece, em primeira linha existencial, é o pacto familiar. Tácito ou expresso, é um pacto que se projeta na realidade e no horizonte histórico de possibilidades de cada pessoa. E, nesse segmento, outra preocupação se faz presente, qual seja, aquela relacionada ao desenvolvimento pleno da pessoa, bem como à dignidade da pessoa humana ou ainda ao mínimo existencial. Essa trindade interpenetra-se porque padece de incompletude nas sendas da construção da humanidade do homem – do homem interior – e, consequentemente, da própria sociedade, sobretudo porque a solidariedade não se constitui como mero ato de benemerência social.

É uma realidade de comum experimentação das vicissitudes e, por outro lado, possíveis venturas, tornando cada dia mais latente a importância do estudo da alteridade como elemento indispensável para pensar a pessoa, a família, a sociedade e o Estado. Cada um desses entes será decisivo no processo de construção da civilização ocidental. Estão entrelaçados nos termos dos interesses individuais, coletivos, difusos e, para além de qualquer garantia, estão contidos nas demandas bases da sociedade, seja formada ou a ser constituída.

A origem da família consiste em gênese variada que faz pensar e repensar sua complexidade verdadeira, realidade e fim – se possuir –, fato, entretanto, contra o qual não há argumento: remonta a recorrente antinomia gregária em que, ao mesmo tempo em que deseja o homem viver entre seus semelhantes, possivelmente terá de lidar com outro desejo – de priorizar seus próprios interesses, com comportamento que se anuncia, em igual possibilidade, desafiando toda alteridade absolutamente inalienável de toda espiritualidade humana nas sendas afetivas.

A coexistência é composição indeclinável no complexo das relações humanas, embora o isolamento existencial possa também sugerir recuo das simultâneas solicitudes a fim de refletir e ponderar: no entanto conviver, compreender civilidade e o respeito, bem como o amálgama-vinculatório-afetivo. Conviver denota vencer o isolamento existencial numa proposta interativa com o outro. Nesse sentido, a vida social é valiosa conquista do processo de aprimoramento da espécie humana (HOGEMANN, 2012a, p.4). Consequentemente, demais direitos como a liberdade, a igualdade, a fraternidade, a solidariedade, a segurança, o trabalho, a saúde, a educação e, enfim, a própria felicidade humana (HOGEMANN, 2012a, p. 4) e tantos outros valores que são objeto de direitos humanos fundamentais e operacionais, todos eles se ligam ao direito à vida e se realizam mais efetivamente a partir do primeiro dos grupos sociais dos quais o ser humano faz parte: a famíli. (HOGEMANN, 2012a, p. 4). Eis elenco de direitos humanos fundamentais e operacionais que se somam para a realização e a garantia da família. Contudo, importa a sublinhar que, por entre esses direitos, há um direito-amálgama responsável pela interação entre todos eles.

É o direito ao afeto, cujo objeto é o sentimento maior que garante o agrupamento humano por um laço mais forte do que uma simples conjunção de interesses e assim dá consistência aos demais direitos humanos da família. Realmente, desde sua origem, a família é recoberta com um manto de ternura e carinho, de dedicação e empenho, mas também de responsabilidade para com quem se cativa. Esse manto protetor é o afeto, ao qual o direito deve dedicar especial atenção, sob pena de pôr em risco a própria garantia jurídica da família. Isso porque o direito ao afeto é o mais imprescindível à saúde física e psíquica, à estabilidade econômica e social, ao desenvolvimento material e cultural de qualquer entidade familiar (HOGEMANN, 2012a, p. 5).

3. A família patriarcal – uma análise necessária

O aproveitamento da tradição moral e jurídica judaico-cristã-greco-romana do mundo ocidental se faz em muitos segmentos, inclusive no que tange ao Direito de Família e está inevitavelmente enleado em um primeiro amálgama in concreto de relações – a memória afetiva traz o cenário das duas mães que compareceram perante o sábio rei Salomão. As duas mães disputavam por uma criança nos termos acusatórios de que uma subtraiu a vida da criança da outra, restando imprecisão quanto a quem seria a mãe da criança sobrevivente em uma realidade científica em que não havia exame ambulatorial que confirmasse a linhagem. Por outro lado, o que estava também em questão era a responsabilidade pelo ato de consequência fatídica. Cumpre transcrever, em tradução rigorosa, o trecho seguinte: verso 17Disse uma das mulheres: "Ó meu senhor! Eu e esta mulher moramos na mesma casa e eu dei à luz junto dela na casa. 18Três dias depois de eu ter dado à luz, esta mulher também teve uma criança; estávamos juntas e não havia nenhum estranho conosco na casa: somente nós. ''Ora, certa noite morreu o filho desta mulher, pois ela, dormindo, o sufocou. 20Éla então se levantou, durante a noite, retirou meu filho do meu regaço enquanto tua serva dormia; colocou-o no seu regaço, e no meu regaço o filho morto. 2lLevantei-me de manhã para amamentar meu filho e encontrei-o morto! Mas, de manhã, eu o examinei e constatei que não era o meu filho que eu tinha dado à luz!" 22Então a outra mulher disse: "Não é verdade: o meu filho é o que está vivo e o teu é o que está morto!" E a outra : "É mentira! Teu filho é o que está morto e o meu é o que está vivo! Estavam discutindo assim, diante do rei, 23que sentenciou: "Uma diz: meu filho é o que está vivo e o teu é o que está morto!', e a outra responde: Mentira! Teu filho é o que está morto e o meu é o que está vivo!' 24Trazei-me uma espada", ordenou o rei; e levaram-lhe a espada. 25E o rei disse: "Cortai o nu vivo em duas partes e dai metade a uma e metade à outra." 26Então a Mãe de quem era o filho vivo, suplicou ao rei, pois suas entranhas se comoveram por causa do filho, dizendo: "Ó meu senhor! Que lhe seja dado então o menino vivo, não o matem de modo nenhum!" Mas a outra dizia: "Ele não seja nem meu nem teu, cortai-o! 27Então o rei tomou a palavra e disse: dai à primeira a criança viva, não a matem. Pois é ela a sua mãe. 28Todo o Israel soube da sentença que o rei havia dado, e todos lhe demonstraram muito respeito, pois viram que possuía uma sabedoria divina para fazer justiça (GORGULHO; STORNIOLO; ANDERSON, 2002, p. 473 – versos 17 a 28 do Cap. III da Bíblia de Jerusalém).

O sobredito acontecimento envolvendo juízo sobre família, sociedade e Estado, se passa no reinado de Salomão, conforme com o texto extraído da História dos reis de Israel. Uma das curiosidades mais marcantes nesse trecho é aquele em que a afeição se revela uma propriedade humana independente do gênero e definidora de um princípio de relação paradigmaticamente sã e preservadora do valor da família. Seria ainda oportuno dizer que, embora a mãe que impediu que a criança fosse cortada ao meio, poderia até não ser a mãe biologicamente verdadeira, mas, seguramente, seria a mãe, afetivamente, de verdade.

Assim, o objeto de proteção especial do Estado (art. 226, CRFB), a família, se apresenta sob a forma complexa de constituição de relações coetaneamente formais e materiais. É de fato e de direito. É pacto e afeição. Nesse segmento sinuoso de desdobramentos de relações intersubjetivas em nível de profunda intimidade que, certamente, não sucumbem em sua estrutura às variáveis e contingências históricas, antropológicas, políticas, sociais e jurídicas. Isso não significa reconhecer que a hipótese de dissolução da vida conjugal não se aventa, nem tampouco que o amparo legal constitui um paradoxo jurídico. É razoável entender que a fragmentação da família traz consigo o atentado contra a pretensão da vida em comum. Por outro lado, é igualmente razoável compreender que, se a vida em comum se tornou insustentável, a dissolução da sociedade apresenta-se como caminho melhor do que as múltiplas e gratuitas ofensas que o ressentimento e incompatibilidade podem causar. Fundamental é inferir que a instituição é indispensável à organicidade e possibilidade de construção da sociedade.

A história demonstra, tendo em vista o percurso da civilização ocidental, desde os tempos dos clãs, cidades-estado e, mesmo nos seguintes impérios, e demais organizações sociais, que a entidade familiar é fato, que há uma organização de tarefas, ofícios, posições, até mesmo hierarquia, passados de pais para filhos, e destes para a sociedade local. Com efeito, a sociedade absorve os desdobramentos de famílias equilibradas ou não e, consequentemente, a sociedade se apresenta em um modo cordato de relações ou sintomaticamente diverso, por exemplo, na inaceitação de autoridade, de papéis, na perspectiva depreciativa assumida em relação a determinados ofícios, na clara constatação de incompletude e de infelicidade – esta última hoje pensada como objeto pretendido de uma sexta geração dos direitos humanos. Nesse segmento, é notada a força dos direitos fundamentais sociais e seus reflexos ao longo do texto constitucional, bem como no esteio das normas infraconstitucionais, aprofundadas e detalhadas em legislação cada vez mais específica como, por se poder identificar nos estatutos, a título de exemplo, da criança e do adolescente, que inevitavelmente interfere nas relações familiares.

As observações suscitam, inevitavelmente, uma questão sobre o pronunciamento da norma fundamental concorrente ao caso. Os prolegômenos à nova interpretação constitucional demandam tratamento atento da matéria, bem como às demais que versam sobre a relação entre particulares, notadamente em virtude dos direitos fundamentais.

Eles são mandamentos de otimização de aprimoramento das relações humanas, embora já reflitam desde sempre senão superada a dicotomia do Direito Natural e do Direito Positivo, a referência afetiva de Antígona. Com efeito, os direitos fundamentais, por serem mandamentos de otimização, tendem a irradiar efeitos por toda a ordem jurídica – esse é o aspecto principal da constitucionalização do direito mesmo que se entenda, como aqui se pressupõe, que a Constituição não é a lei fundamen­tal de toda atividade social. Mas esses efeitos, ao contrário do que ocorre no âmbito das relações entre Estado e indivíduos, não são e nem podem ser sempre diretos ou sempre indiretos. Necessário se faz o desenvolvimento de um modelo diferenciado que, a despeito da abstração inerente a qualquer modelo, seja apto a aceitar as diferen­ciações que a produção de efeitos dos direitos fundamentais nas rela­ções entre particulares exige. Corresponder a essa expectativa – ingênua, pode-se dizer – não é o objetivo deste trabalho. No desenvolver da investi­gação, o que se pretende é romper com alguns lugares-comuns identificados no âmbito da proteção aos direitos fundamentais nas relações entre par­ticulares, especialmente com posições que sustentam a ausência de efeitos desses direitos nessas relações ou com aquelas que, sem gran­des fundamentações, defendem a aplicabilidade direta e irrestrita dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, especialmente na variante baseada no art. 5o., § 1º, da Constituição. (SILVA, 2008, p. 175-176).

Assim, ao liame entre a abstração da lei, seu controle por si e a realidade social, em especial da família recorre uma atividade do julgador de responsabilidade para com o não desprezo das tensões envolvidas a partir da célula fundamental da sociedade, cujo desequilíbrio incorrerá inegavelmente no desequilíbrio da própria sociedade.

“Desenvolver um modelo é, de um lado, uma tarefa analítica de alto grau de abstração que pretende, por outro lado, fornecer elemen­tos para a concreta interpretação e aplicação do direito. (…) Não se pode esperar que ele esteja pronto para resolver todo e qualquer problema relacionado aos efeitos dos direitos fundamentais nas relações entre particulares. Todo modelo é uma ferramenta de trabalho que ganha corpo com a prática doutrinária e, especialmente, jurisprudencial. Esperar mais do que isso é ingenuidade – e esse é, muitas vezes, o problema de modelos que se pretendem, isoladamente, suficientes para solucionar questões intrincadas que exigem diferenciações, que o modelo não está apto a comportar. (…) Sem que se esclareça plenamente qual é o conceito de consti­tuição e de direitos fundamentais de que se parte, a tarefa está, já no seu início, fadada à incontrolabilidade intersubjetiva” (SILVA, 2008, p. 175-176-177).

A cultura como produção sedimentada do espírito humano encarnando valores insinua o poder de conservar paradigmas sustentáveis à convivência e civilidade que, na trajetória cultural do mundo ocidental são tão valiosas. É nesse mesmo contexto que a tridimensionalidade realeana torna-se ainda mais latente. O Direito tão-somente como fato e norma nada tem a dizer sobre a relação afetiva que redimensiona as relações familiares, uma vez considerado o terceiro elemento como sendo imprescindível à relação afetiva que se exprime na familiar. A afeição como valor e fundamentação da relação.

A célula-mãe da sociedade permanece, nessa dinâmica e preservação, recebendo atenção especial, notadamente do Estado. A sua desestruturação implica desestruturação da própria sociedade. Os casos como os de Antígona do tragediógrafo grego Sófocles, bem como Shakespeare em Hamlet, ilustram que a ruína da família implica ruína da cidade.

Os desdobramentos apontados correlacionam-se ao ambiente político e jurídico tanto na indagação a Creonte, como na decadência dinamarquesa. Por assim ser, percebe-se que a ingerência sobre essa instituição indemarcável no tempo é tema caro à humanidade que preza por sua continuidade e laços.

Como se impõe, o Direito não declinará de sua responsabilidade e juízo sobre o assunto. Antígona, a saber, constitui caso clássico de Direito Natural e que, nesta pesquisa, tem seu lugar, mesmo que introdutório, por força do duelo entre uma positividade estrita e uma manifestação afetiva, cuja pujância se aproxima de uma interpretação extensiva do laço familiar para além da estrita legalidade que olvida a motivação, nexo, escopo, bem como princípios já consagrados no Direito que demandam perpassar seus ramos a fim de tornar efetiva a realização da justiça e, nesse particular sobre a família, a isonomia, a razoabilidade, a universalidade e a afeição como motivadora primeira do vínculo se apresentam como impreteríveis.

O desenvolvimento, assim, da reflexão sobre a família acolhe, aqui, uma sequência natural, a saber, primeiramente partindo do poder patriarcal, a seguir, da problemática do poder familiar em sua constituição original diante da inovação do poder do afeto, confluindo nos limites da ação do homem e projetando novos direitos como ação reafirmativa da dignidade da pessoa humana e, por conseguinte, o desenvolvimento pleno, bem como da possibilidade de se conhecer o homem médio, na medida em que é a presunção de crescimento em um ambiente familiar constituído de afeto e de mutualidade de significâncias o motor inclusivo de pessoas mais seguras e equilibradas na sociedade hodierna.

4. O conteúdo conceitual da família e o Direito

Os moldes tradicionais das orientações do ordenamento jurídico brasileiro instituem deveres de ambos os cônjuges como fidelidade recíproca, vida em comum, domicílio conjugal, mútua assistência, sustento, guarda e educação dos filhos, respeito e consideração mútuos (art. 1.558, CC).

A fidelidade recíproca, muito mais até mesmo do que o sentimento receoso de quebra de compromisso sugere que a observância da palavra dada, do juramento que se deu, da confiança que se fez medrar no espírito do outro é fidelidade, pilar sobre o qual se sustentam as estruturas das situações e das relações jurídicas, e, principalmente, das de direito de família. A fidelidade conjugal, na orientação tradicional do ocidente, outra coisa não é que a mantença da monogamia das relações sexuais do casal. É um dever que tem relação com a intimidade e a honra subjetiva dos cônjuges; com a garantia de sobrevivência da unidade afetiva do casal e com a prevenção do risco para de prole (art. 1.634, CC).

As relações de poder que se estabeleceram e ainda são encontradas em sociedades remotas sugerem traço consuetudinário que se projeta no político como no jurídico, já anteriormente mencionado. Por conseguinte, vislumbrar modificações significativas no contexto familiar constitui situação por demais incomum, entretanto, as mudanças têm se instalado a despeito da ortodoxia familiar e do engessamento pretoriais pontuais quanto à disposição sobre o novo conceito e realidade de família na contemplação dos direitos fundamentais sociais e dos novos direitos.

A adoção desse caminho ocorre de modo a assimilar o poder renovador e de ajustamento do afeto que propicia o vislumbre dos limites do alcance e do valor da ação do homem na sua relação ou realidade de gênero. Em adiantamento ao amálgama desdobrado do afeto no esteio do desenvolvimento da constitucionalização em referência, notadamente à dignidade humana, de acordo com a hermenêutica jurídica e interpretação constitucional que se movem entre princípios e métodos, os laços de afetividade e a superveniência dos valores consagram o lugar da pessoa no cenário jurídico, no plano existencial da vida em seus efeitos, inclusive metajurídicos. Eles não se impõem, mas naturalmente se apresentam em ponto de fuga como nos olhos de La Gioconda, não obstante o enleio de seu sorriso enigmático, os olhos são ponto de partida e de chegada de qualquer ângulo do qual se observa a expressão pictória da genialidade davinciana.

A concepção – pelo menos em grande parte – dos direitos fundamentais (assim, como, em especial, os direitos humanos) encontra seu fundamento na dignidade da pessoa humana, quando contrastada com a noção de dignidade na condição de um direito (funda­mental) à proteção e promoção dessa dignidade. Autores como Waldrom (2007) se referem a uma "dualidade de usos", visto que a dignidade opera tanto como o fundamento (a fonte) dos direitos humanos e fundamentais, mas também assume a condição de conteúdo dos direitos.[4] Tal dualidade, de qualquer sorte, não representa uma incompatibilidade entre os dois usos da dignidade, aspecto que se impõe seja aqui frisado, ainda que não resulte desenvolvido. Nesse passo, impõe-se seja ressaltada a função instrumental integradora e hermenêutica do princípio,[5] na medida em que este serve de parâmetro para aplicação, interpretação e integração não apenas dos di­reitos fundamentais e das demais normas constitucionais, mas também de todo o ordenamento jurídico.[6] De modo todo especial, o princípio da dignidade da pessoa humana – como, de resto, os demais princípios fundamentais insculpidos em nossa Constituição – acaba por operar como critério ma­terial no âmbito especialmente da hierarquização que costuma ser levada a efeito na esfera do processo hermenêutico, notadamente quando se trata de uma interpretação sistemática.[7] Nesse contexto, a despeito de já se ter apontado – e, na época, não sem boa dose de razão – para a ausência, entre nós, de experiências jurisprudenciais mais avançadas no que respeita à aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana,[8] o fato é que, cada vez mais, se encontram decisões dos nossos Tribunais, valendo-se da dignidade da pessoa como critério hermenêutico, isto é, como fundamento para solução das contro­vérsias, notadamente interpretando a normativa infraconstitucional à luz da dignidade da pessoa humana, muito embora o incremento em termos quantitativos nem sempre corresponda a uma fundamentação consistente da decisão (SARLET, 2012, p. 94-96).

O complemento com o tema do afetivo instalou-se no desenvolvimento e aprofundamento da compreensão das relações familiares, tendo em vista o primado da estima imaterial com suficiente força, inclusive para impedir execução de alguns objetos, cujo elenco processual protege em função de um valor que não se pode categorizar como venal. A propósito, vale mencionar o seguinte ponto de vista:

“[…] a afetividade, traduzida no respeito de cada um por si e por todos os membros — a fim de que a família seja respeitada em sua dignidade e honorabilidade perante o corpo social — é, sem dúvida nenhuma, uma das maiores características da família atual." (OLIVEIRA, 2002, p. 233)

A despeito de variáveis identificadas no conteúdo conceitual de família e do próprio pluralismo jurídico, o constituinte indica o caminho para o entendimento de novos paradigmas para uma preservação e mutualidade no respeito das relações travadas no seio familiar quanto à proteção especial que a ela é destinada. Identificar de antemão é desafiador, mas jamais deve-se perder de vista a diferenciação própria que o constituinte procurou dar a cada espécie familiar. Contudo, é inegável que todas as espécies de família são faces de uma mesma realidade. A mudança reclamada pela sociedade não ocorreu de maneira separada para cada uma delas. Ao contrário, as diversas maneiras pelas quais homens, mulheres e filhos desenvolviam seus laços afetivos faziam parte de uma mesma realidade, cercada por características comuns que não suportavam mais a estrutura patriarcal enraizada nos setores conservadores de nossa sociedade e prevista numa legislação que estava em completa desarmonia com a realidade nacional (OLIVEIRA, 2002, p. 229).

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Os termos de uma família correspondem ao seu limiar, considerando-se que, no diálogo entre a família e o Estado, se destaca a compreensão entre o patriarcado e o matriarcado como igualmente relevantes na composição da sociedade, bem como na responsabilidade pela configuração, reafirmando o que já fora dito, a cerca das relações tanto sociais como jurídicas pressupondo base socioafetiva.[9]

A responsabilidade familiar naturalmente encampa a questão da prole e de todo o complexo que tal envolvimento demanda e desdobra. A projeção jurídica, portanto, não distoa de tal demanda social. Em retomada à observação anterior, vale sublinhar que o desenvolvimento pleno visado é conclusivamente resultante da formação sadia da criança no seio familiar.

“[…] o status, em primeiro lugar, não é considerado como a posição do indivíduo no agregado, antes como uma conseqüência do fato de que o indivíduo pertence ao grupo, e, em segundo lugar, os estados pessoais não são mais somente dois (civitatis e familiae), mas podem ser muitos e de variadas importâncias, 'de acordo com o alcance das relações jurídicas que a eles se relacionam'” (PERLINGIERI, 1997, p. 133).

A abordagem alcança a importância do reconhecimento que ultrapassa a mera concepção orgânica retornando ao cerne das reflexões desta pesquisa – o afeto – vínculo de espontânea constituição, sempre observando as singularidades envolvidas; em termos recentes o Superior Tribunal de Justiça assim se manifesta. O Recurso Especial provido do STJ; REsp 833.712; Proc. 2006/0070609-4; RS; Terceira Turma; Relª Min. Fátima Nancy Andrighi; Julg. 17/05/2007; DJU 04/06/2007; p. 347, assevera que, em matéria de DIREITO CIVIL, notadamente de FAMÍLIA (RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE E MATERNIDADE. VÍNCULO BIOLÓGICO. VÍNCULO SÓCIO-AFETIVO. PECULIARIDADES), que a adoção à brasileira, inserida no contexto de filiação socioafetiva, caracteriza-se pelo reconhecimento voluntário da maternidade, paternidade, na qual, fugindo das exigências legais pertinentes ao procedimento de adoção, o casal (ou apenas um dos cônjuges/companheiros) simplesmente registra a criança como sua filha, sem as cautelas judiciais impostas pelo Estado, necessárias à proteção especial que deve recair sobre os interesses do menor. – O reconhecimento do estado de filiação constitui direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, que pode ser exercitado sem qualquer restrição, em face dos pais ou seus herdeiros. – O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, estabelecido no art. 1º, inc. III, da CF/88, como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, traz em seu bojo o direito à identidade biológica e pessoal. – Caracteriza violação ao princípio da dignidade da pessoa humana cercear o direito de conhecimento da origem genética, respeitando-se, por conseguinte, a necessidade psicológica de se conhecer a verdade biológica. – A investigante não pode ser penalizada pela conduta irrefletida dos pais biológicos, tampouco pela omissão dos pais registrais, apenas sanada, na hipótese, quando aquela já contava com 50 anos de idade. Não se pode, portanto, corroborar a ilicitude perpetrada, tanto pelos pais que registraram a investigante, como pelos pais que a conceberam e não quiseram ou não puderam dar-lhe o alento e o amparo decorrentes dos laços de sangue conjugados aos de afeto. Dessa forma, conquanto tenha a investigante sido acolhida em lar adotivo e usufruído de uma relação socioafetiva, nada lhe retira o direito, em havendo sua insurgência ao tomar conhecimento de sua real história, de ter acesso à sua verdade biológica que lhe foi usurpada, desde o nascimento até a idade madura. Presente o dissenso, portanto, prevalecerá o direito ao reconhecimento do vínculo biológico. Nas questões em que esteja presente a dissociação entre os vínculos familiares biológico e sócio-afetivo, nas quais seja o Poder Judiciário chamado a se posicionar, deve o julgador, ao decidir, atentar de forma acurada para as peculiaridades do processo, cujos desdobramentos devem pautar as decisões.

A espontaneidade enseja interpretações doutrinárias que conduzem a uma reflexão mais acurada sobre o papel do afeto na constituição da unidade familiar:

“O status de filho é um direito garantido à pessoa, porquanto a ordem jurídica vale-se de presunções legais, reconhecimentos voluntários ou até mesmo imposições através de sentenças judiciais, com o fito de fornecer uma identidade familiar àquele que não a detém de modo integral” (QUEIROZ, 2001, p. 40),

O Estado em legislação recente também se pronuncia na forma do art. 1.593, caput do Código Civil, quando este dispõe que o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem. Convém frisar que é largamente conhecido que o parentesco civil se constitui naquele decorrente de causas outras que não a consaguinidade, como, por exemplo, a adoção, correspondendo a um instituto que já não depende da família no seu sentido mais ortodoxo, tampouco do incompatível pátrio-poder.     

O entendimento de Pontes de Miranda de que o direito é o mundo dos fatos jurídicos (Pontes de Miranda. Tratado, v. II, § 159, p. 183) ilustra um positivismo moderado na medida em que a lei pode ser omissa, mas o Direito não. Existem fatos que importam ao direito por trazer consequências tais que, enquanto modificadoras, promovem a criação ou extinguem situações jurídicas, ou transformando situações jurídicas existentes. Esses fatos importam ao direito. Eles, como se admite amplamente, criam, modificam, extinguem ou transmitem direitos – são ocorrências do mundo dos fatos com interesse para o direito, admitido o fato jurídi­co como de natureza constitutiva. A afetividade é um desses fatos que podem gerar efeitos jurídicos de, até mesmo, criar o parentesco civil por outra origem. A norma comentada abre para o sistema, curiosa e nova forma de identificação de parentesco em linha reta. A afetividade, nesse sentido, institucionaliza-se como conceito legal indeterminado e, como tal, necessita de interpretação integrativa do juiz, de modo a completar o sentido da norma no caso concreto e, por conseguinte, criar laço de paren­tesco por outra origem. Essa integração pode dar-se, também, por ato de vontade das partes, como ocorre quando se dá o reconhecimento de filho que não tem laços de sangue com aquele que manifesta a vontade de declarar-se pai ou mãe, ou que se conduziu em sua vida privada de maneira a criar esse vínculo de outra origem.

Outrossim, em reafirmação dos laços de afetividade como orientadores da sociedade familiar, é possível afirmar que a mesma em relação à interpretação singular do Código Civil criou a possibilidade de laços de filiação encontrarem gênese na afetividade. O melhor da criança não é a manipulação, pela mãe, por exemplo, de dados sobre a verdade biológica do filho para afastar da criança o pai que a criou e que com ela mantém laços de afetividade, apenas porque a mãe da criança já não tem para com homem que registrou seu filho o mesmo relacionamento de marido e mulher que com ele mantinha, ao tempo da formalização, por reconhecimento regular, da paternidade da criança. A propósito, na doutrina pesquisada, é mencionado interessante caso que se entendeu pela ilegitimidade da representação do filho pela mãe, que se mostrou atuando com evidente conflito de seus interesses com os direitos personalíssimos do filho, diante da pretensão que trouxe, a juízo, de nulidade de registro civil para a exclusão da paternidade do menor, pretensão essa nascida mais como fruto da dificuldade de relacionamento que a mãe tinha para com o pai afetivo da criança, que, propriamente, como decorrência do zelo para resguardo de eventual direito do representado incapaz (JUNQUEIRA, 2006, p. 483). Cumpre sublinhar as questões patrimoniais ou de poder econômico que, não raro, encontram-se, por assim dizer, minimamente, nas vizinhanças das relações familiares, e, embora nos termos de uma introdução a delicado tema em horizontes históricos, vale um anacronismo pelo fato de permanecer o potencialmente nocivo individualismo possessivo que compromete a natureza humana na trama de interesses, satisfações, equivocada felicidade e poder.

A modernidade e a pós-modernidade pareceram novamente declinar, não obstante, suas perspectivas de prosperity, sacrificando humanidade, alteridade e afeto em nome do referido individualismo que não se separou da posse ou do liberal. E, nesse aspecto que envolve a política e o poder porque indissociáveis do Estado, as considerações sobre o capitalismo não podem ser dispensadas, de modo que é possível afirmar que a modernidade introduziu a competição, e o sistema capitalista desencadeou muitas transformações sociais. Impôs um novo tipo de planejamento individualista que estabelece responsabilidades de cada um sobre o seu destino. É a busca utilitarista do sucesso individual. Se a mais significativa transformação na humanidade antes da modernidade foi a Revolução Neolítica quando o homem iniciou a agricultura estável e o estabelecimento dos primeiros núcleos, nada se compara ao impacto da modernidade. Os séculos XIX e XX consolidam a estrutura moderna baseada na concentração urbana, na produtividade industrial acelerada e na valorização da razão. O Estado também assumiu um papel nunca conhecido antes com graus diferenciados de participação e democracia. Vale ainda dizer que a modernidade também criou as classes burguesa e operária e os enormes contrastes de riqueza e pobreza. Apesar das conquistas importantes de direitos humanos, o individualismo é elevado ao patamar de paradigma de uma sociedade que substituiu as antigas identidades compostas por clãs e famílias. O indivíduo moderno busca estabilidade no trabalho, mas não nas relações pessoais e coletivas. O mercado desenraiza as pessoas (HOGEMANN, 2012a, p.1-2).[10]

A busca pela segurança pode sobrepor-se à da família no sentido de se interpretar que mais importante do que a constituição de uma célula familiar saudável preocupada, sobretudo, com a boa e refinada formação de seus membros, é a barbárie competitiva do mundo profissional, ou capitalista, ou burguês, produzindo pessoas desajustadas e incapazes de estabelecer um relacionamento por força de fatores naturalmente desumanos, fabricados, artificiais, ou até mesmo virtuais que não favorecem a participação efetiva e pessoal de cada indivíduo na formação e no convívio social.

5. A pavimentação do caminho da democratização do núcleo familiar

A modernidade celebrava os frutos de uma sociedade liberal, sobretudo, a partir do século XIX. Uma era privada como espaço de satisfação e de cuidados da vida emocional, a estimada realidade tornou-se efetiva mui recentemente. O modelo tradicional foi significativamente alterado. Dessa maneira, por exemplo, na maior parte dos países ocidentais, inclusive no Brasil, o lar marital conheceu um declínio,[11] tendo havido, em seguida e em consequência, a supressão da figura do chefe da família. Além disso, do ponto de vista estrutural, diversos fenômenos sócio-demográficos contribuíram para a alteração radical da vida familiar.

Quanto ao casamento, numerosos foram os casais que passaram a coabitar, independentemente de qualquer vínculo formal; tantos outros se divorciaram;[12] inúmeras as crianças nascidas de pais não-casados e que, até recentemente, seriam consideradas ilegítimas. Concomitantemente, mais mulheres começaram a trabalhar fora e a compartilhar os encargos econômicos da família. Para tanto, adiaram o início da vida conjugae em prol de uma trajetória profissional, passando a ter filhos cada vez mais tarde, quando já dotadas de alguma dependência financeira.[13].

A dinâmica do processo mencionado fora acompanhado com atenção pela legislação e pela jurisprudência brasileiras, que tiveram nas duas últimas décadas, inegavelmente, um papel promocional na construção do novo mo­delo familiar. Tal modelo vem sendo chamado, por alguns especialistas em sociologia, de democrático,[14] correspondente, em ter­mos históricos, a uma significativa novidade, em decorrência da inserção, no ambiente familiar, de princípios tais como a igualdade e a liberdade[15].

A questão da democracia no Brasil tem, nesse contexto, relevante contributo, uma vez que o modelo democrático de família, em termos sociológicos, a inclinação da família contemporânea é tornar-se um grupo cada vez menos formalizado, menos hierarquizado e independente de laços consangüíneos, e cada vez mais ba­seado em sentimentos e em valores compartilhados.

A partir da década de 1960, no mundo ocidental, a família já dá indícios de tornar-se mais atraente porque um de seus prin­cípios fundadores passa a ser o respeito, tanto dos maridos com relação às mulheres, quanto dos pais em relação aos filhos — com o reconhecimento desses como pessoas —, alterando significativa­mente as relações de autoridade antes existentes entre os seus membros.[16] Ademais, o ambiente de (habitualmente reconhecido) de certa igualdade de tratamento entre os cônjuges, inclusive garantida por lei,[17] passou a caracterizar o grupo fami­liar, também contribuindo para a relevante mudança que permitiu a ampliação, tempos depois, dos espaços de autonomia, crescimen­to individual e auto-afirmação de cada membro dentro do grupo.

Os indivíduos das sociedades contemporâneas ocidentais não podem ser comparados aos das gerações precedentes, dado o imperativo atual de se tornarem in­divíduos originais e únicos. Em consequência, a família modificou-se para produzir tais indivíduos, podendo-se notar dois momentos distintos ao longo do século XX. Até à década de 1960, a comunidade familiar ainda permanecia como uma unidade totalizadora, a servi­ço da qual agiam seus membros; a partir de então, caracteriza-se por uma nova concepção dos indivíduos em relação ao seu grupo de pertencimento, na medida em que eles se tornam, como membros, mais importantes do que o conjunto familiar: o indivíduo único, cuja verdadeira natureza deve ser respeitada e incentivada.

O processo democrático está alcançando a família porque dela também demandado. A família está se tornando democrati­zada, conforme modos que acompanham processos de democracia pública; e tal democratização sugere que a vida familiar poderia combinar escolha individual e solidariedade social. De acordo com um dos principais teóricos desta concepção, a democratização no contexto da família implica igualdade, respeito mútuo, autonomia, tomada de decisão através da comunicação, resguardo da violência e integração social, o que é sustentado por Giddens em sua A terceira via: reflexões sobre o estado atual e o futuro da social-democracia.

“Os relacionamentos familiares democráticos ensejam respon­sabilidade compartilhada pelo cuidado da criança, especialmente maior partilha entre mulheres e homens, na medida em que, na sociedade atual, as mães arcam com parcela desproporcional dos custos, embora desfrutem de parcela também desproporcional das recompensas emocionais dos filhos. Quanto aos filhos, os pais não mais assumem como missão transformá-los em decorrência de princípios exteriores” (GIDDENS, 2000, p.99).

A autori­dade parental dilui-se na noção de respeito à originalidade da pes­soa (do filho), valorizando-se outras qualidades que não a obediên­cia e o zelo pela tradição. No seio familiar, a educação deixa de ser imposição de valores, substituindo-se pela negociação e pelo diálogo. Os pais, então, colocam-se na posição de ajudar os filhos a se tornarem eles mesmos, sendo este considerado atualmente o melhor interesse da criança e do adolescente. Nessa família democrática, a tomada de decisão deve ser feita através da comunicação, através do falar e do ouvir. Entre marido e mulher, busca-se atingir o consenso; entre pais e filhos, a conver­sa e o diálogo aberto. Mas tampouco falta autoridade na família; é, no entanto, uma autoridade democrática que ouve, discute e argu­menta. Sustenta-se que a autoridade deve ser negociada em relação aos filhos. Não há espaço para a tirania na família democrática, nem por parte dos pais, nem por parte dos filhos. Em síntese, segundo Giddens (2000; p.99), a família democrática caracteriza-se pelos seguintes tra­ços distintivos: igualdade emocional e sexual, direitos e responsa­bilidades mútuas, guarda compartilhada, co-parentalidade, autori­dade negociada sobre os filhos, obrigações dos filhos para com os pais e integração social.

Ora, a família democrática nada mais é do que a família em que a dignidade de seus membros, das pessoas que a compõem, é res­peitada, incentivada e tutelada. Do mesmo modo, a família "dig­nificada", isto é, abrangida e conformada pelo conceito de dignida­de humana, é, necessariamente, uma família democratizada. A acepção de família é plurivalente, razão pela qual o desenvolvimento deste trabalho se dará acolhendo concepção que necessariamente irá apoiar-se na visão antropológica, preenchida pela valoração sociológica, filosófica e histórica, em apreço às garantias geradas pela Constituição Federal de 1988 e posteriores modificações, sem se perder de vista a legislação infraconstitucional pertinente ao tema, e o direito fundamental por excelência, buscando a concretização do referido direito com a proteção e elevação sócio-familiar do indivíduo. Trata-se, em resumo, de família que sai da esfera hierarquizada e engessada para uma esfera própria baseada no comprometimento com a afetividade e no crescimento e realização da personalidade de cada ente familiar.

Sendo a família a base da sociedade, mudanças na família ge­ram mudanças sociais. Quanto mais famílias democráticas, maior o fortalecimento da democracia no espaço público, e vice-versa. Além disso, e evidentemente, quanto mais democracia houver nos pequenos grupos, mais democrática será a sociedade na qual eles coexistem. Daí a mudança que se notou em nova codificação civil. É a valorização da pessoa humana que produz uma dinâmica para repersonalização. Nesse sentido, na medida em que o Direito Civil, ao superar a ótica patrimonialista adotando uma dinâmica de valorização da pessoa humana, como titular de direitos personalíssimos, num movimento de repersonalização leva como consequência direta à conclusão de que violar qualquer dos direitos da personalidade importa necessariamente em afronta à dignidade. E assim sendo, mesmo a proteção da propriedade revela-se como forma de garantir a dignidade da pessoa humana. O direito à identidade, à liberdade, à igualdade, à existência, à segurança, à honra, à vida privada e ao desenvolvimento da personalidade, bem como os bens jurídicos da vida, do corpo, do espírito e da capacidade criadora, todos se encontram representados na dignidade, próprio cerne de cada preceito constitucional relativo aos direitos da pessoa humana. Outra importante alteração do novo Código Civil foi a substituição do próprio título do Capítulo II, que antes tratava “Da Filiação Legítima”, e agora, com maior amplitude, trata simplesmente “Da Filiação”. Verifica-se, portanto, a grande influência do dispositivo constitucional que afasta qualquer designação discriminatória em relação à filiação no Brasil (art. 227, § 6º, da CF/1988), reproduzindo o art. 1.596 do Código Civil o teor do texto constitucional. Mais adiante o novo diploma revisa os preceitos relativos à contestação do marido em relação à legitimidade do filho nascido da mulher, adequando tal entendimento à jurisprudência dominante do país (HOGEMANN, 2012b, p. 13).

A pavimentação do caminho de construção da família irá se constituir a partir dos diálogos e dialéticas recorrentes no âmbito de suas relações; a afirmação do patriarcado ou matriarcado traz consigo, inicialmente, ponto de reflexão que se constitui ainda em um atual debate sobre o papel de cada um na sociedade e, nesse sentido, as figuras masculina e feminina hão de suscitar sensíveis releituras e transformações, as quais serão também objeto da apreciação jurídica. O projeto de renovo social familiar, assim desenvolvido, indica que o caminho constitucional do afeto como amálgama das relações familiares toma em perspectiva hodierna o renovo da compreensão da célula-mãe – instituto primeiro da sociedade – que recepciona a norma fundamental, por um lado e que por sua vez, tem na pretensa efetividade da mesma atenção detida sobre as transformações que caracterizam a família para além do que se possa prever inicialmente. Nesse sentido, o papel da família, do Estado e do Direito vêm a capitular o fluxo textual seguinte da pesquisa a corroborar, depurar e constituir, como que por tessitura cuidadosa, as relações que, embora amalgamadas, não se portam de modo dissociado e desconstruído. Há um liame que o afeto interpõe no curso das intervenções. Em consequência, os novos parâmetros da lei civil familiar estão inspirados em valor que não pode ser concebido em apropriações corruptíveis por questões de gênero ou venais. Um dos conceitos basilares do Direito das Famílias e do Direito Constitucional, a filiação, passa por uma grande transformação nuclear. Fruto de uma sociedade que se constituiu sob os alicerces do patriarcalismo exacerbado. Os ventos da transição democrática, ao inaugurarem um modelo de Estado Democrático de Direito, fundado no bastião maior da dignidade da pessoa humana, fizeram sentir novos ares também ao modelo, já superado das relações filiais acolhido pelo Código Beviláqua. Ultrapassou-se a distinção entre filhos legítimos e ilegítimos, um novo status de filiação se configura, diante de novas posturas sociais e constitucionais, sobrepondo o afeto a conceitos jurídicos esquemáticos antigos e que já não mais dão conta das complexas relações intersubjetivas dos novos tempos (HOGEMANN, 2012b, p.6-7).

A despeito dos problemas advindos é possível vislumbrar, em estudo comparativo, o aprimoramento da legislação no conjunto do trabalho desenvolvido para construção de uma sociedade reafirmadamente livre, justa e solidária na travessia do caminho jurídico, político e social entre supressões e concessões de direitos. Hodiernamente, o direito fraterno encontra-se ganhando significante espaço acadêmico, uma vez que também guarda, em sua conceituação, a premissa de que o homem é sujeito e não objeto da sociedade. A nova visão atribuída ao fenômeno jurídico é contrária à violência, o que fomenta o surgimento de um direito inclusivo, universal e, portanto, afetivo, pautado na dignidade humana. Segundo Resta (1992, p. 30), fraternal é o direito de compartilhar, através de um pacto entre iguais, que possuem, dessa forma, a mesma dignidade. Para tanto, o sujeito deve ser reconhecido como livre e digno, a fim de ser considerado efetivo sujeito de direito, entendendo-se que a sua liberdade só existe quando estiver vinculada à realização de uma escolha própria. A dignidade da pessoa humana deve ser convertida em um conceito jurídico, que possua um conteúdo mínimo, tornando-a uma categoria operacional e útil (HOGEMANN, 2013, p. 73).

São, por assim dizer, conteúdos o valor intrínseco da pessoa humana, o valor comunitário e a autonomia da vontade. Conjugam importantes anseios da pessoa em seu âmago, as quais se projetam no seio de uma sociedade igualmente enigmática, mas ainda em processo de investigação continuada não apenas do ponto de vista comportamental, como também do prisma motivador da pessoa em foro íntimo nas contradições naturais entre o pensamento e a ação sem preterir o sentir. A dignidade é, portanto, de plano um denominador que aproxima semelhantes apesar da diferença que certamente não cessa pretensão de distanciar a sociedade civilizada de uma convivência pacífica, por, naturalmente, não haver entendimento da complexidade e profundidade do todo que é o outro e, precisamente onde se encontra a alteridade vinculando as pessoas. Isso ocorre, apesar do potencial abismo entre os que se propõem a indeclinável caminhada nos seus projetos existenciais, condenados, por assim dizer, a serem livres, entendendo que mesmo a omissão implica escolha por não agir e, portanto, reincidindo, inevitavelmente, sobre a realidade das relações humanas avizinhadas ou potencialmente tangíveis pela ação ou omissão de uma pessoa.

Considerações finais

 É, nesse sentido, que o universal, a dignidade, a pessoa, o outro culminam em impreterível releitura da instituição família e sua trajetória que se revelaram tema central do presente estudo. A menção aos sobreditos aproximadores das diferenças incide sobre a necessidade de reexame já iniciado – mas com longo caminho a percorrer – do ponto nodal da questão dos membros da família. Em outros termos, a vinculação pela obrigatoriedade da coexistência e o ato de coibir pela força do Direito revelam-se indispensáveis.

A sociedade parece não estar totalmente preparada para viver a plenitude do entendimento da expressão humanidade que notáveis personagens da história decidiram por uma reação pacífica defender. Um foi crucificado por não ser legalista, mas demonstrar que a lei fora feita por causa do homem e não o homem por causa da lei, propondo, entre suas palavras mais centrais, amor ao próximo, uma fraternidade consciente e respeito mútuo. Outro se privou de sustento diante de um Estado que possuía uma referência a lordes, com câmara específica para os mesmo, sugerindo sensível contradição.

Esse ser humano, cujo nome pode ser traduzido como a grande alma, não lançou mão de outra arma a não ser o entendimento, a sabedoria, senão o amor – o cumprimento da lei como já fora mencionado, o que se contrapõe à postura que privilegia sobreposição de gênero e poder econômicos como determinantes das relações humanas.

 

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Notas:
[1] O tempo primeiro dos estudos sobre a família, bem como uma epistemologia deste mesmo estudo, é objeto de difícil precisão. Nesse sentido, tributa Friederch Engels (ENGELS, 1892, p. 6-7) ao suíço Johann Jakob Bachofen o pioneirismo na investigação da pré-história da família contemporânea. Sua obra, O direito materno: uma investigação sobre a gineocracia no mundo antigo, segundo sua natureza religiosa e de direito, concluída em 1861, baseada em descrições diretas de numerosos trechos da literatura clássica antiga, em lendas e mitos, sustentou que primitivamente os seres humanos viveram em completa promiscuidade sexual (que chamou heterismo), o que excluía a certeza da paternidade e, em consequência, as mulheres, como mães e, portanto, únicos progenitores conhecidos da jovem geração, mantinham completo domínio sobre o grupo (gineocracia). A passagem à monogamia, em que a mulher pertence a um só homem, incidia na transgressão de uma antiga lei religiosa, do direito imemorial que os homens tinham sobre as mulheres. O salto do "heterismo" à monogamia e do matriarcado ao patriarcado, segundo esse autor, processa-se sob concepções religiosas, realizadas por divindades, negando, assim, que fora o desenvolvimento das condições reais de existência dos homens o que determinou as transformações históricas na situação social recíproca do homem e da mulher, reforçando o que o título de famílias reconstruídas enuncia diante da pendular realidade de relação entre os gêneros (WALDYR FILHO, 2010, p. 42).

[2] Freud, crente convicto na superioridade masculina, infelizmente presumia que o senso de desamparo das mulheres devia-se à pretensa lástima de não terem pênis, e que os homens eram inseguros devido ao pretenso "medo de castração" universal. Aquilo de que tratamos neste fenômeno são os sintomas da guerra dos sexos, e não de diferenças bioló­gicas e anatômicas como tais). Inúmeros dados demonstram o quanto o controle dos homens sobre as mulheres se assemelha ao controle de um grupo sobre populações inermes. Como exemplo, consideremos a semelhança entre o quadro dos negros na América do Sul há cem anos e as mulheres daquela época, e mesmo de hoje. Negros e mulheres eram comparados a crianças; admitia-se serem emocionais, ingê­nuos, destituídos do senso de realidade, de modo que não se lhes confiava a tomada de decisões; supunha-se serem irresponsáveis, mas encantadoras (Freud acrescentava ao catálogo que as mulhe­res tinham uma consciência menos desenvolvida [superego] que a dos homens e que eram mais narcisistas). (FROMM, 2011, p187).

[3] O poder do pater familias sobre seus descendentes só foi diminuído no século IV d.C, quando foi criado o peculium castreme, que permitiu que os filhos que ocupassem cargos na corte imperial pudessem administrar diretamente os seus bens, sem o consentimento de seus pais; e no século V d.C., quando foi permitido que os advogados e eclesiásticos pudessem exercer diretamente seus direitos sobre os próprios bens, mesmo que seus pais continuassem vivos (ROLIM, 2010, p. 172).

[4] Cf. J. Waldrom, "Dignity and Rank", in: European Journal of Sociology (2007), p. 203-204.Sobre a interpretação sistemática e a hierarquização v., em especial, as obras referenciais de J. Freitas, Interpretação Sistemática do Direito, p. 49 e ss., bem como A. Pasqualini, Hermenêutica e Sistema Jurídico, p. 89 e ss.

[5] Cf. Hõfling, in: M. Sachs (Org.) Grundgesetz, p. 116.

[6] Neste sentido, já lecionavam H. C. Nipperdey, in: Neumann/Nipperdey/Scheuner (Org.), Die Grundrechte, vol. II, p. 23, analisando o modelo germânico e Maunz-Zippelius, Deutsches Staats-recht, p. 183. Entre nós, v. E. Pereira de Farias, Colisão de Direitos, p. 54. No mesmo sentido, mais recentemente e representando a orientação dominante, v. I. Dantas, "Constituição e Bioética (Breves e Curtas Notas)", in: A. Almeida Filho e P. Melgaré (Org.), Dignidade da Pessoa Humana. Funda­mentos e Critérios Interpretativos, São Paulo: Malheiros, 2010, p. 272, explorando o tema à luz do exemplo da liberdade de pesquisa.

[7] Sobre a interpretação sistemática e a hierarquização consultem-se, em especial, as obras fundamentais de Freitas, Pasqualini (p. 89 e ss

[8] Artigo de Lopes (1008, p. 112), intitulado, A dignidade da pessoa humana.

[9] Trata-se do vínculo que decorre da relação socioafetiva constatada entre filhos e pais — ou entre o filho e apenas um deles —, tendo como fundamento o afeto, o sentimento existente entre eles: melhor pai ou mãe nem sempre é aquele que biologicamente ocupa tal lugar, mas a pessoa que exerce tal função, substituindo o vínculo biológico pelo afetivo (GAMA, 2003, p. 482-483).

[10] O indivíduo é livre para escolher onde quer se encaixar como membro de um grupo e justifica sua escolha como busca de felicidade individual. Vários autores questionam, no entanto, os resultados dessa sociedade moderna, na medida em que a lógica do mercado leva a que até mesmo os seres humanos sejam tragados por essa dinâmica pérfida, que, na sociedade do vazio existencial, transforma o ser humano, absolutamente singular, em coisa própria ao consumo simbólico. A modernidade não resolveu as desigualdades e agrediu enormemente o meio ambiente. É preciso superar muitos aspectos da modernidade. Necessário se faz buscar novas configurações sociais menos individualistas. Está na hora de caminharmos para fora da modernidade e trocar individualismo por solidariedade, fundada no afeto e na alteridade (HOGEMANN, 2012a, p.1-2)..

[11] O poder marital no Brasil só acabou em 1988, com a promulgação da Cons­tituição, que estabeleceu, no art. 226, § 5°, a igualdade entre os cônjuges, embo­ra alguns autores tenham insistido em mantê-lo vivo sob o argumento de que a Constituição não havia revogado o art. 233 do Código Civil de 1916.

[12] Para uma análise da rotinização das separações nas classes médias brasileiras (1998).

[13] Evidentemente, o texto se refere às camadas médias da população, às quais, com efeito, se aplicam, com generalidade, as disposições dos códigos civis.

[14] Ver, de Anthony Giddens A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas, 1992. Ver, na mesma perspectiva.

[15] Segundo PlTTMAN: Family life in Western society since the Old Testament hás been a struggle to maintain patriarchy, male domination, and double standards in the face of a natural drift towards monogamous bonding (1993 p.6).

[16] Singly (1993;2001) A reinvenção da família. Label France, n. 39, abr. 2000, p. 3. Ver, também, do autor, Lê sói, lê couple e la famille. Que data (1996).

[17] Faz-se referência ao Estatuto da Mulher Casada, de 1962.


Informações Sobre os Autores

Edna Raquel Hogemann

Doutora e mestre em Direito pela Universidade Gama Filho/RJ. Especialista em Ética de la Investigación en Seres Humanos, da Red Latinoamericana y del Caribe, da UNESCO. Professora de Direitos da Personalidade do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu, da Universidade Estácio de Sá/RJ. Professora de Direito e Bioética do curso de Direito da Universidade Estácio de Sá

Litiane Motta Marins Araújo

– Mestre em Direito, Universidade Estácio de Sá, coordenadora do Curso de Direito da Universidade do GrandeRio/RJ, professora de Direito de Família, advogada


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