Resumo: O presente artigo científico visa tratar da questão da tributação da publicidade na internet e V.O.D. (vídeo on demand) pela via de Instrução Normativa nº 95 da Ancine em detrimento do disposto no art. 150 da CRFB/1988. O texto perpassa pelo princípio da tipicidade, pela criação da CONDECINE na MP 2.228-01/01, pela sua recepção diante da E.C. 32 e pelo escopo do poder regulamentar das agências reguladoras, fazendo, por derradeiro, uma pequena analogia com um trecho da Odisseia de Homero e dos três lemas do Oráculo de Delfos na fase conclusiva.
Palavras-chave: Direito Tributário. Poder Regulamentar. Instrução Normativa. Princípio da Tipicidade. CONDECINE.
OPINIÃO
É cediço que o princípio da legalidade é um dos alicerces do estado democrático de direito, restando positivado no artigo 5º, II da CRFB/1988, aduzindo que “ninguém será obrigado a fazer algo ou deixar de fazer senão em virtude da lei”. Não obstante, na seara do Direito Tributário, pode-se dizer que ninguém será obrigado a cumprir um dever instrumental tributário que não tenha sido criado por meio de lei, pelo ente federativo competente.
Apesar de parecer redundante para aqueles que possuem um olhar desatento, a construção acima possui uma diferença fundamental. A primeira assertiva traduz o espírito do art. 5º, inciso II da CRFB/1988, que é justamente o livre-arbítrio, na acepção de São Tomás de Aquino[1], segundo o qual a ação humana parte de um ato de vontade e razão, o qual pode ser limitado pela lei no Estado Democrático de Direito[2].
Por outro lado, o Direito Tributário funciona com a fórmula de que o tributo só poderá ser cobrado pelo Estado em virtude de lei, preconizando assim o princípio do “no taxation without representation” que historicamente já se encontrava implícito no Direito desde 1215 na Magna Carta Libertatum[3].
Dessa maneira, por meio de ato do legislativo, cria-se a lei (reserva de lei formal), e tal lei descreve o tipo tributário (reserva de lei material), que há de ser um conceito fechado, seguro, exato, rígido e reforçador da segurança jurídica
“Art 150 CF. “Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados e aos Municípios:
I – Exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça.''
Dessarte, consoante ressaltado no artigo anterior intitulado “Jogo eletrônico não pode ser considerado obra audiovisual para fins tributários”, publicado pela Revista CONJUR em 13 de julho de 2017, vigora no Direito Tributário o famigerado princípio da estrita legalidade ou da tipicidade, porquanto a lei que instituiu o tributo deve prever todos os seus elementos descritivos, o fato imponível, além de preencher todos os elementos da hipótese de incidência. Observando assim os elementos que permitem a identificação do fato imponível (hipótese de incidência, sujeito ativo e passivo), restando vedado o emprego de analogia pelo poder judiciário, e da discricionariedade por parte da administração pública.
Ante o exposto, pode-se dizer que a legalidade para o direito tributário, é a exigência de lei para criar ou majorar tributos, ressalvadas as exceções constitucionais.
Pois bem. A Medida Provisória 2.228-01/01 que institui a CONDECINE, foi publicada em 06 de setembro de 2001, um pouco antes da publicação da Emenda Constitucional nº 32/2001, em 11 de setembro de 2001 e introduziu o § 2º do art. 62 com as vedações de edição de medida provisória, especialmente em matéria “que implique instituição ou majoração de impostos, exceto os previstos nos arts. 153, I, II, IV, V, e 154, II, só produzirá efeitos no exercício financeiro seguinte se houver sido convertida em lei até o último dia daquele em que foi editada”.
Nesse diapasão, considerando essa diferença de 5 (cinco) dias da publicação da MP 2.228-01/01 em relação à publicação da E.C. 32, aplica-se o disposto no art. 2º da E.C 32, segundo o qual aduz que “as medidas provisórias editadas em data anterior à da publicação desta emenda continuam em vigor até que medida provisória ulterior as revogue explicitamente ou até deliberação definitiva do Congresso Nacional”. O que implica na conclusão de que a MP que criou a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional – CONDECINE (art. 32), foi recepcionada pela Constituição Federal. E, portanto, obedece ao princípio da legalidade.
“Art. 32. A Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional – Condecine terá por fato gerador: (Redação dada pela Lei nº 12.485, de 2011) (Produção de efeito)
I – a veiculação, a produção, o licenciamento e a distribuição de obras cinematográficas e vdeofonográficas com fins comerciais, por segmento de mercado a que forem destinadas; (incluído pela Lei nº 12.485, de 2011) (Produção de efeito)
II – a prestação de serviços que se utilizem de meios que possam, efetiva ou potencialmente, distribuir conteúdos audiovisuais nos termos da lei que dispõe sobre a comunicação audiovisual de acesso condicionado, listados no Anexo I desta Medida Provisória; (incluído pela Lei nº 12.485, de 2011) (Produção de efeito)
III – a veiculação ou distribuição de obra audiovisual publicitária incluída em programação internacional, nos termos do inciso XIV do art. 1o desta Medida Provisória, nos casos em que existir participação direta de agência de publicidade nacional, sendo tributada nos mesmos valores atribuídos quando da veiculação incluída em programação nacional. (incluído pela Lei nº 12.485, de 2011) (Produção de efeito)
Parágrafo único. A CONDECINE também incidirá sobre o pagamento, o crédito, o emprego, a remessa ou a entrega, aos produtores, distribuidores ou intermediários no exterior, de importâncias relativas a rendimento decorrente da exploração de obras cinematográficas e videofonográficas ou por sua aquisição ou importação, a preço fixo.”
Até aí tudo normal. Mas ainda não foi atingido o ponto fulcral deste artigo.
Ultrapassada essa questão da constitucionalidade formal da MP 2.228-01/01, verifica-se que após a determinação do fato gerador da CONDECINE, o art. 33 estipula que a mesma será devida “para cada segmento de mercado”, confira-se.
“Art. 33. “A Condecine será devida para cada segmento de mercado, por: (Redação dada pela Lei nº 12.485, de 2011)
I – título ou capítulo de obra cinematográfica ou videofonográfica destinada aos seguintes segmentos de mercado:
a) salas de exibição;
b) vídeo doméstico, em qualquer suporte;
c) serviço de radiodifusão de sons e imagens;
d) serviços de comunicação eletrônica de massa por assinatura;
e) outros mercados, conforme anexo”.
Dito isto, significa dizer que os fatos geradores apostos no art. 32 da MP 2.228-01/01 são devidos, individualmente, para cada um dos segmentos de mercado dispostos no art. 33, supracitado.
E aí começa o problema…
A alínea “e” do referido art. 33, inciso I faz alusão a “outros mercados” e menciona expressamente o “anexo”. Porém, ao observar o tal anexo, o legislador não traz qualquer definição do que sejam “outros mercados”. Diferentemente do que ocorre no caso da “lista aberta” do imposto sobre serviços – ISS, o qual seu anexo contém o rol de serviços a serem tributados. Ainda pior é o tratamento das “obras publicitárias”, previstas noo inciso II que, sequer, estão arroladas no anexo, pois o tratamento não definido pelo legislador sobre os “outros mercados” inexiste no tocante às obras publicitárias, considerando que o próprio texto anexo as exclui de seu quadro de valores.
Nesse ínterim, na tentativa de suprir o silêncio eloquente do legislador e suplantar a lacuna da lei, a IN nº 95, de 08 de dezembro de 2011 da Ancine, em seu art. 24, parágrafo 2º define o que seriam “outros mercados”.
E, como se não bastasse, a IN nº. 134, de 09 de maio de 2017 da ANCINE, altera a IN nº 95, de 08 de dezembro de 2011 da Ancine, inclui no art. 24 o inciso V que contém a “Publicidade Audiovisual na Internet”. Ausculte-se.
“Art. 24. A CONDECINE será devida uma vez a cada 12 (doze) meses, por título de obra audiovisual publicitária, por segmento de mercado audiovisual em que seja comunicada publicamente, conforme valor definido em regulamento pelo Poder Executivo Federal, nos termos do §5º do art. 33 da Medida Provisória 2.228-1, de 06 de setembro de 2001. (Alterado pelo art. 1º da Instrução Normativa nº 134)
§1º Os segmentos de mercado audiovisual são os seguintes:
I – Salas de Exibição;
II – Radiodifusão de Sons e Imagens;
III – Comunicação Eletrônica de Massa por Assinatura;
IV – Vídeo Doméstico; e
V – Outros Mercados.
§2º Entende-se por Outros Mercados os seguintes segmentos:
I – Vídeo por demanda;
II – Audiovisual em mídias móveis;
III – Audiovisual em transporte coletivo; e
IV – Audiovisual em circuito restrito.
V – Publicidade audiovisual na Internet”. (Incluído pelo art. 2º da Instrução Normativa nº 134)
Ora, ao definir “outros mercados” por instrução normativa – que o legislador deveria colocar no anexo da MP 2.228-01/01, ou até mesmo no próprio corpo normativo –, a agência reguladora está, definitivamente e por vias transversas, instituindo tributos. Dito isso, cabe a indagação: compete à agência reguladora instituir tributos por instrução normativa?
Segundo José dos Santos Carvalho Filho, “nos limites da conceituação teórica, não há grande dificuldade em distinguir dois dos poderes fundamentais do Estado – o legiferante e o regulamentar. O primeiro é primário, porque se origina diretamente da Constituição na escala hierárquica dos atos normativos; o segundo é secundário, porque tem como fonte os atos derivados do poder legiferante”[4].
Na qualidade de ato administrativo, o ato regulamentar é subjacente à lei e deve pautar-se pelos limites desta. Em outras palavras, o escopo do regulamento é esmiuçar a lei sem extravazar seus contornos.
Hely Lopes Meirelles[5], na mesma linha de raciocinio, sustenta que: “como ato inferior à lei, o regulamento não pode contrariá-la ou ir além do que ela permite. No que o regulamento infringir ou extravasar da lei, é írrito e nulo, por caracterizar situação de ilegalidade”.
Portanto, verifica-se que as agência reguladoras exercem função verdadeiramente regulamentadora, ou seja, estabelecem disciplina, de caráter complementar, com observância dos parâmetros existentes na lei que lhes transferiu aquela função. “O poder normativo técnico indica que essas autarquias recebem das respectivas leis, delegação para editar normas técnicas (não as normas básicas de política legislativa) complementares de caráter geral, retratando poder regulamentar mais amplo, porquanto tais normas se introduzem no ordenamento jurídico como direito novo (ius novum)”[6]. De modo que há no caso em tela clara violação ao princípio da tipicidade tributária e extrapolação do poder regulamentar, pois a lei é clara em se referir ao anexo e não a qualquer tipo de regulamento.
Nessa toada, deve-se evitar que a sedução pelo ímpeto da realização de alguma política pública em razão de algum silêncio da atividade legiferante permita que seja extrapolado o poder regulamentar. De modo que seja reprimida a prática autoritária do administrador, por mais que tenha uma boa intenção ou uma ideia inovadora.
A esse respeito cumpre mencionar que na Odisséia, o protagonista Ulisses optou por não se furtar de escutar o canto das sereias antes de passar por Cila e Caribde na jornada de volta para Ítaca; porém, teve que atravessar aquele trecho do mar com os braços e as pernas amarradas no mastro do navio para não sucumbir aos seus feitiços e perecer junto aos navegantes desafortunados que jaziam junto ao grande prado onde as sereias se encontravam[7].
A referida anedota traz à lembrança o famoso oráculo de Delfos, criado por Apolo, filho de Zeus, e que era uma peça fundamental para a tomada de decisões na Grécia Antiga nos séculos VI e IV a.c., e nele continham três lemas que se aplicam à hipótese em debate:
“Conhece-te a ti mesmo”; “Nada em excesso”; e “Comprometer-se traz infelicidade”.
Professor, Especialista em Regulação da Agência Nacional do Cinema, Advogado. Pós-Graduado em Direito pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro -EMERJ, Pós-Graduado em Direito Civil Constitucional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ
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