Resumo: O presente artigo tem por objetivo apresentar a teoria da prevenção especial em suas vertentes positiva e negativa, problematizando sua aplicação na realidade do caso concreto a partir do regime disciplinar diferenciado (RDD).
Palavras–Chave: Prevenção, Positiva, Negativa, Ressocialização, Inocuização, Regime Disciplinar Diferenciado.
Sumário: 1. Introdução 2. Prevenção Especial Positiva 3. Prevenção Especial Negativa 4. Regime Disciplinar Diferenciado 5. Considerações Finais. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Com a chegada da modernidade a humanidade toma novos rumos. Os velhos paradigmas são deixados para trás e a crença na razão e na ciência tomam o lugar da religião. Isso tem uma enorme repercussão nas figuras do crime e do criminoso, as condutas reprovadas deixam de ser os desvios verificados no Dogma da Santa Igreja e o criminoso deixa de ser personificado na figura do herege. Dessa forma, os penalistas modernos, à luz da racionalidade, procuram dar uma nova cara ao direito penal e ao processo penal, tentando trazer uma solução mais humanista para a questão do “por que?” e do “como punir?”. Neste novo contexto se torna inadmissível penas como o suplício de Damiens[1], trazido por Foucault na apresentação de sua obra clássica “Vigiar e Punir”. É preciso novas soluções, a pena não mais pode servir como uma retribuição, como um fim em si mesma. Surgem assim, as novas respostas as questões já suscitadas: o prevencionismo e a pena de prisão.
As teorias preventivas ou utilitaristas da pena imputam à pena a capacidade e o dever de prevenir novos delitos. Os seus defensores acreditam que através da pena é possível controlar o fenômeno da criminalidade. Desse modo, a pena é um mal para quem sofre, mas um bem para o corpo social, ou seja, a pena deixa de ser um fim em si mesmo e assume o papel de um meio para se chegar a um fim. Tais teorias dividem-se em duas vertentes, a prevenção geral e a prevenção especial.
A prevenção geral se refere à generalidade, ao corpo social e não exclusivamente ao indivíduo. Em sua versão negativa acredita ser capaz de dissuadir aqueles indivíduos que não delinqüiram e poderiam sentir-se tentados a fazê-lo. Ela parte de uma concepção mecânico-racional do ser humano, ou seja, em qualquer circunstância se realizaria a comparação custo – benefício. Dessa forma, busca-se prevenir novos delitos através da intimidação. Já na sua versão positiva, a criminalização estaria fundamentada em seu efeito positivo sobre os não criminalizados, não, porém para dissuadi-los pela intimidação, mas como um valor simbólico produtor de consenso, reforçador da confiança no sistema social em geral.
A prevenção especial, diferentemente da geral, esta focada no indivíduo. Ela busca controlar o fenômeno da criminalidade, não servindo de exemplo aos demais cidadãos, mas evitando que o cidadão que já delinqüiu volte a fazê-lo, seja por meio da reinserção na sociedade (prevenção especial positiva), seja por meio da total inocuização (prevenção especial negativa).
2. PREVENÇÃO ESPECIAL POSITIVA
A prevenção especial positiva age sobre o próprio delinqüente, “seguindo primeiramente o modelo moral e depois o médico-policial, tentou-se legitimar o poder punitivo atribuindo-lhe uma função positiva de melhoramento do próprio infrator”[2]. Desse modo, “para essa corrente, a finalidade do direito penal é prevenir novos crimes, ressocializando os seus autores, reeducando-os etc.; ou seja, o sentido do castigo é evitar a reincidência, razão pela qual a prevenção não se dirige a todos, mas a algumas pessoas em particular, os criminosos. O direito penal pretende em ultima análise a conversão do delinqüente em um homem de bem”[3]. Essa teoria defende que a pena é um bem para quem sofre e esta intimamente ligada as ideologia re: ressocialização, reinserção, reeducação, etc.. Munhoz Conde e Hassemer defendem que o objetivo de ressocialização “é útil para a sociedade, que pode reduzir as taxas de reincidência e com ela a de criminalidade a longo e médio prazos. E é útil para o delinqüente, que pode voltar a viver em liberdade sem que o delito cometido e a pena que acaba de cumprir o separem definitivamente de uma convivência social normal, em condições de igualdade com os demais cidadãos”[4]. Para Von Liszt, seu principal representante, a “função da pena e do direito penal era, portanto, a proteção de bens jurídicos por meio da incidência da pena sobre a personalidade do delinqüente com a finalidade de evitar futuros delitos”[5].
Apesar de muito aceita e apreciada ainda nos dias de hoje, a teoria da prevenção especial positiva sofre muitas críticas difíceis de serem rebatidas. Primeiramente, são comuns os casos de reincidência, ou seja, a pena não cumpre a função a qual se propôs. Isso se dá, muitas vezes, pelas condições do próprio sistema carcerário que ao invés de ressocializar, dessocializa, embrutece e corrompe o apenado, funcionando com uma verdadeira escola para o crime. Nas palavras do sábio mestre Zaffaroni, “é insustentável a pretensão de melhorar mediante um poder que impõe a assunção de papéis conflitivos e que os fixa através de uma instituição deteriorante”[6], além disso, “educar para a liberdade em condições de não-liberdade não só é de difícil realização como constitui uma utopia irrealizável nas atuais condições de vida nas prisões, cujos nocivos efeitos são amplamente conhecidos”[7].
Além disso, que poder tem o Estado e a sociedade para ambicionar a mudança do íntimo do individuo? Qual a legitimidade para obrigar a pessoa a abrir mão de seu estilo de vida em prol de uma cultura com base no comportamento do “homem médio”? Até que ponto podemos deixar de respeitar aquele ser e o seu estilo de vida em prol de um “bem comum”? No entanto, ao adentrar ao cárcere o apenado passa a ter um estilo de vida distinto do que está acostumado, passa a ter hábitos distintos, modos de vestimenta e de fala diferentes, acaba incorporando uma cultura carcerária. E, desse modo, o cárcere acaba por atuar como uma fonte corrente e viva de estigmatização. O apenado jamais conseguirá apagar as marcas deixadas pelo cárcere. Importantes exemplos são trazidos por Erving Goffman em sua obra “Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada”:
“Sabe, é realmente impressionante que você leia livros como este, estou surpreso. Pensei que você lesse novelas em brochura, coisas com capas sensacionalistas, livros assim. E aí você está com Claude Cockburn, Hugh Klare, Simone de Beauvoir e Lawrence Durrell! ’
‘Ele não achava que esta observação era um insulto: na verdade, acho que pensava que estava sendo honesto ao me dizer o quanto ele estava enganado. E é exatamente esse tipo de condescendência que se recebe de pessoas honestas quando se é um criminoso. ‘Imagine só!’, dizem elas. ‘Em certos aspectos você é igual a um ser humano!’ Não estou brincando, me dá vontade de acabar com elas.”[8]
Ou então,
“Querida Ahn Landers:
Sou uma menina de 12 anos que é excluída de toda a atividade social porque meu pai é um ex-presidiário. Tento ser amável e simpática com todo mundo, mas não adianta. Minhas colegas de escola me disseram que suas mães não querem que elas andem comigo, pois isso não seria bom para a sua reputação. Os jornais fizeram publicidade negativa de meu pai e apesar de ele ter cumprido sua pena ninguém esquecerá do fato.
Há algo que eu possa fazer? Estou muito triste porque não gosto de estar sempre sozinha. Minha mãe procura fazer com que eu saia com ela, mas quero a companhia de pessoas da minha idade. Por favor, dê-me algum conselho”.[9]
Com isso, longe de ressocializar, a pena de prisão destrói a vida do apenado, deixando ainda mais à margem aquele que sobrevive às más condições enfrentadas nos presídios. E por fim, acaba se prestando ao fim único de administração das massas inconvenientes, para que com a inocuização do “indivíduo perigoso”, para que com o “inimigo” preso, a população tenha sanado seu anseio por segurança e justiça.
3. PREVENÇÃO ESPECIAL NEGATIVA
A prevenção especial negativa, assim como a positiva, visa à pessoa do delinqüente, porém, diferentemente desta, acredita que é capaz de controlar o fenômeno da criminalidade através da inocuização do delinqüente não corrigível. Ela parte da premissa que a pena é um mal para quem sofre, mas um bem para o corpo social. Nas palavras do mestre Zaffaroni “para a prevenção especial negativa, a criminalização também visa à pessoa criminalizada, não para melhorá-la, mas para neutralizar os efeitos de sua inferioridade, à custa de um mal para a pessoa, que ao mesmo tempo é um bem para o corpo social”[10]. Nessa era de defesa social em que vivemos, contexto em que o direito penal se tornou um fetiche e que a sua maior virtude consiste na potencial capacidade de proteção de bens jurídicos, aquele ser não corrigível deve ser neutralizado para que os efeitos de sua personalidade “anti-social” não venham a repercutir e causar danos a sociedade. O “a-social” deve ser afastado, ele é um ser perigoso, que deve ser tratado como um inimigo, não é um ser digno de viver livre em sociedade, ele deve ser anulado, independente dos custos que isso possa lhe trazer, pois o importante aqui é a proteção da sociedade, a segurança e a justiça. Segundo Juarez Cirino, citado por Alexandre Cordeiro, “baseada na premissa de que a privação de liberdade do condenado produz segurança social, parece obvia: a chamada incapacitação seletiva de indivíduos considerados perigosos constitui efeito evidente da execução da pena, porque impede a pratica de crimes fora dos limites da prisão”[11].
A função de inocuização, incompatível com um Estado Democrático de Direito que preze pelos direitos fundamentais, no entanto, não é uma função manifesta exclusiva da pena. Geralmente, ela vem atrelada a teoria anterior para que quando as ideologias “re” fracassem, a neutralização seja uma saída, talvez a única para o discurso dominante. Para Zaffaroni, “em geral, ela não se enuncia como função manifesta exclusiva, mas sim em combinação com a anterior: quando as ideologias re fracassam ou são descartadas, apela-se para a neutralização e eliminação”[12]. A grande questão a ser tratada aqui, é que como já vimos, por diversos fatores, as ideologias “re” sempre fracassam e a função de inocuização é a regra, o fim único da pena de prisão. Ainda nas palavras de Zaffaroni, “na realidade social, como as ideologias re sempre fracassam, a neutralização é somente uma pena atroz imposta por seleção arbitrária”[13]. Como ensina o prof. Alberto Zacharias Toron, citado por Alexandre Cordeito, “
“fala-se em maior ou menor grau numa espécie de neutralização ou inocuização absoluta ou relativa. Esta pode ter um caráter temporal, quando com a pena se aparta o sentenciado de forma perpétua, ou por um determinado período da vida social, custodiando-o. Mas a inocuização pode ter um caráter absoluto (definitivo) quando se trata da pena de morte (não se conhece nesta hipótese nenhum caso de reincidência) ou relativo quando destrói parcialmente a pessoa a pessoa e, por exemplo, castra-se o estuprador ou cortam-se as mãos do assaltante ou, ainda, as pernas do trombadinha etc.”[14]
Desse modo, como já visto, a função de ressocialização, se algum dia existiu, a muito deixou de ser contemplada e a principal e verdadeira função do cárcere é a eliminação do indesejável da vida social de maneira mais branda ou levada as suas últimas conseqüências. Trataremos agora do Regime Disciplinar Diferenciado, uma maneira torpe e bruta, totalmente inaceitável, de inocuização do sujeito.
4. REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO
O Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) surge em São Paulo e no Rio de Janeiro, como forma de resposta as rebeliões ocorridas em unidades penitenciárias nesses estados e logo se espalha por toda a federação através da Lei Federal 10.792 de 02 de dezembro de 2003 que altera a Lei de execuções Penais (LEP) e o Código de Processo Penal (CPP). Aproveitando-se do solo fértil advindo da insurgência do pânico na população, devido em grande parte a importância e a grande cobertura dada pela mídia aos conflitos ocorridos nos Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro, o Estado se aproveita do valor simbólico do direito penal e defende que só através de um regime mais gravoso seria possível restabelecer a ordem e mostrar domínio sob os conflitos carcerários. Nas palavras de Salo de Carvalho, “o fértil solo discursivo, propício para irromper a legislação de pânico, estava cultivado: cultura de emergência fundada no aumento da violência e a vinculação da impunidade ao “excesso de direitos e garantias” dos presos (provisórios e condenados). A resposta contingente seria conseqüência natural”[15]. Segundo Busato,
“as origens dessa lei podem ser perfeitamente detectadas. Há um estado de medo permanente na sociedade brasileira, provocado pela existência de alarmantes índices de criminalidade que, além do mais, tem invadido as cadeias e subvertido o próprio sistema de execuções penais, convertendo os próprios estabelecimentos prisionais em pontos de referência das organizações criminosas, de onde partem ordens e diretrizes para a realização de certas ações delitivas. Isto, associado à crescente influência dos bandos criminosos, principalmente em locais onde se acumulam milhares de pessoas em condições de vida desumanas, tem feito com que as instâncias estatais de controle social reajam de modo já conhecido: a edição reiterada de mais legislação penal, progressivamente restritiva e ofensiva para as garantias fundamentais. “[16]
O surgimento do RDD é um sério resultado da cultura punitivista de tolerância zero e uma inaceitável violação aos direitos constitucionais do preso por se tratar de uma forma desumana de pena.
Com a clara intenção de inocuizar o acusado/apenado, o Estado acaba por abrir mão de princípios nascidos no seio da sua própria racionalidade, esquecendo completamente que direito e moral, por exemplo, são inconfundíveis. A nova redação dada ao art. 52[17] da LEP traz expressões de pouca precisão semântica como “ordem social” e “alto risco”, que propiciam uma apreciação arbitrária por parte dos agentes prisionais o que acaba resultando em um terrível direito penal do autor. As restrições previstas no RDD, nas palavras de Paulo Busato, “não estão dirigidas aos fatos e sim à determinada classe de autores. Busca-se claramente dificultar a vida destes condenados no interior do cárcere, mas não porque cometeram um delito, e sim porque, segundo o julgamento dos responsáveis pelas instâncias de controle penitenciário, representam um risco social e/ou administrativo ou são ‘suspeitas’ de participação em bandos ou organizações criminosas”[18].
Além de se tratar de um inaceitável direito penal do inimigo e causar um grande dano aos presos, ainda recai em um terrível bis in idem, visto que tem por base critérios já analisados em outros momentos, além de violar, também, o princípio da motivação que pressupõe verificabilidade e refutabilidade das questões levadas em consideração.
O RDD além de violar os princípios já mencionados (proibição de dupla incriminação, proibição de penas cruéis, motivação), ainda viola o objetivo de ressocialização proposto pela própria LEP em seus art. 1º e 10[19], tendo em vista que se educar para liberdade em condições de não liberdade já é de difícil realização, mesmo que o preso tenha o convívio com os demais apenados, como pensar em ressocialização em condições de RDD? Nas palavras de Salo de Carvalo,
“Se a essência do sistema progressivo, sob inspiração dos ideais correcionalistas, reside na possibilidade de propiciar ao apenado, desde que observados os requisitos de natureza objetiva e subjetiva, um movimento paulatino de desencarceramento, a medida penal que cria a modalidade de regime carcerário diferenciado segue a direção oposta.
A conclusão possível, se se analisar o objetivo do RDD, é notória: reduzir ao máximo as possibilidades de saída do sistema carcerário – restrição do output. Logo, se o sistema progressivo da pena, ao menos no aspecto ideal, foi edificado em nome da perspectiva da reabilitação, o sistema que se inaugura com o RDD fixa claramente a noção de inabilitação. A propósito, não há nada mais inabilitador do que a rigorosa submissão às técnicas de deterioração físicopsíquica engendradas pelo modelo previsto no RDD, no qual a cela do isolamento celular assume a nítida feição de sepulcro”.[20]
Mais sério ainda se pensar em RDD com relação aos presos provisórios, pois como já visto, o cárcere em si mesmo já é uma violação aos direitos do acusado enquanto ‘inocente até que se prove o contrário’ (caso das prisões provisórias), o que se dirá de um regime ainda mais gravoso?
Dessa forma, o Regime Disciplinar Diferenciado representa uma violação a diversos princípios e deveria ser considerado inconstitucional, totalmente incompatível com um Estado Democrático de Direito que tem por objetivo limitar o poder punitivo e garantir os direitos fundamentais.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Como podemos ver o ideal dos pensadores iluministas, de pena mais humanitária, nunca aconteceu. A necessidade de reforma da pena de prisão nasce com o próprio surgimento do cárcere e até o momento não foi concretizado. Destarte, a pena de prisão não faz mais do que remontar as atrocidades vividas aos tempos dos suplícios góticos, atentando contra os direitos fundamentais do apenado, apesar de todo o aparato de proteção existente no ordenamento jurídico, inclusive e principalmente na Constituição Federal, como, por exemplo, o princípio de proibição de penais cruéis. E o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) é um claro e terrível exemplo disso.
Desse modo, o ilusório e romântico objetivo de ressocialização proposto na Lei de Execuções Penais (LEP), se é que algum dia isso foi deveras um objetivo, nunca se concretizou. O cárcere não oferece condições para (re) introduzir o apenado na sociedade e acaba assumindo o papel de mero administrador das massas inconvenientes com a clara função de inocuização/neutralização do individuo para que dessa maneira se mantenha o status quo. Assim, a teoria da prevenção especial positiva não passa de um mito muito aclamado na tentativa de – de forma racional e condizente com os princípios de um Estado Democrático de Direito – legitimar o ilegitimável.
Bacharel em Direito na FURG
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