A transposição da responsabilidade civil do estado na modulação temporal dos efeitos da decisão

Resumo: O presente estudo tem por objetivo refletir sobre a modulação temporal dos efeitos da decisão presente no ordenamento jurídico brasileiro, a fim de entender se o instituto da responsabilidade civil do Estado tem o condão de mitigar a aplicação da modulação temporal.


Sumário: 1. Introdução 2. Modulação temporal dos efeitos da decisão 3. A responsabilidade civil do estado e os atos legislativos inconstitucionais 4. A ponderação entre a modulação e a responsabilidade civil do estado 5. A responsabilidade civil do estado nas sentenças intermediárias de constitucionalidade 6. A judicialização da responsabilidade civil do estado e a mitigação da modulação temporal de efeitos 7. Conclusão 8.referências


1.INTRODUÇÃO


O constitucionalismo hodierno tem suas raízes ligadas a uma sucessão de eventos históricos que moldaram nossa sociedade. Entende-se como um  “sistema normativo, enfeixado na Constituição, e que se encontra acima dos detentores do poder;” (CARVALHO, 2011, p. 215).


A origem dos valores abraçados por nosso sistema, com o fim de encontrar limites para os detentores do poder, teve inicio com os Hebreus, onde se concebia uma idéia arcaica de organização estatal.


Na Inglaterra, durante a idade média, surge uma fase que resgata a idéia de constitucionalismo visando alterar a fonte do poder estatal. Tendo em vista a Monarquia Absolutista regente e diante do excessivo intervencionismo no patrimônio e nos direitos dos cidadãos, nasce uma contraposição natural. Apesar de ser um Estado em que seu sistema jurídico é consuetudinário, nasce neste momento a idéia de uma Constituição escrita para a defesa dos cidadãos em face do Estado.


Durante o período denominado de constitucionalismo moderno, que ocorreu nos Estados Unidos em 1787 e na França em 1789, temos uma valorização substancial e efetiva da constituição como fator de limitação do poder soberano, que tem por fim registrar o documento fundamental do povo (TAVARES,2006).


Desta feita, a idéia de superioridade das leis fundamentais, onde se destacam a celebração de documentos escritos que vinculavam o poder soberano, visava garantir aos cidadãos seus direitos perante um poder estatal absoluto (CARVALHO, 2011, p. 218).


O sistema político brasileiro, assim como em outros sistemas, pressupõe uma hierarquia de valores a qual tem como referência máxima a Constituição Federal. Todas as regras constantes de nosso ordenamento jurídico devem subordinação aos ditames da Carta Magna, uma vez que é esta que legitima toda a autoridade exercida pelo Estado e ao mesmo tempo lhe impõe limites. Portanto, não pode haver normas que contrariem os ditames constitucionais.


“A Constituição Positiva, resultante da conjugação dos sentidos material e formal, funciona como padrão jurídico fundamental e que não pode ser contrariado por qualquer outra norma integrante do mesmo sistema jurídico. As normas constitucionais são as que possuem o máximo de eficácia, não sendo admissível a existência, no âmbito do mesmo Estado, de normas que com elas concorram em eficácia ou que lhes sejam superiores. As normas constitucionais, atuando como padrão jurídico fundamental, condicionam todo o sistema jurídico, resultando na exigência de que lhes sejam conformes todos os atos que pretendam produzir efeitos dentro do mesmo ordenamento jurídico” (DALLARI apud FEITOSA, 2001).


Diante da hodierna concepção de Constituição, onde esta é o fundamento de validade de nosso ordenamento jurídico, toda e qualquer norma deve obediência aos valores ali traçados. As normas constitucionais tem caráter vinculativo independente da sua “eficácia”[1]. Podem ser positivas ou negativas, ou seja, podem ser obrigações prestacionais ou abstencionistas.


Aqui devemos destacar o princípio da força normativa da Constituição, que rege a interpretação Constitucional. Konrad Hesse (traduzido por MENDES, 1991, p.5) ao tratar da força normativa da Constituição, da enfoque à chamada vontade da Constituição (Wille zur Verfassung), ou seja, a Constituição se torna força ativa se as condutas a que ela se dirige a observarem. Dessa forma, ensina que quem detém o controle da ordem constitucional, deve ter em mente não só a vontade do poder (Wille zur Macht), mas também a vontade da Constituição (Wille zur Verfassung) Uma vez conjugados essas duas vontades, teremos exteriorizados os preceitos constitucionais.


Diante desta idéia se estabelece verdadeiro conflito em nosso ordenamento. De um lado a Constituição Federal, que consolida a regra da responsabilidade civil do Estado, visando reparar terceiros por eventuais danos causados pelo próprio ente público ou quem lhe faça às vezes. Do outro lado, o instituto da modulação temporal dos efeitos da decisão, que confere ao Supremo Tribunal Federal (STF) a prerrogativa de fixar a partir de quando determinada decisão de inconstitucionalidade em sede de controle concentrado produzirá seus efeitos.


Dessa forma, sendo o Estado é civilmente responsável por atos legislativos inconstitucionais, modulados os efeitos temporais da decisão que declara a inconstitucionalidade, deverá ou não o Estado ressarcir eventuais terceiros prejudicados por essas leis inconstitucionais?


2.A MODULAÇÃO TEMPORAL DOS EFEITOS DA DECISÃO


Via de regra, as ações de controle concentrado de constitucionalidade tem efeitos ex tunc (retroativos), erga omnes (abrange a todos), vinculantes (se tornam obrigatórios, exceto para o próprio STF e para as casas do Congresso Nacional) e repristinatório (revigora lei revogada). Dessa forma, quando o Supremo Tribunal Federal declara a inconstitucionalidade de determinada lei ou ato normativo abstratamente, tal lei é nulificada e a decisão tem força obrigatória em decorrência destes efeitos conferidos pela lei.


A modulação temporal dos efeitos está prevista no artigo 27 da lei 9868 e artigo 11 da lei 9882, ambas de 1999, que regulam a “Ações Diretas de Inconstitucionalidade” (ADI) e a “Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental” (ADPF), respectiva e semelhantemente, alterando o denominado efeito ex tunc.


Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.


Art. 11. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de argüição de descumprimento de preceito fundamental, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.”


O próprio STF, por razões de segurança jurídica ou interesse social pode fixar o termo a partir de qual sua decisão produzirá efeitos, ou seja, ao declarar a inconstitucionalidade de lei eu ato normativo, pode o Supremo determinar que tal decisão produza seus efeitos somente a partir de um momento a ser fixado conforme entenda conveniente.


Didier Jr., Braga e Oliveira (2009, p. 474/475), ao descrever a “modulação temporal dos efeitos”, inclusive citando parte da exposição de motivos do projeto de lei que resultou na lei 9868/99, dispõe:


“[…] é possível que o STF, “fazendo um juízo rigoroso de ponderação entre o princípio da nulidade da lei inconstitucional, de um lado, e os postulados da segurança jurídica e do interesse social, do outro”, restrinja os efeitos temporais da sua decisão, fixando outro termo a partir do qual ela será eficaz.”


Discute-se sobre a natureza do vício da norma inconstitucional, se seria um ato inexistente, nulo, anulável ou irregular. A doutrina brasileira, até por certa influência do direito estadunidense, encampou a teoria da nulidade, cuja qual afeta o plano da validade da norma inconstitucional, ou seja, a norma declarada inconstitucional detém vício congênito, e sendo assim, seus efeitos sempre retroagiriam até a data em que a lei passou a produzir seus efeitos. A modulação dos efeitos da decisão consiste em mitigação à teoria da nulidade, que é aplicada em regra. (LENZA, 2009, p. 153).


Por usar conceitos jurídicos indeterminados (segurança jurídica e interesse social), há diferentes entendimentos de como se daria o preenchimento desses conceitos previstos em lei, onde se indaga sobre os limites do Supremo Tribunal Federal quando da aplicação da modulação de efeitos temporais. Surge então outro questionamento: Os critérios adotados pelo STF quando da modulação dos efeitos estariam aptos a relativizar norma constitucional?


Deve-se observar a unidade e coerência do instituto em questão para sua aplicação constitucional (Ávila, 2009). Sendo o sistema jurídico composto de normas ordenadas segundo critérios determinados, o princípio da unidade da Constituição surge como um elo que visa interpretar sistematicamente nosso ordenamento de forma a se compatibilizarem, e não necessariamente excluir-las de nosso sistema, ou seja, é necessário encontrar parâmetros dentro de nosso sistema para orientar a aplicação do referido instituto.


3.A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO E OS ATOS LEGISLATIVOS INCONSTITUCIONAIS


Tem-se como óbice maior para a aplicação da modulação dos efeitos o artigo 37, §6º da Carta Magna de 1988, que dispõe:


“§ 6º – As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”


A idéia de responsabilidade do Estado surge em contrapartida de um Estado absolutista, onde sua autoridade era incontestável e, responsabilizar-lo, seria colocar-lo no mesmo nível dos indivíduos a ele vinculados, afrontando sua soberania. Após as várias mudanças sociais que culminaram no fim do absolutismo da época, surge a idéia de responsabilidade civil do Estado que, em um primeiro momento aparece como uma responsabilidade individual do agente calcada em ideal civilista. Após, na França, por fortes influências do direito público, nasceram as teorias publicistas: teoria da culpa administrativa ou da culpa do serviço e a teoria do risco (CUNHA Jr., 2011).


No Direito brasileiro sempre figurou um Estado responsável. Porém, a responsabilidade civil do Estado nos moldes de hoje surgiu apenas na Constituição de 1946, que consagrou a responsabilidade objetiva (CUNHA Jr., 2011), passando por diversos momentos históricos, até hoje, onde a Constituição de 1988 consagrou em regra a responsabilidade objetiva, entretanto, em alguns casos, como na responsabilidade pela omissão do Estado e no regresso em face do agente causador do dano, se excetua a regra, implicando na discussão de culpa.


A responsabilidade civil do Estado, que constitui regra de direito constitucional, é base para o axioma fundamental de nossa República: o Estado Democrático de Direito. Tal regra implica que o Estado também deve se submete às leis que produz, principalmente se essa “lei” for a própria Constituição Federal, fundamento de validade de todo nosso ordenamento. Celso de Mello (2010, p. 999) dispõe sobre o tema:


Segundo entendemos, a idéia de responsabilidade do Estado é uma consequência lógica inevitável da noção de Estado de Direito. A trabalhar-se com categorias puramente racionais, dedutivas, a responsabilidade é simples corolário da submissão do Poder Público ao Direito. […]


[…] Perfilhamos ainda seu entendimento de que a idéia de República (res publica – coisa pública) traz consigo a noção de um regime institucionalizado, isto é, onde todas as autoridades são responsáveis, “onde não há sujeitos fora do Direito”. Procede inteiramente a ilação que daí extrai: se não há sujeitos fora do Direito, não há sujeitos irresponsáveis; se o Estado é um sujeito de direitos, o Estado é responsável. Ser responsável implica responder por seus atos, ou seja, no caso de haver dano a alguém, impõe-se-lhe o dever de repará-lo.”


Nesse sentido, a responsabilidade civil do Estado, deveria ser entendida como elemento constitucional que deve ser aplicado nas hipóteses em que o Estado causar prejuízo a terceiros, servindo como base para interpretação dos artigos 11 e 27 das leis 9882 e 9868 de 1999.


Quando da responsabilidade civil do Estado, nosso ordenamento adota em regra “teoria do risco”, que encampa a responsabilidade objetiva. Tal modalidade de responsabilidade compreende a aferição do fato, dano e do nexo causal.


 Essa teoria leva em consideração, em primeiro lugar, o risco que a atividade potencialmente gera para os administrados e, em segundo lugar, “a necessidade de repartir-se, igualmente, tanto os benefícios gerados pela atuação estatal à comunidade como os encargos suportados por alguns, por danos decorrentes dessa atuação” (CUNHA Jr., 2011, p. 332).


O STF (que detém a guarda da Constituição Federal), e grande parte da doutrina, já se pronunciaram no sentido de que o Estado é civilmente responsável por atos legislativos declarados inconstitucionais. Celso de Mello no RE 153.464, afirma que (RDA 189, de 1992, p. 305-306):


“De certo, declarada uma lei inválida ou inconstitucional por decisão judiciária, um dos efeitos da decisão deve ser logicamente o de obrigar a União, Estado ou Município, a reparar o dano causado ao indivíduo, cujo direito fôra lesado, – quer restituindo-se-lhe aquilo que indevidamente foi exigido do mesmo, como sucede nos casos de impostos, taxas ou multas inconstitucionais, – quer satisfazendo-se os prejuízos, provadamente sofridos pelo indivíduo com a execução da lei suposta.”


Sobre a Responsabilidade Civil do Estado por atos legislativos, José dos Santos Carvalho Filho (2010, p. 543), afirma que quando existir nexo entre a lei inconstitucional e o dano, o Estado tem o dever de reparar, pois lei inconstitucional se confunde com o conceito de ato ilícito.


“Desse modo, é plenamente possível que, se o dano surge em decorrência de lei inconstitucional, a qual evidentemente reflete atuação indevida do órgão legislativo, não pode o Estado simplesmente eximir-se da obrigação de repará-lo, porque nessa hipótese configurada estará a sua responsabilidade civil. Como já acentuou autorizada doutrina, a noção de lei inconstitucional corresponde à de ato ilícito, provocando o dever de ressarcir os danos patrimoniais dele decorrentes.”


Vale salientar que a Responsabilidade Civil do Estado recai sobre o ato praticado pelo órgão legiferante e não prescinde de discussão acerca do ato judicial que aplica a modulação dos efeitos, sob pena de cair no “limbo” da discussão sobre a Responsabilidade do Estado por atos judiciais.


Dessa forma, transcende da discussão a natureza do ato de aplicação da modulação dos efeitos pelo judiciário, pois a questão da responsabilidade civil do Estado por atos legislativos nasce da função legislativa, que não traduz verdadeiramente a vontade da Constituição, havendo uma inconformidade material. Trata-se aqui da incompatibilidade do próprio dispositivo legal que concede ao órgão judiciário tais poderes, em face da Constituição Federal, que garante o dever de indenização do Estado.


A responsabilidade civil objetiva é caracterizada por comportamentos lícitos ou ilícitos do Estado. Como o presente trabalho trata dos atos legislativos, analisaremos a responsabilidade objetiva por atos ilícitos. Essa responsabilidade pode ser oriunda de atos jurídicos ou materiais, e ainda atos cujo Estado, atuando positivamente, propicia determinada situação. De qualquer forma, o tripé que sustenta a responsabilidade objetiva (fato, dano, nexo) será analisado.


O fato diz respeito ao acontecimento que culminou no dano, ou seja, o órgão legiferante, ao realizar sua função típica de legislar acaba por incorrer em erro que, deve ser essencialmente material, pois do contrario, relações jurídicas constituídas sob a égide de uma lei materialmente constitucional e formalmente inconstitucional, deveriam convalescer, sob a ótica da segurança jurídica e da boa-fé.


Exige-se também o dano, ou seja, que a lei declarada inconstitucional pelo STF tenha causado efetivo prejuízo ao indivíduo. Uma vez comprovado esse dano em decorrência daquele ato, estará configurado o nexo de causalidade, prescindindo da discussão de culpa.


Dessa forma, analisando fato, dano e nexo da conduta Estatal de legislar, existem algumas peculiaridades, pois ao atuar positivamente, o Estado pode criar condições em que possa ser gerados prejuízos.


Um primeiro exemplo seria a Emenda Constitucional (EC) 30, objeto da ADI 2362, que estabeleceu o novo regime de precatórios. A partir do momento em que houve prejuízo no valor do crédito, e tal emenda venha a ser declarada inconstitucional, haverá efetiva diminuição patrimonial em decorrência de uma situação criada pelo Estado.


Igualmente, se lei regular relação entre particulares em que pessoa parte dessa relação, ou terceiros, venham a ser prejudicados, trata-se de uma situação propiciada pelo Estado, em que deve ser responsabilizado.


Por outra perspectiva, a lei pode criar diretamente um ônus, como a instituição de tributos, por exemplo. Neste caso, existe um claro prejuízo a indivíduos, por ser violado o princípio da legalidade, pois a intervenção do Estado no patrimônio do individuo foi efetivada e concluída, e posteriormente não existe mais a lei que legitimou tal conduta, não sendo possível convalidar este ato, por violar os preceitos da responsabilidade civil.


Em todos os casos, independentemente de quem tenha se beneficiado com o prejuízo de outrem, seja um particular ou o próprio Estado, incidirá a responsabilidade civil por aquelas leis, uma vez que é ele quem, através destas imposições normativas abstratas propicia efeitos concretos.


Dessa forma, o ato legislativo inconstitucional é considerado como ato ilícito praticado pelo Estado e, desde que cause prejuízos aos cidadãos em decorrência destes fatos, o prejudicado deve ser devidamente restituído.


Vai de encontro aos preceitos da Constituição Federal a modulação dos efeitos da decisão quando deveria ser aplicada a responsabilidade civil, uma vez que transfere o ônus da responsabilidade do Estado para o indivíduo, que ostentará os prejuízos causados pelo Estado.


Inúmeras vezes é arguido pelo Estado que os prejuízos dos indivíduos serviram de contrapartida para o investimento no próprio Estado. Porém, não é justo que os encargos de toda uma sociedade sejam ostentados por apenas alguns, quando não fazem jus.


4.UMA PONDERAÇÃO ENTRE A MODULAÇÃO E A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO


Diante desta dicotomia estabelecida, de um lado surge a modulação temporal dos efeitos da decisão, medida que tem como finalidade atentar para as necessidades do Estado, que poderia sofrer prejuízos em decorrência de atos legislativos inconstitucionais. De outro lado, a regra constitucional da Responsabilidade Civil, cuja qual o STF já entendeu ser aplicável quando lei for declarada inconstitucional..


Maurício Zockun (2010, p. 171), em sentido diametralmente oposto sobre a modulação dos efeitos, afirma que:


“Como esse dispositivo legal confere ao STF a prerrogativa de fixar o momento em que a declaração de inconstitucionalidade produzirá efeitos, para fins de responsabilização do Estado só as condutas praticadas após esse momento poderão ensejar o pagamento de indenização.”


Entendemos que tal interpretação não deve prevalecer. A modulação temporal dos efeitos das decisões de controle concentrado, em síntese, transpõe aos cidadãos sua responsabilidade sobre os atos legislativos, de forma que são estes quem ostentam o ônus de arcar com os prejuízos causados pelo Estado, violando, assim, o princípio do Estado Democrático de Direito. Pode-se afirmar ainda, que a modulação dos efeitos da decisão constitui claro subterfúgio do Estado com relação à sua responsabilidade de reparar eventuais danos em decorrência de atos legislativos inconstitucionais.


As regras estampadas nos artigos 11 e 27 das leis 9882 e 9868 são constitucionais. Ocorre que, deve ser dada interpretação conforme a constituição, ou seja, este dispositivo deve ser aplicado de forma a se compatibilizar com o artigo 37, §6º da CF/88, levando em consideração os princípios interpretativos da Lei Maior, esculpindo o ordenamento jurídico através balizamentos delineados pela Carta Magna, uma vez que nem todos os casos de inconstitucionalidade também são casos de responsabilização civil do Estado.


Assim sendo, nos casos em que seja possível a Responsabilização do Estado por prejuízos causados em decorrência de atos legislativos, deve-se excluir a incidência da modulação dos efeitos e, a contrario sensu, em se tratando de decisões que não se subsumem aos ditames do artigo 37, § 6º da CF/88, ou seja, quando o ato praticado pelo Estado não se adequar aos requisitos para a configuração da Responsabilidade Civil, incide a modulação temporal dos efeitos da decisão.


5.A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO NAS SENTENÇAS INTERMEDIÁRIAS DE CONSTITUCIONALIDADE


Questão pertinente, diz respeito a aplicação da modulação dos efeitos quando for caso de incidência da responsabilidade civil do Estado quando for proferida sentença intermediária de constitucionalidade, que compreende, basicamente, a interpretação conforme a constituição e a declaração de inconstitucionalidade sem redução do texto.


Existe divergência quanto a diferenciação das duas, mas podemos afirmar que preservam a norma positivada, e declaram apenas a inconstitucionalidade ou constitucionalidade de interpretações. Ao invés de retirar a norma do sistema jurídico, onde o órgão legiferante traduz de forma incoerente a vontade popular, são declaradas as sentenças intermediárias; onde o interprete traduz (atesta a constitucionalidade) a norma de forma que assegure a existência da regra positivada, mas regulará as diferentes interpretações. Neste sentido Kildare Carvalho (2011, p. 433) afirma: 


“Essas decisões intermediárias ocorrem naqueles casos em que o Tribunal corrige a atuação legislativa, e relativiza a declaração de inconstitucionalidade, para atender a fins, valores ou normas que podem ou não já ter sido estabelecidos pelo Poder Constituinte ou pelo Legislador. Sua tipologia compreende, dentre outras, a declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto, e de interpretação conforme a Constituição.”


 Dessa forma, uma norma que não é literalmente declarada inconstitucional, mas somente são retiradas do ordenamento determinadas interpretações que contradizem a Constituição de 1988, poderia gerar a Responsabilidade Civil do Estado?


Pode-se dizer que, em decorrência da lógica aqui desenhada, em que fora reconhecida a responsabilidade do Estado por atos legislativos mesmo sendo modulados os efeitos pelo STF, se o fato se adequar aos preceitos em que configura o dever do Estado de indenizar, mesmo em se tratando de um método que não exclui a norma do sistema, se o fato imputado ao Estado gerar prejuízos a terceiro, incide a regra constitucional.


6.A JUDICIALIZAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO E A MITIGAÇÃO DA MODULAÇÃO TEMPORAL DE EFEITOS


Para garantir o direito de ressarcimento em face do Estado quando tiverem sido modulados os efeitos da decisão que declarou a inconstitucionalidade de determinada norma, implica a judicialização do tema em sede cognitiva.


Na fase cognitiva do processo, implicaria a discussão acerca da responsabilidade civil do Estado por atos legislativo em face da modulação temporal dos efeitos, através do controle difuso de constitucionalidade.


Observa-se que o ato legislativo praticado pelo Estado, até a declaração de sua inconstitucionalidade, por gozar de presunção de constitucionalidade, não ensejaria a responsabilização do Estado, pois até então é um ato lícito.


A ponte que liga o ente privado (físico ou jurídico) ao Estado fora efetivamente concluída, porém não contém nenhum defeito que macule o vinculo entre os entes. O dano foi efetivamente causado, porém se trata de um dano lícito:


“[…] só cabe falar em responsabilidade, propriamente dita, quando alguém viola um direito alheio. Se não houver violação, mas apenas sacrifício de direito, previsto e autorizado pela ordenação jurídica, não está em pauta o tema da responsabilidade civil do Estado.” (ALESSI, apud, MELLO, 2010, p. 994)


Como bem aponta Alessi apud Celso Antonio Bandeira de Mello, em se tratando de uma intervenção lícita que cria um prejuízo para indivíduos, trata-se de um “sacrifício” de direito, por haver presunção de legalidade das normas. Porém, após a decisão de inconstitucionalidade proferida pelo Supremo, deverão ser consideradas como efetivas “violações de direito alheio”, pois, como tratado anteriormente, esses atos legislativos inconstitucionais são equivalente a atos ilícitos.


Quando o STF, através do controle de constitucionalidade, declara a inconstitucionalidade de determinada norma, nasce o direito do autor de pleitear contra o Estado pelo ressarcimento dos prejuízos que foram causados na relação estado-indivíduo.


 A ponte que ligava a relação entre os entes encontra mácula que desfaz tal vinculo, ficando, porém, um ônus indevido pendente do lado do ente privado, ou seja, há aqui “violação” e não “sacrifício”.


Todo o povo de um Estado está sujeito à imperatividade estatal, principalmente as de cunho normativo. Quando esse vínculo é desfeito e tal ato causa prejuízos a terceiros, surge para o autor o direito de pleitear à responsabilização do Estado por todo o prejuízo causado, uma vez que, neste caso, deve-se aplicar a regra geral da teoria da nulidade.


Dessa forma, o prazo prescricional começa a correr a partir do momento em que é publicada a decisão que declarada a inconstitucionalidade de leis ou atos normativos. É a partir daí que surge ao indivíduo a “possibilidade jurídica do pedido”, por desaparecer a relação jurídica anteriormente constituída, e surgindo juridicamente um prejuízo ilícito causado pelo Estado, decorrentes de um ato inconseqüente.


Existe outra discussão acerca do prazo prescricional para as pretensões indenizatórias oriundas da responsabilidade civil do Estado. O Código Civil, em seu artigo 206 § 3º, V, prevê o prazo de três anos para a prescrição da pretensão de reparação civil, deixando o legislador de mencionar se tal dispositivo se aplicaria também ao Estado. Por outro lado, o decreto n. 20.910 de 1932 regula a prescrição qüinqüenal.


O Superior Tribunal de Justiça pacificou o assunto ao ponderar no Recurso Especial (RESP) 1137354 que o artigo 10 do decreto 20.910 não exclui a incidência de outra regra que trata de prescrição desde que aquela seja menor. Dessa forma, como o Código Civil previu regra geral de prescrição da pretensão de responsabilização civil em três anos, aplica-se este prazo.


 O voto do Ministro Relator neste mesmo recurso, destaca ainda doutrina interessante de José dos Santos Carvalho Filho


“Cumpre nessa matéria recorrer à interpretação normativo-sistemática. Se a ordem jurídica sempre privilegiou a Fazenda Pública, estabelecendo prazo menor de prescrição da  pretensão  de terceiros  contra  ela,  prazo  esse fixado em  cinco anos  pelo Decreto 20.910/32, raia ao absurdo admitir a manutenção desse mesmo prazo quando a lei civil, que outrora  apontava prazo bem superior àquele, reduz significativamente  o  período prescricional, no caso para três anos (pretensão à reparação  civil). Desse modo, se é verdade, de um lado, que não se pode admitir prazo inferior a três anos para a prescrição da pretensão à reparação civil contra a Fazenda, em virtude de inexistência de lei especial em tal direção, não é menos verdadeiro, de outro, que tal prazo não pode ser superior, pena de total inversão do sistema lógico-normativo; no mínimo, é de aplicar-se o novo  prazo  fixado  agora pelo Código Civil.  Interpretação  lógica  não  admite a aplicação, n  hipótese,  das regras  de  direito  intertemporal  sobre  lei  especial e lei  geral, em que aquela  prevalece a  despeito  do advento desta. A prescrição da citada pretensão de terceiros  contra  as pessoas  públicas e as de  direito  privado  prestadoras de serviços públicos passou de quinquenal para trienal”


Vale ressaltar a importância deste prazo prescricional para a salvaguarda de nosso sistema em face das pretensões indenizatórias. Caso contrario nosso sistema entraria em colapso, haja vista que em todos os casos de inconstitucionalidade em que incide a regra da responsabilidade civil do Estado, tal pretensão deveria ser tutelada pelo poder judiciário.


Com relação à execução, superada a fase cognitiva, onde se discutiria sobre o assunto ora apresentado, acentua Celso Antônio Bandeira de Mello (2010, p. 1045):


“No Direito brasileiro, por força do art. 100 e §§ da Constituição, os pagamentos devidos pela Fazenda Pública em virtude de sentença judiciária não são assegurados por execução sobre seus bens, nem são exigíveis de imediato.”


Trata-se da questão dos precatórios que, também para atender aos interesses do Estado, estabelece uma ordem de pagamento para a satisfação de obrigações declaradas judicialmente. Percebe-se que o Estado detém diversos mecanismos para se procrastinar ou até se abster de seus deveres, porém, como não constitui objeto do presente trabalho, não abordaremos esse assunto.


7. CONCLUSÃO


De fato, quando é declarada inconstitucional determinada norma jurídica, o STF atesta que foi cometido um ato ilícito por parte do Estado, que é pessoa competente para produzir leis.


Pode-se dizer que, ponderando os interesses em jogo, a Responsabilidade Civil do Estado, por estar umbilicalmente ligado a princípios fundamentais que estruturam nossa sociedade, deve sobrepor à segurança jurídica (respeitado o prazo prescricional) , pois, em se tratando de conceito jurídico indeterminado, traduz-se na verdade como “insegurança jurídica”.


Os valores aferidos pelo STF para a aplicação do instituto da modulação dos efeitos, hoje, relativiza preceito de nossa Carta Magna, fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico brasileiro. Com base em decisão de um Tribunal, composto por apenas 11 ministros, as leis aqui questionadas são além de tudo antidemocráticas, uma vez que relativizando a Constituição exclui-se a vontade do povo. Não existem parâmetros para a aplicação de tal instituto, possibilitando sua aplicação de forma inconstitucional.


Dessa forma, o instituto da modulação temporal dos efeitos, quando aplicável a regra da Responsabilidade Civil do Estado é contraditório em si, uma vez que ao mesmo tempo o Supremo Tribunal Federal relativiza inconsequentemente a Constituição Federal, causando prejuízos ilícitos à indivíduos.


Portanto, a modulação dos efeitos da decisão no controle concentrado de constitucionalidade consiste em um dispositivo que inconstitucionalmente dispõe de deveres do Estado, ocorrendo então a transposição da Responsabilidade Civil do Estado para os cidadãos, violando o princípio do Estado Democrático de Direito.


 


Referências

ÁVILA, Ana Paula. A Modulação de Efeitos Temporais pelo STF no Controle de Constitucionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: 1988.

______. Lei Ordinária 9868. Brasília. 1999.

______. Lei Ordinária 9882. Brasília. 1999.

______. Supremo Tribunal Federal.. Recurso Extraordinário 153.464, Rel. Min. Celso Antônio Bandeira de Mello, Brasília, DF, 25/08/1992.

CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2011.

DIDIER, F. Jr.; BRAGA,P.; OLIVEIRA, R. Ações Constitucionais. Salvador: Jus Podvim, 2009.

FEITOSA, Maria Luiza P.A. A Constituição Federal do Brasil e o MERCOSUL. Disponível em: < http://jus.uol.com.br/revista/texto/2192>. Acesso em 5 de agosto de 2011, 14:29.

FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2009.

MELLO. Celso Antônio B. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2010.

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2006.

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ZOCKUM, Maurício. Responsabilidade Patrimonial do Estado. São Paulo: Editora Malheiros, 2010.

 

Nota:

[1] Conceito constitucional clássico desenvolvido por José Afonso da Silva para estudar a aplicabilidade das normas constitucionais.


Informações Sobre o Autor

Victor Phillip Sousa Naves

Advogado, pós-graduado em Direito Constitucional e Administrativo pela PUC-GO, membro da comissão de Direito Constitucional e Legislação da OAB/GO


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