Resumo:A técnica conceitual erige um modelo hermético de raciocínio jurídico que visa assegurar certeza e previsibilidade às decisões judiciais. A técnica tipológica, por outro lado, viabiliza maior mobilidade sistêmica à interpretação. O uso adequado de cada técnica varia conforme a finalidade própria de cada instituto.
Sumário: Introdução. 1. A técnica da abstração de conceitos. 1.1 A Técnica conceitual no sistema jurídico brasileiro. 1.2 Interpretação jurídica conceitual. 2. A técnica tipológica. 2.1 Técnica tipológica no sistema brasileiro. 2.2 Interpretação jurídica conceitual. 3 conclusão
INTRODUÇÃO
A teoria da evolução biológica de Darwin significou uma alternativa ao paradigma, até então dominante, entre os naturalistas da época, de um universo estático, idêntico, em sua essência, à maneira como surgiu das mãos de um Criador. Em substituição, foi proposto um conceito de universo em constante mudança, por meio do qual Darwin concluiu que a mutabilidade, não a estase, é a ordem natural dos seres vivos e da própria espécie humana.[1] Na taxonomia da época, as espécies eram consideradas estáticas e imutáveis, segundo um modelo classificatório rígido, que fixava a correspondência integral de caracteres comuns às espécies.
A aceitação da teoria da evolução tornou esse método de classificação inadequado. Percebeu-se que fatores como a especiação, o entrecruzamento e a mutação genética determinam alterações morfológicas e filogenéticas (phyle= tribo, gênesis= origem) nos organismos,[2] o que demandou novo modelo de sistematização (classificação filogenética de organismos) apto a comportar hipóteses evolutivas testáveis. A determinação de espécies passou a ser considerada, então, não mais de maneira rígida, mas passou-se a admitir espécies transitivas entre um e outro modelo em razão, principalmente, da dinâmica de caracteres, observada pela Biologia evolutiva. Essa nova maneira de ordenar o conhecimento baseou-se em tipos, que eram formas básicas, com base nas quais se admitiam as transições contínuas e fluidas. Já no século XX, esses modelos de ordenação lógica do conhecimento, próprios das ciências naturais, foram absorvidos pelas ciências humanas, inclusive pela ciência jurídica.
1 A TÉCNICA DA ABSTRAÇÃO DE CONCEITOS
O dogma do sistema fechado, completo, perfeito, isento de lacunas, foi preconizado pelo racionalismo moderno na crença de que o rigor axiomatizante dos conceitos pudessem abranger toda a realidade. Os conceitos carregam essa pressuposição de exatidão do conhecimento. São construídos mediante a unificação de características comuns aos objetos: os atributos incomuns, as especificidades, são abstraídos, a fim de possibilitar a subsunção do conceito na integralidade dos seus elementos constitutivos.
Os conceitos promovem o seccionamento, a redução da realidade. Após concluídos, os fatos cuja identidade se verificar são neles subsumidos.[3] O conteúdo e a extensão deles variam na proporção inversa de sua generalidade. Ou seja, quanto maior o conteúdo significativo do conceito, menor será a extensão da realidade designada, no entanto mais denso e preciso o conceito. Quanto mais compacto, menos conteúdo, mais amplo será este, tornando-se menos informativo, mais poroso, rarefeito de sentido. Nesse aspecto, quanto menor o número de características do conceito, maior sua generalidade e maior, também, a distância da realidade. O grau de abstração e generalidade, portanto, vai balizar o espectro de subsunção e, com isso, a delimitação da realidade designada.
A relação entre conceitos é vertical: opera-se a subsunção dos conceitos inferiores nos superiores, num processo de contínua generalização do conteúdo, alcançando-se, a partir da espécie, as categorias de classe e gênero.[4] A operação leva em consideração a totalidade das características e é feita em termos binários de sim ou não – ou tudo ou nada. Essa relação é excludente: só se verifica a subsunção no conceito abstrato superior, mais amplo, caso o inferior corresponda, em suas características essenciais, à integralidade daquele.
1.1 A Técnica conceitual no sistema jurídico brasileiro
O conceito abstrato, dada a rigidez de forma, é utilizado nos ramos jurídicos que demanda maior índice de segurança jurídica e previsibilidade das decisões judiciais em sua operacionalização. Daí que, num Estado Democrático de Direito, ressalta-se como orientação metodológica do Direito Penal, dada a teleologia garantista desse setor. O mesmo acontece no Direito Tributário, no qual uma relação fática de poder estatal – de coerção sobre o patrimônio individual – transmuta-se em relação jurídica orientada pelas garantias individuais, o que exige conceitos seguros para a legitimação da constrição sobre o patrimônio particular.
Além dos ramos jurídicos de conotação acentuadamente publicista, o pensamento conceitual também funciona como vetor setorial interpretativo dos demais ramos jurídicos É o que acontece, por exemplo, no Direito Civil,[5] quanto aos direitos reais (art. 1.225, CC); no Direito do Trabalho, para a definição de empregado e empregador (art. 3º e 4º, CLT); no Direito Empresarial, para a caracterização da atividade empresária (art. 966, CC); no Direito do Consumidor, para definir consumidor e fornecedor (art. 2º e 3º, CDC) e, conseqüentemente, o regime jurídico consumerista, etc.[6]
1.2. Interpretação jurídica conceitual
O pensamento conceitual reflete o formalismo de ideias, pela aplicação de um monismo metodológico entre as ciências naturais e sociais, tal como preconizado pelo positivismo filosófico. Segundo os fundamentos teóricos desta técnica, as ciências normativas teriam a função reducionista de apenas descrever a realidade constatada na experiência – função meramente descritiva. Assim, as proposições jurídicas se equivaleriam às leis causais das ciências da natureza, segundo o princípio da imputação e da causalidade. Nesse racionalismo jurídico exacerbado, o princípio da separação dos poderes tem significado rígido-liberal, reduzindo a decisão judicial a um simples ato lógico-cognoscitivo de subsunção do fato a norma – fattispecie – e conformando a interpretação jurídica pelas bases da teoria do conhecimento, como um mero ato cognitivo instrumentalizador do sentido pré-concebido pelo Legislador. Essa operação – que, aparentemente se utiliza exclusivamente de mecanismos lógico-dedutivos – permitiria conferir cientificidade ao Direito e, por consequência, a confecção de decisões judiciais certas e seguras.
2 A TÉCNICA TIPOLÓGICA
Tipo, do latim typus, significa modelo,[7] figura-padrão, forma básica, standart. Diferentemente dos conceitos – que abstraem as peculiaridades do objeto, em favor de um padrão comum de características –, os tipos são formados com base na realidade designada, sem a abstração do incomum. O tipo mantém íntegra a realidade apontada, respeitando suas especificidades. Assim, a relação entre os tipos não é vertical, como a dos conceitos, mas horizontal. Não há subsunção entre tipos, mas ordenação e coordenação entre eles, por meio de uma combinação de características. Os tipos são ordenados em série ou planos. Fala-se, então, em objetos mais ou menos “típicos”, permitindo-se zonas transitivas entre uma e outra espécie de séries ininterruptas, em vez de essências estanques.
O tipo tem como características distintivas, em relação ao conceito, a abertura, a plasticidade, a graduabilidade, a totalidade e o sentido. Pela abertura, enquanto no conceito se faz necessário verificar todas as características para a subsunção, no tipo podem faltar algumas notas que, mesmo assim, não há juízo da sua exclusão. A não verificação de uma característica pode ser compensada por outra de maior importância. Assim, enquanto o conceito tem uma série fixa e necessária de características para erigir uma definição rígida, descritiva, o tipo tem uma série indeterminada de notas tão-somente descritíveis. Em vista da plasticidade, os tipos não têm limites definidos e precisos como os conceitos. A abertura deles importa a elasticidade de suas fronteiras, com contornos fluídos, indefiníveis, insuscetíveis de subsunção. Pela totalidade, os tipos não são decorrentes tão-somente de uma soma de caracteres, como o conceito, mas formam um complexo de notas – exprimem uma imagem total que prescinde de algumas características para sua verificação. No que concerne à graduabilidade, o tipo não opera pelo juízo de exclusão, tal como no conceito, mas admite transições fluidas, móveis, graduáveis entre um e outro objeto, permitindo que um objeto seja mais ou menos típico, e, não, simplesmente, a dicotomia excludente típico ou atípico – tudo ou nada – própria do conceito. Por fim, o sentido caracteriza a riqueza de conteúdo do tipo: a sua materialidade, em contraposição ao formalismo do conceito. Os tipos não são construções abstraídas da realidade; pelo contrário, referem-se diretamente à realidade e interagem com ela.[8]
2.1 Técnica tipológica no sistema brasileiro
O ordenamento utiliza os tipos nos ramos em que se exigem maior maleabilidade e maior flexibilidade no manuseio dos institutos. Daí ser amplamente utilizado no Direito Privado,[9] no qual prevalece o princípio da autonomia privada. É nos contratos que se observa, com maior plenitude, a manifestação dos tipos, mediante a criação de figuras mistas.
Os tipos contratuais dividem-se em tipos legais e tipos extralegais.[10] Os tipos extralegais são os contratos inominados, verificados na prática jurídica, mas não consignados na legislação. Também chamados de tipos sociais, são a origem dos tipos legais. O uso reiterado pela sociedade impulsiona-lhe o acolhimento pela legislação. Já os tipos legais são os contratos nominados, entendidos também como tipos estruturais, pois utilizam a previsão legal como modelo básico para sua formação, interpretação e integração. Os tipos estruturais são consolidados com base na realidade: resultam da análise e da apreensão jurídico-social das figuras contratuais mais frequentemente utilizadas nas relações civis e empresariais, para modelar um padrão, um núcleo comum às diversas espécies contratuais. É o que se verifica, por exemplo, com o clássico Contrato de Compra e Venda puro (art. 481 a 532, CC); o Contrato de Transporte (art. 730 a 756 do CC) – misto de contrato de trabalho e de locação – e, no âmbito do Direito do Trabalho, a figura do advogado empregado, que representa um contrato de representação (mandato) e de trabalho. Ressalte-se que esse setor, apesar de utilizar o conceito para a definição de empregado (art. 3º, CLT) e empregador (art. 2º, CLT), ancora-se, contudo, no tipo para definir a relação de emprego como um núcleo básico de elementos fático-jurídicos. Maior expressão desse pensamento reserva-se, ainda, ao campo das nulidades processuais, em que a sanção processual ao ato ilícito não é automática, mas guiada tipologicamente pelo princípio pas de nullité sans grief (art. 573, CPP, 244, CPC e art. 13, § 1º, Lei n. 9.099/95), por meio do qual faz subsistir a validade do ato, conceitualmente maculado de vício, caso não se ressalte prejuízo às partes.
2.2 A interpretação jurídica tipológica
Como alternativa ao racionalismo do modelo lógico-formal dos conceitos abstratos, o tipo proporciona uma operação material difusa, axiologicamente sensível à realidade, com maior aptidão para a solução justa do caso concreto. O tipo atende ao aspecto valorativo dos significados e considera a riqueza semântica das normas. Um texto normativo não é encarado como se tivesse apenas uma possibilidade interpretativa, mas é avaliado, coordenado e influenciado pela conexão fática das circunstâncias que o envolvem. A interpretação jurídica aqui não é realizada como técnica – como método lógico-cognoscitivo, silogístico –, mas seu aspecto volitivo também é levado em consideração, proporcionando uma função criativa ao juiz,[11] mediante a compreensão jurídico-social do quadro axiológico da situação, e não apenas uma explicação naturalístico-abstrata dos fenômenos.
3 CONCLUSÃO
O tipo e o conceito envolvem metodologias diferentes. O conceito busca o que há de comum nos objetos, abstraindo suas particularidades para formar modelos rígidos e cerrados. Já o tipo é permeável às peculiaridades de cada caso e admite zonas transitivas entre suas espécies. Enquanto o conceito se baseia numa lógica formal subsuntiva, o tipo utiliza uma lógica material difusa para a ordenação de objetos.
A conceituação jurídica confere segurança, estabilidade, certeza e previsibilidade às decisões, proporcionando cientificidade ao sistema, mas prejudica a promoção de justiça no caso concreto. Já a tipologia favorece a justiça individual, atentando-se às particularidades do caso concreto, mas prejudica a segurança jurídica e a certeza das decisões.
Conclui-se que o método tipológico e o conceitual não são excludentes ou prioritários, mas complementares. Tais categorias de pensamento jurídico não são dispostos alternativa ou aprioristicamente ao jurista no ordenamento. É na aplicação jurídica que a teleologia imanente a cada setor do Direito conduz a atuação do intérprete a transitar entre uma e outra direção, para legitimar o resultado da interpretação e possibilitar uma decisão jurídica justa, segundo uma modulação adequada da mens legis a cada caso, tal como verificado na jurisprudência consumeirista, em que o conceito de relação de consumo foi tipo e teleologicamente ampliada para incidir sobre a atividade bancária, securitária e sobre serviços públicos.
Informações Sobre o Autor
André Quintela Alves Rodrigues
Mestre em Filosofia do Direito (UFMG)