Resumo: Partindo das construções doutrinárias acerca da teoria dos capítulos de sentença, este estudo se propõe a identificar as diversas previsões do Novo Código de Processo Civil que corroboram os fundamentos da técnica de cisão ideológica da decisão judicial. Além das repercussões geradas pela novidade do julgamento antecipado parcial do mérito na teoria da decisão judicial, são também apontadas as inovações do Novel Código no campo da teoria das nulidades, na dinâmica de distribuição dos encargos sucumbenciais e na seara executiva.
Palavras-chave: Teoria dos Capítulos de Sentença. Novo Código de Processo Civil. Decisão Judicial.
Abstract : Starting from the doctrinal constructions on the theory of sentence chapters, this study proposes to identify the various provisions of the New Code of Civil Procedure that corroborate the fundamentals of the technique of ideological splitting of the judicial decision. In addition to the repercussions generated by the novelty of the early partial judgment of merit in the judicial decision theory, the innovations of the Novel Code in the field of the theory of nullities, in the dynamics of the distribution of sucumbencial charges and in the executive branch are also pointed out.
Keywords: Theory of Sentence Chapters. New Code of Civil Procedure. Judicial decision.
Sumário: 1 Introdução; 2 A Teoria dos Capítulos de Sentença; 3 Análise das Principais Repercussões da Teoria dos Capítulos de Sentença à luz do CPC/2015; 3.1 Teoria da Decisão Judicial; 3.2 Teoria das Nulidades Processuais; 3.3 Fixação dos Encargos Sucumbenciais; 3.4 Executividade Parcial das Decisões; 4 Considerações Finais
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho aborda a teoria dos capítulos de sentença, que sob a égide do Código de Processo Civil de 1973 não encontrava no direito positivo referenciais muito significativos para sua afirmação científica. Todavia, com o advento do Novo Diploma Processual Civil (Lei n. 13.105/2015), construções doutrinárias sobre o tema, há muito propaladas por alguns processualistas brasileiros, inspirados nas tradicionais lições italianas, acabaram sendo incorporadas no sistema normativo.
A premissa fundamental da teoria dos capítulos de sentença consiste no reconhecimento de que, embora formalmente una, a decisão judicial pode abrigar diversos fragmentos decisórios quando analisada sob o aspecto material. Este é o ponto de partida de todas as reflexões acerca da teoria, descrita basicamente como uma técnica de decomposição ideológica da decisão judicial. O Código de Processo Civil de 2015 não inaugurou a teoria sub examine. Muito antes do Novo Codex, a decomposição ideológica da decisão judicial já era vista como solução para alguns problemas práticos pelos juízos e tribunais, especialmente em questões envolvendo a devolutividade recursal e a executividade parcial das decisões. Entretanto, conforme será analisado, o grande mérito do Novo Diploma Legal foi positivar as elementares da teoria dos capítulos de sentença, algo inédito nos domínios da processualística brasileira.
Destaca-se, nessa toada, que a teoria dos capítulos de sentença não se trata de algo recente entre os processualistas pátrios, sendo certo que já há algum tempo juristas nacionais têm se debruçado sobre tal linha de estudo. A questão que ora se coloca sob análise, contudo, concerne à cristalina e irretorquível consagração da teoria levada a efeito pelo Novo Codex. Justamente por essa ótica é que se torna imprescindível a análise, a partir do CPC/2015, das principais repercussões do fracionamento ideológico da decisão judicial, ponto em que merecem destaque os novos rumos dados à teoria da decisão judicial, especialmente em razão da novidade do julgamento antecipado parcial do mérito, e as implicações na teoria das nulidades processuais, na dinâmica de fixação dos encargos sucumbenciais e na executividade parcial das decisões.
Impende, desde logo, destacar que a importância da teoria em foco não se restringe à cena acadêmica, haja vista ser cada vez mais crescente a preocupação de se otimizar a tramitação do processo judicial – v. g. EC n. 45/2004 que inseriu o inciso LXXXVIII no Art. 5º da CR/88. O que a teoria propõe é, indene de dúvidas, a operabilidade como caminho para se atingir eficiência na gestão do instrumental da jurisdição, e, nesse ponto, vai ao encontro de axiomas relevantíssimos à estruturação do ordenamento jurídico brasileiro[1].
Dessa forma, este estudo se propõe a traçar os fundamentos da teoria dos capítulos de sentença para, em seguida, demonstrar sua adoção pelo Novo Código de Processo Civil através da análise das principais repercussões que a teoria gera nos institutos do direito processual. O tema foi desenvolvido a partir da análise da produção doutrinária, sendo que, em relação a algumas questões, também se recorreu à observação do comportamento dos tribunais superiores.
2 A TEORIA DOS CAPÍTULOS DE SENTENÇA
A gênese da teoria dos capítulos de sentença remete à doutrina italiana, merecendo destaque entre os juristas peninsulares que se dedicaram com mais intensidade ao estudo do tema: Giuseppe Chiovenda, Piero Calamandrei, Enrico Tulio Liebman e Francesco Carnelutti (DINAMARCO, 2002).
Chiovenda, pioneiro na abordagem da teoria, entendia haver uma correspondência entre os capítulos de sentença e os capítulos da demanda, de modo que seria censurável entender que uma sentença tem muitos capítulos tão somente pelo fato de existirem muitas partes sob o ponto de vista lógico, isto é, muitas questões resolvidas (CHIOVENDA, 1923 apud CÂMARA, 2009). Nesse quadrante, Dinamarco (2002), sintetizando a visão de Chiovenda, esclarece que esse autor defendia uma vertente restritiva da teoria, já que atribuía a rubrica capítulos de sentença apenas às unidades do decisório que encerrassem efetivo julgamento de mérito. Nesse diapasão, esses capítulos deveriam ser autônomos, passíveis de ser objeto de demandas próprias, e independentes, não dependerem de outras partes da decisão.
Piero Calamandrei, por sua vez, demonstrava ser partidário da proposta de Chiovenda, de vez que entendia por capítulo de sentença a manifestação de uma singular vontade concreta da lei, traduzida em verdadeiro ato jurisdicional completo, suscetível de constituir, sozinho, apartado de outros capítulos, o conteúdo de uma sentença (CALAMANDREI, 1979 apud CÂMARA, 2009). Sem abandonar a corrente chiovendiana, que alocava os capítulos de sentença na parte decisória, Liebman, citado por Câmara (2009), traçou um posicionamento que ampliava sobremaneira o conceito de capítulo de sentença. Também as questões preliminares ao julgamento do mérito passaram a ser tomadas como integrantes da categoria em questão.
Sobre essa construção de Liebman, Dinamarco (2002) sinaliza para a concepção de uma autonomia relativa no que se refere aos capítulos de sentença, em nítido contraste à autonomia estanque defendida por Chiovenda. A título de exemplo, numa sentença em que o magistrado vence a fase inicial de admissibilidade e passa ao julgamento pela improcedência ou procedência, haveria dois capítulos: o primeiro contendo a apreciação da admissibilidade e o segundo, a análise do mérito.
Outro jurista que encetou reflexões sobre a teoria em foco foi Carnelutti. Em clarividente oposição às construções chiovendianas, esse autor propôs uma verdadeira reestruturação dos capítulos de sentença ao defender que, diferentemente do posicionamento até então corrente, esses capítulos não estariam alocados no julgamento da lide, mas na solução das questões. Noutras palavras, os capítulos de sentença estariam na motivação da decisão (CARNELUTTI, 1952 apud DINAMARCO, 2002).
Outra temática que desafiou esses juristas concerne à composição dos capítulos de sentença no caso de pedidos de quantidade decomponíveis em unidades, sendo relevante destacar, em apertada síntese, que enquanto Chiovenda pregava que o valor do bem da vida em litígio podia originar tantos capítulos quantos fossem as variações numéricas suscitadas pelos fatos (CHIOVENDA, 1923 apud MARQUES, 1999), outro posicionamento, oxigenado por Carnelutti, mas também compatível com a visão de Liebman, sustentava que quando o juiz, por exemplo, acolhe parcialmente o pedido e condena o réu a pagar metade do valor pleiteado pelo autor, ele terá resolvido duas questões, em uma delas dando razão ao autor e em outra decidindo em favoravelmente ao réu (CARNELUTTI, 1952 apud CÂMARA, 2009).
Esgotadas essas considerações iniciais de caráter eminentemente histórico sobre as raízes italianas da teoria, doravante passa-se a uma análise mais restrita à cena nacional. Com efeito, no Brasil, dois doutrinadores que se destacam no trato do tema são José Carlos Barbosa Moreira (2006) e Cândido Rangel Dinamarco (2002). Este último, inclusive, chegou a dedicar uma obra específica à abordagem da teoria dos capítulos da decisão judicial. Nessa obra, Dinamarco conceitua capítulo de sentença como:
“[…] uma unidade elementar autônoma, no sentido de que cada um deles expressa uma deliberação específica; cada uma dessas deliberações é distinta das contidas nos demais capítulos e resulta da verificação de pressupostos próprios, que não se confundem com os pressupostos das outras” (DINAMARCO, 2002, p. 34).
Cândido Rangel Dinamarco (2002) ainda ensina que os capítulos de sentença devem ser conceituados como os fragmentos em que ideologicamente se decompõe o decisório de uma decisão judicial, cada um deles abrigando o julgamento de uma pretensão distinta. Nessa trilha, em que pese a decisão judicial, em regra, seja tomada como una sob o aspecto meramente formal, em várias situações se verifica a possibilidade de se proceder à sua cisão ideológica. Desse fracionamento surgem os chamados capítulos de sentença, entendidos, para além das divergências doutrinárias, como toda unidade autônoma alocada na parte dispositiva de uma decisão judicial (DIDIER JÚNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2009).
Por sua vez, Babosa Moreira (2006) chama a atenção para a figura das chamadas sentenças objetivamente complexas, descrevendo-as como aquelas cujo dispositivo abriga mais de uma decisão ou, em outras palavras, aquelas que se compõem de mais de um capítulo. Nesse iter, as decisões alocadas na parte dispositiva do ato judicial correspondem, portanto, aos capítulos de sentença, segundo o autor retrocitado. Demais disso, para Barbosa Moreira (2006), a pluralidade de capítulos numa decisão pode se dar por duas principais razões: a primeira, quando o juiz resolver mais de um fato com análise de mérito, apreciando vários pedidos do autor e/ou do próprio réu no caso de pretensões veiculadas em sede de reconvenção; a segunda, quando o bem da vida em discussão for passível de cisão quantitativa e o juiz, ao decidir, entender pela parcial procedência (sucumbência recíproca) – nessa situação, a decisão poderá ser fragmentada em pelo menos dois capítulos: o primeiro contendo decisão favorável ao autor e o segundo, decidindo favoravelmente ao réu.
Um ponto de divergência entre o posicionamento de Barbosa Moreira e as concepções defendidas por Dinamarco reside no fato de que este, por ter adotado a teoria de Liebman sobre o capi de sentenza, entende que a análise da admissibilidade do julgamento de mérito também tem a aptidão para dar origem a capítulos de sentença. Não apenas as decisões sobre o mérito possuiriam tal prerrogativa (SÁ, 2015). Uma vez revelada a noção básica acerca dos capítulos da decisão judicial, questão de acentuada relevância é entender como se dá o relacionamento entre esses capítulos. Com efeito, justamente visando à decifração dessa interação entre os capítulos de uma decisão judicial é que a doutrina criou várias classificações, categorizando esses capítulos, ressalta-se.
A primeira preocupação da doutrina, no que concerne a essa missão de organização taxonômica, consiste na demarcação da natureza jurídica que os capítulos podem apresentar. Visando a esse objetivo, são as palavras de Didier Júnior, Braga e Oliveira, com inspiração na obra de Dinamarco:
“Essa unidade autônoma tanto pode encerrar uma decisão sobre a pretensão ao julgamento de mérito (capítulos puramente processuais), como uma decisão sobre o próprio mérito (capítulos de mérito). Ou seja: i) capítulos puramente processuais são aqueles que se pronunciam explicitamente sobre a possibilidade de examinar o mérito, isto é, tratam da presença ou ausência dos requisitos de admissibilidade do julgamento de mérito; ii) capítulos de mérito são aqueles que se pronunciam sobre o próprio objeto litigioso do procedimento. (DIDIER JÚNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2009, p. 305)” (grifos constantes do original)
Com espeque nessa distinção, que considera o objeto de cognição, é que as decisões podem ainda ser classificadas em homogêneas e heterogêneas. As primeiras assim denominadas por versarem sobre o mesmo objeto de cognição, e estas caracterizadas pela apreciação de matéria preliminar ao julgamento de mérito e também de matéria de mérito, ou seja, pluralidade de objetos de cognição (SÁ, 2015). Exemplificativamente: no primeiro caso, o rótulo de decisão homogênea seria aplicável tanto na hipótese de existirem dois capítulos de mérito, quando na de dois capítulos processuais, o que importa é a natureza da matéria sob conhecimento; já no segundo, um exemplo seria a hipótese de o juiz afastar um vício processual e, em seguida, julgar o mérito, caso em que decidiria dois capítulos diferentes na mesma sentença. Sobre essa segmentação das decisões, quanto ao conteúdo analisado pelo magistrado, Neves faz as seguintes observações:
“Nem sempre existirá o capítulo referente aos pressupostos de admissibilidade do julgamento do mérito – condições da ação e pressupostos processuais – porque é possível que numa demanda a ausência de qualquer vício procedimental dispense a formação de tal capítulo. Por outro lado, também é possível que a decisão tenha somente esse capítulo e aquele referente ao custo financeiro do processo, quando ocorre extinção do processo sem resolução do mérito com a condenação do autor ao pagamento das verbas de sucumbência (sentença homogênea). Sendo superadas as matérias processuais – ainda que exista mais de uma haverá somente um capítulo – se passa ao julgamento do mérito, que constitui outro capítulo da decisão (sentença heterogênea)”. (NEVES, 2016, p. 775) (grifos do original)
Ademais, no que se refere às sentenças complexas, acima mencionadas, cumpre ressaltar que nesses casos o objeto de cognição pode ser apenas um – a exemplo: pedido relativo a coisas suscetíveis de quantificação (contagem, medição, pesagem, etc). Todavia, isso não conduz, necessariamente, à conclusão de que a decisão será puramente homogênea, dado que se o pedido for parcialmente acolhido, haverá, consoante já visto, dois capítulos de mérito: um relativo à parcela deferida e outro à parcela rejeitada. Além de homogênea, essa sentença será também objetivamente complexa (MOREIRA, 2006). Outra preocupação da doutrina consiste em identificar o grau de interação entre os capítulos de uma decisão. Sobre tal questão, Câmara defende a seguinte classificação:
“[…] são capítulos independentes aqueles que proferem decisões que não dependem de nenhum outro pronunciamento, contido na mesma ou em outra sentença, para subsistir, enquanto dependentes são aqueles capítulos cuja existência está condicionada a outra decisão. Assim, por exemplo, a decisão que, por falta de pressuposto processual, extingue o módulo processual em que proferida sem resolução de mérito é um capítulo independente da sentença (que, normalmente, conterá mais de um capítulo, sobre a obrigação de pagar pelo custo do processo). Do mesmo modo, são independentes os capítulos que julgam pedidos cumulados quando se trata de cumulação simples de demandas. De outro lado, é dependente o capítulo que julga o segundo pedido formulado em uma cumulação sucessiva de demandas (já que este só pode ser apreciado se o segundo tiver sido acolhido).” (CÂMARA, 2009, p. 436).
Essa classificação não se confunde a noção de autonomia, de vez que para se reputar, tecnicamente, uma parte do decisório como capítulo de decisão é imprescindível a presença de autonomia. Ou seja, antes mesmo de avaliar se um capítulo é dependente ou independente, é necessário aferir se essa parte do decisório de fato é um capítulo, isto é, se está presente a autonomia (DINAMARCO, 2002). Cumpre, nesse passo, destacar que a autonomia dos capítulos é tema extensamente tratado por Dinamarco (2002). Mais acima, inclusive, já se mencionou a tendência desse doutrinador em adotar os ensinamentos de Liebman sobre essa temática. Em estreita síntese, para Dinamarco (2002), não se pode ababelar as ideias de dependência/independência com a noção de autonomia, isso porque todos os capítulos são necessariamente autônomos, podendo haver variação apenas no que tange à sua dependência ou independência conforme, respectivamente, haja ou não relação de prejudicialidade.
Analisando mais a fundo, a aferição de autonomia nas diversas partes que um decisório pode ser levada a efeito por meio de dois parâmetros fundamentais: o da possibilidade de a fração decisória ser objeto de um processo apartado e o da disciplina por pressupostos próprios, diferentes dos que regem as outras partes da decisão. Fixadas essas premissas, a conclusão primeira é a de que os capítulos devem apresentar autonomia em razão de pelo menos um desses parâmetros, do contrário, sequer devem ser rotulados como tal (DINAMARCO, 2002).
Pois bem. Conforme é cediço, a exigência de interesse de agir impede que seja instaurado um processo com a simples finalidade de se pronunciar a ausência de um pressuposto processual ou mesmo de uma condição da ação. Daí porque não se concebe que capítulos meramente processuais sejam autônomos a partir do parâmetro centrado na possibilidade de a fração decisória ser versada em processo separado. Possuem, assim, autonomia relativa, ou seja, apenas em relação ao segundo parâmetro. Lado outro, as frações decisórias que tratam do mérito processual podem ser reputados como capítulos de decisão e, portanto, possuidoras de autonomia, com espeque em qualquer desses parâmetros, seja pelo fato de poder ser objeto de um processo à parte, seja pela existência de pressupostos próprios (DINAMARCO, 2002). Neste compasso, partindo-se do pressuposto de que dos parâmetros acima citados o segundo é o mais abrangente, visto permitir a aferição da autonomia dos capítulos processuais e também dos de mérito, ele é o mais adequado para explicar o fenômeno da autonomia. Sem embargo, os ensinamentos de Câmara (2009) ratificam essa exegese:
“Neste plano, a autonomia dos diversos capítulos da sentença revela apenas uma distinção funcional entre eles, sem que necessariamente todos sejam portadores de aptidão a constituir objeto de julgamentos separados, em processos distintos e mediante mais de uma sentença: a autonomia absoluta só se dá entre os capítulos de mérito, não porém em relação ao que contém julgamento da pretensão ao julgamento deste (capítulo que aprecia preliminares”) (CÂMARA, 2009, p. 434) (grifos constantes do original)
Portanto, autonomia e independência são realidades que não se confundem. Embora todo capítulo de decisão seja necessariamente autônomo, nem todos são independentes. Se há influência de um no julgamento do outro, são dependentes; se não há, independentes. O foco da análise deve ser a relação de prejudicialidade (DINAMARCO, 2002).
Exemplificativamente, tratando-se de cumulação sucessiva, o indeferimento do pedido principal é fatalmente prejudicial ao pedido sucessivo, pelo que, são dependentes os capítulos; no caso de cumulação simples, porque ausente qualquer traço de prejudicialidade, os capítulos são claramente independentes; por fim, a fração decisória que aprecia a admissibilidade do julgamento de mérito, se concluir pela ausência dos pressupostos processuais ou das condições da ação, impede a análise do mérito, ou seja, há nesse caso uma relação de subordinação marcada pela existência de capítulos condicionantes e capítulos subordinados (DINAMARCO, 2002). Sá, ainda, registra outra classificação, centrada no caráter principal ou acessório de um capítulo de decisão:
“Existem capítulos que sobrevivem por si e em si, não necessitando de outros para a produção de seus regulares efeitos. São os capítulos principais. Contudo, existem determinados capítulos em que sua existência depende do capítulo principal. Os honorários e a correção monetária são subordinados à existência de outro capítulo. São denominados capítulos subordinados ou acessórios”. (SÁ, 2015, p. 483) (grifos constantes do original)
Depois de enfrentadas as necessárias digressões sobre a natureza dos capítulos e os respectivos graus de interação entre eles, cumpre trazer à baila as conclusões de Dinamarco acerca da forma básica de se proceder à cisão ideológica de uma decisão judicial:
“[…] a divisão pode ser realizada da seguinte forma: a) capítulo referente aos pressupostos processuais de admissibilidade do julgamento de mérito; b) diferentes capítulos decidindo no mérito diferentes pedidos; c) nos pedidos decomponíveis a existência de dois capítulos quando do julgamento de parcial procedência; d) capítulo referente ao custo financeiro do processo”. (DINAMARCO, 2001, p. 663 apud NEVES, 2016, p. 775)
Por fim, ainda há na doutrina argumentos que defendem a cisão jurídica do dispositivo de uma decisão. As teses nessa direção se arvoram na defesa de que o provimento jurisdicional veiculado numa ação é perfeitamente passível de decomposição, especialmente à vista da tradicional noção de objeto imediato (correspondente à providência jurisdicional que se pretende obter: declaração, condenação, expedição de ordem, etc) e objeto mediato, referente ao próprio bem da vida em litígio[2].
Dinamarco (2002) ainda esclarece a possibilidade de cisão jurídica nos casos em que o juiz decide pedidos suscetíveis de contagem, medição ou qualquer outra forma de quantificação. Nesse caso, a decisão reconhece a existência do direito do autor (an debeatur) e, em seguida, fixa os limites desse direito (quantum debeatur). Dois capítulos, portanto. Não descartando a existência de outras classificações e categorizações acerca da teoria dos capítulos de sentença, reputa-se, neste iter, minimamente esposados os seus fundamentos elementares da teoria em foco, os quais servirão de premissas ao desenvolvimento da seção seguinte.
3 ANÁLISE DAS PRINCIPAIS REPERCUSSÕES DA TEORIA DOS CAPÍTULOS DE SENTENÇA À LUZ DO CPC/2015
Com a entrada em vigor da Lei n. 13.105/2015, instituidora do Novo Código de Processo Civil, a teoria dos capítulos de sentença, conforme já salientado alhures, passou a encontrar no direito positivo fundamentos bastantes à sua afirmação científica[3]. Nessa toada, os tópicos seguintes buscarão justamente demonstrar, de modo não exaustivo, os principais avanços levados a efeito pelo Novo Codex no tocante à teoria ora colocada sob análise.
Com efeito, sem prejuízo das demais inovações trazidas pelo CPC/2015 no tocante à teoria dos capítulos de sentença, a presente abordagem se limitará à análise das repercussões geradas nos seguintes campos: teoria da decisão judicial, dispensando-se especial destaque ao novel instituto do julgamento antecipado parcial do mérito; teoria das nulidades processuais; fixação dos encargos sucumbenciais; e executividade parcial das decisões.
3.1 Teoria da Decisão Judicial
É importante ter em mente que quando se faz menção à chamada teoria da decisão judicial, essencialmente, a referência diz respeito àqueles delineamentos traçados pelo Código de Processo Civil e, às vezes, até mesmo pela Constituição da República (v. g. Art. 93, IX – exigência de fundamentação das decisões). Sobre essas premissas normativas é que a doutrina estabelece os elementos de um teoria básica que orienta a atividade jurisdicional sobre o arcabouço técnico-jurídico em que os pronunciamentos judiciais com carga decisória necessitam estar lastreados (DIDIER JÚNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2009). Despiciendo o enfrentamento de divagações sobre outros pronunciamentos judiciais despidos de caráter decisório – v. g. despachos e atos de mero expediente –, importa colacionar uma breve noção do que vem a ser, genericamente, uma decisão judicial. Nesse particular, vale conferir as lições de Watanabe sobre a temática da cognição:
“A cognição é prevalentemente um ato de inteligência, consistente em considerar, analisar e valorar as alegações e as provas produzidas pelas partes, vale dizer, as questões de fato e as de direito que são deduzidas no processo e cujo resultado é o alicerce, o fundamento do judicium, do julgamento do objeto litigioso do processo”. (WATANABE, 2005, p. 67) (grifos constantes do original)
Esse ato de inteligência a que se refere o autor retrocitado constitui, na essência, o espírito de todo e qualquer pronunciamento judicial com carga decisória. Portanto, tem-se, assim, dimensionada uma noção perfeitamente aplicável às sentenças e às decisões interlocutórias, em primeiro grau de jurisdição, e aos acórdãos e às decisões monocráticas, em segundo. Mais restritamente ao tema objeto do presente trabalho, destaca-se que, ao abordar a técnica de fracionamento ideológico das decisões judiciais nos domínios da teoria da decisão judicial, Câmara registra as seguintes considerações:
“Ponto que merece ser estudado quando se desenvolve a teoria da sentença é o dos assim chamados capítulos de sentença. Diga-se, porém, e desde logo, que o termo sentença vai aqui empregado em sentido bastante amplo, pois pode haver capítulos de qualquer provimento jurisdicional (como uma decisão interlocutória ou um acórdão). Trata-se de um dos temas mais sofisticados e complexos de toda a ciência processual, com grande importância teórica e prática.
Embora o tema guarde grande conexão com o estudo dos recursos, é na teoria da sentença que o mesmo deve ser examinado (até por produzir reflexos também em outras partes da ciência processual, como a coisa julgada).” (CÂMARA, 2009, p. 432)
Não olvidando outras implicações, na seara da teoria da decisão judicial, as repercussões da teoria dos capítulos de sentença envolvem a própria estrutura lógica do decisório. Bem por isso, merecem destaque as diferentes posturas a serem adotadas pelo magistrado a depender dos aspectos objetivos da demanda. Relativamente a esse ponto, Assis chama a atenção para a complexidade que paira sobre o chamado processo cumulativo:
“O processo cumulativo necessita de disciplina própria, conforme a respectiva espécie, e apresenta inúmeras dificuldades no que tange à técnica do julgamento do mérito, a distribuição das despesas do processo, e o efeito devolutivo da apelação. Por exemplo, formulando o autor dois pedidos, um em caráter principal, o outro subsidiário, ensejando que o juiz somente examine este na hipótese de rejeição daquele, na chamada cumulação eventual (omissis), a teor do art. 326, caput, do NCPC, surgirá ao menos dois problemas no caso de o juiz efetivamente rejeitar o pedido antecedente e acolher o pedido subsequente, a saber: (a) a existência de decaimento parcial do autor, com o fito de atribuir-lhe, em parte, os ônus da sucumbência; (b) a possibilidade de o autor recorrer, postulando o acolhimento do pedido principal, e, faltando essa iniciativa, a do órgão ad quem apreciar o pedido rejeitado, no caso de prover a apelação do réu quanto ao pedido secundário. Por outro lado, acolhido o pedido principal, há outra questão: a possibilidade de o órgão ad quem, provendo a apelação do réu quanto a esse pedido, estimar devolvido o conhecimento do segundo pedido, e passar a julgá-lo diretamente, havendo sido produzidas provas suficientes para tal juízo”. (ASSIS, 2015, p. 537) (grifos constantes do original)
Neste quadrante, deflui-se que teoria dos capítulos de sentença exerce indiscutível influência na condução, pelo juiz, do processo de estruturação da decisão. Esta exegese, inclusive, encontra amparo nos ensinamentos de Câmara:
“A sentença será, sempre, formalmente una, ainda que nela sejam proferidas diversas decisões. Haverá, então, uma sentença em capítulos.
(omissis)
Pense-se, então, em uma sentença que julga procedente o (único) pedido formulado pelo autor e, além disso, condena o réu a arcar com as despesas processuais e honorários advocatícios. Parece óbvio que esta sentença tem dois capítulos: um principal, de mérito; outro acessório, sobre o custo econômico do processo. Pode, ainda, haver outros capítulos. Caso o juízo, na sentença, aprecie questões preliminares, cada decisão que a respeito delas se profira será um capítulo de sentença. Assim, por exemplo, se o juízo, na sentença, declarou ter o demandante preenchido todas as “condições da ação” e, além disso, acolheu seu (único) pedido e condenou o réu a arcar com o custo do processo, terá proferido sentença com três capítulos”. (CÂMARA, 2009, p. 434-435)
Relativamente ao tema sub examine, o NCPC propiciou significativa evolução no tocante à teoria dos capítulos de sentença, e esse raciocínio fica nitidamente cristalizado com a análise dos ensinamentos de Marinoni e Arenhart, ainda sob a égide do CPC/73, sobre a superação do denominado princípio da unidade ou unicidade do julgamento após a inserção, no Código Buzaid, do instituto da tutela antecipada desvinculada de alegação de perigo (§6º do Art. 273, CPC/73):
“O CPC, em sua primeira estrutura, não permitia o fracionamento do julgamento do pedido ou de um dos pedidos cumulados. É que a sua originária feição é marcada pelo princípio da unidade ou unicidade do julgamento. Esse princípio quer expressar que o mérito não deve ser resolvido pelo juiz em partes, pois seria mais adequado considerar toda a sua extensão quando do julgamento. Como consequência lógica, o processo deveria viabilizar somente uma oportunidade – uma sentença – para a solução. (omissis)
O agravamento da demora da justiça e o surgimento de situações de direito substancial que exigem pronta solução do judiciário tornaram pacífica a tese de que há direito fundamental à tutela jurisdicional tempestiva. Esse direito fundamental implica em um direito à tutela jurisdicional sem dilações indevidas e, assim, redunda na impossibilidade de o juiz adiar a concessão da tutela após ter formado o seu convencimento. Nessa perspectiva de tempestividade, a cumulação de pedidos – que sempre foi estimada em nome da economia processual -, por poder gerar situações em que um pedido se torne pronto para julgamento bem antes do outro, também pode atentar contra tal direito fundamental ao se insistir na impossibilidade de fragmentação da demanda. (omissis)
[…] o processo civil, como instrumento, não pode estar predisposto de modo a não viabilizar a tutela da parcela incontroversa da demanda. De qualquer forma, com base no art.5.º, XXXV, da CF, e, assim, antes da introdução do direito fundamental à duração razoável no art.5.º da Constituição Federal, propusemos a tese do julgamento imediato da parcela incontroversa da demanda, posteriormente expressa, na falta de localização de melhor lugar pelo legislador, no §6º do art.273 do CPC: “a tutela antecipada também poderá ser concedida quando um ou mais dos pedidos cumulados, ou parcelas deles, mostrar-se incontroverso.” (MARINONI, 2010, p. 109-111) (grifos constantes do original)
É ínsita à técnica de fracionamento do julgamento a consideração de todos aqueles elementos fundamentais da teoria dos capítulos de sentença, daí porque, no tocante à teoria da decisão judicial, o NCPC, ao prever a figura do julgamento antecipado parcial do mérito, ampliou sobremaneira os alicerces da tese que prega a decomposição da sentença em capítulos (WAMBIER et al., 2015). Demais disso, a partir do escólio acima colacionado, pode-se afirmar que o princípio da unidade ou unicidade do julgamento já vinha sendo superado desde as reformas no CPC/73, tendo o Novo Codex consagrado essa tendência sobretudo com a inserção do referido instituto, asilado no art. 356[4] do NCPC.
Sobre o novel instituto, após sustentar que a grande novidade do Novo Código de Processo Civil quanto ao julgamento antecipado do mérito é a previsão de que ele pode ser parcial, Neves tece as seguintes considerações:
“O dispositivo encerra uma considerável polêmica doutrinária quanto à melhor interpretação do art.273, §6º, do CPC/1973. Apesar de prevista como espécie de tutela antecipada no revogado diploma processual, o julgamento parcial do mérito suscitava interessante debate doutrinário: seria realmente um espécie diferenciada de tutela antecipada ou um julgamento antecipado parcial da lide? (omissis)
A opção do legislador no Novo Código de Processo Civil foi modificar a natureza jurídica dessa espécie de julgamento, tornando o que anteriormente era uma espécie diferenciada de tutela antecipada em julgamento antecipado parcial do mérito. Afastou-se do princípio da unicidade do julgamento do mérito preconizado por Chiovenda, passando a prever a hipótese de julgamento fracionado do mérito. (omissis)
Com a alteração, o capítulo que decide a parcela do mérito produzirá coisa julgada material ao transitar em julgado, não sendo possível o juiz posteriormente modificar a decisão ao resolver a parcela do mérito que demandou a continuidade, ainda que parcial, do processo.” (NEVES, 2016, p. 623-625) (grifos constantes do original)
Por conseguinte, o julgamento antecipado parcial do mérito, extirpando antiga cizânia decorrente da tradição ecoada do princípio da unidade ou unicidade do julgamento, pode ser considerado um dos institutos que melhor reflete a adoção pelo NCPC da teoria dos capítulos de sentença. Em estreita síntese, o NCPC, ao prever o instituto do julgamento antecipado parcial do mérito, positivou fundamentos que deferem cientificidade à teoria dos capítulos de sentença, já que por meio dessa técnica de julgamento os capítulos de decisão, que no sistema do CPC/73 teriam que compor um único decisório, podem agora ser pulverizados ao longo do iter processual[5].
Ademais, consoante se colhe das lições de Marinoni e Arenhart (2010) acima transcritas, a efetivação do acesso à justiça também dialoga positivamente com a necessidade de afastamento do dogma da unidade ou unicidade do julgamento. Isso fica ainda mais enfatizado a partir do pensamento de Nery Júnior (2013) ao tratar do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional sob a ótica da adequação da tutela jurisdicional: “[…] o jurisdicionado tem direito de obter do Poder Judiciário a tutela jurisdicional adequada. A lei infraconstitucional que impedir a concessão da tutela adequada será ofensiva ao princípio constitucional do direito de ação.”(NERY JÚNIOR, 2013, p. 188).
Nessa mesma direção, também se orientam os ensinamentos de Sá (2015, p. 906): “Não há motivo plausível para que se proíba que parte do conflito seja resolvida em caráter de definitividade antes de outra, se já houver essa possibilidade. A boa técnica da economia, efetividade e celeridade processual orientam essa vertente”. Não obstante a nitidez dos avanços do Novo Diploma Processual Civil, a teoria dos capítulos de sentença já integrava a cultura processualista brasileira antes do seu advento[6]. Ao NCPC coube, portanto, a tarefa de positivar os fundamentos de tal teoria no sistema processual brasileiro.
3.2 Teoria das Nulidades Processuais
Ao tratar do regramento básico das invalidades processuais, a doutrina comumente se reporta à arquitetura do ato jurídico concebida nos domínios do direito civil, especialmente no que se refere ao Art. 104 do Código Reale, que elenca como requisitos de validade do ato jurídico a capacidade do agente, a licitude do objeto e a forma prescrita ou não defesa em lei. No entanto, entre esses requisitos, o que ganha mais atenção dos códigos de processo é aquele referente às formas de materialização do ato processual. Essa é, inclusive, a tônica encerrada nos artigos 276 a 283 do NCPC (DONIZETTI, 2016).
Como os atos processuais também devem obedecer aos pressupostos a que se submetem os atos jurídicos em geral, a chamada Escada Ponteana tem quanto a eles perfeita aplicação. Assim, um ato processual, para não padecer de invalidade e produzir os efeitos que dele se espera, necessita passar primeiro pelo plano da existência, em seguida pelo da validade e, por fim, chegar ao plano da eficácia. Surgem, neste passo, as seguintes categorias de invalidade: inexistência; nulidade; e ineficácia. Entretanto, o NCPC, assim como o CPC revogado, trata essas espécies de invalidade sob o rótulo de nulidades (SÁ, 2015).
Em apertada síntese, a nulidade pode ser entendida como uma sanção imposta ao ato processual que não cumpriu todos os requisitos exigidos pela lei e que, além disso, não seja passível de resgate à luz do princípio da instrumentalidade das formas cotejado com os princípios da finalidade e do prejuízo, sendo que, diferentemente do que ocorre no campo do direito material, não existe no processo a figura do ato jurídico nulo de pleno direito. Portanto, a nulidade invariavelmente necessita de uma decisão judicial que a reconheça, de modo que não se afigura censurável pensar em atos viciados produzindo efeitos como se válidos fossem (DONIZETTI, 2016).
Para o presente estudo, o que denota relevo é a constatação, a partir da segunda parte do Art. 281 do NCPC – “(omissis) a nulidade de uma parte do ato não prejudicará as outras que dela sejam independentes” (grifos nossos) – , de que em determinados atos processuais complexos, em que pese formalmente unos, descortina-se a possibilidade de a nulidade ser confinada a apenas alguns dos seus capítulos. A doutrina de Neves é partidária dessa exegese:
“No que tange à segunda parte do dispositivo legal, ou seja, ao confinamento da nulidade a apenas parte do ato em que se verificou a nulidade, trata-se de norma a ser aplicada aos atos complexos, na tentativa de preservação do quanto possível do ato. Havendo uma unidade meramente formal do ato, é possível que apenas um dos capítulos do ato seja defeituoso, e, não havendo relação entre tal capítulo considerado viciado com outros tidos como sadios, a anulação deve se limitar ao primeiro (utile per inutile non vitiatur). É o caso típico da decisão saneadora do processo, na qual as atividades do juiz se dividem entre a tentativa de conciliação, saneamento de irregularidades pendentes, fixação dos pontos controvertidos e determinação dos meios de prova. A regra, entretanto, somente será aplicável se as decisões contiverem capítulos independentes entre si e autônomos”. (NEVES, 2016, p. 409-410) (grifos no original)
No que se refere à técnica de confinamento de nulidades segundo a estrutura dos capítulos da decisão judicial, o NCPC também evoluiu em relação à ação rescisória. Entre outras inovações, restritamente aos escopos desse estudo, destaca-se o disposto no Art. 966, §3º do referido diploma, segundo o qual a ação rescisória pode ter por objeto apenas um capítulo da decisão. Esse dispositivo, na verdade, apenas positiva entendimento já consolidado pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça[7].
Além disso, ainda no terreno das nulidades processuais, outras repercussões da teoria dos capítulos de sentença são identificadas pela doutrina naquelas hipóteses em que o órgão jurisdicional profere decisão concedendo algo acima das balizas do pedido. Importando destacar que “[…] se uma decisão for ultra petita, não será necessário que o tribunal anule toda a sentença, bastando eliminar o capítulo que excedeu os limites da demanda, mantendo aquele que se limitou ao que foi pedido” (SÁ, 2015, p. 482).[8]
A par dessas considerações, acaba por ficar evidenciada significativa contribuição da teoria dos capítulos de sentença no processo de depuração dos atos decisórios parcialmente viciados. Não seria exagero afirmar que a nulificação total de uma decisão apenas em parte viciada, quando possível o confinamento dos fragmentos inservíveis, afronta até mesmo a garantia de acesso à justiça.
3.3 Fixação dos Encargos Sucumbenciais
Conforme é cediço, não diferente das demais funções do Estado, o desenvolvimento da atividade jurisdicional demanda contrapartida orçamentária. Por detrás do processo judicial há um custo, muitas vezes elevado, inclusive. A par disso, o legislador estabelece uma série de regras acerca do sistema de adiantamento de despesas e da responsabilidade pelo custo do processo quando do exaurimento da demanda. Normas com essa envergadura é que compõem o chamado regime financeiro do processo (DINAMARCO, 2003).
Basicamente, o NCPC trata dessas regras em seus artigos 82 a 97, sendo que, não obstante as diversas inovações que o Novel Código introduziu na processualística civil, importa, para a presente abordagem, a análise do seu Art. 86[9]. A ênfase dada ao citado dispositivo legal justifica-se à medida que ele comporta perfeita aplicação da teoria dos capítulos de sentença nos casos de sucumbência recíproca, inclusive, mesmo antes do NCPC, já pontuava Didier Júnior, Braga e Oliveira:
“Quanto ao custo financeiro do processo, a teoria dos capítulos de sentença interfere na forma em que ele é distribuído. Havendo, por exemplo, sucumbência recíproca, responderá o autor pelas despesas e honorários relativos ao capítulo em que foi sucumbente, cabendo ao réu fazer o mesmo, quanto ao capítulo em que se viu vencido”. (DIDIER JÚNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2009, p. 307)
Verifica-se, portanto, que a teoria dos capítulos de sentença desempenha relevante papel na fixação dos ônus da sucumbência, mormente quando presente no caso concreto a circunstância de as partes serem ao mesmo tempo vencedoras e vencidas. Parte-se de uma análise objetiva, fracionando-se a decisão em capítulos para em seguida aferir em quais deles cada parte sucumbiu e em quais venceu (DINAMARCO, 2002).
3.4 Executividade Parcial das Decisões
Sem perder de vista eixo hermenêutico já contemplado neste estudo, segundo o qual a tutela jurisdicional adequada integra o conteúdo elementar do princípio do acesso à justiça, a doutrina registra repercussões da teoria dos capítulos de sentença de diversas ordens na cena executiva. Primeiramente, entre os dispositivos do NCPC, o §1º do Art. 509 – “Quando na sentença houver uma parte líquida e outra ilíquida, ao credor é lícito promover simultaneamente a execução daquela e, em autos apartados, a liquidação desta.” (grifos nossos) – é tomado de forma bastante efusiva pela doutrina, inclusive, segundo Neves, tal dispositivo teve o mérito de corroborar a teoria dos capítulos de sentença:
“Independentemente da espécie de liquidação de sentença cabível no caso concreto, o art. 509, §1.º do Novo CPC, consagra a teoria dos capítulos de sentença, permitindo à parte concomitantemente liquidar capítulo ilíquido e executar capítulo líquido”. (NEVES, 2016, p. 791).
Outro aspecto destacado pela doutrina concerne aos desdobramentos a que determinadas decisões judiciais necessitam ser submetidas para ter viabilizado o seu cumprimento. O exemplo corrente diz respeito à decisão que certifica o direito a várias prestações (fazer, não fazer, dar coisa ou entregar quantia), em que, por terem os capítulos eficácias executivas diferentes, devem se sujeitar aos procedimentos executivos próprios – v.g. cumprimento de sentença relativo à obrigação de pagar quantia, efetivando um capítulo da decisão, e cumprimento de sentença referente à obrigação de fazer, concretizando o comando de outro capítulo (DIDIER JÚNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2009).
Até mesmo na chamada exceção/objeção de pré-executividade (ou exceção executiva, para alguns doutrinadores) é identificado influxo da teoria dos capítulos de sentença. Por expressa disposição legal (NCPC, Art. 525, §4º), na hipótese de o executado alegar excesso de execução – a exemplo: aventar que o exequente vindica quantia superior à resultante da sentença –, deverá se desincumbir do ônus de, desde logo, indicar o valor que entende correto e ainda apresentar demonstrativo discriminado e atualizado de seu cálculo. Caso não proceda dessa forma, o §5º do dispositivo em referência é taxativo ao prever o indeferimento liminar da impugnação relativamente à alegação de excesso de execução.
Nos casos de alegação de excesso de execução, portanto, nota-se que o crédito exequendo acaba sendo fracionado em capítulos: um coincidente com a parcela impugnada, dito excessivo, e o outro correspondente ao valor incontroverso, aceito pelo executado. É esse raciocínio que justifica a penalidade de indeferimento liminar da impugnação caso o executado não indique o valor que entende devido (capítulo incontroverso). A discussão, neste sentido, limita-se a outra parcela do crédito, isto é, à que foi alvo da alegação de excesso (DIDIER JÚNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2009).
Em Donizetti (2016), a lógica ínsita à teoria dos capítulos de sentença fica ainda mais evidenciada. Segundo esse jurista, indicado o valor correto pelo executado, a impugnação terá por objeto apenas o valor controvertido. Assim, a fração creditícia reconhecida seguirá o cumprimento de sentença, independentemente de eventual efeito suspensivo que se atribua à impugnação. Além disso, em sede executiva, a teoria dos capítulos de sentença também merece destaque no que tange à possibilidade de se proceder à execução parcial de uma decisão judicial que venha a ter apenas alguns dos seus capítulos infirmados por recurso com efeito suspensivo. Ausente liame de prejudicialidade entre os capítulos impugnados e os não impugnados, nenhum óbice se opõe à imediata tutela dos capítulos isentos de irresignação recursal (SÁ, 2015).
Por fim, cumpre trazer à baila entendimento que, além de homenagear o princípio do acesso à justiça, confere interpretação mais sistemática aos diversos institutos do direito processual civil. Trata-se da possibilidade de expedição de precatório judicial quanto às parcelas incontroversas nos casos em que a impugnação do executado tem caráter parcial[10]. Esse posicionamento já vinha sendo pacificado pelo STJ muito antes do advento do NCPC. O Novo Diploma Processual Civil, porém, atento ao comportamento dos tribunais pátrios culminou por adotar o citado entendimento em seu Art. 535, §4º – “Tratando-se de impugnação parcial, a parte não questionada pela executada será, desde logo, objeto de cumprimento”.[11]
No plano prático, a aplicação do §4º do Art. 535 do NCPC, indene de dúvidas, permite a abertura de novos horizontes ao cumprimento de precatórios, bastando imaginar, para exemplificar, que a expedição de precatório quanto à parcela incontroversa evita que a parte tenha que esperar o trânsito em julgado final para, só então, ter seu crédito incluído no orçamento da fazenda pública devedora.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante das premissas assentadas, conclui-se que a teoria dos capítulos de sentença, com raízes na doutrina italiana, consiste numa técnica marcada pelo afastamento da visão formal acerca da decisão judicial com o fito de viabilizar a sua cisão ideológica. Fragmentada uma decisão sob o ponto de vista material, cada parte autônoma, que pode ser dependente ou independente de outra, passa a compor um capítulo dessa decisão. Com efeito, o reconhecimento dessas unidades autônomas é que incute no processo civil uma série de repercussões que otimizam a operabilidade do trâmite processual.
No que concerne à teoria da decisão judicial, a técnica de decomposição da decisão em capítulos tem sua importância revelada à medida que a própria estrutura lógica de uma decisão judicial parte dos fundamentos elementares que lastreiam a teoria dos capítulos de sentença. Sem a visão de que uma decisão materialmente pode abrigar em seu dispositivo vários fragmentos decisórios, seria um tanto difícil compreender institutos básicos da ciência processual, como, por exemplo, a cumulação de pedidos, a prejudicialidade, a sucumbência recíproca, dentre outros.
O NCPC, nesse particular, destaca-se pela festejada inovação levada a efeito com a inserção no ordenamento pátrio do instituto do julgamento antecipado parcial do mérito (Art. 356), rompendo, assim, com o dogma da unidade/unicidade do julgamento. Isso porque, a partir dessa nova figura, o julgamento do mérito, antes concentrado num só ato decisório e ao final do processo, passa a ser suscetível de decisões parciais ao longo do iter processual, o que reforça as concepções delineadoras dos capítulos de decisão.
Em relação às nulidades processuais, deflui-se que a teoria dos capítulos de sentença, a partir dos avanços do novo regramento processual civil, passou a manifestar maior ponto de contato com o sistema de confinamento de nulidades (NCPC, Art. 281, segunda parte). Demais disso, a previsão do Novo Diploma sobre a possibilidade de a ação rescisória ter como objeto apenas um capítulo da decisão judicial (Art. 966, §3º) não destoa dessa tendência. Já no trato da distribuição do ônus da sucumbência, a teoria dos capítulos de sentença tem o mérito de permitir uma análise objetiva da situação das partes. Estas, inclusive, nos casos de sucumbência recíproca, respondem pelo custo financeiro do processo de conformidade com o êxito obtido nos diferentes capítulos decisórios (NCPC, Art. 86).
Por fim, sob a ótica da executividade parcial das decisões, a teoria em estudo ganha destaque por inspirar reflexões acerca do efetivo e adequado acesso à justiça, no sentido de que, se um capítulo da decisão já pode ser entregue ao destinatário da tutela jurisdicional, dilações formalistas vão de encontro à promessa constitucional da ubiquidade de justiça. Alguns dispositivos do NCPC, nesse particular, também manifestam a adoção da teoria dos capítulos de sentença, em especial: o §1º do Art. 509, que permite, em relação a uma mesma decisão judicial, a liquidação de capítulos ilíquidos e a execução dos líquidos; o §4º do Art. 525, que adota inteligência claramente consentânea com a teoria dos capítulos de sentença; e o §4º do Art. 535, que positivou o entendimento jurisprudencial sobre a possibilidade de expedição de precatório quanto à parcela incontroversa da demanda.
Depreende-se, a partir dos pontos abordados, que o NCPC, no cotejo com o Código Buzaid, evoluiu sobremaneira no que se refere à adoção da técnica de fragmentação ideológica da decisão judicial como meio de propiciar maior operabilidade ao trâmite processual. A teoria dos capítulos de sentença ganhou, dessa forma, fundamentos para sua afirmação científica, o que permitirá uma progressiva ampliação das suas repercussões no plano prático.
Informações Sobre o Autor
Tauã Lima Verdan Rangel
Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), linha de Pesquisa Conflitos Urbanos, Rurais e Socioambientais. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especializando em Práticas Processuais – Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Camilo-ES