A tutela penal do direito à busca da felicidade: objetividade jurídica indireta, mediata ou constante

Ao logo dos tempos, os cultores da ciência penal buscaram responder a uma indagação fundamental: qual seria a finalidade do Direito Penal? A partir dos ideais do Iluminismo, e, por conseguinte com a evolução da dogmática penal, chegou-se à conclusão de que a função ou missão do Direito Penal é a proteção de bens jurídicos fundamentais, conforme observou FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO: “a tarefa imediata do direito penal é, portanto, de natureza eminentemente jurídica e, como tal, resume-se à proteção de bens jurídicos.” (Princípios Básicos de Direito Penal, 4ª ed., São Paulo, Saraiva, 1991, p. 13-14).

Esta moderna concepção teria por finalidades assegurar a convivência de interesses jurídicos díspares, além de propiciar efetiva segurança jurídica aos cidadãos, como assinalou EUGENIO RAÚL ZAFFARONI: “a função de segurança jurídica não pode ser entendida, pois, em outro sentido que não o da proteção de bens jurídicos (direitos), como forma de assegurar a coexistência.” (Manual de Direito Penal Brasileiro, 7ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2007, v. 1, p. 86).


Porém, o que vem a ser um bem jurídico ou objeto jurídico penalmente tutelado? Classicamente, a doutrina buscou conceituar bem jurídico como “o objeto da especial proteção que a lei confere com a cominação da pena, e a violação ou exposição a perigo desse bem é que constitui o comportamento criminoso” (ANÍBAL BRUNO, Direito Penal, 5ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2003, tomo I, p. 175), ou ainda, “no próprio bem ou interesse jurídico protegido pela norma jurídico-penal que vem a ser violada, abrangido mesmo na conceituação o dever imposto pela norma.” (BASILEU GARCIA, Instituições de Direito Penal, 7ª ed., São Paulo, Saraiva, 2008, v. 1, tomo I, p. 291).


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Nunca é demais lembrar que objeto jurídico e objeto material do crime são conceitos distintos, que não devem nunca ser confundidos, conforme apontou GIUSEPPE BETTIOL “no passado, a doutrina em verdade confundia entre si a noção de objeto jurídico com a de objeto material do crime.” (Direito Penal, trad. Paulo José da Costa Júnior e Alberto Silva Franco, 2ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1977, v. 1, p. 229). Exemplificando, no crime de homicídio o objeto material recai sobre o corpo humano, enquanto que, a objetividade jurídica tutelada pena norma penal seria o direito à vida.


Contudo, os conceitos acima analisados merecem ser encarados sob uma nova ótica. O Direito Penal ganha lugar de destaque no âmbito da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Acompanhando os demais ramos do Direito, surge a denominada “Constitucionalização do Direito Penal”. A partir de então, a ciência penal ganhou novos contornos, passando por profundas modificações estruturais, e seus conceitos clássicos foram devidamente reinterpretados. A interdisciplinaridade entre o Direito Penal e o Direito Constitucional foi destacada por EUGENIO RAÚL ZAFFARONI ao afirmar que: “a relação do direito penal com o direito constitucional deve ser sempre muito estreita, pois o estatuto político da Nação – que é a Constituição Federal – constitui a primeira manifestação legal da política penal, dentro de cujo âmbito deve enquadrar-se a legislação propriamente dita, em face do princípio da supremacia constitucional.” (Ob. cit., p. 121).


Sob uma visão constitucionalista do delito, o objeto jurídico ganhou relevo na construção teórica da definição de tipicidade. Modernamente, além dos requisitos clássicos do conceito de tipicidade (tipicidade formal), existem outros requisitos, a exemplo do objeto jurídico, que integram a chamada tipicidade material ou substancial. Segundo o preciso magistério de EUGENIO RAÚL ZAFFARONI depreendemos que: “não se concebe a existência de uma conduta típica que não afete um bem jurídico, posto que os tipos não passam de particulares manifestações de tutela jurídica desses bens. Embora seja certo que o delito é algo mais – ou muito mais – que a lesão a um bem jurídico, esta lesão é indispensável para configurar a tipicidade. É por isto que o bem jurídico desempenha um papel central na teoria do tipo, dando o verdadeiro sentido teleológico (de telos, fim) à lei penal. Sem o bem jurídico, não há um “para quê?”do tipo e, portanto, não há possibilidade alguma de interpretação teleológica da lei penal. Sem o bem jurídico, caímos num formalismo legal, numa pura ‘jurisprudência de conceitos’.” (Ob. cit., p. 398-399).


De outra banda, surge uma nova e importante indagação: quais seriam os critérios levados em consideração para selecionar os bens ou interesses jurídicos tutelados penalmente? Uma resposta possível, e em sintonia com a teoria constitucionalista do delito, seria que “os bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal são selecionados por critérios político-criminais fundados na Constituição, o documento fundamental do moderno Estado Democrático de Direito: realidades ou potencialidades necessárias ou úteis para a existência e desenvolvimento individual e social do ser humano – por exemplo, a vida, a integridade e saúde corporais, a honra, a liberdade individual, o patrimônio, a sexualidade, a família, a incolumidade, a paz, a fé e a administração públicas constituem os bens jurídicos protegidos contra várias formas de lesão pelo Código Penal.” (JUAREZ CIRINO DOS SANTOS, Direito Penal, 2ª ed., Curitiba, Lumen Juris, 2007, p. 5).


Porém, por vezes, a seleção de interesses jurídicos que venham a merecer a tutela penal é realizada por representantes da classe minoritária dominante, e, assim sendo, seja carregada de proselitismos, uma vez que “numa sociedade dividida em classes, o direito penal estará protegendo relações sociais (ou ‘interesses, ou ‘estados sociais’, ou ‘valores’) escolhidos pela classe dominante, ainda que aparentem certa universalidade, e contribuindo para a reprodução dessas relações. Efeitos sociais não declarados da pena também configuram, nessas sociedades, uma espécie de ‘missão secreta’ do direito penal.” (NILO BATISTA, Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, 11ª ed., Rio de Janeiro, Revan, 2007, p.116). Esta visão crítica do tema é totalmente pertinente e atual, uma vez que o legislador penal muitas vezes edita as mais variadas normas incriminadoras com vistas a tutelar um interesse de uma minoria reinante, deixando ao largo o restante da sociedade, que talvez mais necessite da referida proteção legal.


A fim de serem evitadas indesejáveis escolhas que não atendam aos anseios da maioria social, o legislador penal deve observar antes de tudo o texto constitucional. A Constituição Federal de 1988 elenca como um dos seus dos seus fundamentos a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III). JOSÉ AFONSO DA SILVA a eleva a muito mais do que um mero princípio, mas a “um valor supremo, que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida.” (Curso de Direito Constitucional Positivo, 23ª ed., São Paulo, Malheiros Editores, 2004, p. 105). Portanto, qualquer escolha feita pelo legislador no momento da edição da norma penal que se desvie do valor da dignidade da pessoa humana deve ser fulminada pela declaração de sua inconstitucionalidade.


Em nosso texto constitucional o ser humano figura no ponto central de nosso ordenamento, no momento que elegeu a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil, deixando claro que o Estado não é um fim em si mesmo. Em um regime verdadeiramente democrático, os papéis devem ser invertidos, ou seja, a razão de existir do Estado é exatamente a pessoa humana, e assegurar a existência humana digna a principal missão estatal.


E qual seria o fim do ser humano? Em Aristóteles depreendemos que o fim de todo ser dotado de vida seria a incansável busca pela realização de sua própria natureza. A pessoa humana realiza sua natureza mais marcante, em toda plenitude, na busca da felicidade. Esta busca da felicidade, inevitavelmente, é o fim da existência humana, sendo o único fim admitido em si mesmo.


Nossa Suprema Corte reconheceu a existência do direito à busca da felicidade, como consequência lógica do valor da dignidade da pessoa humana ao decidir que: “concluiu-se que a realidade da vida tão pulsante na espécie imporia o provimento do recurso, a fim de reconhecer ao agravante, que inclusive poderia correr risco de morte, o direito de buscar autonomia existencial, desvinculando-se de um respirador artificial que o mantém ligado a um leito hospitalar depois de meses em estado de coma, implementando-se, com isso, o direito à busca da felicidade, que é um consectário do princípio da dignidade da pessoa humana.” (STA 223-AgR, Rel. p/ o ac. Min. Celso de Mello, julgamento em 14-4-2008, Plenário, Informativo 502.)


Desta forma, a Constituição Federal de 1988 determinou de maneira implícita que o papel principal do Estado é o de fomentar a felicidade das pessoas humanas que o integram. Naturalmente, o Estado cumpre com esta missão constitucional criando meios para que seja alcançada a felicidade. Em verdade, o Estado ao assegurar na Constituição Federal direitos e garantias fundamentais, está criando meios para que as pessoas humanas realizem a sua natureza, para que alcancem o seu fim: a busca pela felicidade.


Considerando que a missão direta do Direito Penal é tutelar bens ou interesses juridicamente relevantes (direito à vida, liberdade, honra, dignidade sexual etc.), e que a dignidade da pessoa humana é o valor supremo da República Federativa do Brasil, do qual decorrem todos os direitos merecedores de tutela penal, em última análise o papel indireto do Direito Penal seria o de tutelar o direito à vida humana digna, sendo somente perfeitamente realizada ao ser garantida busca pela felicidade.


Por consequência, sob um ponto de vista constitucionalista do Direito Penal, todo crime possui duas objetividades jurídicas penalmente a serem tuteladas. A objetividade jurídica direta, imediata ou variável, revelada pelos mais variados bens jurídicos fundamentais; e a objetividade jurídica indireta, mediata ou constante, que consiste na tutela da dignidade da pessoa humana, e, por conseguinte, no direito à busca da felicidade.


A objetividade jurídica direta de cada crime irá depender do interesse ou bem jurídico que a norma penal busca tutelar. Por outro lado, a objetividade jurídica indireta será uma constante, pelo que todos direitos e garantias fundamentais do cidadão derivam do valor dignidade da pessoa humana.


Diante de todo o exposto, em resposta à primeira indagação, concluímos que a finalidade do Direito Penal, inserido em um contexto democrático, é senão a proteção do direito à busca da felicidade (objeto jurídico indireto, mediato ou constante), finalidade esta que é alcançada pela tutela dos bens ou interesses jurídicos fundamentais tutelados pela norma penal (objeto jurídico direto, imediato ou variável).


 


Referências bibliográficas:

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11ª ed., Rio de Janeiro: Revan, 2007.

BETTIOL, GIUSEPPE. Direito Penal, trad. Paulo José da Costa Júnior e Alberto Silva Franco, 2ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1977, v. 1.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, vol. 2.

BRUNO, ANÍBAL. Direito Penal, 5ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2003, tomo I.

DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado. 5ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

GARCIA, BASILEU. Instituições de Direito Penal, 7ª ed., São Paulo, Saraiva, 2008, v. 1, tomo I.

HUNGRIA, NELSON. Comentários ao Código Penal, 6ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978, vol. V.

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal. 20ª ed. São Paulo: Atlas, 2003, vol. 2.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 23ª ed., São Paulo, Malheiros Editores, 2004.

TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal, 4ª ed., São Paulo, Saraiva, 1991.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de Direito Penal Brasileiro, 7ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2007, v. 1.


Informações Sobre o Autor

David Pimentel Barbosa de Siena


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