Resumo: Em uma primeira plana, a fim de sedimentar conceitos essenciais para a compreensão do instituto em destaque, revela-se imperioso compreender a acepção de pessoa jurídica, a partir das concepções estruturadas tanto pela legislação como pela doutrina. Pois bem, impende assinalar que a pessoa jurídica é descrita como uma ficção jurídica, estruturadas pela legislação com o escopo de suprir a inquietação humana. Denota-se, desse modo, que os sócios da pessoa jurídica, com personalidade diversa da natural, passam a atuar no mundo dos negócios. Verifica-se que a personalidade da pessoa jurídica afigura-se como verdadeiro escudo, que oculta os protagonistas das relações jurídicas. Logo, no ordenamento jurídico pátrio, há duas espécies de pessoas: a pessoa natural do sócio e a pessoa jurídica. Ao lado disso, há que se assinalar que, em razão da distinção supra, se desfralda como flâmula orientadora o princípio da separação patrimonial entre os bens do sócio e os bens da sociedade, o qual tem como fito precípuo traçar linhas limitadoras no que concerne à responsabilidade do sócio, resguardando, por conseguinte, o patrimônio pessoal de eventuais intempéries.
Palavras-chaves: Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica. Princípio da Separação Patrimonial. Pessoa Jurídica.
Sumário: 1 A Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica: Comentários Introdutórios; 2 A Desconsideração da Personalidade Jurídica no Código Civil: 2.1 A Fraude como Pressuposto para aplicação da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica; 2.2 O Abuso de Direito como Pressuposto para aplicação da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica; 3 A Teoria Expansiva da Desconsideração da Personalidade Jurídica: Primeiros Comentários
1 A Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica: Comentários Introdutórios
Em uma primeira plana, a fim de sedimentar conceitos essenciais para a compreensão do instituto em destaque, revela-se imperioso compreender a acepção de pessoa jurídica, a partir das concepções estruturadas tanto pela legislação como pela doutrina. Pois bem, impende assinalar que a pessoa jurídica é descrita como uma ficção jurídica, estruturadas pela legislação com o escopo de suprir a inquietação humana. “Permite que os empresários enfrentem os desafios e a álea inerentes à prática comercial. Para abrir um comércio ou uma indústria os sócios se expõem a riscos de vários matizes, que podem redundar em dilapidação patrimonial”[1].
Denota-se, desse modo, que os sócios da pessoa jurídica, com personalidade diversa da natural, passam a atuar no mundo dos negócios. Verifica-se que a personalidade da pessoa jurídica afigura-se como verdadeiro escudo, que oculta os protagonistas das relações jurídicas. Logo, no ordenamento jurídico pátrio, há duas espécies de pessoas: a pessoa natural do sócio e a pessoa jurídica. Segundo o festejado doutrinador Clóvis Beviláqua, “a pessoa jurídica, como sujeito de direito, do mesmo modo que no ponto de vista sociológico, é uma realidade social, uma formação orgânica investida de direitos pela ordem jurídica, a fim de realizar certos fins humanos”[2]. Em reforço com as ponderações apresentadas até o momento, oportuna a lição de Freddie Didier Júnior et all de que:
“A pessoa jurídica é, portanto, um instrumento técnico-jurídico desenvolvido para facilitar a organização da atividade econômica. Se assim é, o caráter de instrumentalidade implica o condicionamento do instituto ao pressuposto do atingimento do fim jurídico a que se destina. A pessoa jurídica é técnica criada para o exercício da atividade econômica e, portanto, para o exercício do direito de propriedade. A chamada função social da pessoa jurídica (função social da empresa) é corolário da função social da propriedade, já tão estudada e expressamente prevista na Constituição Federal. O estudo da desconsideração da personalidade jurídica, portanto, deve iniciar-se desta premissa: é indispensável a análise funcional do instituto da pessoa jurídica, a partir da análise também funcional do direito de propriedade, para que se possa compreender corretamente a desconsideração, que, em teoria geral do direito, é sanção aplicada a ato ilícito (no caso, a utilização abusiva da personalidade jurídica)”[3].
Cuida realçar que o Diploma Civilista adotou a denominação pessoa jurídica em razão de ser mais expressiva, bem como por traduzir a natureza particular deste segundo gênero de pessoas. A pessoa jurídica é encontrada na sociedade, que lhe atribui a essência que necessita para substituir e desenvolver-se, motivo pelo qual existe apenas na órbita jurídica, inexistindo, por conseguinte, a existência biológica das pessoas naturais. Nesta senda, impõe lançar mão das lições de Sílvio Rodrigues, em especial quando leciona que “pessoas jurídicas são entidades a que a lei empresta personalidade, isto é, são seres que atuam na vida jurídica, com personalidade diversa dos indivíduos que os compõem, capazes de serem sujeitos de direitos e obrigações na ordem civil”[4].
Ao lado disso, há que se assinalar que, em razão da distinção supra, se desfralda como flâmula orientadora o princípio da separação patrimonial entre os bens do sócio e os bens da sociedade, o qual tem como fito precípuo traçar linhas limitadoras no que concerne à responsabilidade do sócio, resguardando, por conseguinte, o patrimônio pessoal de eventuais intempéries. O corolário em testilha oferta, desta sorte, segurança ao sócio ao tempo em que estimula o investimento. Inclusive, colhe-se, à guisa de exemplificação, entendimento jurisprudencial que se coaduna, de maneira harmoniosa, com o expendido:
“Ementa: agravo de instrumento. Seguros. A desconsideração da personalidade jurídica, por se tratar de medida excepcional, uma vez que pode acarretar graves e irreversíveis prejuízos ao patrimônio particular dos sócios, não deve ser deferida sem um mínimo de prova convincente do uso fraudulento do princípio da autonomia da separação patrimonial. A desconsideração da personalidade jurídica só será juridicamente admissível quando, através do conjunto probatório, for possível denotar-se a presença de elementos que levem à conclusão de terem os sócios agido com intenção dolosa, infringindo preceitos legais, ou se ficar comprovada a extinção irregular da empresa, a não integralização do capital, ou ainda nas hipóteses em que houver confusão entre a pessoa jurídica e a pessoa física dos sócios. No caso concreto, nada disso ocorreu.” Recurso desprovido. (Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – Sexta Câmara Cível/ Agravo de Instrumento Nº. 70036178911/ Relator: Desembargador Ney Wiedemann Neto/ Julgado em 26.08.2010) (destaquei)
Nesse sedimento, pode-se, ainda, gizar que a pessoa jurídica é uma realidade autônoma, detentora de direitos e obrigações, independente dos membros que a integram, com os quais não detêm nenhum vínculo, agindo por si só, inexistindo qualquer ligação com a vontade individual das pessoas naturais que a integram. “Realmente, seus componentes somente respondem por seus débitos dentro dos limites do capital social, ficando a salvo o patrimônio individual”[5]. Quadra avultar que a limitação de responsabilidade ao patrimônio da pessoa jurídico é decorrente de sua personalidade, revelando-se como uma de suas maiores vantagens, sendo, como dito algures, detentora de direitos e obrigações, independente das pessoas que a integram.
Vale salientar que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica foi desenvolvida pelos tribunais norte-americanos e anglo-saxões, sendo, posteriormente, importada para o ordenamento jurídico vigente. O assunto em comento teve sua gênese diante de casos concretos, em que o controlador da sociedade a desviava do fito a que destinava, objetivando impedir fraudes mediante o uso da personalidade jurídica, conferindo responsabilidade aos seus membros. Como paradigmáticos precedentes jurisprudenciais, os quais atuaram como alicerces para edificação da teoria em comento, por necessário, pode-se citar: “1. State vs. Standard Oil Co., julgado pela Suprema Corte do Estado de Ohio, nos EE.UU, em 1892. 2. Salomon vs. Salomon & Co., julgado pela Câmara de Londres, em 1897, na Inglaterra”[6].
Com efeito, o Código Civil de 1916, ressoando o robusto fortalecimento da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, já trazia em suas disposições tal distinção, consoante se infere da redação do artigo 20, ipsis litteris, transcrito: “Art. 20. As pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros”[7]. Pela leitura do dispositivo supra, observa-se que, com clareza solar, o legislador previu, com acerto, distinção entre a pessoa jurídica e os membros que a integram. Trata-se do ponto de partida que foi aprimorado pelo Diploma de 2002, na redação do artigo 50, assim como adoção em outras ramificações do Direito Pátrio.
2 A Desconsideração da Personalidade Jurídica no Código Civil
Tendo por sedimento as ponderações aduzidas, é possível assinalar que, em decorrência da grande independência e autonomia, devido à exclusão da responsabilidade dos sócios, a pessoa jurídica, por vezes, tem-se desviado de seus corolários e fitos, cometendo fraudes e atos eivados de desonestidade, provocando, por conseguinte, reações legislativas, doutrinárias e jurisprudenciais, que objetivam coibir tais abusos, desconsiderando a sua personalidade jurídica. Nesta linha de exposição, pode-se salientar que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, ou ainda teoria da penetração, também denominada de disregard theory surgiu com o escopo primevo de coibir os abusos praticados pelos agentes que, cobrindo-se com o véu proporcionado pelo princípio da separação patrimonial. Tratava-se de situação em que se tornava impossível o ressarcimento de prejuízos ocasionados a terceiros, em razão de atos ilícitos praticados pelos controladores das pessoas jurídicas, ou ainda pelo simples esvaziamento de bens do patrimônio de suas sociedade que garantissem o pagamento das dívidas sociais.
A legislação pátria, ressoando a paulatina construção da teoria em testilha, bem como aprimorando a acepção atribuída, originalmente, pelo Código Civil de 1916, estabeleceu este expediente repressivo à má utilização do ente moral, partindo do pressuposto da autonomia da pessoa jurídica diante a personalidade e patrimônio distintos dos membros que a integram. Sob essa inspiração é que se abriu a possibilidade do órgão judicante desconsiderar a personalidade jurídica quando esta se desviar de suas finalidades e também quando houver confusão patrimonial de bens dos sócios e de bem da pessoa jurídica, a fim de que a responsabilidade advinda desses atos negociais obscuros seja atribuída aos sócios ou administradores que deverão responder pela malversação com seus bens particulares.
Cogente se faz sublinhar que a Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica não visa a anulação da personalidade jurídica, mas somente objetiva desconsiderar a pessoa jurídica no caso concreto, dentro de seus limites, em relação às pessoas e aos bens que atrás dela se escondem. “É caso de declaração especial da personalidade jurídica para determinados efeitos, prosseguindo, todavia, a mesma incólume para seus outros fins legítimos”[8]. O Código Civil de 2002, em seu artigo 50, aprimorando o artigo 20 do Diploma Civilista revogado, consagrou a Teoria Maior da Desconsideração da Personalidade Jurídica. Para tanto, há que se citar a redação do artigo vigente, que assim dicciona:
“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”. (destaquei).
O Enunciado nº. 51 da Jornada de Direito Civil realizada no Superior Tribunal de Justiça assentou sobre a desconsideração tratada no art. 50 do Código Civil: “a Teoria da desconsideração da personalidade jurídica disregard doctrine fica positivada no novo Código Civil, mantidos os parâmetros existentes nos microssistemas legais e na construção jurídica sobre o tema”. E mais: “Só se aplica a desconsideração da personalidade jurídica quando houver a prática de ato irregular e, limitadamente, aos administradores ou sócios que nela hajam incorrido” (Enunciado n. 7 da Jornada do Superior Tribunal de Justiça).
Em uma acepção conceitual, impende assinalar que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica é conhecida como aquela que concede ao juiz a possibilidade de desconsiderar a autonomia jurídica da personalidade da empresa e da personalidade de seus sócios, desde que a sociedade tenha sido utilizada para escopos ilegais ou ainda que tenham o condão de causar prejuízos a seus credores. Em ocorrendo tal situação, o juiz poderá determinar a constrição sobre os bens dos sócios, a fim de adimplir a dívida da empresa, ou também sobre os bens da empresa para pagar dívidas particulares dos sócios, ou, ainda, sobre bens de uma empresa para pagar dívidas de outra empresa do mesmo grupo. Trata-se do episódico levantamento do véu que distingue a pessoa jurídica das pessoas naturais que a compõem. Sobre o art. 50 do Código Civil de 2002, há que se trazer à colação os comentário de Maria Helena Diniz:
“Desconsideração da pessoa jurídica. […] Por isso o Código Civil pretende que, quando a pessoa jurídica se desviar dos fins determinantes de sua constituição, ou quando houver confusão patrimonial, em razão de abuso da personalidade jurídica, o órgão judicante, a requerimento da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, está autorizado a desconsiderar, episodicamente, a personalidade jurídica, para coibir fraudes de sócios que dela se valeram como escudo, sem importar essa medida numa dissolução da pessoa jurídica. Com isso subsiste o princípio da autonomia subjetiva da pessoa coletiva, distinta da pessoa de seus sócios, mas tal distinção é afastada, provisoriamente, para dado caso concreto, estendendo a responsabilidade negocial aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica (RT, 786:163, 778:211, 711:117, 614:109, 657:120, 457:141, 342:181, 387:138, 418:213, 484:149, 580:84, 492:216, 511:199, 673:160, 713:138, JB, 147:286, 152:247, 164:294; …)”[9]. (destaquei)
Há que se frisar que a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica – disregard theory -, pela qual se autoriza o episódico levantamento do véu da sociedade, excepcionando-se o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica em relação aos sócios, é medida que excetua à regra. Muito embora, como regra geral na aplicação da disregard doctrine, parte-se do pressuposto que responde o sócio com seu patrimônio particular pela obrigação da empresa. Embora exista uma regra geral diferenciadora do patrimônio da empresa e o de seus sócios, como titulares de patrimônios diferentes, este princípio da separação patrimonial deve ser superado e ceder em face de circunstâncias especiais e excepcionais.
Obviamente, por necessário, é imperioso assinalar que essas circunstâncias devem ser embasadas em provas robustas de fraude, de prática de atos com finalidade premeditadamente ilícita, de abuso de direito, de desonestidade, se escondendo o sócio sob a máscara societária com o objetivo de desfrutar de seus inegáveis benefícios, ocultando atos contrários a qualquer regra ética, jurídica e social. Saliente-se, por oportuno, que o ente jurídico não pode servir de escudo para frustrar a satisfação do crédito quando presente a hipótese legal que permite a desconsideração de sua personalidade. Nesta linha, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça segue a teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, conforme se vislumbra do seguinte acórdão:
“Ementa: Processual civil e civil. Recurso especial. Ação de execução de título judicial. Inexistência de bens de propriedade da empresa executada. Desconsideração da personalidade jurídica. Inviabilidade. Incidência do art. 50 do CC/02. Aplicação da Teoria Maior da Desconsideração da Personalidade Jurídica. […] – A regra geral adotada no ordenamento jurídico brasileiro é aquela prevista no art. 50 do CC/02, que consagra a Teoria Maior da Desconsideração, tanto na sua vertente subjetiva quanto na objetiva . – Salvo em situações excepcionais previstas em leis especiais, somente é possível a desconsideração da personalidade jurídica quando verificado o desvio de finalidade (Teoria Maior Subjetiva da Desconsideração), caracterizado pelo ato intencional dos sócios de fraudar terceiros com o uso abusivo da personalidade jurídica, ou quando evidenciada a confusão patrimonial (Teoria Maior Objetiva da Desconsideração), demonstrada pela inexistência, no campo dos fatos, de separação entre o patrimônio da pessoa jurídica e os de seus sócios. Recurso especial provido para afastar a desconsideração da personalidade jurídica da recorrente. (Superior Tribunal de Justiça – Terceira Turma/ REsp 970635/SP/ Relatora. Ministra Nancy Andrighi/ Julgado em 10.11.2009/ Publicado no DJe 01.12.2009)” (destaquei)
Pelo Código Civil em vigor, quando restar configurado que a pessoa jurídica se desviou dos fins que estabeleceram sua constituição, em decorrência dos sócios ou administradores a utilizarem para alcançarem o escopo distinto do objetivo societário com o intento de prejudicar outrem ou mesmo fazer uso indevido da finalidade social, ou quando houver confusão patrimonial, ou seja, mistura do patrimônio social com o particular do sócio, que tem o condão de causar dano a terceiro, “em razão de abuso da personalidade jurídica, o magistrado, a pedido do interessado ou do Ministério Público, está autorizado, com base na prova material do dano, a desconsiderar, episodicamente, a personalidade jurídica”[10], com o intuito de coibir fraudes e abusos dos sócios que dela se valeram como defesa, sem que essa medida se desdobre numa dissolução da pessoa jurídica.
Em razão do exposto, denota-se que subsiste o dogma da autonomia subjetiva da pessoa coletiva, não se confundindo com a pessoa de seus sócios, entrementes, tal distinção é rechaçada, ainda que em caráter provisório, em decorrência de uma determinada situação concreta. Verifica-se uma reprimenda pelo uso indevido da personalidade jurídica, por intermédio do desvio de seus objetivos ou ainda confusão patrimonial social, que é destinado para a perpetração de atos abusivos ou ilícitos, afastando-se, por tal fato, a distinção existente entre os bens dos sócios e da pessoa jurídica, admitindo-se, por conseguinte, que os efeitos de cunho patrimonial, relativos a determinadas obrigações, alcancem os bens particulares dos administradores ou, ainda, dos sócios.
Trata-se de situação em que restará materializada a desconsideração da personalidade jurídica, porquanto os bens da pessoa jurídica não bastam para a satisfação das obrigações contraídas, já que a pessoa jurídica não será dissolvida nem objeto de liquidação. A desconsideração da personalidade tem o escopo de transferir a responsabilidade para aqueles que, de modo indevido, utilizaram a sociedade. O Código Civil enumera dois pressupostos em que, em restando configurados, autorizarão a desconsideração da personalidade jurídica, a saber: a fraude e o abuso de direito.
2.1 A Fraude como Pressuposto para aplicação da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica
A fraude, no que concerne ao instituto em epígrafe, é descrita como violação indireta do texto legal, que consegue o fim proibido pela norma jurídica por um caminho indireto, realizando-se por meio de atos simulados, com que se oculta uma violação da lei ou sem que haja simulação. Neste sedimento, pode-se grifar que a fraude é considerada como uma distorção maliciosa no emprego da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, direcionada a causar prejuízos a terceiros. Nas situações em que a simulação atua como meio fraudatório à legislação, com o escopo de vulnerar uma norma de cunho cogente, deixa de subsistir ideias de simulação, figurando, em seu lugar, a fraude à lei, em razão da violação da ordem pública. “Ocorrendo fraude com a 'ajuda' da pessoa jurídica e não por outros meios, estar-se-ia na presença da possibilidade da desconsideração da personalidade jurídica e não mera invalidade do negócio fraudulento”[11].
Ora, neste diapasão, vale salientar que ao vocábulo fraude, no que atina à aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, não será empregado um sentido amplo, no intento de que ela tudo corrompe, mas sim uma ótica restritiva à participação da pessoa jurídica na perpetração da fraude. Com propriedade, há que se colacionar o entendimento jurisprudencial que figura como sedimento e ventila que “a desconsideração da personalidade jurídica, que é medida extrema, somente pode ocorrer depois de esgotadas as vias creditícias ou quando se logre comprovar a fraude em alguma de suas modalidades”[12].
A tendência da doutrina e da jurisprudência é no sentido de que deve ser aplicada a teoria da desconsideração da pessoa jurídica, apenas diante de prova incontestável de fraude, de prática de atos com finalidade premeditadamente ilícita, de abuso de direito, de desonestidade, de ato criminoso e outras hipóteses igualmente graves, como encerramento irregular das atividades da empresa e inexistência de bens passíveis de penhora. No mais, a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, princípio que a diferencia de seus integrantes como sujeito autônomo de direito e obrigações, indubitavelmente, pode dar ensejo à realização de fraudes. Por esta razão, a desconsideração da personalidade jurídica é instrumento para coibir o uso indevido da autonomia patrimonial, e, por se tratar de medida excepcional, não deve ser deferida sem o mínimo de prova convincente do uso fraudulento do princípio da autonomia da separação patrimonial.
Importante salientar que, quando uma empresa dilapida seu patrimônio, desfazendo-se de seus bens imóveis e móveis, inclusive de depósitos em dinheiro em instituições financeiras, que possam garantir suas dívidas, e, além disso, não encerra regularmente suas atividades e não paga os seus credores, há sérios indícios de um desvio de finalidade, com o objetivo de prejudicar credores, e, até, de uma confusão patrimonial, configurando-se as hipóteses autorizadoras da desconsideração de sua personalidade jurídica previstas no art. 50, do Código Civil.
2.2 O Abuso de Direito como Pressuposto para aplicação da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica
Ab initio, cuida assinalar que o abuso de direito, enquanto pressuposto para a aplicação da desconsideração, ocorre quando o sócio ou administrador da pessoa jurídica, quer seja por lei, quer seja com base nos estatutos sociais, conquanto esteja autorizado a praticar determinado ato como expressão regular do direito conferido, atua de tal modo que causa prejuízo a terceiro. Diversamente da fraude, no abuso do direito o ato em princípio nada tem de ilícito, mas mesmo assim não deve prevalecer, pois, foge a sua finalidade social.
Em uma acepção conceitual, pode-se assinalar que, conforme anota Koury, “o abuso de direito corresponde a um ‘mau uso’ do direito, ou seja, ao exercício normal de um direito, estando o seu titular, todavia, desviado do fim econômico social para o qual aquele direito foi criado.”[13]. Tem-se o abuso de direito, por exemplo, quando o sócio majoritário de um grupo de empresas não cumpre as obrigações oriundas das sociedades dependentes, em razão da presença de diversas pessoas jurídicas das empresas. O abuso, no caso em testilha, é uma vontade de tirar proveito de uma situação fraudulentamente criada, e que, por outro lado, viabiliza que no fundo se alcance as vantagens indevidas.
3 A Teoria Expansiva da Desconsideração da Personalidade Jurídica: Primeiros Comentários
Diante das ponderações estruturadas até o momento, cuida pontuar que a teoria expansiva da desconsideração da personalidade jurídica apresenta como escopo o alcance do patrimônio de quaisquer sócios ocultos de determinada sociedade. Nesta linha de dicção, é perceptível que a desconsideração in casu encontra sedimento de atuação nas hipóteses em que o sócio que não se encontra explicitamente vinculado na sociedade, ou seja, o indivíduo utiliza-se de um comportamento doloso, ocultando-se atrás de um terceiro indivíduo, para não ser responsabilizado por eventual inadimplemento de qualquer obrigação da sociedade. Desta sorte, a teoria em exame comporta a possibilidade de expansão dos efeitos da desconsideração da personalidade jurídica, alcançando os “sócios ocultos”, com o fito de assegurar o pagamento dos credores. A jurisprudência vem se posicionando, mesmo que timidamente, acerca do reconhecimento da situação autorizadora para a incidência da teoria em comento, bem como sua aplicação, invocando, para tanto, a necessidade de configuração da fraude contra o credor e a presença de sócios ocultos, cujo patrimônio, em uma perspectiva expansiva da teoria que levanta o véu da personalidade jurídica, é alcançado diretamente. Neste sentido, é possível colacionar:
“Ementa: Apelação. Ação ordinária. Ação indenizatória. Desconsideração da personalidade jurídica. Sentença parcialmente procedente. Afigura-se evidente intuito fraudatório a transferência de todas as cotas sociais a funcionário da empresa. Desconsideração da personalidade para atingir o patrimônio dos sócios ocultos. Fraude contra credor configurada, que bastaria por si só à desconsideração. Obrigação pretérita. Sentença parcialmente reformada. Provimento do primeiro apelo e desprovimento dos demais recursos” (Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro – Décima Sexta Câmara Cível/ Apelação Cível nº 0012362-37.2002.8.19.0203/ Relator: Desembargador Ronald dos Santos Valladares/ Julgado em 06 jun. 2006/ Publicado no DJe em 20 jun. 2006).
Quadra destacar, nestes termos, que a designação empregada para a teoria em apreço designa a possibilidade de desconsiderar uma pessoa jurídica, por meio do levantamento do véu da personalidade, atingindo, assim, a personalidade do sócio oculto, que, comumente, está camuflado na empresa controladora. É ofuscante, portanto, que a teoria expansiva, no contexto contemporâneo, possui elevada eficácia, sobremaneira a partir da possibilidade de dissimulação da sociedade para satisfazer os credores, evitando maiores prejuízos. Em tal sentido, inclusive, o Supremo Tribunal Federal, em paradigmático julgado do Ministro Celso de Mello, reconheceu expressamente a incidência da teoria em comento no direito nacional, assentando que:
“Ementa: Procedimento administrativo e desconsideração expansiva da personalidade jurídica. “disregard doctrine” e reserva de jurisdição: exame da possibilidade de a administração pública, mediante ato próprio, agindo “pro domo sua”, desconsiderar a personalidade civil da empresa, em ordem a coibir situações configuradoras de abuso de direito ou de fraude. A competência institucional do tribunal de contas da união e a doutrina dos poderes implícitos. Indispensabilidade, ou não, de lei que viabilize a incidência da técnica da desconsideração da personalidade jurídica em sede administrativa. A administração pública e o princípio da legalidade: superação de paradigma teórico fundado na doutrina tradicional? O princípio da moralidade administrativa: valor constitucional revestido de caráter ético-jurídico, condicionante da legitimidade e da validade dos atos estatais. O advento da Lei nº 12.846/2013 (art. 5º, IV, “e”, e art. 14), ainda em período de “vacatio legis”. Desconsideração da personalidade jurídica e o postulado da intranscendência das sanções administrativas e das medidas restritivas de direitos. Magistério da doutrina. Jurisprudência. Plausibilidade jurídica da pretensão cautelar e configuração do “periculum in mora”. Medida liminar deferida” (Supremo Tribunal Federal/ MS 32.494 MC/ Relator: Ministro Celso de Mello/ Julgado em 11 nov. 2013/ Publicado no DJe em 13 nov. 2013).
Denota-se, assim, que o reconhecimento da desconsideração da personalidade jurídica em uma perspectiva teórica expansiva afigura-se como importante instrumento de combate e prevenção da utilização indevida da personalidade da pessoa jurídica, sobretudo quando há a presença de sócios ocultos, valendo-se de tal situação para frustrar o recebimento por parte dos credores. Com a teoria da desconsideração expansiva da personalidade jurídica, é possível estender os efeitos da desconsideração da personalidade jurídica aos ‘sócios ocultos’ para responsabilizar aquele indivíduo que coloca sua empresa em nome de um terceiro ou para alcançar empresas de um mesmo grupo econômico. Assim sendo, é observável a imprescindibilidade da demonstração de que a pessoa jurídica, indevidamente, é utilizada pelo sócio oculto, valendo-se, por vezes, dos denominados “laranjas” e “testas de ferro”, ou seja, os indivíduos que se apresentam na sociedade, mas que, na prática, não possuem poder para tomar decisões e são desprovidos de qualquer visibilidade, sendo manipulados pela figura que se oculta, com o escopo primordial de fraudar credores.
Referências:
Informações Sobre o Autor
Tauã Lima Verdan Rangel
Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), linha de Pesquisa Conflitos Urbanos, Rurais e Socioambientais. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especializando em Práticas Processuais – Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Camilo-ES