Resumo: Este trabalho acadêmico aborda a evolução e as características de variados sistemas normativos, demonstrando, de forma pormenorizada, as controvérsias existentes entre as teorias tradicionais e a crescente complexidade das fontes jurídicas no mundo pós-moderno. Conquanto, atualmente, os juristas já não acreditem, de fato, na racionalidade absoluta do legislador, permanecem atuando como se a crença ainda existisse, o que constitui uma tática dogmática para simplificar suas decisões. Assim, aparentando aceitar a racionalidade plena do legislador, o jurista não admite a existência de falhas no ordenamento jurídico vigente. Destarte, as teses de plenitude e de coerência sistemática, que permeiam a ordem normativa contemporânea, são resultado da influência do racionalismo e dos métodos lógico-dedutivos – característicos da mentalidade jurídica dos séculos XIX e XX.
Palavras-chave: teoria do direito; evolução; controvérsias; pós-modernidade; complexidade; dogmática.
Sumário: 1. Introdução. 2. A concepção de unidade do sistema normativo. 3. Evolução histórica do pensamento jurídico. 3.1. Antiguidade Clássica. 3.2. Idade Média. 3.3. Era Moderna. 3.1.1. O jusnaturalismo na Modernidade – do Renascimento ao século XIX. 3.1.2. Constituição da ciência jurídica e predomínio juspositivista. 4. Influências da Era Moderna na ciência jurídica contemporânea. 5. Visão Geral das principais fontes jurídicas. 5.1. O costume. 5.2. A Lei. 5.3. O precedente judicial. 6. O tradicionalismo jurídico e o contexto espanhol. 7. A nova Constituição Espanhola e a complexificação da estrutura normativa. 7.1. Constitucionalização do ordenamento jurídico. 7.2. Nova classificação das fontes legais. 7.3. Princípio de autonomia. 7.4.Tratados Internacionais. 8. Diferentes concepções acerca das Fontes Jurídicas. 8.1. Jurisprudência e Decisões Judiciais. 8.2. Regulamentos e atos administrativos. 8.3. Produção de normas jurídicas por particulares. 9. Principais teses sobre a unidade do sistema jurídico. 9.1. Friedrich C. Von Savigny. 9.2. John Austin. 9.3. Hans Kelsen. 9.4. Hebert L. A. Hart. 10. Conclusão. Referências.
1. Introdução:
Através da exposição do processo evolutivo da mentalidade jurídica e das tradicionais classificações das fontes do direito, Manuel Calvo García aborda, de forma coerente e articulada, a pretensão de unidade e perfeição de muitos sistemas normativos. Destarte, utilizando-se, como exemplo ilustrativo, da entrada em vigor da Constituição Espanhola de 1978, o autor faz alusão às controvérsias existentes, no âmbito do direito, entre a progressiva complexificação das fontes jurídicas – que torna evidente a dimensão criadora dos tribunais – e as teses das doutrinas conservadoras, ainda influentes na atualidade.
2. A concepção de unidade do sistema normativo:
Primeiramente, mediante a análise dos modernos ordenamentos jurídicos vigentes, percebe-se a existência de muitas e variadas normas jurídicas, as quais são constantemente criadas e reformuladas por órgãos competentes, resultando, assim, em sistemas normativos amplos e complexos. Nesse sentido, seria incoerente conceber tais ordenamentos jurídicos como estruturas unitárias e sistemáticas. Todavia, convém ressaltar que estes, com o intuito de consolidar uma auto-imagem de perfeição e plenitude – a saber, questão que envolve a chamada eficácia simbólica –, criam princípios consideravelmente gerais e abstratos, capazes de aparentar a unificação e sistematização do direito vigente. Inobstante, o real entendimento acerca da concepção sistemática da estrutura normativa requer a análise do desenvolvimento da mentalidade jurídica.
3. Evolução histórica do pensamento jurídico:
3.1. Antiguidade Clássica:
Na Antiguidade Clássica, o direito era um fenômeno de ordem sagrada, conhecido mediante um saber de natureza ética, a prudência, virtude moral do equilíbrio e da ponderação nos atos de julgar1. Destarte, a prudência ganhou uma relevância especial, recebendo a qualificação particular de jurisprudentia, e, mediante o uso da técnica dialética, herdada dos gregos, conduziu os romanos a um saber de natureza prática. Portanto, sendo o direito romano eminentemente casuístico, nem mesmo a introdução do método dialético resultou em sua sistematização.
3.2. Idade Média:
A partir da Idade Média, conquanto o direito continue a ter um caráter sagrado, o saber prudencial adquire traços dogmáticos, destinando-se a conhecer e interpretar a lei e a ordem de forma peculiar. Para Tomás de Aquino, v.g., “a lei é uma ordenação da razão direcionada ao bem comum, promulgada por aquele a quem incumbe o cuidado da comunidade”2. Logo, enquanto para os romanos o direito era um saber das coisas divinas e humanas, para os medievais os saberes eram distintos, embora ainda guardassem uma relação de subordinação. Nesse momento histórico, nasce a primeira escola jusnaturalista: a escola tradicional católica, cujo maior expoente, Tomás de Aquino, afirmava ser a vontade de Deus o principal fundamento dos direitos naturais.
Também é interessante observar que, nesse período, ocorre uma experiência juspositivista: os membros da escola dos glosadores retomam o estudo do Corpus Juris Civilis, criado no governo de Justiniano – na Antiguidade Clássica –, e dedicam-se à interpretação de seu texto. Entretanto, a dogmática jurídica medieval ainda representa uma verdadeira antítese da jurisprudência sistemática.
3.3. Era Moderna:
Com o advento do Renascimento, o direito perde progressivamente seu caráter sagrado e, por conseguinte, o saber jurídico passa por uma tecnicização e perde a essência ética, que fora conservada pelos medievais. Por outro lado, “o humanismo renascentista modifica a legitimação do direito romano, refinando o método da interpretação dos textos e, com isso, abrindo as portas para a entrada da ciência moderna na teoria jurídica”3. Dessa forma, o pensamento jurídico adquire certa neutralidade, como exige a técnica, possibilitando a racionalização e a sistematização do direito. Em suma, na Era Moderna, “a teoria jurídica transforma as regras que compõem o direito em regras técnicas controláveis na comparação das situações vigentes com as situações idealmente desejadas”4.
Destarte, a idéia de sistema, que permeia a ciência jurídica contemporânea, é resultado da influência do método lógico-dedutivo, característico do chamado direito natural moderno. Logo, pode-se dizer que os dois princípios básicos dos ordenamentos jurídicos modernos – a saber, plenitude e coerência – têm sua origem no método dedutivo do jusnaturalismo racionalista.
3.3.1. O jusnaturalismo na Modernidade – do Renascimento ao século XIX:
Após o predomínio da Escolástica, de Tomás de Aquino, surge, no século XVII, a chamada escola clássica protestante do Direito Natural, fundada por Hugo Grotius e representada por grande parte dos pensadores iluministas. Esta escola, também jusnaturalista, diferia daquela apenas quanto ao fundamento dos princípios naturais: para Grotius, a natureza humana, e não a vontade de Deus, constituía o fundamento de tais princípios. Assim, o direito liberta-se do jugo da teologia.
Por fim, durante o século XVIII, nasce a última escola jusnaturalista antes da constituição da ciência jurídica: a escola racional ou formal, representada, em parte, por Rousseau e, mormente, por Emmanuel Kant. Para este ilustre filósofo, o fundamento dos princípios naturais era a razão, considerada por ele a verdadeira essência da natureza humana. Assim sendo, o elemento racional, contido nas formulações da escola clássica, se desprende de seus ingredientes empíricos e contingentes, constituindo, pois, a última etapa de predomínio jusnaturalista.
A presença significativa da razão e das ciências exatas, no século XIX, suscita o impasse de se determinar se o saber jurídico constitui ou não uma teoria científica. Ademais, a crítica dos pensadores iluministas e a necessidade de segurança da sociedade burguesa exigiram a valorização dos preceitos legais, que cresceram progressivamente a partir de então, até culminar no legalismo.
3.3.2. Constituição da ciência jurídica e predomínio juspositivista:
No século XIX, os países europeus, primeiramente França e Alemanha, iniciam o processo de elaboração da ciência jurídica. Destarte, “no início desse século, a sanção dos códigos e a tarefa da ciência jurídica restrita ao comentário dos mesmos deram ao juspositivismo francês um caráter estatal e legalista”5. Ademais, o legalismo na França, representado pela Escola Exegética, concebia a lei como expressão da vontade do legislador, isto é, como um fenômeno eminentemente psicológico. Na Alemanha, por sua vez, “a recepção do direito romano, de acordo com as recopilações justinianas, deu também ao juspositivismo um caráter estatal e legalista”6. Todavia, diferentemente do legalismo francês, a atitude positivista da ciência jurídica alemã era racionalista, não derivando, pois, da vontade do legislador. Por outro lado, a Inglaterra, que vivia nesse momento o Common Law, não se preocupou em constituir uma ciência do direito, visto que seu pensamento jurídico baseava-se na tradição, isto é, no direito consuetudinário.
Nesse contexto, consolidam-se as concepções mecanicistas da função judicial, que defendem a aplicação categórica da lei e, por conseguinte, a restrição do papel do juiz no curso do processo. Com a consolidação do poder da burguesia, mediante o triunfo das revoluções dos séculos XVII e XVIII, observa-se o fortalecimento dos chamados princípios liberais – a saber, os princípios da isonomia, da legalidade e da separação de poderes. Assim, para evitar as decisões arbitrárias do Antigo Regime, ocorre uma evidente superlegitimação da lei, um verdadeiro culto ao texto legal.
Não obstante, como reação às doutrinas ultralegalistas, começam a surgir, mormente no início do século XX, as chamadas escolas modernas do direito, como, v.g., as escolas científicas francesas; a escola do direito livre, na Alemanha; e a escola sociológica norte-americana. Dentre estas, destaca-se a escola da livre investigação científica, fundada por Geny, que proporcionou a decadência da conservadora escola exegética, na França. Portanto, com o fim do predomínio legalista, os juristas se voltam para o desenvolvimento de uma teoria geral do direito, destacando-se, nessa tarefa, o ilustre Hans Kelsen que, através de sua “Teoria Pura do Direito”, concebe o ordenamento jurídico como uma pirâmide normativa, em cujo topo estaria a norma hipotética fundamental.
4. Influências da Era Moderna na ciência jurídica contemporânea:
Como já explicitamos, a evolução do pensamento jurídico, desde a Antiguidade até a Era Moderna, acarretou significativas transformações na idéia de sistema, resultando, por conseguinte, no fortalecimento de uma imagem fictícia do legislador racional. Isto é, o jurista moderno vê o legislador com tal idealismo e perfeição, que passa a conceber o ordenamento jurídico como um sistema pleno e coerente, cujas decisões são sempre justas e previsíveis.
Conquanto, atualmente, os juristas já não acreditem, de fato, na racionalidade absoluta do legislador, permanecem atuando como se a crença ainda existisse, o que constitui uma tática dogmática para simplificar suas decisões. Assim, aparentando aceitar a racionalidade plena do legislador, o jurista não admite a existência de falhas no ordenamento jurídico vigente, como, v.g., lacunas, contradições ou ambigüidades. Portanto, as teses de plenitude e de coerência sistemática, que permeiam a ordem normativa contemporânea, são resultado da influencia do racionalismo e dos métodos lógico-dedutivos – característicos da mentalidade jurídica dos séculos XIX e XX.
5. Visão Geral das principais fontes jurídicas:
Como definiu Enrique Aftalión, as fontes do direito – ou os modos de produção normativa – constituem “cursos de conduta tipificados aos quais os mesmos membros do grupo sociocultural em seu conjunto atribuem a virtude de introduzir ou extrair regras do conjunto normativo”7. Entretanto, segundo Kelsen, “as fontes do direito não se restringem à legislação e ao costume, mas a todos os métodos da criação jurídica em geral (…) A decisão judicial também pode ser considerada como fonte dos deveres ou direitos das partes litigantes por ela estatuídos”8. Ademais, a teoria das fontes, criada na Era Moderna, passou a declarar que o direito não é essencialmente um dado, mas uma construção elaborada no interior da cultura humana.
Em geral, os sistemas jurídicos podem-se dividir de acordo com duas tradições do direito: a tradição romano-germânica – baseada na supremacia da Lei como fonte jurídica – e a tradição do Common Law – com a prevalência do costume e dos precedentes judiciais. Temos, pois, dois grandes sistemas do Direito no mundo ocidental, correspondentes a duas experiências culturais distintas, resultantes de múltiplos fatores, sobretudo de ordem histórica9. Podemos, assim, conceber a Lei, o costume e o precedente judicial como as fontes mais relevantes do direito positivo.
5.1. O costume:
O costume consiste, basicamente, na manifestação consciente e instintiva da vontade social, repetida tacitamente como lei não escrita, e que integra, com a lei, o direito positivo. Assim sendo, pode-se dizer que a repetição uniforme e o caráter de obrigatoriedade são os principais pressupostos de um costume como fonte do direito. Ademais, deve-se salientar que, ainda hoje, o costume continua desempenhando função relevante na experiência jurídica, sobretudo em certos ramos do direito, como, v.g., o Direito Comercial e o Direito Internacional.
Em suma, o costume, como fonte de normas consuetudinárias, possui em sua estrutura, um elemento substancial – o uso reiterado no tempo – e um elemento relacional – o processo de institucionalização que explica a formação da convicção da obrigatoriedade e que se explicita em procedimentos, rituais ou silêncios presumidamente aprovadores10. A experiência jurídica inglesa, por exemplo, é imprescindível para a compreensão do costume como fonte do direito: o parlamentarismo britânico é fruto de uma experiência que se consolidou e que, hoje, governa partidos e indivíduos, sem precisar, de maneira alguma, da consagração expressa em textos legais.
5.2. A Lei:
Diferentemente do costume, como fonte do direito, a Lei corresponde a um direito escrito e, sobretudo, a um direito criado por órgãos competentes e legitimados para tal. Dessa forma, convém salientar que a lei representa a vontade da coletividade personalizada no Estado, tendo como características essenciais, a forma escrita e a publicidade.
Conforme já apontamos, com o advento do Estado Liberal, em fins do século XVIII, a Lei adquire supremacia como fonte jurídica, originando o mito de um sistema normativo perfeito, cujas decisões seriam plenamente previsíveis por disposições fixadas anteriormente. Conquanto essa teoria tenha sido duramente criticada pelas modernas escolas do direito – as quais defendiam a dimensão criadora da função judicial –, ainda hoje pode-se perceber a influência do estrito legalismo no direito contemporâneo, já que a Lei conservou sua soberania frente às demais fontes jurídicas.
5.3. O precedente judicial:
Ao contrário do que ocorre nas culturas romano-germânicas, a supremacia da Lei como fonte do direito não se impõe nas tradições anglo-saxônicas, cujo sistema jurídico baseia-se no Common Law. Embora, nestas sociedades, as fontes legais exerçam uma importante função social, é evidente a prevalência do costume e do precedente judicial no âmbito do direito. Nesse sentido, convém ressaltar que o precedente judicial – a saber, fonte típica da cultura anglo-saxônica – consiste na aplicação de princípios jurídicos já utilizados no passado, para solucionar casos similares no presente.
Conforme expõe Tércio Sampaio, os principais traços dos sistemas jurídicos anglo-saxões são os seguintes: primeiro, os tribunais inferiores estão obrigados a respeitar as decisões dos superiores, os quais se obrigam por suas próprias decisões; segundo, toda decisão relevante de qualquer tribunal é um argumento forte para que seja levada em consideração pelos juízes; terceiro, o que vincula no precedente é sua ratio diciendi, isto é, o princípio geral de direito que temos de colocar como premissa para fundamentar a decisão, podendo o juiz que a invoca interpretá-la conforme sua própria razão; quarto, um precedente nunca perde sua vigência, ainda que os anos o tenham tornado inaplicável às circunstâncias modernas11.
6. O tradicionalismo jurídico e o contexto espanhol:
Primeiramente, faz-se mister explicitar que o ordenamento jurídico espanhol encontra-se inserido nos sistemas de tradição romanística, caracterizando-se, pois, pela preponderância das fontes legais . Ademais, o Código Civil da Espanha classifica como fontes jurídicas formais a Lei, o costume e os princípios gerais do direito, não admitindo a adoção de nenhum outro critério na fundamentação das decisões judiciais. Todavia, a rigidez de tal ordenamento, que exclui, v.g., a jurisprudência de seu conjunto de fontes jurídicas, costuma gerar variados impasses – mormente de natureza prática – no âmbito da sentença.
Como já foi dito anteriormente, após a Lei e o costume, o jurista pode-se valer dos princípios gerais do direito para legitimar sua decisão, os quais raramente atuam de forma isolada, servindo, em geral, para fortalecer a argumentação baseada em outras fontes formais. Dentre esses princípios, podemos distinguir entre: princípios extraídos de uma norma ou conjunto de normas; princípios extraídos de todas as normas do ordenamento jurídico; princípios retirados de relações jurídicas; e, por fim, princípios baseados em convenções sociais, como v.g., valores morais ou ideológicos. Também vale salientar que, diante do alto grau de generalidade de tais princípios, cabe à jurisprudência do Tribunal Supremo determinar quais deles possuem valor normativo e validade jurídica.
Inobstante, muitos juristas, em geral adeptos das escolas modernas do direito, defendem o uso, em última instância, de fontes não-formais para fundamentar suas decisões, o que constitui uma crítica evidente às doutrinas jurídicas tradicionais. Para François Geny, v.g., “se uma lei se mostra insuficiente para resolver um impasse, o intérprete não deve torturá-la para obter uma solução forçada. Deve, primeiramente, recorrer a outras fontes formais, como, por exemplo, o costume, as doutrinas modernas, ou até as doutrinas antigas. Porém, se ainda assim, as fontes formais forem insuficientes, o intérprete não deve hesitar em recorrer a fontes não-formais, através de uma livre investigação científica”12. Isto é, na concepção de Geny, a técnica jurídica está representada, em primeiro lugar, pelas fontes formais; e, em seguida, pela apreensão que faz o jurista da realidade do direito.
7. A nova Constituição Espanhola e a complexificação da estrutura normativa:
Com a entrada em vigor da Constituição Espanhola de 1978, embora o sistema das fontes formais permaneça constituído pela Lei, costume e princípios gerais do direito, esse sistema torna-se visivelmente mais complexo. Podemos, então, citar como principais efeitos do início dessa nova Constituição Espanhola: a constitucionalização do ordenamento jurídico; a nova tipologia das leis em sentido estrito; o princípio de autonomia das regiões e nacionalidades; e as novas perspectivas em torno dos tratados internacionais. Explicitemos, sinteticamente, cada uma dessas conseqüências.
7.1. Constitucionalização do ordenamento jurídico:
Como conseqüência fundamental da entrada em vigor da Constituição Espanhola de 1978, destaca-se o processo de constitucionalização do ordenamento jurídico, que é característico dos regimes democráticos. Isto é, a partir de então, a Constituição torna-se fonte do direito – a saber, a fonte soberana de todo o ordenamento jurídico vigente – e, por conseguinte, passa a subordinar tanto os cidadãos, como os poderes públicos – inclusive o Legislativo –, podendo até anular a validade de qualquer norma jurídica que lhe seja contraditória.
Ademais, sabendo-se que a Constituição da Espanha é composta tanto por normas de conduta, como também pelos chamados princípios constitucionais e valores superiores, convém enfatizar a importância do Tribunal Constitucional, com suas sentenças interpretativas. Destarte, esse Tribunal atua como uma espécie de legislador, pois, além de fornecer conteúdo concreto aos preceitos constitucionais, determina se uma lei é ou não adequada à Constituição.
7.2. Nova classificação das fontes legais:
Outra importante conseqüência gerada pela introdução da nova Constituição Espanhola refere-se às mudanças ocorridas na classificação das leis em sentido estrito, que passam, a partir de então, a se dividir da seguinte forma: leis ordinárias; leis orgânicas; decretos-lei; e decretos legislativos. Conquanto as leis orgânicas – a saber, aquelas ligadas aos direitos fundamentais e às liberdades públicas – exijam um nível de consenso superior ao das leis ordinárias, não há uma distinção hierárquica entre essas leis. “O que se exige é apenas que cada qual fique em seu âmbito e não invada o outro. Caso ocorra essa invasão, uma delas prepondera não por uma verticalidade, mas por contrariar limites horizontais”13.
Por outro lado, os decretos-lei – a saber, normas jurídicas excepcionais, elaboradas e apreciadas no âmbito do Executivo – são adotados em situações de extrema necessidade, para substituir as chamadas Cortes Gerais Espanholas. Todavia, diante da força desses decretos e com o intuito de proteger as instituições básicas do Estado espanhol, determina-se a limitação dos campos de atuação dos decretos-lei.
7.3. Princípio de autonomia:
Estabelecido pela Constituição Espanhola de 1978, o princípio de autonomia das regiões e nacionalidades – isto é, princípio que visa a uma organização estatal – promoveu mudanças significativas no âmbito de produção normativa do ordenamento jurídico espanhol. Assim, os estatutos de autonomia, v.g., que são as leis orgânicas responsáveis pela determinação das regras básicas de uma comunidade autônoma, atuam como uma espécie de constituição nessas comunidades.
Ademais, além dos estatutos de autonomia, vale ainda salientar as chamadas leis das comunidades autônomas, como resultado da Constituição de 1978. Ao contrário das Cortes Gerais, com seu poder ilimitado para legislar dentro da Constituição, as leis das comunidades autônomas – produzidas pelos órgãos legislativos de cada comunidade – têm seu campo de atuação restrito, em conformidade com as competências assumidas.
7.4. Tratados Internacionais:
Em relação aos tratados internacionais – “fontes cujo centro irradiador é o acordo entre as vontades soberanas dos Estados”14 –, a entrada em vigor da Constituição de 1978 também acarretou alterações e novas perspectivas. No processo de consolidação dos tratados internacionais, pode-se observar a existência de três caminhos distintos. O primeiro deles exige a utilização de uma lei orgânica para legitimar o tratado, obrigando o Estado espanhol a atribuir competências a uma organização internacional – como foi o caso, v.g., da adesão da Espanha às Comunidades Européias, em 1985. A segunda alternativa corresponde à exigência de um acordo especial das Câmaras para a ratificação do tratado; e, por fim, tem-se aqueles tratados internacionais cuja determinação pode ser feita pelo próprio governo, sem maiores exigências.
Deve-se também enfatizar a existência de normas internacionais que têm por objeto a conduta do ser humano diretamente e que tornam os cidadãos de um Estado verdadeiros sujeitos de direito internacional, inclusive lhes concedendo o acesso direto aos tribunais internacionais. Isso, obviamente, repercute na hierarquia das fontes legais, pois podem essas fontes, eventualmente contrariar ditames constitucionais de um Estado e, não obstante, sobre eles prevalecer. Assim, tal fato acaba por afetar o princípio da soberania nacional, pois atinge o próprio direito processual, que vê deslocada sua competência interna para uma situação de subordinação a decisões com base em outros centros irradiadores de normas15.
8. Diferentes concepções acerca das Fontes Jurídicas:
Além das leis, dos costumes e dos princípios gerais do direito – a saber, as fontes formais do ordenamento jurídico espanhol –, também vale ressaltar a existência de determinadas fontes que são admitidas por alguns juristas e rechaçadas por outros. Dentre tais fontes, destacam-se as seguintes: as decisões judiciais; a jurisprudência; os regulamentos; os atos administrativos; e a produção de normas por particulares. Vejamos, pois, as características mais relevantes dessas fontes jurídicas controvertidas.
8.1. Jurisprudência e Decisões Judiciais:
Em primeiro lugar, pela palavra “jurisprudência” devemos entender a forma de revelação do direito que se processa através do exercício da jurisdição, em virtude de uma sucessão harmônica de decisões dos tribunais. Assim sendo, a jurisprudência, muitas vezes, inova em matéria jurídica, estabelecendo normas que não se contêm estritamente na lei, mas resultam de uma construção obtida graças à conexão de dispositivos, permitindo ao juiz compor, para o caso concreto, uma norma que vem a completar o sistema objetivo do direito16. Conquanto a jurisprudência não seja reconhecida como fonte formal pelo ordenamento jurídico espanhol, ela constitui um poderoso instrumento na resolução de litígios, atuando na interpretação da sentença e, por conseguinte, contribuindo para a materialização da isonomia e da segurança jurídica, no decorrer do processo.
Em relação às decisões judiciais, há teses que defendem a função criadora da sentença jurídica, considerando, pois, a decisão como uma norma concreta do direito. Destarte, embora ainda persista no mundo moderno a ilusão de que o legislador preestabelece todas as conseqüências jurídicas, deve-se salientar a atuação criadora dos magistrados que, em última instância e devido à proibição do non liquet, podem chegar a decidir com base em sua própria experiência.
Em suas obras, Hans Kelsen – o mestre da escola de Viena – realizou uma análise crítica das doutrinas que concebem o direito exclusivamente como um conjunto de regras gerais e desconsideram a existência de normas particulares, presentes nas decisões judiciais. Para Kelsen, “embora se tenha a impressão de que, no âmbito do direito, tudo gira em torno de argumentos e raciocínios, e que são os atos de conhecimento que conferem o sentido aceito por todos, esta aceitação tem, na verdade, seu fundamento em atos de vontade competentes”17. Isto é, as normas gerais, isoladamente, constituem normas incompletas, dependendo, pois, de elementos concretos para produzir uma decisão justa e consciente.
8.2. Regulamentos e atos administrativos:
Primeiramente, faz-se mister distinguir entre estas duas “fontes” do direito: enquanto os regulamentos expõem normas jurídicas gerais, tendo em vista sua execução; os atos administrativos são normas particulares e concretas, isto é, só possuem validade para casos concretos ou sujeitos particulares. Por conseguinte, ao contrário dos regulamentos, os atos administrativos não são capazes de invalidar disposições abstratas e gerais.
8.3. Produção de normas jurídicas por particulares:
Em geral, a produção de normas à margem da organização estatal só será considerada uma fonte jurídica, caso assim seja concebida pela chamada norma de reconhecimento. Destarte, os preceitos jurídicos amparados por certas normas de segundo grau são vinculantes, ou seja, constituem uma obrigação jurídica, cujo descumprimento acarreta a materialização da força potencial do Estado – isto é, a aplicação da sanção. Podemos citar, como exemplos de tais fontes, os contratos; as comunidades privadas; as disposições testamentárias; dentre outros.
9. Principais teses sobre a unidade do sistema jurídico:
Conforme já foi explicitado, os modernos ordenamentos jurídicos procuram sempre se revestir de ideais de plenitude e perfeição, a fim de omitir possíveis deficiências presentes nos textos normativos – como, v.g., lacunas, contradições e ambigüidades. Como ressalta Tércio Sampaio, em sua “Introdução ao Estudo do Direito”, “o legislador usa vocábulos que tira da linguagem cotidiana, mas frequentemente lhes atribui um sentido técnico, apropriado à obtenção da disciplina desejada. Esse sentido técnico, por sua vez, não é absolutamente independente, mas está ligado, de algum modo, ao sentido comum, sendo, por isso, passível de dúvidas”18.
Ademais, convém ressaltar que a idéia de unidade e coesão do ordenamento jurídico esbarra na enorme quantidade de normas que o compõem e, mormente, no caráter altamente complexo dessas últimas. Entretanto, tendo em vista a grande eficácia simbólica dessa crença, grandes juristas do mundo moderno – como v.g., Savigny, Austin, Kelsen e Hart – desenvolveram diferentes teses para defender e fundamentar a concepção de sistema normativo unitário. Analisemos, portanto, a linha de pensamento desses juristas em relação ao direito vigente.
9.1. Friedrich C. Von Savigny:
Considerado não só o maior expoente da escola histórica, mas também o fundador da moderna ciência jurídica, Savigny concebe o direito como um produto social, histórico e em estreita relação com as condições particulares de cada povo, promovendo, assim, o desenvolvimento concreto do direito positivo e explicando a variabilidade dos ideais jurídicos19. De acordo com a visão desse ilustre jurista do século XIX, o ordenamento jurídico aproxima-se da idéia de organismo, isto é, não obstante a diversidade das normas que o constituem, tal ordenamento resultaria em um todo único e sistemático.
Todavia, deve-se ressaltar que a teoria de Savigny já não se adapta ao universo jurídico atual, visto que é desprovida da dinâmica necessária ao entendimento do novo contexto normativo.
9.2. John Austin:
A obra de Austin – fundador da escola de jurisprudência analítica – obteve, tardiamente, grande difusão e absoluta hegemonia na teoria jurídica inglesa. Austin não se limita a apontar as leis positivas como objeto da ciência jurídica, mas chega, inclusive, a definir a lei positiva como uma ordem, um mandato emanado do soberano que, por conseguinte, não poderia ser suscetível de limitação jurídica. Assim, diferentemente da teoria de Savigny, a teoria austiniana defende a unidade do ordenamento jurídico a partir da idéia de um legislador soberano, responsável por todos os preceitos legais desse ordenamento.
9.3. Hans Kelsen:
Segundo Hans Kelsen, a escola analítica de Austin restringe-se a um estudo estático do direito como sistema de normas, imóvel, pronto para ser aplicado, descuidando, assim, do aspecto dinâmico do direito – isto é, a auto-regulação jurídica, através da produção normativa20. Dessa forma, o autor da Teoria Pura rechaça a idéia de legislador soberano como pressuposto de um ordenamento jurídico unitário.
Em verdade, Kelsen fundamenta a unidade do sistema jurídico tomando por base um novo pressuposto gnoseológico – a saber, a chamada norma hipotética fundamental – que teria originado todas as demais normas do ordenamento. Esta é a maneira encontrada por Kelsen para justificar a validade de todas as normas do ordenamento jurídico, valendo-se para tal, de uma espécie de pirâmide normativa, em cujo topo estaria a norma hipotética fundamental. Trata-se, pois, do princípio de hierarquia jurídica, mediante o qual as normas inferiores estão totalmente subordinadas às superiores.
9.4. Hebert L. A. Hart:
Conquanto tenha aderido ao juspositivismo de Austin, Hart o reprova por sua excessiva simplificação ao tentar reduzir todas as normas do sistema a um só tipo: ordens emanadas do legislador soberano. Ademais, uma crítica semelhante também é dirigida a Kelsen, o qual pretende reduzir as normas jurídicas àquelas que impõem sanções, além das dificuldades de se aceitar a norma hipotética fundamental como instrumento legitimador do ordenamento jurídico. Destarte, Hart substitui a norma fictícia de Kelsen pela chamada regra de reconhecimento – a saber, norma de segundo grau – que, segundo ele, além de fundamentar a unidade do sistema normativo, também promove a individualidade deste.
10. Conclusão:
Em síntese, é fato que, diante da grande amplitude e da progressiva complexidade das fontes jurídicas atuais, a concepção de um ordenamento jurídico unitário e sistemático constitui um mero sofisma, embora seja primordial para consolidar a crença na segurança e eficácia da estrutura normativa vigente. Ademais, faz-se imprescindível enfatizar que as próprias controvérsias presentes nas classificações das fontes jurídicas e, inclusive, nas teses defensoras da unidade do ordenamento, contribuem, de fato, para enfraquecer as doutrinas tradicionais e para ratificar o caráter inovador da função judicial.
Informações Sobre o Autor
Manuela Clemente Silva Torres Rabelo
Formada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco UFPE e Advogada