Resumo: A humanidade sempre lidou com o questionamento acerca do início da vida. Nos últimos anos, em consequência da ideia de que toda pessoa tem dignidade humana, pacificou o entendimento de que pessoa não poderia ser objeto de todo e qualquer tipo de experimentação com pesquisas tecnológicas. É esse o foco de desenvolvimento do trabalho, tendo em vista o momento em que inicia a vida e quando essa pessoa passa a ter direito à tutela jurídica. Todavia, por envolver aspectos religiosos, científicos e jurídicos, alguns direitos foram empregados para alicerçar a presente pesquisa, dentre eles: a dignidade da pessoa humana e o direito à vida. Dessa forma, entende-se que o embrião não é pessoa humana. Assim, objetiva-se realizar a pesquisa com levantamento bibliográfico de doutrinas, trabalhos científicos publicados na internet, bem como uma pesquisa jurisprudencial sobre esta problemática.
Palavras-chave: Embrião, Tutela Jurídica, Vida, Dignidade da Pessoa Humana.
Abstract: Mankind has always dealt with the question about the beginning of life . In recent years , due to the idea that every person has human dignity , settled the understanding that person would not be subject to any kind of experimentation with technological research . That is the focus of development work, in view of the time when life begins and when that person becomes entitled to legal protection .However, by involving religious, scientific and legal aspects , some principles were used to underpin this research , including : the human dignity and right to life . Thus , it is understood that the embryo is a human person has the right to life and dignity , and should be protected by Brazilian law . Thus , the objective is to carry out research with bibliographical survey of doctrines , scientific papers published on the internet as well as a jurisprudential research on this issue .
Keywords: Embryo,Legal guardianship, Life, Dignity of the Human Person.
Sumário: Introdução. 1. O embrião. 2. Definição juridica de embrião. 2.1. Teorias acerca do início da vida à luz do código civil de 2002. 2.1.1 Teoria Concepcionista. 2.1.2 Teoria da Nidação. 2.1.3 Teoria Gradualista ou Desenvolvimentista. 2.1.4 Teoria das Primeiras Atividades Cerebrais . 2.1.5 Teoria Natalista. 3. Tutela jurídica do embrião. 3.1. Tutela no direito penal. 3.2. Proteção constitucional. 3.2.1 Do Direito à Vida. 3.2.2 Da Dignidade da Pessoa Humana. 3.3. Documentos internacionais. 3.3.1 O Código de Nuremberg. 3.3.2 A Declaração Universal dos Direitos Humanos. 3.3.3 Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. 3.3.4 Declaração de Helsinke. 3.3.5 Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos. 3.3.6 Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto São José da Costa Rica. 3.3.7 Convenção sobre Direitos da Criança. 3.3.8 Declaração Universal do Genoma Humano e Direitos Humanos. 3.3.9 Declaração Ibero-Latino-Americana sobre Ética Genética – Declaração de Manzanillo. 3.3.10 Declaração Internacional sobre dados genéticos humanos. 3.4. Da proteção na legislação especial. 3.3.3 Lei de Biossegurança (Lei n. 11.105/05). 3.3.4 Do entendimento do Conselho Federal de Medicina. 4. A ADI 3.510 à luz do ativismo judicial. Referências Bibliográficas.
INTRODUÇÃO
O trabalho monográfico examina o status do embrião no ordenamento jurídico brasileiro e no direito comparado, tendo em vista o aumento da reprodução assistida nos últimos anos e consequentemente o destino dos embriões excedentários dessa atividade.
Destarte, a pesquisa foi desenvolvida com base no método dedutivo cujas técnicas utilizadas foram a Documentação Indireta de modo que, a investigação foi realizada por meio de pesquisa bibliográfica, recorrendo-se, também, à pesquisa jurisprudencial.
Desse modo, o estudo subdivide-se em 4 capítulos.
O primeiro tópico tem por tarefa delinear o histórico do embrião, o surgimento das pesquisas científicas utilizando células embrionárias e como essas células são formadas. A posteriori, a tarefa é demonstrar a tutela jurídica no direito comparado, concluindo que a Itália é um dos únicos países que criminalizam a pesquisa com células-tronco embrionárias humanas.
O segundo item destina-se a enfatizar o momento em que se inicia a vida do embrião, apesar de este ser ofício da medicina e da biologia. Destarte, se evidencia as mais diversas teorias acerca do início da vida combinando com a definição jurídica de embrião, na qual, para a maioria dos autores, ele é certamente uma pessoa em potencial, ou seja, que desde a concepção existe uma potencialidade de pessoa.
O terceiro ponto, por sua vez, tem a finalidade de expor a tutela jurídica do embrião, enfatizando que apesar das inúmeras teorias citadas no capítulo II, o embrião não possui personalidade jurídica e nem capacidade de direito, pois antes da concepção não há que se falar em vida. Visa, assim, demonstrar na pesquisa realizada a tutela do embrião no Direito Penal, no Direito Constitucional, no Direito Internacional no que se refere aos Tratados em que o Brasil é signatário. Ao final, busca tecer alguns comentários acerca do entendimento do Conselho Federal de Medicina, acerca da Resolução 2013/13 e da Lei de Biossegurança.
Destarte, o escopo da pesquisa não é examinar de maneira aprofundada o fenômeno da pesquisa com células tronco embrionárias. O que efetivamente pretende-se é apresentar contribuição para o ordenamento jurídico a fim de, em seguida, examinar algumas decisões de nossas Cortes Superiores (STF/STJ) à luz da premissa que enumeramos no estudo.
Ao final, no quarto capítulo, finalizamos a pesquisa com a ilustre decisão da Suprema Corte na ADI 3510, na qual foi julgada constitucional a Lei de Biossegurança o que, consequentemente, permitiu a pesquisa com células tronco embrionárias. Nesse passo, sob o enfoque constitucional, verificamos os argumentos da decisão e o papel da Suprema Corte face ao ativismo judicial.
Há cerca de 150 anos atrás, foi possível ao homem descrever o fenômeno da fecundação, compreendendo-a, então, como a penetração de um espermatozóide no óvulo feminino para gerar um novo ser.[1]As investigações sobre a gênese do embrião humano deram origem a modelos estruturantes de crescimento.
A teoria da transmissão das características hereditárias foi elaborada no início do século passado, em 1902. E,em 1909, estabeleceu-se o conceito de gene. Assim, nesse seguimento da compreensão da estrutura em forma de dupla hélice do ácido desoxirribonucléico (DNA) que, em 1953, as descobertas se sucederam, umas às outras, numa velocidade frenética (VEJA, 2003, P.84).
Dessa forma, surgem novas tecnologias no campo da reprodução humana e de acordo com a Dra. Márcia Mattos Gonçalves Pimentel, especialista em Genética Humana:
“[…] Embora, ao final do séc. XX muitos processos biológicos ainda se apresentam que não podem ser modificados. No que diz respeito ao momento em que tem início a vida humana, alguns fatos biológicos são incontestáveis. São eles: Primeiro: O indivíduo humano começa a existir biologicamente a partir do momento em que ele tem um corpo, e a formação do corpo, de qualquer pessoa inicia-se no momento da fecundação. Ou seja, o primeiro passo para a formação de um novo indivíduo é a fusão de duas células altamente especializadas, denominadas gametas. Desta forma, todo ser vivo começa sua existência a partir de uma única célula quando, então, tem início um processo contínuo de multiplicação e diferenciação celular, até que, ao tornar-se adulto, o indivíduo terá cerca de 100 milhões de células. Segundo: Uma conseqüência da fusão do óvulo com o espermatozóide é que estas duas células perdem a capacidade de operar independentemente uma da outra, passando a trabalhar como uma unidade chamada zigoto ou embrião unicelular. (…) Terceiro: Os genes começam a expressar suas informações, sintetizando RNA mensageiro a partir do DNA, logo após a fertilização. A ativação dos genes no embrião ocorre antes da primeira divisão celular, que se dá de 15 a 20 horas após a fertilização. O zigoto, portanto, começa a existir e a operar como unidade desde o momento da fecundação (…). Quarto: O zigoto possui um genoma (conjunto gênico) absolutamente único, que lhe confere uma identidade biológica. Cada embrião é uma combinação gênica singular. Nunca ocorreu nem ocorrerá outro genoma igual” (NALINI, 1999, p. 263-264).
Para compreender ainda melhor o histórico científico do embrião, é importante lecionar que, no dia 25 de julho de 1978, numa maternidade londrina, os médicos Patrick Stepoe e Robert Edwards convocaram a imprensa para anunciar que havia sido dada à luz uma saudável menina, de nome Louise (COELHO, 2010, p.148). Ela provinha de um embrião fecundado através de uma nova técnica, em pesquisa há mais de dez anos: a fertilização in vitro. Por essa técnica, retiram-se cirurgicamente óvulos do ovário da mãe para fertilizá-los com os espermatozóides do pai em laboratório. Em seguida, o óvulo fecundado é implantado no útero.
Contudo, o nascimento do primeiro bebê de proveta, em meados de 1978, concretizou a possibilidade de concepção de um ente humano fora do corpo da mulher, gerando reflexos no mundo científico e jurídico.
Aqui no Brasil, no entanto, para limitar os riscos da gravidez múltipla, a recomendação é de que seja feita a transferência de apenas dois embriões, sendo comum que se chegue a três. (BARROSO apud SARMENTO, 2006, p.264)
Com o aumento do uso dessa técnica,se estabeleceu um número muito significativo de embriões que, por motivos diversos, não serão destinados aos procedimentos de reprodução, chamados de embriões criopreservados, isto é, congelados e com seu desenvolvimento suspenso. (SERRÃO, 2003)
Ocorre que, os embriões excedentários, implicaram na existência de um dilema sobre o seu destino. Assim, tal conflito resultou na utilização de pesquisas com células-tronco embrionárias.
Nesse enfoque, com ênfase no Direito Comparado, após intensa discussão, o Parlamento Britânico autorizou a destruição dos embriões não reclamados, o que ocorreu, efetivamente, 1996.
Em 2005, no Brasil, a Lei de Biossegurança permite, em seu artigo 5°, que “para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro”. (BRASIL, 2005) Destarte, observe-se que as células-tronco devem ser extraídas de embriões oriundos de tratamento reprodutivo.
Países como Finlândia, Grécia, Suíça, Holanda, Japão, Canadá, Austrália, Coréia do Sul, Cingapura, China, Rússia, África do Sul, Estados Unidos, México, Reino Unido e Israel fazem pesquisas com células-tronco e têm legislação específica que regulamenta o uso desse tipo de células. (LOUREDO, 2014) E, atualmente, países como Dinamarca, Bélgica, Espanha, Noruega, Suécia, França, Índia, Cingapura, Portugal, Irã e China, também permitem o uso de células tronco embrionárias, desde que sejam respeitadas as limitações impostas pelas leis nacionais.
Esses países são na sua maioria democráticos e laicos, com desenvolvimento científico, médico e tecnológico equivalente ou superior ao brasileiro e, juntos, detêm mais da metade da população mundial. Além disso, são países responsáveis pela maior parte das publicações em saúde e acolhem expressivas comunidades religiosas.
Em 2008, com a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3510, o Brasil firmou um marco na história quando, o Supremo Tribunal Federal, julgou a pesquisa com células-tronco embrionárias constitucional, o que veremos com mais detalhes nos capítulos posteriores.
Destarte, não foi identificado nenhum país que tenha enfrentado a constitucionalidade da pesquisa com embriões sob a perspectiva da metafísica do início da vida humana, tal como proposto pela ADI 3510. Quase todos os países que regularam a pesquisa com células-tronco embrionárias se viram primeiro diante do desafio de como restringir a prática científica e a maioria optou por reconhecer o valor da liberdade científica.
Por outro lado, em 2012, na Alemanha, Noruega e Itália a legislação é bastante restritiva e conflituosa. A Lei Fundamental (Constituição) da Alemanha garante a liberdade de pesquisa, ao mesmo tempo, assegura a cada pessoa o direito à vida. Na pesquisa com células-tronco embrionárias humanas, esses dois direitos entram em conflito. (SCHOSSLER, 2012)
Destarte, apesar de a Alemanha proibir a produção de células-tronco embrionárias, ela autoriza a pesquisa com material biológico importado, ou seja, células humanas não alemãs.
Nota-se que, dentre os países relacionados, a Itália é o único país que criminaliza a pesquisa com células-tronco embrionárias humanas.
Com alicerce na linha cronológica apresentada, não resta dúvida da importância em tecer alguns estudos e comentários sobre quando se inicia a vida do embrião nas mais diferentes teorias. Dessa forma, é de relevância, ainda, saber a influência dessas teorias nas pesquisas com células-tronco embrionárias e na constitucionalidade da Lei de Biossegurança.
2 DEFINIÇÃO JURIDICA DE EMBRIÃO
O embrião é certamente uma pessoa em potencial, ou seja, que desde a concepção existe uma potencialidade de pessoa. Segundo esse entendimento, desde a concepção, “as condições necessárias ao desenvolvimento dos diversos estados de organização biológica estão claramente presentes no genoma do indivíduo”. (BERNARD, 1998, p.37)
Casabona (1994, p.138) propõe que “estabelecer que o começo da vida humana ser deflagrado com a fecundação do óvulo ou com a concepção, não é mais tão simples depois de tantas inovações na ciência”. Nessa perspectiva, ditar o começo e o fim da vida humana não é tarefa dos juristas, mas das ciências biomédicas.
Desse modo, sob o enfoque biológico podemos definir o embrião como uma célula, ou grupo de células, capazes de se desenvolver em ser humano, desde que interagindo em ambiente adequado. Haverá embrião a partir da fecundação, isto é, da união dos gametas masculino e feminino, que constituem uma nova célula e vocacionada à vida autônoma.
Nota-se que o embrião humano, fruto da fecundação natural, no ventre materno, está compreendido no conceito de nascituro, para efeito da salvaguarda de direitos, de modo que a palavra embrião, de forma generalizada, atingiria aos provenientes da fertilização in vitro depois, portanto, de sua implantação no organismo da mulher. Assim, os excedentários, que se encontram crioconservados, só adquirem vida após serem implantados no organismo humano.
Sob um enfoque puramente filosófico, que se ocupa da natureza essencial dos seres, o embrião é um ente vivo da espécie humana, reconhecido como indivíduo. Admitindo a diversidade de pontos de vista sobre a fixação do instante a partir do qual o embrião, como ente vivo humano, deverá ter direito absoluto à vida, muitos filósofos adotam a postura de escolherem a opção mais segura quando há incerteza: a vida do embrião, desde o zigoto, deve ser protegida para se não correr o risco de discriminar seres humanos, instrumentalizando uns em benefício de outros. (JUNGES, 1999, p.16)
Para os moralistas e filósofos que adoptam a posição definida pela Igreja Católica “não se pode afirmar que o embrião é uma pessoa, mas é preferível protegê-lo como uma pessoa para evitar o risco de discriminá-lo, ao admitir a sua destruição para o benefício de outras pessoas” (SANTOS, 1998, p.129). Outras tradições religiosas fazem uma interpretação moral diferente dos factos científicos ou continuam a apoiar-se em noções antigas como a percepção, pela mãe, dos movimentos fetais, para que o feto receba o estatuto legal de pessoa.
Para a reflexão ética o que está em causa, nas decisões pessoais, é a ética individual e os valores individuais, entendendo que cada cidadão, como pessoa individual, tem o direito e o dever de assumir uma posição, após informação honesta e compreensível, segundo os seus valores.
Nessa mesma linha de entendimento
“[…] o respeito à vida humana é a um tempo uma das maiores idéias de nossa civilização e o primeiro princípio da moral médica. É nele que repousa a condenação do aborto, do erro ou da imprudência terapêutica, a não aceitação do suicídio. Ninguém terá o direito de dispor da própria vida, a fortiori da de outrem e, até o presente, o feto é considerado um ser humano” (SILVA, 1994, p.182-183).
Assim, o conceito de feto à que alude o autor trata-se daquele no ventre da mãe, que já foi concebido, gerado, ou até mesmo implantado no útero por inseminação artificial.
Em um breve estudo realizado em legislação estrangeira, o Artigo 2º da Convenção dos Direitos do Homem e da Biomedicina, do Conselho da Europa, já vigente em Portugal, diz textualmente: “O interesse e o bem-estar do ser humano devem prevalecer sobre o interesse único da sociedade ou da ciência”. (PORTUGAL, 1986) E, em uma linha ética, o Art. 18º, nº 1, da citada Convenção, afirma que a lei deve proteger adequadamente o embrião sempre que seja autorizado usá-lo em investigação, reforçando este cuidado no nº 2 do mesmo Artigo, proibindo a constituição de embriões apenas para o uso em investigação; subjacente a esta proibição está o conceito ético de que o embrião humano não é algo de que se possa dispor livremente, não é uma coisa ou um simples bem de consumo.
Todavia, o embrião humano, resultado da fertilização in vitro, enquanto não for implantado no organismo materno, não goza da proteção conferida ao nascituro, pois a ele não se equipara. E, não pode ser considerado ente humano por nascer, pois não há que certeza de sua implantação.
No Brasil, enquanto não editada norma legal a respeito, a operacionalização dos conceitos jurídicos com vistas a precisar o início da existência do sujeito de direito deve ser feita com cautela. Não há dúvidas, nesse contexto, de que o embrião fertilizado in vitro, à partir da implantação no útero, deve ser já considerado nascituro, quer dizer sujeito despersonificado. A sua natureza jurídica, enquanto não verificada a implantação no úteromaterno ou caso nunca esta venha a ocorrer, é ainda incerta. (COELHO, 2010, p.164)
Dessa forma, entende a doutrina majoritária que o embrião implantado tem a mesma natureza do nascituro, ser humano já concebido e cujo nascimento é dado como certo. Destarte, o embrião humano fruto da fecundação natural, no ventre materno, está compreendido no conceito de nascituro, para efeito da salvaguarda de direitos, de modo que a introdução da palavra "embrião" no citado dispositivo, de forma generalizada, atingiria aos provenientes da fertilização in vitro, antes, portanto, de sua implantação no organismo da mulher, inclusive os excedentários, que se encontram crioconservados.
Face à controvérsia da definição jurídica de embrião, inclusive quanto ao início da vida para caracterizá-lo como ser humano e protegê-lo juridicamente, é de substancial importância angariar as teorias acerca do início da vida.
2.1 TEORIAS ACERCA DO INÍCIO DA VIDA À LUZ DO CÓDIGO CIVIL DE 2002.
Inicia-se o tema com o seguinte questionamento: O direito da personalidade, fundamentado em cláusula pétrea constitucional, como desdobramento do direito à vida, tutelaria também o embrião implantado e o criopreservado?
Nota-se que há várias teorias acerca de quando se inicia a vida para o embrião e, consequentemente, também para o nascituro. De fato, independentemente da corrente adotada, é certo que há para o feto uma expectativa de vida humana, uma pessoa em formação. A lei não pode ignorá-lo e por isso lhe salvaguarda os eventuais direitos. Todavia, o embrião nao se equipara ao nascituro.
Diante disso, importa tecer algumas considerações acerca das principais teorias do início da vida humana.
2.1.1 Teoria Concepcionista
A teoria concepcionista salienta que o início da vida se baseia no fato da vida humana ter sua origem na fecundação do óvulo pelo espermatozóide, momento este denominado pelas ciências humanas como concepção.
Dessa forma, adotada essa teoria, não se permitirá pesquisas com embriões mesmo que fertilizados in vitro, pois isto implicaria em uma conduta prevista no Código Penal Brasileiro, o aborto.
A teoria concepcionista sustenta que os direitos desde a concepção do zigoto até sua transformação em embrião é feto viável e que, garantidas as condições naturais pode haver o desenvolvimento à condição humana plena. Desse modo, a Constituição Federal Brasileira e o Código Civil Brasileiro garantem a integridade do ser humano, o seu direito de evoluir, protegido do engenho humano contrário, da condição de vida humana em potencial à vida humana de fato.
Essa teoria é adotada pelo artigo 2° do Código Civil, que dispõe: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção os direitos do nascituro”. (BRASIL, 2002)
As disposições legais visam, essencialmente, à disciplina dos denominados direitos patrimoniais. Para Clóvis Bevilácqua ao se afirmar que o homem tem personalidade jurídica está se dizendo que ele tem capacidade para ser titular de direitos (apud PUSSI, 2005, p.94).
Garantidos estão ainda, os direitos do embrião constitucionalmente quando prevê a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5°, caput, o direito à vida: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida ”. (BRASIL, 1988)
Nesse contexto entende-se que:
“A personalidade do nascituro não é condicional; apenas certos efeitos de certos direitos dependem do nascimento com vida, notadamente os direitos patrimoniais materiais, como a doação e a herança. Nesses casos, o nascimento com vida é elemento do negócio jurídico que diz respeito à sua eficácia total, aperfeiçoando-a”. (ALMEIDA, 2000, p.81)
Nota-se que as propriedades características da pessoa humana, ou seja, todo o material genético, já estão presentes no embrião, em estado de latência. Assim, o embrião já é considerado ser humano com vida própria, garantindo o ordenamento jurídico à tutela do embrião e do nascituro. E, de acordo com esse entendimento:
[…] desde o momento da concepção, encontram-se no genoma do ser que se forma as condições necessárias para o seu completo desenvolvimento biológico. Ainda que insuficientes, tais condições são necessárias, o que vem a significar que desde a concepção existe a potencialidade e a virtualidade de uma pessoa. (MEIRELLES, 2000, p. 138)
Assim, tendo em vista o embrião como pessoa em potencial, ele merece o respeito e dignidade que é dado a todo homem à partir do momento da concepção. Dessa forma, merece o devido amparo jurídico para que não seja tratado como objeto.
2.1.2 Teoria da Nidação
Para essa teoria, nidação pode ser conceituada como o momento em que o embrião se fixa na parede do útero, ocorrendo à partir do 4° (quarto) dia da fecundação.
Com o fenômeno da nidação o embrião adquire vida. Assim, é pela implantação que o ovo adquire viabilidade e determina o estado gravídico da mulher. Isto posto, antes da nidação apenas havia um aglomerado de células que constituiria, posteriormente, os alicerces do embrião.
Completa Scarparo (1991, p. 42): “Não seria viável falar de vida humana enquanto o blastócito ainda não conseguiu a nidação, o que se daria somente no sétimo dia, quando passa a ser alimentado pela mãe”.
Todavia, a teoria em baila é defendida por vários ginecologistas, dentre eles Joaquim Toledo Lorentz (apud SOUZA, 2008, p.5 ), que utilizam o argumento de que o embrião fecundado em laboratório morre se não for implantado no útero de uma mulher, não possuindo, portanto, relevância jurídica.
Como o início da vida ocorre com a implantação e nidação do ovo no útero materno, não há nenhuma vida humana em um embrião fertilizado em laboratório e, portanto não precisa de proteção como pessoa humana.
2.1.3 Teoria Gradualista ou Desenvolvimentista
Para esta doutrina, no início de seu desenvolvimento o ser humano passa por uma série de fases: pré – embrião, embrião e feto. Sendo que, em cada fase o novo ente em formação apresenta características diversas.
Não há vida humana desde a concepção e o embrião, ainda, não tem caráter humano, sendo comparado a um mero aglomerado celular.
Sobre essa teoria, explica Meirelles (2000, p. 114): “Entendem os adeptos da referida teoria, que os embriãos humanos, nas etapas iniciais do seu desenvolvimento, não apresentam ainda caracteres suficientes a individualizá-lo e, desse modo, identificá-los como pessoa”.
Destarte, para os desenvolvimentistas, a vida humana vai merecer respeito à medida de seu desenvolvimento, devendo ele ser gradativo e conforme o desenvolvimento embrionário e fetal. Assim, Warnock (2003) entende que é necessário distinguir os diferentes estágios do desenvolvimento do embrião. No mesmo sentido, Frydman, Green, entre outros (FRYDMAN, 1999).
2.1.4 Teoria das Primeiras Atividades Cerebrais
Ora, se a vida acaba quando o cérebro paralisa, seria lícito supor que ela só começa quando o cérebro se forma. Este é o pensamento dos defensores da corrente das primeiras atividades cerebrais.
Luís Roberto Barroso (2006, p.27) salienta:
“Se a vida humana se extingue, para a legislação vigente, quando o sistema nervoso pára de funcionar, o início da vida teria lugar apenas quando este se formasse, ou, pelo menos, começasse a se formar. E isso ocorre por volta do 14º dia após a fecundação, com a formação da chamada placa neural”.
Também adepta a essa teoria, Melaré (2005), relata que
“A vida no ser humano existe somente se as funções cardíacas e cerebrais estão em funcionamento simultâneo e regular. Sob esta ótica, não basta a pessoa estar com o coração batendo para dizer que está viva […] ao contrário, a Lei de Transplante de órgãos declara morta a pessoa que, mesmo com atividade cardíaca, tem constatada a sua morte encefálica.”
Esse critério para a definição do momento da morte, para fins de doação de órgãos, absolutamente pragmático, deve servir de orientação para a definição do início da vida, em termos legais. Nesse sentido, o embrião humano ainda sem atividade encefálica, para a presente teoria, é viável para utilização em pesquisas, em prol de outras vidas humanas.
Todavia, no bojo dessa teoria há uma grande discussão no que tange ao exato momento em que se daria a formação encefálica no feto já que, a doutrina, não é unânime nesse lapso temporal.
Em uma pesquisa científica salientou-se que
“Vida é quando acontece a fecundação. Isso significa dizer que cerca de metade dos seres humanos morre nos primeiros dias, já que é muito comum o embrião não conseguir se fixar na parede do útero, sendo expelido naturalmente pelo corpo. Vida é o oposto de morte – e então ela se inicia quando começam as atividades cerebrais, por volta do 2º mês de gestação” (MUTO, 2005, p.25-27).
A hipótese aponta para a 20º semana, quando a mulher consegue sentir os primeiros movimentos do feto, é nessa fase que o tálamo, a central de distribuição de sinais sensoriais dentro do cérebro, está pronto.
2.1.5 Teoria Natalista
A teoria em apreço parte do pressuposto de que a aquisição da personalidade opera-se à partir do nascimento com vida.
Nesse contexto, salienta entendimento de que:
O nascituro não é ainda pessoa, não é um ser dotado de personalidade jurídica. Os direitos que se lhe reconhecem permanecem em estado potencial. Se nasce e adquire personalidade, integram-se na sua trilogia essencial, sujeito, objeto e relação jurídica; mas, se se frustração, o direito não chega a constituir-se, e não há falar, portanto, em reconhecimento de personalidade ao nascituro, nem se admitir que antes do nascimento já ele é sujeito de direito. (PEREIRA, 2001, p.79)
Partindo do entendimento do autor citado acima, seria razoável compreender que, o embrião, não sendo considerado pessoa, possui mera expectativa de direito.
Segundo essa teoria, a personalidade da pessoa tem início a partir do parto, desde que nascido com vida. O nascituro seria um ser em potencial pois, para que tenha os direitos que lhe são reservados, ainda em sua existência intra-uterina, é necessário que nasça com vida. Nesse entendimento, o nascituro não é considerado pessoa, ele apenas tem, desde sua concepção, uma expectativa de direitos, que está sob a condição do nascimento com vida.
O fato de afirmar que a personalidade tem início a partir do nascimento com vida, não quer dizer que o nascituro não tenha direitos antes do nascimento. Se o nascituro, durante toda a fase intra-uterina, tivesse personalidade, não haveria necessidade da lei distinguir, os direitos, ou melhor, a expectativa de direitos, que se consolidam com o nascimento com vida.
Para Semião inexiste qualquer tipo de vida extrauterina, ou seja, um embrião fertilizado in vitro, sequer seria considerado ser humano, quando se afirma que
“A consequência lógica do nascimento com vida, no sistema adotado pelo nosso ordenamento jurídico é a existência da pessoa natural, portadora da personalidade civil plena. Portanto, em nosso Direito, em conformidade com a maioria das legislações vigentes e em harmonia com a escola natalista, hoje generalizada em todo o mundo, soa exclusivamente dois os requisitos para que a pessoa natural tenha inicialmente a personalidade civil: a) o nascimento; b) a vida intrauterina. Em outras palavras, exige-se apenas que nasça com vida. Antes do parto, o feto não é pessoa, é uma porção da sua mãe, uma parte das víceras desta, como se afirma nas fontes romanas. Antes do nascimento o nascituro não tem vida própria e independente, pois é alimentado pelo sangue materno. Até operar-se o nascimento, o nascituro está ligado ao corpo materno, em razão mesmo da sua existência, inteiramente dependente, alimentando através da placenta cuja vida só tem existência intra-uterinamente.” (SEMIÃO, 1998, p. 153)
Conclui-se que o nascituro, de acordo com a teoria natalista, não tem personalidade jurídica e nem mesmo capacidade de direito, sendo protegido pela lei apenas os direitos que terá possivelmente ao nascer com vida, os quais são taxativamente enumerados pelo Código Civil.
O embrião, apesar das inúmeras teorias a respeito do início da vida, não possui personalidade jurídica e nem capacidade de direito, pois antes da concepção, não há que se falar em vida. Todavia, esse posicionamento não está explicitamente definido na legislação e nem mesmo na doutrina jurídica brasileira, tornando-se inviável definir esse momento com precisão. Assim, esse tema é papel da seara biológica e não da seara jurídica.
O ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso (2007, p. 246), posiciona-se favoravelmente a intervenção em embriões, como a utilização das células-tronco embrionárias, aduz que nesse tema pode-se chegar a distintos níveis de abstração e complexidade. Por outro lado, não se podem ignorar as pessoas que sofrem de doenças como, por exemplo, as atrofias progressivas, as distrofias musculares, entre outras, que notoriamente precisam da ajuda e empenho por parte do Estado, da sociedade e da comunidade científica.
De todo modo, é de crucial importância, tecer alguns comentários acerca da tutela jurídica do embrião no Brasil. Destarte, orienta-se tal proteção nos moldes do: Direito Penal, Legislação Especial e Direito Constitucional.
O direito penal assegura o direito à vida como um direito de não ter interrompido o processo vital senão pela morte espontânea e inevitável. Existir é o movimento contrário ao estado de morte e, por se assegurar o direito à vida é que, a legislação penal pune todas as formas de interrupção violenta do processo vital. É também por essa razão, que se considera legítima a defesa contra qualquer agressão à vida, bem como se reputa legítimo até mesmo tirar a vida de outro em estado de necessidade da salvação da própria.
É incontestável que a retirada da vida humana (até mesmo pelo aborto) é crime contra a pessoa. A interrupção da vida de um embrião congelado, como qualquer outra forma de interrupção voluntária da vida, também seria um fato antijurídico. Há de se salientar, contudo, que: "Não basta que o fato seja antijurídico. Exige-se que se amolde a uma norma penal incriminadora. Daí a questão da adequação típica, que consiste em a conduta subsumir-se no tipo penal". (JESUS, 2002, p. 269) Todavia, esse tema não completa o conceito de crime, quando se relaciona à tipicidade.
E, também no âmbito penal, criminalizando e proibindo o aborto, ressalvadas as exceções legais, no que dispõe o art. 124 do Código Penal Brasileiro que: “provocar aborto em si ou consentir que outrem lho provoque”, cominação de pena de 01 (um) à 03 (três) anos de detenção”. (BRASIL, 1940) Entretanto não há que se falar nesse crime, obviamente, no caso do embrião, haja vista que ele ainda não foi concebido.
Alguns especialistas enumeram, de modo elucidativo, as funções do tipo penal. São elas
“[…] a função indiciária, pela qual o tipo circunscreve e delimita a conduta penalmente ilícita e também a função de garantia, refletindo que o tipo de injusto é a expressão mais elementar, ainda que parcial, da segurança decorrente do princípio da reserva legal. Todo cidadão, antes de realizar o fato, deve ter a possibilidade de saber se sua ação é ou não punível. Em verdade, o tipo cumpre, além da função fundamentadora do injusto, também uma função limitadora do âmbito do penalmente relevante. Assim, o que não corresponder a um determinado tipo será penalmente irrelevante”. (BITENCOURT, 2003, p. 11-12)
Dessa função limitadora do tipo abstrai-se que foi penalmente relevante proteger a vida do embrião fruto da concepção intra-uterina. Contudo, àquele que resultou de uma ectogênese, ainda que tenha o mesmo status do primeiro embrião e, igualmente tenha vida, é irrelevante proteger, o que se deduz pela inexistência do tipo penal. Não cabendo, em Direito Penal, analogia para obter a condenação, jamais poderiam ser comparadas a criopreservação e a gestação como meio pelo qual se mantém vivo o conceptus.
Desse modo, o que se tutela no aborto é a vida. Se no ventre da mãe o embrião se desenvolve e se no congelamento o seu desenvolvimento é suspenso, há que se observar essa salutar diferença.
Manifestam-se a respeito da discussão entre a vida do conceptus in vitro e a questão do aborto, dizendo que:
“[…] ainda que não se reconheça na hipótese da ocisão voluntária do conceptus in vitro o crime de aborto, não se pode negar existir destruição de vida humana, o que colide frontalmente com a proteção do direito à vida, que não admite gradações: a vida existe ou não; é um fenômeno único”. (BARBOZA apud MEIRELLES, 2000, p. 65)
No crime de auto-aborto ou aborto consentido, o sujeito passivo é o nascituro, que é o produto da concepção em qualquer fase da gestação. O tipo que engloba essas duas figuras é o art. 124 do Código Penal que diz: "Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque" (BRASIL, 1940), pelo qual é evidente que, para realizar as manobras abortivas em si mesma, ou para permitir que outra pessoa as realize, deve-se estar grávida, ser gestante. Dessas observações, pode-se inferir que o crime possui elementares e circunstancias.
No art. 121 do Código Penal, as palavras matar e alguém, são elementares do crime de homicídio; no art. 124, que trata de aborto praticado ou consentido pela gestante, o estado de gestante (gravidez) é elementar do tipo. (BRASIL, 1940)
Jesus (2002, p. 552) esclarece a questão das elementares e circunstancias, dizendo que: "Se tirarmos a cabeça de um homem, a vítima não subsiste como pessoa humana. Assim, a cabeça é elemento do homem. Se tirarmos, porém, a sua vestimenta, ela subsiste como homem. Logo, a sua vestimenta constitui uma circunstância da pessoa humana".
Por isso, quando se supõe que os embriões laboratoriais não são pessoa (alguém) e não têm vida (somente uma expectativa), quando se tipifica que só há aborto quando há gravidez, está a se dizer que tais embriões podem ser descartados. Assim, como as elementares do crime são essentialia delicti, diz Damásio que quando "a ausência da elementar exclui o crime de que se trata e qualquer outra infração penal (atipicidade absoluta), […] o sujeito não responde por crime algum". (JESUS, 2002, p. 552)
Nessa perspectiva, os embriões in vitro não sofrem ameaças enquanto estiverem nesta condição. Após a sua implantação em útero materno, ainda pode ocorrer a chamada "redução seletiva" na gestação múltipla, que é a eliminação de um ou mais embriões para permitir que os demais se desenvolvam. O médico reduzirá, discricionariamente, qualquer um deles que considere anormais ou defeituosos.
Apesar disso, demonstra-se no Direito comparado que:
“[…] na redução seletiva o embrião destruído pode ser absorvido pelo corpo da gestante e não expelido e, além disso, a gestação não é interrompida. Na Inglaterra, a redução embrionária é considerada legal em duas situações: quando o embrião apresenta qualquer anormalidade que se considere grave; ou, ainda que não haja anormalidade alguma, mas a gestação plúrima em si represente sérios riscos para a gestante; neste último caso, o médico pode escolher qualquer um dos embrião a ‘reduzir’” (MEIRELLES, 2000, p. 68)
Dessa forma, para a realidade científica, a atipicidade absoluta tem sido gozada aos extremos.
Dentre outros empenhados no biodireito, já faz referência ao termo embrionicídio para remeter ao fato da destruição dos embriões excedentários e o termo cobaísmo humano para remeter às pesquisas com esses embriões. Porém, esta denominação específica possui cunho valorativo em que retrata o caos instaurado com essa prática de utilização dos embriões humanos em pesquisas. (BARBAS apud MEIRELLES, 2000, p. 65)
Verificamos que o direito positivo não confere proteção penal ao embrião in vitro. Protege-o, tão-somente em sua vida intra-uterina, durante a gravidez, através da punição ao abortamento.
A atual Carta Magna é a primeira na história pátria a prever um título próprio dedicado aos princípios fundamentais. Também tivemos, pela primeira vez no âmbito do direito constitucional positivo, o reconhecimento da dignidade da pessoa humana como fundamento do nosso Estado democrático de direito.
Nesse passo, “a constituição não é mais apenas a ordem jurídico-fundamental do Estado”, tornando-se a “ordem jurídica fundamental da sociedade”. (HESSE, 1991, p.22)
A priori, é importante enfatizar que não há direito que se sobreponha a esses dois direitos: que são a vida e a dignidade humana. A proteção constitucional do embrião está para os dois direitos, mas já a concepção in vitro tem escondido a relativização desses direitos, que são essenciais.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, no entanto, em seu art. 5º, parágrafo 2°, deixa claro que os direitos e garantias elencados não excluem nenhum outro que deles decorra, mesmo que não estejam expressos naquela Carta. A dignidade humana como fundamento da República e essa principiologia "configuram uma verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, tomada como valor máximo pelo ordenamento". (TEPEDINO, 2003, P.XXV)
Maria Helena Diniz (2001, p.7), dispõe que a Constituição de 1988, em seu artigo 5º, IX proclama a atividade científica como um dos direitos fundamentais, não significando que ela seja absoluta e não contenha qualquer limitação, pois há outros valores e bens jurídicos reconhecidos constitucionalmente, como a vida, a integridade física e psíquica, a privacidade, entre outros, que poderiam ser gravemente afetados pelo mau uso da liberdade de pesquisa científica.
Havendo conflito entre expressão da atividade científica e outro direito fundamental da pessoa humana, a solução ou o ponto de equilíbrio deverá ser o respeito à dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado Democrático de Direito, previsto no artigo 1º, III, CR/88. Nenhuma liberdade de investigação científica poderá ser aceita se colocar em perigo a pessoa humana e a sua dignidade.
O direito à vida é objeto de autônoma e específica tutela constitucional, abarcando sob o seu manto protetor todo aquele que pertencer à espécie humana, donde se conclui, realmente, pela existência de um direito de nascer.
Dessa forma, leciona o ilustre autor Silva que:
“[…] a vida humana de que trata a Constituição Federal, integra-se de elementos materiais (físicos e psíquicos) e imateriais (espirituais), sendo abrangente do direito à dignidade da pessoa humana, do direito à privacidade, do direito à integridade físico-corporal, do direito à integridade moral, e, especialmente, do direito à existência”. (SILVA, 1994, p.197)
Cuida-se de texto que solenemente reconhece a dignidade da pessoa humana, como base da liberdade, da justiça e da paz.
O autor sabiamente fala no “direito a uma existência digna” em que consubstancia aspectos de natureza material e moral, nos quais serviriam para fundamentar o desligamento de equipamentos na prática da eutanásia. (SILVA, 1994, p.199) A existência digna, desse modo, consiste no direito de estar vivo, de lutar pelo viver, de defender a própria vida, de permanecer vivo.
Já o direito à integridade física, que oferece o autor, operando a combinação com o direito à vida e o direito à saúde, serve como fundamento e justificativa para a interrupção da gravidez, nas situações de risco à saúde da mãe, ainda que apenas à saúde psíquica. Dessa forma, nota-se que, o direito a vida é um direito essencial do qual decorrem todos os demais previstos constitucionalmente.
Para que possa manifestar sobre o tema, antes de tudo, é preciso estar atento à exata dicção constitucional:
“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.” (BRASIL, 1988)
A priori, o vocábulo todos parece compreender não apenas as pessoas já nascidas, mas também o embrião e o feto. O que implicaria sustentar a existência de um direito à vida, ou direito de nascer, como direito da personalidade, o que nos levaria à conseqüência lógica de que o aborto terapêutico “violenta o sentimento filosófico do ordenamento jurídico, é inconstitucional e contradiz o direito civil”. (LORENZETTI, 1998, p.470)
Nesse sentido destaca, com propriedade, a Ministra do Supremo Tribunal Federal, Carmen Lúcia Antunes Rocha:
"Em geral, os sistemas jurídicos afirmam que ser considerado pessoa em direito, vale dizer, dotar-se de personalidade para os fins de titularizar direitos, depende do nascimento com vida. Todavia, quanto aos direitos humanos, os direitos que cada ser humano titulariza não se há fazê-los depender da personalidade […] Há que se distinguir, portanto, ser humano de pessoa humana. E, de pronto, há que se antecipar que o princípio da dignidade, que se expressa de maneira relevante quanto à pessoa humana, não se circunscreve a ela, senão que haverá que ser respeitado para a espécie humana, tomada esta em sua integralidade[…] O embrião é, parece-me, inegável, ser humano, ser vivo, obviamente, que se dota da humanidade que o dota de essência integral, intangível e digno em sua condição existencial. Não é, ainda, pessoa, vale dizer, sujeito de direitos e deveres, o que caracteriza o estatuto constitucional da pessoa humana". (ROCHA, 2004, p. 47)
Com a citação, nota-se o fiel entendimento da Suprema Corte, inclusive da ministra, quando salienta ainda que "se a proteção constitucional do direito à vida refere-se ao ser humano, ao humanum genus, nem se há duvidar que o embrião está incluído na sua proteção jurídica. O embrião é ser e é humano". (ROCHA, 2004, p.48) No entanto, o que se refere aqui é o embrião implantado, concebido, aquele que se equipara ao nascituro.
O ministro Carlos Ayres Britto, Relator no julgamento da ADI 3210, sustentou a tese de que, para existir vida humana, é preciso que o embrião tenha sido implantado no útero humano. Segundo ele, tem que haver a participação ativa da futura mãe. E, o embrião, não sobrevive no útero sem a mãe. Ora, o zigoto (embrião em estágio inicial) é a primeira fase do embrião humano, a célula-ovo ou célula-mãe, mas representa uma realidade distinta da pessoa natural, porque ainda não tem cérebro formado; o zigoto não pode antecipar-se à metamorfose.
Destarte, no entendimento do Supremo, não há pessoa humana embrionária, mas um embrião de pessoa humana. Esta, sim, recebe tutela constitucional, moral, biográfica, espiritual, é parte do todo social, medida de todas as coisas. A Constituição da República atribui à vida o status de direito fundamental. De fato, não há como se cogitar dos direitos de igualdade, da intimidade, da liberdade, do bem-estar, sem pressupor o direito à vida, como antecedente necessário a todos os demais.
Ao declarar o direito à vida, a Lei Maior enaltece a pessoa humana e sua inerente dignidade, contemplando, destarte, os valores que, hodiernamente, vêm se tornando universais. O direito à existência digna foi efetivamente consagrado e decorre da conjugação do artigo 5.º, caput, com o artigo 1.º, inciso III, da Carta Constitucional. Nem por isso se corre o risco de invocá-lo pura e simplesmente como justificativa para as práticas que atentam contra a vida. É que o conteúdo desse princípio é vago, aberto, fluido, e, por isso mesmo reclama da Bioética e do Direito a sua delimitação, consoante as exigências axiológicas fundamentais da comunidade.
O respeito à vida humana é a um tempo uma das maiores idéias de nossa civilização e o primeiro princípio da moral médica. É nele que repousa a condenação do aborto, do erro ou da imprudência terapêutica, a não aceitação do suicídio. Ninguém terá o direito de dispor da própria vida, a fortiori da de outro e, até o presente, o feto é considerado um ser humano.
O que se afigura inequívoco, é que restou expresso no texto constitucional que a dignidade da pessoa humana se constitui em fundamento da República Federativa do Brasil. Destarte, o Estado deve envidar seus esforços para consagrá-la na plenitude dos aspectos material e moral que lhe são ínsitos. Tem-se por certo, então, que o legislador ordinário, agora, não é livre para elaborar a lei, impedido de editar norma inconstitucional e norma legal permissiva de conduta que não guardasse respeito à dignidade humana.
Nesse diapasão, será exigido dos juízes que, diante do fato concreto, inspirem suas decisões no princípio insculpido na Lei Maior, porque representa o valor axiológico contemplado pela sociedade nesse especial momento histórico.
3.2.2 Da Dignidade da Pessoa Humana.
A dignidade da pessoa humana é uma qualidade intrínseca, inseparável de todo e qualquer ser humano, é característica que o define como tal. Concepção de que em razão, tão somente, de sua condição humana e independentemente de qualquer outra particularidade, o ser humano é titular de direitos que devem ser respeitados pelo Estado e por seus semelhantes.
A dignidade da pessoa humana é o princípio basal e já no artigo 1°, inciso III, da Constituição Federal de 1988 é elencado como sendo um dos fundamentos da República. A pessoa humana é colocada no centro do ordenamento jurídico, e compõe outros princípios. (BRASIL, 1988). Assim, a dignidade é um predicado tido como inerente a todos os seres humanos e configura-se como um valor próprio que o identifica.
Pode-se trazer à baila a visão antropológica de Oliveira, quando do ultraje da dignidade:
“Nada mais violento que impedir o ser humano de se relacionar com a natureza, com seus semelhantes, com os mais próximos e queridos, consigo mesmo e com Deus. Significa reduzí-lo a um objeto inanimado e morto. Pela participação, ele se torna responsável pelo outro e con-cria continuamente o mundo, como um jogo de relações, como permanente dialogação.” (OLIVEIRA, 2005, p.25)
Rocha, ao comentar o Art. 1º da Declaração dos Direitos Humanos, o festejado dispositivo que decreta a igualdade de todos os seres humanos em dignidade e direitos, faz as seguintes considerações:
“Gente é tudo igual. Tudo igual. Mesmo tendo cada um a sua diferença. Gente não muda. Muda o invólucro. O miolo, igual. Gente quer ser feliz, tem medos, esperanças e esperas. Que cada qual vive a seu modo. Lida com as agonias de um jeito único, só seu. Mas o sofrimento é sofrido igual. A alegria, sente-se igual”. (ROCHA, 2004, p.13)
A ausência de dignidade possibilita a identificação do ser humano como instrumento, coisa, na medida em que viola uma característica própria e delineadora da própria natureza humana. Todo ato que promova o aviltamento da dignidade atinge o cerne da condição humana, promove a desqualificação do ser humano e fere também o princípio da igualdade, posto que é inconcebível a existência de maior dignidade em uns do que em outros.
Entendendo a Dignidade da Pessoa Humana como princípio, Barroso assevera
“A doutrina civilista, por sua vez, extrai do princípio da dignidade da pessoa humana os denominados direitos da personalidade, reconhecidos a todos os seres humanos e oponíveis aos demais indivíduos e ao Estado. Sob essa ótica privatista mas de base constitucional, tais direitos da personalidade, inerentes à dignidade da pessoa humana, apresentam-se em dois grupos: (i) direitos à integridade física […] (ii) direitos à integridade moral[…]”
Dessa forma, de acordo com esse entendimento, nota-se que no plano da integridade física colocam-se questões contemporâneas de grande complexidade e implicações éticas, como as que envolvem pesquisa com células-tronco embrionárias.
Pode-se valer da explicação de Silva acerca do conceito de dignidade da pessoa humana, a fim de se entender o significado para além de qualquer conceituação jurídica, posto que a dignidade é, como dito, condição inerente ao ser humano, atributo que o caracteriza como tal: “A dignidade da pessoa humana não é uma criação constitucional, pois ela é um desses conceitos a priori, um dado preexistente a toda experiência especulativa, tal como a própria pessoa humana”. (SILVA, 1998, p.84)
Dessa forma, nota-se que a explicação de Silva se adere ao entendimento de Sarlet ao informar sobre as dificuldades de uma definição precisa e satisfatória de dignidade da pessoa humana. E como relembra este autor, foi Kant quem definiu o entendimento de que o homem, por ser pessoa, constitui um fim em si mesmo e, então, não pode ser considerado como simples meio, de modo que a instrumentalização do ser humano é vedada. (SARLET, 2003)
Tal definição tem inspirado o pensamento filosófico e jurídico na modernidade. Ora, a dignidade não pode ser renunciada ou alienada, de tal sorte que não se pode falar na pretensão de uma pessoa de que lhe seja concedida dignidade, posto que o atributo é inerente, dada a própria condição humana.
Flávia Piovesan, salienta que
“Todo ser humano tem uma dignidade que lhe é inerente, sendo incondicionada, não dependendo de qualquer outro critério, senão ser humano. O valor da dignidade humana se projeta, assim, por todo o sistema internacional de proteção. Todos os tratados internacionais, ainda que assumam a roupagem do Positivismo Jurídico, incorporam o valor da dignidade humana.” (PIOVESAN, 2003, p.188)
Nesse entendimento e na concepção dos demais autores, as várias tentativas de conceituação de dignidade da pessoa humana se valem, sobretudo, da respeitabilidade, prestígio, consideração, estima ou nobreza.
Uma definição na esfera jurídica que merece destaque é de Sarlet. Para esse autor, dignidade é:
“Qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”. (SARLET, 2002, p.24)
Analisando posicionamentos doutrinários, Sarlet assevera que existem, além dos direitos fundamentais consagrados na carta constitucional – seja no seu catálogo de direitos fundamentais, seja em outras partes da Constituição – ou mesmo dos previstos em tratados internacionais, outros direitos fundamentais, aqueles não positivados, trata-se do sistema aberto dos direitos fundamentais.
Desse modo, Sarlet demonstra sabiamente que o Direito exerce papel fundamental na promoção da dignidade humana, sobretudo, quando cria mecanismos destinados a coibir eventuais violações. Ressalte-se que a dignidade não existe apenas onde é reconhecida, posto que é um dado prévio e, como expressão da própria condição humana, a dignidade pode e deve ser reconhecida mas, não pode ser criada ou concedida.
Esse parecer é de um conceito valorativo constitucional que se constitui como o pedestal da ordem jurídico-constitucional, pois definidor de norma constitucional e direito fundamental, inclusive em relação a outros bens e princípios constitucionais.
Desta feita, a dignidade da pessoa humana se aplica ao embrião humano, fundamentalmente quando a legislação especial permite a sua disposição.
“Deter o ciclo vital de um embrião humano é uma expressão da vontade de poder, pela qual uma pessoa decide o destino de outra, que vem a ser um ente fraco e indefeso. Sua vida é “suspensa”: ela está “lá”, congelada e depositada, como um produto de consumo, junto a muitos outros, disponível em caso de necessidade. Sua dignidade se vê reduzida ao calor de uma coisa a ser usada, sujeita também a expiração, de vez que não se pode garantir a integridade física e mesmo a vitalidade de um embrião congelado em proporção direta ao tempo e à modalidade de congelamento. Assim, além de um excesso de poder, há também a violência pela qual essas vidas “expiradas” e “imprestáveis” são descartadas”. (CORREA, 1998, p)
Nesse contexto, percebe-se que a dignidade está para todo e qualquer ser humano, tendo como pressuposto para ser detentor desse direito: a vida, que de fato começa com a concepção. O direito de liberdade traça um paralelo com a dignidade da pessoa humana, quando se fala na possibilidade do ser humano dispor dos seus embriões criopreservados, ora sem utilização.
Tratados são, nos termos da Convenção de Viena (1969), acordos internacionais firmados entre Estados, escritos, regidos pelo Direito Internacional Público, independentemente de denominação específica. Dentre os assuntos que podem ser , no âmbito das relações internacionais, regulamentados por Tratados, destaca-se um grupo especial, voltado para a proteção do ser humano, em sua condição de portador de dignidade e ser pessoal. Estes documentos servem como escudo para qualquer manipulação lesiva desses direitos. Os instrumentos a seguir apresentados tem em comum o respeito pela dignidade da pessoa humana, a garantia do direito à vida, à autonomia, à liberdade.
Para além dos Tratados, há uma série de Declarações e Recomendações que, apesar de despidas de força cogente, são instrumentos de fundamental relevância para a compreensão da proteção jurídica do ser humano, em âmbito internacional. (RODRIGUES, 2013, p.28)
No Brasil, as declarações internacionais não têm força vinculativa como os Tratados, mas de recomendação. No Direito Internacional essa é a prática para a maioria dos documentos que envolvem direitos humanos, conhecidos como soft law, ou seja, são normas indicativas e não obrigatórias.
É fundamental constatar ainda que em nenhum desse instrumentos se estabelece uma marco inicial para a existência humana, a não ser o próprio momento para a fecundação. Todavia, em nenhum momento a existência humana fica condicionada, o que assegura a proteção do embrião humano.
O Tribunal de Nuremberg, em 9 de dezembro de 1946, julgou vinte e três pessoas, vinte das quais médicos, que foram consideradas como criminosos de guerra, devido aos brutais experimentos realizados em seres humanos. O Tribunal demorou oito meses para julgá-los e somente em 19 de agosto de 1947 o próprio Tribunal divulgou as sentenças, sendo que sete de morte, outro documento, que ficou conhecido como Código de Nuremberg. (ANDREZZA, 2012, s/p)
Sem dúvida foi um marco na história da humanidade, pois pela primeira vez foi estabelecida uma recomendação de repercussão internacional sobre os aspectos éticos envolvidos na pesquisa em seres humanos, restando demonstrada intenção de se coibir abusos à pessoa humana. (GOLDIM, 2002, p.71)
Silva (2002, p.247) destaca que desde o advento do Código de Nuremberg, existe uma preocupação em estabelecer parâmetros norteadores das pesquisas com seres humanos – umas das principais exigências definidas desde então é a de que somente poderiam ser submetidos a este tipo de pesquisa cientifica indivíduos em condições de prestar um consentimento livre e esclarecido.
3.3.2 A Declaração Universal dos Direitos Humanos
Surgiu em meio aos horrores da Segunda Guerra Mundial e como resposta à barbárie do totalitarismo que levou à descartabilidade da pessoa humana. Possibilitou, assim, a “consagração da dignidade da pessoa humana no plano internacional e interno como valor máximo dos ordenamentos jurídicos e princípio orientador da atuação estatal e dos organismos internacionais”. (BARCELLOS, 2002, p.108)
Em que pese, é importante enfatizar que foi incorporada na Constituição de 1988, a universalidade e a indivisibilidade dos Direitos Humanos.
Interpretando o teor do art. 2º, especialmente quando veda discriminação em função do nascimento, pode-se inferir que o fato de um embrião humano ainda não ter nascido não é pretexto para negar-lhe o reconhecimento de seus direitos fundamentais. Em vários de seus dispositivos, a Declaração menciona os direitos do indivíduo, inclusive no art. 6º, “todos os indivíduos têm direito ao reconhecimento, em todos os lugares, da sua personalidade jurídica”. (DECLARAÇÃO U., 1948, sp)
Apesar de existirem discussões doutrinárias a respeito da atribuição do status de pessoa ao embrião, como vimos anteriormente, não há divergência quanto ao fato de ser ele um indivíduo da espécie humana, oriundo de gametas humanos. Portanto, portador de individualidade genética típica de nossa espécie e de direitos humanos.
3.3.3 Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem
Fruto da IX Conferência Internacional Americana, em Bogotá, a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem busca orientar em 1948 a evolução do direito americano de forma a proteger os direitos do homem.
Em contrapartida, a Declaração também elenca deveres, entre eles o do art. XXIX: “O indivíduo tem o dever de conviver com os demais, de maneira que todos e cada um possam formar e desenvolver integralmente a sua personalidade”. (DECLARAÇÃO A., 1948, sp) Destarte, não se pode impedir portanto, o desenvolvimento da personalidade de um indivíduo através da terminação de sua vida.
Conforme o art. 3º da Declaração, “a pesquisa não pode ser legitimamente desenvolvida, a menos que a importância do objetivo seja proporcional ao risco inerente à pessoa exposta”. (DECLARAÇÃO, 1964, sp) Assim, a declaração em comento traz à tona a ideia de ponderação entre os possíveis benefícios oriundos da pesquisa e os riscos que ela pode vir a causar.
Com essa Declaração, a Associação Médica Mundial estabeleceu as diretrizes éticas para este tipo de pesquisa, havendo que se considerar a sua importância em relação à formalização dos princípios bioéticos básicos da autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça. (SILVA, 2002, p.249)
O aspecto individual também se sobrepôs ao coletivo, pois expressamente foi declarado como princípio básico que os interesses do indivíduo devem prevalecer sobre os interesses da ciência e da sociedade. Na verdade, esta é a discussão principal no que tange a destinação dos embriões excedentários para pesquisas e cura de doenças.
3.3.5 Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos
Assevera o pacto, adotado pela Assembléia Geral da ONU em 1966, mas passando a vigorar somente em 1976, que o Brasil é responsável por defender os direitos fundamentais, inclusive aquele que atribui à necessidade de proteção da dignidade da pessoa humana.
O art. 7º da parte III do Pacto determina que é vedado o tratamento cruel, desumano e degradante e que “será proibido, sobretudo, submeter uma pessoa, sem seu livre consentimento, a experiências médicas científicas”. (PACTO, 1996, s/p)
3.3.6 Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto São José da Costa Rica
No ano de 1969, foi firmado na Costa Rica o mais significativo dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, mas somente foi incorporado no ordenamento jurídico Brasileiro através do Decreto 678/1992. Mais tarde, em 2008, com o julgamento do Recurso Extraordinário 466.343-1/SP, o Supremo Tribunal Federal firmou entendimento no sentido de que os tratados internacionais possuem configuração de norma supralegal, estando abaixo da Constituição e acima da legislação interna, como é o caso do Pacto.
O Pacto São José da Costa Rica ficou conhecido pelo fato de impedir a prisão civil por dívidas. Destarte, o que é de maior relevância para a pesquisa se refere aos seguintes artigos:
“Art. 1º […] 2. Para efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano.
Art. 3º. Toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica.
Art. 4º, n. 1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente” (CONVENÇÃO, 1969, sp).
Nesse passo, percebe-se que o Pacto defendeu claramente a existência da personalidade jurídica e de vida para o embrião. Ele diz, como vimos, expressamente que “pessoa é todo ser humano”, sem fazer qualquer distinção entre o ser humano em sua vida intra e extra-uterina e, sem mesmo fazer qualquer rodeio ou abrir espaço para interpretações diversas. Assim, a expressão “desde o momento da concepção” nos obriga a perceber que a palavra “pessoa” se aplica também ao nascituro, pois ser humano. (COSTA JR., 2008, s/p)
3.3.7 Convenção sobre Direitos da Criança
Adotada pela Assembléia Geral da ONU em 20.11.1989, a Convenção sobre os Direitos da Criança tem força de lei no Brasil em função do Decreto Legislativo nº 28, de 24.09.1990 e do Decreto Executivo nº 99.710, de 21.11.1990.
O art. 2º da Convenção sobre os Direitos da Criança expressamente proíbe qualquer discriminação, independente de nascimento, ou seja, antes mesmo de nascer, o ser humano já estaria acobertado pela proteção do documento em análise.
Ao tratar do direito à vida, a convenção não se limita a determinar a proteção integral. Vai além e, no art. 6º, determina que “os Estados-partes assegurarão ao máximo a sobrevivência e o desenvolvimento da criança” (CONVENÇÃO, 1989, sp). Não basta assegurar a vida; é preciso fornecer condições de sobrevivência e desenvolvimento.
O ordenamento jurídico reconheceu a necessidade da tutela do embrião e do nascituro, fazendo no campo das relações civis (garantindo a ele direitos personalíssimos) nos quais o art. 7º. do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) dispõe que: “a criança e o adolescente tem direito à proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso em condições dignas de existência”. (BRASIL, 1990)
Destarte, qualquer tratamento discriminatório ao embrião é, portanto, incompatível com a Convenção sobre os Direitos da Criança, da qual o Brasil é signatário.
3.3.8 Declaração Universal do Genoma Humano e Direitos Humanos
Considerando que o genoma humano representa patrimônio de cada ser humano e, por conseguinte, de toda a humanidade, em 11 de novembro de 1997, a Organização das Nações Unidas adotou a Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos.
Na declaração, “foi reconhecido que o genoma humano está relacionado com a dignidade humana” (DIEDRICH, 2001, p. 222).
Comparato (2001, p.33) lembra que, na Declaração Universal do Genoma Humano, a UNESCO afirmou que o genoma humano está na base da unidade fundamental de todos os membros da família humana, assim como do reconhecimento de sua dignidade intrínseca e de sua diversidade. Em termo simbólicos o genoma é considerado patrimônio da humanidade.
Assim, consequentemente, essa dignidade impõe a não-redução dos indivíduos às suas características genéticas e o respeito do caráter único de cada um, bem como de sua diversidade, independentemente do seu estágio de desenvolvimento e evolução. (COMPARATO, 2001, p.33)
Dispõe o art. 2º da declaração (1997) que “Todos têm direito ao respeito por sua dignidade e seus direitos humanos, independentemente de suas características genéticas”. Essa dignidade faz com que seja imperativo não reduzir os indivíduos a suas características genéticas e respeitar sua singularidade e diversidade.
3.3.9 Declaração Ibero-Latino-Americana sobre Ética Genética – Declaração de Manzanillo
Foi elaborada 1996 e revista em Buenos Aires, no ano de 1998. Os países signatários, entre eles o Brasil, demonstram sua adesão aos valores e princípios de outros documentos jurídicos internacionais como a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos da UNESCO e o Convênio sobre Direitos Humanos e Biomedicina do Conselho da Europa.
O ponto de vista de países que não tem um grau de desenvolvimento científico e tecnológico de países de primeiro mundo enfatizando a necessidade de solidariedade entre os povos. Dessa forma, a finalidade da Declaração é reforçar a “proteção do ser humano em relação aos efeitos não-desejáveis dos desenvolvimentos científicos e tecnológicos no âmbito da genética”. (DECLARAÇÃO, 1996, sp)
Não se pode deixar de mencionar, ainda, que a Declaração de Manzanillo determina que as pesquisas devam levar em consideração o respeito à dignidade humana.
3.3.10 Declaração Internacional sobre dados genéticos humanos
O seu objetivo é assegurar que a dignidade da pessoa humana, os direitos humanos e as liberdades fundamentais sejam respeitados no que tange aos dados genéticos, cooperando para a conformidade com os ideais de igualdade, justiça e solidariedade.
No art. 3º reconhece-se que a constituição genética de cada indivíduo é característica singular. Contudo, a identidade de uma pessoa não pode se resumir às características genéticas, pois há diversos fatores envolvidos (educativos, ambientais, pessoais, sociais, espirituais e culturais). (DECLARAÇÃO, 2003)
Ademais, se estabelece que nenhum dispositivo da declaração será interpretado de forma contrária aos direitos humanos, às liberdades fundamentais e à dignidade da pessoa humana. É notório que seus artigos apresentam uma orientação para os países signatários elaborem suas legislações internas e necessária se faz a existência de limitações com a finalidade de impedir abusos eventuais abusos.
3.4 DA PROTEÇÃO NA LEGISLAÇÃO ESPECIAL
O problema dos embriões excedentes e o destino que se deve dar a eles com a falta de legislação precisa e específica referente ao assunto torna-se mais problemático, principalmente com relação aos embriões que não são utilizados a fresco e são criopreservados em temperaturas baixíssimas, a menos 196º C. (FERNANDES, 2005, p.91)
Neste caso, são apontadas pelo menos três alternativas: os embriões excedentes poderão ser doados para outro casal, doados para pesquisa científica ou destruídos, sendo certo que as duas últimas alternativas são extremamente polêmicas e objeto de várias discussões, mesmo com a regulamentação esparsa.
Destarte, é de crucial importância tecer alguns comentários acerca da proteção do embrião fundamentalmente na Lei de Biossegurança, ora objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3510, e em especial do entendimento do Conselho Federal de Medicina (CFM) mediante a nova Resolução n. 2.013/13, que permitiu o descarte de embriões criopreservados com mais de 5 (cinco) anos, se esta for a vontade dos pacientes, e não apenas para pesquisas de células-tronco, conforme previsto na Lei de Biossegurança
3.3.3 Lei de Biossegurança (Lei n. 11.105/05)
No ordenamento jurídico pátrio, a Lei 11.105 de 24 de março de 2005, também chamada de Lei de Biossegurança, em seu artigo 5º permite, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e que não foram transferidos para o organismo materno, atendidas algumas condições:
“Art. 5o É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento atendidas as seguintes condições:
I – sejam embriões inviáveis; ou
II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento.
§ 1o Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores.
§ 2o Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa.
§ 3o É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei no 9.434, de 4 de fevereiro de 1997”. (BRASIL, 2005).
Em contrapartida, a esta prática, foi proposta pelo ex procurador da República Cláudio Fonteles, a ADIN 3510, que considera inconstitucional o artigo 5º da Lei 11.105/05, a qual foi julgada improcedente pelo STF.
Um casal pode recorrer a técnicas de reprodução assistida – incluindo a fertilização in vitro, de forma que a própria Constituição Federal de 1988 em seu artigo 226 e seguinte dispõem que o homem e a mulher são as células formadoras da família e que, nesse conjunto normativo, estabelecem a figura do planejamento familiar, fruto da livre decisão do casal, e fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável (art. 226, §7°, CF). Entretanto, inexiste o dever jurídico desse casal de aproveitar todos os embriões eventualmente formados e que se revelam geneticamente viáveis, porque não imposto por lei (art. 5°, II, CF) e incompatível com o próprio planejamento familiar.
Assevera a legislação atual, conforme demonstrado, a permissão desses embriões inviáveis serem utilizados para pesquisas com células tronco embrionárias.
Nesse passo, recentemente, o Ministro Marco Aurélio, relator da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54, que também assegura uma correlação com a problemática do embrião, pois ambos julgados traçam posicionamentos acerca da vida e da dignidade da pessoa humana. Assim, mencionou em seu voto que:
“[…] as três realidades não se confundem: o embrião é o embrião, o feto é o feto e pessoa humana é a pessoa humana. Donde não existir pessoa humana embrionária, mas embrião de pessoa humana (…) O Direito infraconstitucional protege por modo variado cada etapa do desenvolvimento biológico do ser humano. Os momentos da vida humana anteriores ao nascimento devem ser objeto de proteção pelo direito comum. O embrião pré-implantado é um bem a ser protegido, mas não uma pessoa no sentido biográfico a que se refere a Constituição.”
Por conseguinte, Daniel Sarmento entende que “existe equivalência entre o direito não apenas à vida, mas também à saúde de quem já é pessoa, como a mãe, e a salvaguarda do embrião, que pessoa ainda deve tornar-se”. (SARMENTO, 2006, p.103)
Nas palavras da Ministra Cármen Lúcia, assim como o Ministro Marco Aurélio, também julgou a ADI 3510, “há que se distinguir […] ser humano de pessoa humana […] o embrião é […] ser humano, ser vivo, obviamente […] Não é, ainda, pessoa, vale dizer, sujeito de direitos e deveres, o que caracteriza o estatuto constitucional da pessoa humana”. (ROCHA, 2004, p. 22)
Em que pese o entendimento dos doutrinadores, em uma importante análise da Lei de Biossegurança, conclui-se que a fase em que se iniciam as pesquisas com as células-tronco embrionárias, por anteceder o processo de formação do sistema neural, não implicaria em desrespeito à vida do embrião, com base em critérios adotados pelo legislador pátrio. Ora, nessa fase de desenvolvimento celular, não se falaria em vida já que sequer surgiu a linha primitiva do sistema nervoso central.
Além do entendimento claro do legislador ao formular a Lei de Biossegurança, este é também o entendimento da Suprema Corte ao julgar a ADI 3510, a qual segue a Ementa
“CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DE BIOSSEGURANCA. IMPUGNAÇÃO EM BLOCO DO ART. 5º DA LEI Nº 11.105, DE 24 DE MARÇO DE 2005 (LEI DE BIOSSEGURANCA). PESQUISAS COM CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO DIREITO À VIDA. CONSITUCIONALIDADE DO USO DE CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS EM PESQUISAS CIENTÍFICAS PARA FINS TERAPÊUTICOS. DESCARACTERIZAÇÃO DO ABORTO. NORMAS CONSTITUCIONAIS CONFORMADORAS DO DIREITO FUNDAMENTAL A UMA VIDA DIGNA, QUE PASSA PELO DIREITO À SAÚDE E AO PLANEJAMENTO FAMILIAR. DESCABIMENTO DE UTILIZAÇÃO DA TÉCNICA DE INTERPRETAÇÃO CONFORME PARA ADITAR À LEI DE BIOSSEGURANCA CONTROLES DESNECESSÁRIOS QUE IMPLICAM RESTRIÇÕES ÀS PESQUISAS E TERAPIAS POR ELA VISADAS. IMPROCEDÊNCIA TOTAL DA AÇÃO.” (Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3510, Supremo Tribunal Federal, Relator: Min. Ayres Britto, Julgado em 29/05/2008).
Nesse sentido, a Lei em baila foi declarada constitucional, permitindo assim a pesquisa com as células tronco embrionárias e, consequentemente, salvar vidas.
3.3.4 Do entendimento do Conselho Federal de Medicina.
A Resolução do Conselho Federal de Medicina n.º 1.358, de 11 de novembro de 1992 versa efetivamente sobre as “normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida”. Pela norma em estudo, espermatozóides, óvulos e embriões podem ser criopreservados, cabendo aos cônjuges e companheiros informar o seu consentimento expressamente desde o primeiro momento da estocagem, quanto ao destino que será dado aos embriões preservados, em caso de divórcio, doenças graves ou de falecimento de um deles ou de ambos, e quando desejam doá-los. Todavia, esses embriões não poderiam ser destruídos ou descartados.
Esse era o entendimento que vigorava no ordenamento jurídico brasileiro até a Resolução 2.013 de 09 de maio de 2013, que adotou novas normas éticas para utilização de técnicas de reprodução assistida.
O item V.4 da Resolução (2013) estabelece que “Os embriões criopreservados com mais de 5 (cinco) anos poderão ser descartados se esta for a vontade dos pacientes, e não apenas para pesquisas de células-tronco, conforme previsto na Lei de Biossegurança”.
Destarte, destaca-se que a nova Resolução permite o descarte de embriões criopreservados. Todavia, quem defende que o embrião (óvulo fecundado por espermatozóide) é uma vida a ser protegida e, por isso, não poderia ser utilizado para pesquisas com células-tronco também deveria se manifestar contrariamente ao descarte de embriões, pois, em apertada síntese, é muito pior simplesmente descartar-se um embrião do que utilizá-lo para pesquisas com células-tronco. (LEPORE, 2013)
Mas, manifestar-se contrariamente ao descarte de embriões significa, na verdade, o fim da reprodução assistida nos moldes como ocorre hoje. Isso porque, a reprodução assistida sempre gera embriões excedentes e, quanto a eles, só existem dois caminhos: utilizá-los para pesquisas com células-tronco ou descartá-los. (LEPORE, 2013)
Nesse passo, a falta de lei dispondo sobre o assunto fez com que essa resolução ganhasse maior dimensão a respeito do assunto e serve, inclusive, para alicerçar decisões de juízes e tribunais.
4 A ADI 3.510 À LUZ DO ATIVISMO JUDICIAL
No decorrer da pesquisa, percebe-se que a questão da tutela jurídica do embrião está intimamente ligada ao caso de aborto de feto anencefálico, discutida na ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) n. 54. Na questão o ministro Lewandowski afirmou que "uma decisão judicial isentando de sanção o aborto de fetos portadores de anencefalia abriria as portas para a interrupção da gestação de inúmeros outros embriões". (BRASIL, 2012)
A ADPF n. 54 é combinada com a ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) n. 3510, que permitiu a pesquisa com células-tronco embrionárias. São duas decisões de grande repercussão social e que demonstram um ponto chave em comum: o ativismo judicial.
Nesse passo, sabe-se que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) confere sua guarda ao Supremo Tribunal Federal (STF). Entre as várias competências desse órgão de cúpula do judiciário, a sua função precípua, é a prestação jurisdicional, ou seja, é dizer o direito. Nesse sentido, para Barroso:
“A ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. A postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação direta da constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de parente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas de abstenção ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas”. (BARROSO, 2011).
O atual Ministro do Supremo Tribunal Federal citou como exemplo o caso do nepotismo, a condenação ao fornecimento de medicamentos por ente público a pessoas portadoras de determinadas doenças, o aborto de feto anencefálico e inclusive da ADI 3510, como casos reais da postura ativista do judiciário.
Ora, a propositura de uma ação direta de inconstitucionalidade só se justifica diante da dúvida sobre a constitucionalidade do ato normativo. Nesse passo, Ruy Barbosa, calcado na doutrina e jurisprudência norte-americanas disse que “toda medida, legislativa ou executiva, que desrespeite preceitos constitucionais é, de sua essência nula”. (BARBOSA, p.49)
Destarte, um dos fenômenos surgidos com o neoconstitucionalismo é o ativismo judicial que está relacionado à participação, cada vez maior, do poder judiciário na realização da vontade constitucional, no que concerne à concretização de seus valores junto à sociedade.
Nesse sentido, busca o ativismo “extrair o máximo das potencialidades do texto constitucional, sem, contudo, invadir o campo da criação livre do Direito” (BARROSO, 2012, p. 7)
Admitir a Constituição do Brasil como matriz do ordenamento jurídico e do Estado por ela estruturado, dotada de força normativa, não significa tê-la como um texto, como um objeto à disposição de qualquer sujeito; pelo contrário, sua eficácia dependerá da correlação entre seus pressupostos e os fatos concretos da vida que deverão, a ela estarem submetidos, a partir de uma compreensão prévia de sentido, de uma postura de ser, como um modo-de-ser. (CANOTILHO, 1999, p 32)
Esse modo-de-ser citado pelo autor, deve refletir as diretrizes estabelecidas na Constituição, à partir da observância do Estado Democrático de Direito. O papel exercido pelo direito deve ser o de um instrumento de transformação social, ou seja, deve atuar como um objeto de ação concreta do Estado através do desenvolvimento de ações, como vetor do modo, de como deve ser esse atuar.
O “modo de atuar”, sob a égide do Estado Democrátido de Direito é explicado como um processo histórico, por Lenio Luiz Streck:
“[…] a Constituição, antes de mais nada é, além de ser o elo conteudístico que une ‘política e direito’ em um determinado Estado, é também um (eficiente) remédio contra as maiorias. E ao se construir um remédio contra maiorias (eventuais ou não), tem-se a Constituição, enquanto explicitação do contrato social, traz ínsito um núcleo político que somente pode ser extirpado a partir de uma ruptura institucional. Essa é a regra do jogo democrático e o custo que representa viver sob a égide do Estado Democrático de Direito. É essa intrincada engenharia política que exsurge um novo papel para o Direito e, por conseqüência, para a Constituição. No Estado Liberal, o Direito tinha a função ordenadora e fixadora das bases da legislação para se contrapor ao antigo regime e tudo que ele representava. Para essa tarefa, havia que se superar o jusnaturalismo. O triunfo da vontade geral traz ínsito um deslocamento da esfera de tensão e poder do Executivo (que representava o absolutismo) para a vontade popular-revolucionária (representava o Legislativo) que triunfou. Sem qualquer legitimidade, o Judiciário é colocado à margem desse processo”. (ROCHA e STRECK, 2001, p.90)
Desta sorte, o poder judiciário é o principal ator na nova hermenêutica. O juiz moderno compreende que a lei estabelece limites para sua atuação, o que não significa dizer que o juiz não pode utilizar de subjetividade para escolher, dentre as soluções possíveis para o caso, aquela que se afigure a mais justa.
Nesse sentido, o judiciário é interprete dos preceitos constitucionais e deve reconhecer os conteúdos axiológicos ali tutelados. (HABERMAS, 1997, p.316/317) Assim, essa seria a medida de atuação do magistrado, preservando ainda os fundamentos históricos, organicamente concatenados na Constituição, mediante o recurso do controle de constitucionalidade.
Dessa forma, o controle de constitucionalidade, principalmente o controle concentrado, direto e com efeito erga omnes, é, sem dúvida, uma forma de exercício do ativismo judicial.
Nessa orientação, partindo do pressuposto de que é importante obter alguns cuidados, ao utilizar o ativismo judicial em excesso, de acordo com Streck, acerta Dworkin:
“ao exigir uma “responsabilidade política” dos juízes. Os juízes tem a obrigação de justificar suas decisões porque com elas afetam os direitos fundamentais e sociais, além de relevante circunstância de que, no Estado Democrático de Direito, a adequada justificação da decisão constitui um direito fundamental. Uma decisão adequada à Constituição (resposta hermeneuticamente correta) será fruto de uma reconstrução histórica do direito, com respeito a coerência e a integridade (exame de integridade legislativa e respeito a integridade das decisões anteriores). Não haverá grau zero de sentido. A resposta adequada a Constituição deverá estar fundada em argumentos de princípios e não em argumento de política (teleológico), como bem ensina Dworkin. Do mesmo modo, a resposta correta deve buscar a preservação do grau de autonomia que o direito atingiu nesta quadra da história, evitando-se os predadores externos, como os discursos adjudicativos provenientes da moral, da política e da economia, assim como os predadores internos, como os subjetivismos, axiologismos e pragmatismos de toda a espécie.” (STRECK, 2010, p.103)
Destarte, o ativismo judicial, para este autor, é atuação pautada em excessos e em uso inadequado da hermenêutica e, de outro, a resposta judicial possível ao material imperfeito entregue à sociedade. Ora, mas não podemos ser tão radicais.
Na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3510, ainda que esta seja julgada improcedente, ou seja, fundamentada na constitucionalidade daquela lei em apreço, é uma aplicação direta da constituição e caso de ativismo judicial. Envolvem situações não expressamente contempladas no texto constitucional e, independentemente de manifestação do legislador ordinário, os ministros mostraram uma postura ativista.
Na ADI em apreço, o Supremo entendeu pela aplicabilidade da Lei de Biossegurança, exatamente por garantir princípios constitucionais como a proteção constitucional do direito à uma vida digna e à saúde, direitos fundamentais a autonomia da vontade, ao planejamento familiar e à maternidade, liberdade de expressão científica. Assim, continua a vigorar no ordenamento jurídico a lei em baila, pois ela é constitucional.
Evidenciando-se o contexto pela qual a ADI está inserida, nota-se que é um ambiente de frenéticas mudanças na engenharia genética, bem como na realidade social e esta ocorre de forma explosiva. Nesse sentido, o Ministro Gilmar Mendes enfatizou que, “a questão não está em saber, como e de que forma a vida humana tem inicio ou fim, mas como o Estado deve atuar na proteção desse organismo pré-natal diante das novas tecnologias, cujos resultados o próprio homem não pode prever” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3510. Relator: Ministro Carlos Ayres Britto. Voto: Ministro Gilmar Mendes. 2008 p. 5).
Nesse passo, o voto do Ministro Cezar Peluso demonstrou claramente a sua preocupação, quando enfatizou que “fica desde logo claro que o estudo com as CTE é de todo adequado e recomendável, na medida em que pode contribuir para promoção de objetivos e valores constitucionais legítimos, que são o direito à vida, à saúde e à liberdade de investigação” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3510. Relator Ministro Carlos Ayres Britto. Voto Ministro Cezar Peluso. 2008, p. 22).
Nesse diapasão, a decisão demonstra claramente o ativismo positivo da Suprema Corte ao confirmar a constitucionalidade das pesquisas com células tronco embrionárias, partindo do pressuposto que, consequentemente com esse julgamento, possibilitou salvar inúmeras vidas. Ora, “toda interpretação jurídica envolve uma disputa de paradigmas” (Habermas, apud Costa, 2010. p. 25). Portanto, percebe-se sim, na decisão, o fenômeno do ativismo judicial, pois, o Judiciário se ocupou de uma matéria que seria – ou pelo menos deveria ser – de competência do congresso nacional. Contudo, crê-se que esse protagonismo do Judiciário, com as devidas ressalvas, tem sido mais salutar para fortalecer o Estado Democrático de Direito.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Muito se falou em embriões, mas o que realmente interessa a pesquisa é o caso dos embriões excedentários. A Lei de Biossegurança (Lei 11.105/05) foi declarada constitucional e agora com a Resolução 2013/13 do Conselho Federal de Medicina, novas mudanças exsurgem no ordenamento jurídico brasileiro no que se refere ao destino desses embriões excedentários. Todavia, a tutela jurídica do embrião é extensa e esparsa, mas as práticas de pesquisas com células tronco embrionárias tornam-se cada vez mais corriqueiras.
A decisão da Suprema Corte ao julgar a improcedência da ADI 3510 foi, sem dúvida, uma das deliberações de maior repercussão social, principalmente no que refere ao papel ativista do poder judiciário. Nota-se que, a grande marca do constitucionalismo contemporâneo é a ascensão institucional do Judiciário e o espaço que tem ocupado na paisagem política.
Nesse diapasão, judicialização e ativismo judicial são temas que mobilizam não apenas a comunidade jurídica, como também a sociedade em geral. Assim, no atual cenário nacional, a resposta é que o fenômeno do ativismo judicial tem mais pontos benéficos que maléficos, principalmente quando se refere à decisão proferida na ADI 3510.
Ora, essas células podem conduzir a novos patamares de pesquisa em benefício de todas as pessoas, em especial das que padeçam de doenças degenerativas. Essas mesmas pessoas, vêem nas pesquisas a possibilidade, conquanto ainda não a certeza, de poder resgatar a sua condição de saúde ou, ao menos, de melhoria das condições para o viver digno.
No entanto, conclui-se que existe, nos tempos atuais, uma nova demanda por parte da sociedade em tutela dos seus direitos. Assim, a legitimidade da atuação ativista do Poder Judiciário decorre da própria vontade da Constituição.
BARBOSA, Ruy. A Constituição e os atos inconstitucionais. 2. ed., Rio de Janeiro: Atlântica, s.d.
GOLDIM, José Roberto; CLOTET, Joaquim; FRANCISCONI, Carlos Fernando. Um breve histórico do consentimento informado. O Mundo da Saúde, São Paulo , v.26, n.1 , p.71-84, jan./mar. 2002.
Informações Sobre o Autor
Danúbia Cantieri Silva
Graduada em Direito. Pós Graduada em Direito Constitucional. Professora de Direito