A utopia da opinião pública mundial

“Prudência e pragmatismo – eis a combinação que o homem na esquina da 5ªAvenida,na TrafalgarSquare, na PotsdamerPlatz ou na Avenida Paulista não é capaz de conceber no xadrez das relaçõesinter-estatais.”

A orquestra dos asnos e o triunfo da ideologia sobre a razão

 O chanceler cubano Felipe Pérez Roque condenou, logo no início da ação militar anglo-americana no Iraque, o que chamou de “agressão ilegal, injusta e inútil contra o Iraque, apesar do repúdio unânime da opinião pública mundial.”[1][1]  Jimmy Carter disse coisa parecida quando da invasão soviética ao Afeganistão, em dezembro de 1979, e o simbolismo norte-americano não foi mais longe do que o boicote aos Jogos Olímpicos de Moscou, em 1980. O glorioso Leonid Brejnev se expressou de forma semelhante quando Lyndon Johnson ordenou o aumento dos bombardeios ao Vietnã do Norte e ao Camboja, em 1967. Eisenhower, com o respaldo de Kruschev, não fugiu muito ao padrão quando, em nome da mesma “opinião pública mundial”, repreendeu a intervenção anglo-francesa no Canal de Suez, em 1956.

Está com um problema jurídico e precisa de uma solução rápida? Clique aqui e fale agora mesmo conosco pelo WhatsApp!

Não há exemplo melhor do que o da Polônia para ilustrar os grandes serviços prestados pela “opinião pública mundial” à paz. O tal “mundo em coro”, emulação de uma grande orquestra de asnos, aplaudiu a declaração de guerra anglo-francesa à Alemanha nazista em 3 de setembro de 1939, dois dias após a invasão da Polônia pelas divisões da Wehrmacht. Essa voz do mundo – de um mundo que excluía alemães, italianos e japoneses – havia, um ano antes, achado justo entregar a Tchecoslováquia de bandeja aos alemães. Mas daí a entregar a Polônia, já seria demais. Durante a II Guerra Mundial, os britânicos descobriram que o massacre de Katyn, responsável pela execução de mais de trinta mil oficiais poloneses, havia sido perpetrado pelos soviéticos, e não pelos alemães. Mesmo quando a notícia veio a público, a “opinião pública mundial” não fez nenhum estardalhaço em cima do fato. Pois que não nos surpreende que, em 1945, com o fim dos combates na Europa, os Aliados ocidentais, supostamente apoiados pela “opinião pública mundial”, resolvessem entregar a mesma Polônia, em defesa da qual o “mundo” havia declarado guerra à Alemanha nazista, às divisões do Exército Vermelho. Se formos julgar o desfecho da guerra na Europa com base nos caprichos da “opinião pública mundial”, todo o esforço militar contra o III Reich não valeu absolutamente nada, pois a Polônia que havia causado a entrada do Ocidente no conflito tinha, ao fim do mesmo conflito, ido parar nas mãos de Stalin, cujo acordo com Hitler em agosto de 1939 (Pacto Molotov-Ribbentrop, que fatiou a Polônia entre a Alemanha e a União Soviética) havia possibilitado aos alemães invadirem a Polônia sem se preocuparem com o perigo de um conflito com os soviéticos. Menos de seis anos bastaram para que a “opinião pública mundial” esquecesse os poloneses. Hoje, quando o governo polonês se alinha aos E.U.A. e à Grã-Bretanha no conflito iraquiano, diz-se que a “opinião pública mundial” repudia a posição polonesa. A mesma “opinião pública mundial” que, em 1945, entregou a Polônia às divisões de Stalin.

Uma massa amorfa, composta por centenas de milhares ou milhões de manifestantes que tomam as ruas das principais cidades do mundo, passou a falar em nome de toda a humanidade. Em uma estranha contradição, fala-se em “opinião pública mundial” ao mesmo tempo em que referências são feitas ao “repúdio da opinião pública britânica ao alinhamento de Tony Blair à política de Bush” (a opinião pública britânica que, malgrado as demonstrações de desaprovação ao papel britânico no Iraque, não tem tomado as ruas com o propósito de solicitar ao Parlamento a remoção de Blair da função de Primeiro-Ministro). No mesmo hiato, surgem estultices como o “repúdio da opinião pública árabe” ou a “opinião pública italiana”, entre outras odes ao verbo vazio. Subitamente nos vemos em um mundo onde há a “opinião pública mundial” (todos os humanos), a opinião pública árabe (etnicamente delimitada), islâmica (religiosamente delimitada), européia (geograficamente delimitada) e britânica ou italiana (nacionalmente delimitada). Sem mencionar, obviamente, o fato de que os cálculos da opinião pública mundial excluem os norte-americanos, nos passando a impressão de que os Estados Unidos não fazem parte do mundo. Incompreensivelmente, o mundo reconhece estar repudiando a ação de algo que ele mesmo diz não existir (os E.U.A.).

Estando esclarecido não existir uma “opinião pública mundial”, mas opiniões públicas nacionais[2][2], resta distinguir em quais nações há de fato uma opinião pública. Longe da associação, liberal por conveniência, de Eric Hobsbawm, segundo quem a opinião pública surgiu a partir das pesquisas de opinião promovidas pelo Instituto Gallup nos Estados Unidos, na década de 1930[3][3], o conceito de opinião pública nos E.U.A. é quase tão antigo quanto a própria Nação, o que resta nítido no caráter jornalístico e por vezes panfletário dos Federalist Papers (sem nenhum demérito de seu valor político e filosófico) de Madison, Hamilton e Jay e na obra de Alexis de Tocqueville[4][4], da primeira metade do século XIX. Não é minha intenção, entretanto, discursar sobre o caráter ou sobre a formação histórica dos Estados Unidos. Ao ponto: Estados Unidos da América, Grã-Bretanha, França, Itália, Alemanha e os demais países europeus onde o Estado de Direito e a liberdade de imprensa sejam concretudes de longa data [5][5](Áustria, Suíça, países escandinavos, Holanda, Bélgica) possuem uma opinião pública no sentido crítico do termo (sem prejuízo da superioridade crítica característica dos países anglo-saxões, onde o culto ao indivíduo e à limitação do governo os protege das paixões coletivistas e despóticas da democracia de massas). A cultura política das jovens nações africanas, somadas à sua proverbial capacidade de administrarem pessimamente a si próprias, não os permite desenvolver as premissas de uma opinião pública nacional e crítica; o mesmo é válido para os países asiáticos, exceção feita talvez ao Japão. Não há opinião pública na Rússia, assim como não havia na União Soviética, e como também não há na China. Os países latino-americanos, à exceção talvez do Chile pós-Pinochet, seguem uma postura histórica de endossar o relativismo e se alinharem, subconscientemente, à posição euro-afrancesada; raras são as circunstâncias em que o grosso da massa latino-americana diverge dos posicionamentos franceses. Não possuem, portanto, uma opinião pública no sentido crítico do termo.

 A opinião pública nacional      

 Para explicar a definição de opinião pública nacional de que ora faço uso,  empregarei exemplos históricos e prescindirei das ferramentas teóricas e conceituais, que primam pelo preciosimo acadêmico na mesma medida em que obscurecem a clareza da idéia[6][6]. Em 1792, uma proto-opinião pública norte-americana enfeixou os ânimos para que os Estados Unidos entrassem na guerra européia ao lado da França revolucionária. Tivessem os americanos ingressado no conflito ao lado dos franceses, ter-se-ia a pedra de toque para que os ingleses ignorassem o Tratado de Paris e tentassem novamente subjugar os norte-americanos, e o resultado em 1792 poderia muito bem ter sido diferente daquele de 1812.  George Washington ponderou e impôs sua prudência à ação externa norte-americana, mantendo os Estados Unidos neutro em face do conflito europeu e desmantelando as pretensões das facções francófilas (ou propriamente anglófobas). Não havia, nos E.U.A. de 1792, uma opinião pública capaz de discernir claramente os prós e contras de um alinhamento norte-americano à França, mas uma paixão imatura pela causa revolucionária, que ignorava os elementos do contexto e via na Revolução Francesa uma emulação da Revolução Americana. Embalada pela “solidaridade” francesa aos colonos ianques à época da Independência  e pela hostilidade aos ingleses, é provável que a maioria da população norte-americana fosse a favor do ingresso dos E.U.A. no conflito. A questão é saber se esse ingresso seria frutífero ou danoso aos interesses dos Estados Unidos, e  G. Washington estava certo da ruína em caso de alinhamento aos franceses. Foi necessário que a sabedoria das lideranças amainasse as paixões populares para que os interesses da nação como um todo não fossem estraçalhados pela esquadra britânica. O que ideólogos e agitadores da época poderiam ter chamado de “clamor da opinião pública” pelo auxílio das armas aos franceses apresenta-se-nos, tanto hoje quanto à época da ruína da França revolucionária, como um suicídio. Podemos também definir tal atitude como uma incapacidade das massas em discernir as melhores opções em matéria de política externa.

Da mesma forma, apenas com o vetor invertido, poderiam ter agido alguns camponeses da Prússia germanizada de 1866, quando Bismarck resolveu fazer a guerra contra a Áustria. Para o escárnio dos pan-germanistas, a Prússia pegava em armas contra uma nação irmã, talvez tão “alemã” quanto a própria Prússia. O que dizer, então, das reações da opinião pública britânica diante das intervenções e mediações da Grã-Bretanha na manutenção do equilíbrio de poder europeu, no século XIX; do espanto das opiniões públicas francesa, britânica e mesmo norte-americana quando os exércitos alemães rasgaram a Bélgica em 1914; do afã da opinião pública norte-americana, a partir de 1971, para que se procedesse com a retirada incondicional das forças dos E.U.A. do Vietnã do Sul;  das reações suscitadas nas opiniões públicas das nações democráticas do Ocidente quando os soviéticos invadiram o Afeganistão; e, enfim, das reações que parecem ter criado a so called  “opinião pública mundial” que protesta incansavelmente contra George W. Bush e as operações militares anglo-americanas no Iraque. Em que medida podemos falar na aprovação ou reprovação da “opinião pública”, e que dimensão devemos dar a tal opinião pública?

Houve, do fim da Guerra dos Trinta Anos ao início das guerras napoleônicas, uma espécie de uniformidade moral e de padrões de conduta entre os povos e nações européias,  que primeiro foi observado pelas classes aristocrática e política, e enfim alcançou a burguesia e mesmo as classes mais humildes. Essa uniformidade poderia ter permitido o desenvolvimento de uma opinião pública – se não “mundial”, ao menos ocidental, no que tange ao sentido civilizacional do termo -, não fosse o fato de que as massas eram mantidas alheias ao processo político e que a própria uniformidade devia sua existência ao trato mais ponderado e desapaixonado dos aristocratas. As “democracias de massa”, em contraste com o republicanismo e mesmo com a monarquia parlamentar britânica ou, em menor escala, as monarquias constitucionais da Europa continental, parecem dotadas de um desapego à análise crítica e ao individualismo, cedendo à “coletividade” a faculdade de julgamento e ao ethos metafísico da “nação”, hegelianamente concebida,  o destino de todo o povo. Essa conduta das democracias de massa, onde o primado da maioria suprime a minoria quantitativamente – e apenas quantitativamente – obtida, onde 51% da população decide o destino dos outros 49%, é o principal inimigo do espírito crítico que define a opinião pública (sendo esta deduzida da capacidade que os indivíduos de uma determinada nação têm de conciliar suas divergências e suas abordagens distintas de um mesmo problema, para, enfim, pôr os cidadãos em uma espécie de “acordo reticente” com as ações do Estado). Em outros termos, a democracia de massas representa a manifestação uníssona de uma maioria despótica que, legitimada por razões quantitativas, suprime a voz da minoria e se auto-intitula a voz da nação, chancelando cegamente as ações dos homens de Estado. E isso, é imperioso dizer, não é o que se pode chamar de opinião pública.

Razão pela qual não há, no Brasil e em outros países recém-ingressos na “democracia formal”, em que as massas insufladas por alguma paixão (o anti-americanismo no caso dos latino-americanos, o anti-americanismo somado ao apego aos valores culturais atrasados das nações árabes-islâmicas, a emulação mal-feita de nacionalismo nas nações afro-asiáticas e mesmo nas latino-americanas, o igualitarismo social-democrata fracassado das nações da Europa continental e, enfim, a orientação una e autoritária das ditaduras chinesa, cubana, norte-coreana, etc.) se auto-intitulam porta-vozes da nação, uma opinião pública, mas convergências de opinião das massas, apoiadas pela mídia e transformadas em verdades absolutas. A liberdade de expressão – nos países onde ela existe – se encarrega, com efeito, de difundir as idéias da minoria, tarefa esta que é facilitada pela Internet.

Já se expôs o fato de que os cidadãos oriundos de nações anglo-saxãs são dotados de um senso de discernimento mais acurado e relativamente isento dos imediatismos desastrosos, fato este que deriva de sua própria formação sócio-político-cultural. Um brasileiro poderia achar um absurdo que Sir Winston Churchill e um punhado de britânicos empedernidos no Gabinete de Guerra fossem loucos ao ponto de fazer resistência a uma Alemanha que já havia conquistado toda a Europa, da Polônia à França, da Noruega aos Bálcãs. E, mais ainda, que Churchill fosse capaz de esclarecer ao povo britânico as razões vitais pelas quais a Grã-Bretanha não poderia se render ao negociar com a Alemanha hitlerista. Os britânicos entenderam (talvez porque a segurança física da nação estivesse em jogo), a Grã-Bretanha resistiu, os Estados Unidos entraram na guerra e o III Reich veio a pique. Mas – contra-factualidade tentadora – e se Churchill ou qualquer outro gabinete britânico tivesse lavrado a paz com Hitler?[7][7] Um sucesso diplomático-militar na frente ocidental não teria demovido Hitler da frivolidade de invadir a União Soviética, e, cogitemos mais!, de se aliar a Stalin e compor um bloco germano-soviético capaz de fazer a guerra contra as potências ocidentais? Churchill contribuiu para transformar a opinião pública nacional britânica, em detrimento dos coros pacifistas que suplicavam por uma paz com a Alemanha e para que Londres se abstivesse, de uma vez por todas, da contendas continentais.

Em matéria religiosa – e principalmente no tocante a sociedades constituídas com base em imperativos religiosos, sem distinção clara entre o clericalismo e o laicismo, como as sociedades nacionais dos países muçulmanos -, não é possível destacar, na coletividade, uma opinião pública, pela razão de que esta prerroga a existência de um espírito crítico e cético e a fé é, per se, um anátema à crítica e à exposição de evidências contrárias; em termos outros, a opinião pública baseia sua crítica em concretudes lógicas, capazes de resistir às evidências contrárias; porquanto a religião é meta-racional e avessa ao espírito crítico de matriz racional. A opinião pública, bem entendido, nem sempre (ou quase nunca, talvez) age de forma estritamente racional, mas a espinha dorsal que lhe permite existir – a sociedade organizada laica[8][8] – é uma eminência da razão, ou, ainda, um construto que o Iluminismo legou ao Ocidente. Cada um dos elementos constitutivos da opinião pública é uma opinião pessoal, donde deriva a necessidade do primado do individualismo e da liberdade de pensamento e expressão para que a opinião pública venha a ser formada. Por ser um amálgama de opiniões individuais, mais ou menos padronizadas e destituídas de algumas particularidades (particularidades estas que, no escopo individual, identificavam a opinião), a opinião pública é um produto coletivo imperfeito, uma pseudo-ética de grupo, que, ironia teórica, depende do individualismo e da liberdade de expressão e pensamento para ser formulada.

A guerra do Iraque e os lugares-comuns que a justificam

Não irei me deter nas especulações sobre os motivos que levaram o governo norte-americano a intervir militarmente no Iraque e derrubar o governo de Saddam Hussein. Há uma vasta gama de explicações, que oscilam em compasso com o espectro ideológico, para explicar a intervenção militar no Iraque, e procuraremos abordar tanto as mais difundidas quanto as parcialmente reais:

a) A questão do petróleo – O imperativo que Bush, Cheney, Rumsfeld e outras figuras teriam de satisfazer à companhias petrolíferas norte-americanas, o que só poderia ser obtido através do controle dos poços iraquianos. Segundo essa interpretação, amplamente difundida entre as massas e particularmente vulgar, porque tributária de uma leitura estreita e infantil das relações internacionais, de matriz globalista-marxista, o principal argumento da intervenção era econômico: o desmedido apetite energético da sociedade norte-americana, somado à ganância das petrolíferas texanas, lançaram os Estados Unidos numa onda intervencionista-preventiva que parece remontar aos bons tempos da Guerra Fria, com a C.I.A. derrubando Mossadegh no Irã e frustrando as pretensões soviéticas de obtenção de uma saída para o Oceano Índico. Os soldados lutam em nome do petróleo; civis são massacrados em nome do petróleo; a “legitimidade” de Saddam Hussein é desrespeitada pela ganância do petróleo. Tudo se encerra na mediocridade conspiracionista orquestrada pelas esquerdas revolucionárias, e que enxergam no capitalismo a razão de todos conflitos do mundo. Trata-se de uma versão moderna e (ainda) mais pop do livrinho panfletário de Lênin[9][9] sobre o imperialismo e sua roupagem que oculta o estágio final do capitalismo industrial.

b) A arrogância imperial –  Essa tese sustenta que os Estados Unidos fazem a guerra porque são uma potência imperial arrogante e minada por crises internas, presumivelmente derivadas das “contradições intestinas do capitalismo”, que o empurram para o extravasamento de tais crises. A secularmente anunciada crise do capitalismo financeiro, as tensões raciais no seio da sociedade norte-americana, a obsolescência das indústrias pesadas, a ameaça chinesa adensada por seu crescimento econômico, a crise institucional, a normalização da violência individual e institucional e, segundo o Sr. Michael Moore, as fraudes ocorridas na eleição presidencial de 2000, que segundo o corpulento diretor de Fahrenheit 11 de setembro representam uma mácula insuperável nas instituições norte-americanas: essas seriam as causas reais que fomentam a “arrogância do Império”. A guerra é, assim, uma projeção diversiva de tais desconfortos domésticos. Em uma arguta manobra intelectual, os Estados Unidos da América são postos em nível de igualdade com a União Soviética stalinista, com a Alemanha hitlerista e mesmo com o Iraque de Saddam Hussein ou com a África do Sul segregacionista. A tese de arrogância imperial ignora cinco séculos de ciência política e trata a ação não como objetivando um fim, mas como uma expulsão de energia caótica interna; a razão de Estado se desintegra, pois as guerras não visam nenhum objetivo estratégico particular, mas apenas a protelação dos conflitos domésticos, mesmo que essa tese insista em encontrar justificativa em uma nação cujo crescimento econômico indexado em 2003 foi da ordem de 8,2%.

c) A missão civilizadora dos E.U.A. – A tese preferida dos “neocons”[10][10]: os norte-americanos interviram no Iraque munidos de propósitos elevados, de um humanitarismo insuspeito e de total desinteresse. Tinham pouco ou nenhum interesse no petróleo, na manutenção do equilíbrio geopolítico regional,  na segurança física dos E.U.A. e seus aliados, na queda de regimes que patrocinam organizações terroristas ou no aquecimento das encomendas militares do Pentágono. É a vertente franciscana das relações internacionais, que vêem na América um poço de virtudes e nenhum vício, e nos republicanos toda a sapiência política, econômica e moral de que o Mundo Livre necessita. Incorrem na mesma ingenuidade dos defensores da tese do petróleo: a de creditar à ideologia a razão que levou os E.U.A. à guerra. Fazem vistas grossas à tirania de Fidel Castro em Cuba, de Robert Mugabe no Zimbábue e de Kim Song-Il na Coréia do Norte, ao passo que comercializam e investem capitais diretos na China de forma mais voraz do que nas nações ocidentais. O Iraque de Saddam Hussein assemelhava-se a um inferno político, e a Cuba de Castro e a Coréia do Norte de Song-Il por certo não são melhores. Aos herdeiros do “white man´s burden”, cumpre uma análise mais realista das relações inter-estatais, sob pena de proceder com uma leitura quase tão estreita e infantil quanto a dos globalistas-marxistas que conferem o ônus da guerra à sede de petróleo.

d) O establishment industrial-militar – Herança maldita e mal-interpretada do deslize verbal do Presidente Eisenhower, que, em seu discurso de despedida da Casa Branca, alertou os novos mandatários sobre o perigo de se instaurar nos E.U.A. um domínio do setor industrial-militar sobre as ações da sociedade e do Estado. Eisenhower temia que a América se convertesse em uma Prússia continental e democrática, estando a sociedade civil submetida às necessidades militares do Estado e da promoção do interesse nacional. Os defensores dessa tese, porém, envergam argumentos tendenciosos, a que Eisenhower jamais fez menção, e tratam o processo de militarização da sociedade norte-americana como se fosse algo em curso, com a natureza civil do governo tendo sido suprimida por inescrupulosos diretores de empresas de armamento e homens de Estado que servem a esses interesses. Os Estados Unidos não são, nem jamais foram, uma nação militarista. Sua tradição institucional lockeana permanece e a orientação civil do governo é reiterada a cada quatro anos, quando, ininterruptamente, é realizado o pleito presidencial. Nações militaristas costumam justificar seu desrespeito à periodicidade eleitoral e ás instituições como uma necessidade do interesse nacional; relativizam as leis e subvertem a constituição; baixam leis de exceção que se prorrogam e substituem o individualismo da sociedade civil pelo atomismo hobbesiano inspirado pelo militarismo. Os civis da Rand Corporation que, à época da administração Kennedy, fizeram a festa na reformulação do pensamento estratégico norte-americano, não foram totalmente esquecidos, e muitas de suas idéias continuam a orientar as ações do Departamento de Estado e do Departamento de Defesa. Na década de 1960, criticava-se a dupla Kennedy-McNamara por estes estarem militarizando o Estado norte-americano, em uma época em que os civis jamais foram tão influentes na política externa e de defesa dos E.U.A[11][11].; no início do século XXI, critica-se a dupla Bush-Rumsfeld por estarem cedendo aos interesses da indústria bélica e escravizando a sociedade norte-americana. Trata-se, com efeito, de um erro clássico de informação (ou de uma tática deliberada de desinformação): tanto em 1962 quanto em 2004, o primado dos civis sobres os militares é nítido; no fim da década de 1960, os Estados Unidos dispunham de uma fração de 8% do PIB para o orçamento de defesa; em 2003, dispuseram de uma fração inferior a 5% do PIB para a defesa; os “falcões” ou “neoconservadores” que predominam na administração de G. W. Bush são em sua maioria civis com fortes vínculos em think-tanks conservadores como o Heritage, o Hudson Institute e outros; a indústria bélica norte-americana há muito se conformou em sua função geradora de tecnologia e por sua interação com os centros de excelência científica e tecnológica, mas também com o futuro uso civil de tais tecnologias; a dependência da economia norte-americana em relação ao que se convencionou a chamar de “establishment militar-industrial” é uma ficção tacanha, vez que a substância da pujança econômica dos E.U.A. são o mercado interno e o fluxo de investimentos de empresas norte-americanas no exterior , bem como a geração de tecnologia de ponta conjugada à agilização da aplicação industrial de tal tecnologia. O papel desempenhado pela indústria bélica em tal conjunto é coadjuvante e secundário, não correspondendo aos fatos os coros que dizem que os Estados Unidos interviram no Iraque porque precisavam de um escape ativo para sua produção militar-industrial e para que as encomendas feitas junto às empresas de armamentos fossem renovadas e aumentadas.

e) O conspiracionismo e o “espírito cruzado” – Duas correntes explicativas distintas, e em larga medida complementares. O conspiracionismo pode ocorrer de duas formas: em sua versão mais extremada e “alternativa”, a de que as lideranças dos E.U.A. conspiram para dominar todo o mundo e criar uma relação de vassalagem entre a América e os protetorados ou hinterlands (que, na fase final da conquista norte-americana, abrangeria todo o globo). Em sua vertente conservadora, crê haver um grande complô globalista liderado contra os E.U.A., financiado pela União Européia e arquitetado pelos muçulmanos e por outras sociedades inerentemente anti-ocidentais. Tal vertente faz sentido na medida em que diz haver um masterplan islâmico contra os E.U.A., mas pecam pela fantasia e pela estreiteza quando apontam os europeus como principais agentes conscientes de tal processo. Na esteira da interpretação conspiracionista dos conservadores, adensa-se o “espírito cruzado” e um fervor metafísico de que os Estados Unidos são o último bastião cristão capaz de salvar o Ocidente. Porquanto sensata se houvesse no Ocidente a totalidade indissociável entre Estado e Religião que existe no Islã, é panfletária e de pouca utilidade quando levamos em conta que o principal estandarte do Cristianismo é a Santa Sé, e que esta mesma Santa Sé tem se posicionado veementemente contra a intervenção militar anglo-americana no Iraque. O Cristianismo não é mais do que uma face, de expressividade intermediária, do Ocidente; os alvos primários do fundamentalismo muçulmano são as liberdades individuais, civis e econômicas do Ocidente, sua meritocracia individualista e seu contínuo sucesso no domínio dos meio técnicos e científicos; em suma, o Islã brada contra aquilo que não consegue emular, e drena forças do seu próprio fracasso para erigir uma postura destrutiva e niilista em relação à civilização Ocidental. Mercê do que a tese que sugere uma contraposição “cruzada” do Ocidente perante o fundamentalismo muçulmano é desprovida de realidade e completamente inviável.

Todas as abordagens sugeridas nos chamam a atenção para a simplificação das relações inter-estatais. São, ainda, inúteis, para fins utilitaristas. Os Estados Unidos fizeram a guerra no Iraque por uma única razão: porque podiam. As massas globais, intelectualmente educadas na mais simplista tradição jus-internacionalista, viram nisso um “atentado contra a soberania iraquiana”, uma “demonstração de arrogância”, um “desrespeito intolerável ao Direito Internacional”, e se apressaram em reproduzir retratos de G. W. Bush com o bigode de Hitler, clichês gráficos com a suástica, etc. A memória popular é mesmo curta: doze anos antes do início da ação militar anglo-americana no Iraque, Saddam Hussein havia invadido e anexado o Kuwait, e, uma década antes, havia deliberadamente iniciado as hostilidades contra o Irã de Khomeini. Certo é que, durante o conflito Irã-Iraque, os Estados Unidos proveram ajuda substancial ao regime de Saddam Hussein, o que não inclui, todavia, uma chancela de Washington aos bombardeios químicos sobre os curdos, por parte dos iraquianos. É imperioso sublinhar que a ação militar liderada pelos E.U.A. de G. W. Bush só foi possível porque a ação militar formalmente liderada pelas Nações Unidas, em janeiro de 1991, deixou a tarefa pela metade e não marchou rumo a Bagdá com o fito de derrubar o regime de Saddam Hussein[12][12]. A responsabilidade pode, assim, ser atribuída aos E.U.A. de George H. Bush, que, detendo o comando real das operações militares, empreendeu um serviço incompleto. Não obstante, a mesma “opinião pública mundial” que “condena” o “absurdo” de G. W. Bush ofereceu um apoio muito mais discreto – se algum – às forças da Operação Tempestade do Deserto.

Ao fim das especulações, desvelam-se semi-verdades, motivos quase-plausíveis, em cada uma das abordagens sugeridas. Na mais direta tradição da Realpolitik, já enfatizei: os E.U.A. fizeram a guerra porque tinham os meios e a vontade para fazê-la. Prioritariamente inspirados por razões realistas, vinculadas à segurança dos Estados Unidos, em todas as suas acepções, o establishment decidiu agir com a força das armas para resguardar os interesses norte-americanos relacionados ao suprimento energético, às relações econômicas, à s considerações geopolíticas,  ao equilíbrio de poder e à projeção do poder norte-americano em todas as paragens do globo. Observando as disposições jus-internacionalistas na extensão do possível, a razão de Estado extraída por Washington sacrificou o princípio da não-intervenção e alterou – o que não significa a introdução de uma novidade – o mosaico descentralizado do direito internacional ao sugerir – e implementar – o princípio da ação preventiva. Uma leitura realista jamais pode condená-los por agir de tal forma.

Massas e política externa: uma combinação catastrófica

A maior participação das massas (principalmente a das massas de países não-democráticos) na política externa apresentou resultados desastrosos nos últimos cem anos. Argumentavam tanto os marxistas quanto os liberais-internacionalistas que o fim da diplomacia de gabinete e das intrigas de chancelaria[13][13], junto à conquista do poder pelas massas para a formulação da política externa, poria termo às guerras. A condenação moral da guerra pelo povo e os interesses complementares dos grupos sociais acabariam de uma vez por todas com o choque dos exércitos regulares. Todavia, às Conferências de Paz de Haia, de 1899 e 1907, seguiu-se a I Guerra Mundial; à febre wilsoniana e ao jus-internacionalismo da década de 1920, seguiram-se a ascensão de Hitler, o fracasso retumbante da Liga das Nações e a II Guerra Mundial; à Conferência de São Francisco e à criação da ONU seguiram-se guerras de libertação nacional, conflitos ideológicos, guerras civis adornadas por genocídios e limpeza étnica, prolongamento indefinido de conflitos locais e a difusão do terrorismo em escalas jamais vistas, até a apoteose de 11 de setembro de 2001. Aponta-se, assim, o prejuízo que a participação das massas confere não apenas ao interesse nacional e ao sucesso de uma política externa, mas às próprias conseqüências humanitárias, materiais e irrestritas que a percepção rasa do homem comum ignora quando absorvida na paixão ideológica ou no romantismo ufânico do nacionalismo. Os homens de Estado ponderam; os homens comuns se enlouquecem na paixão nacional ou ideológica – eis a diferença entre os soldados de Frederico O Grande combatendo na Guerra dos Sete Anos e os soldados de Hitler combatendo na II Guerra Mundial. Enquanto aqueles eram mantidos sob controle pela ponderação do estadista, os últimos eram incitados à paixão virulenta pelo demagogo venerado pelas massas. No século XVIII e XIX, a política externa era um esporte de Estado e a moderação prevalecia; o século XX fomentado pelo nacionalismo a entregou na mão das massas que reificavam líderes tão medíocres quanto verbalmente inflamados.

A perspectiva ampla de que dispõem os estadistas lhes permite articular o pragmatismo à ponderação, o senso de oportunidade ao cálculo racional que contrapõe benefícios e prejuízos. A massas não devem ser totalmente alienadas da formulação da política externa, mas as minúcias e especificidades estratégicas que confrontam a moralidade lhes devem ser ocultadas. Não se trata, ainda, de alienar o Legislativo e a sociedade civil dos caminhos externos que toma a Nação, mas de participar-lhes apenas o que o senso comum pode digerir sem opor obstáculos moralistas e impedimentos dos quais a própria sociedade irá se ressentir no futuro. A limitada capacidade da opinão pública de apreciar o interesse nacional deve, pois, ser compensada pela ampla visão das lideranças, da mesma forma que os excessos que a guerra moderna – condenada ou defendida pelas massas – devem ser dirimidos por essas mesmas lideranças. Pautar uma orientação externa com base em eufemismos anti-weberianos como “ética coletiva”, “espírito nacional” e “destino da pátria” perfaz o caminho mais breve para se erigir uma política externa medíocre e passiva ou uma política externa agressiva, ensandecida e indiferente a quaisquer considerações éticas e morais. O primado da opinião pública nacional sobre a fantasia teórica e propagandística da “opinião pública mundial” corrobora tal argumento, no sentido de que as massas não são politicamente apaixonadas porque são vulgares, mas o contrário. Prudência e pragmatismo – eis a combinação que o homem na esquina da 5ª Avenida, na Trafalgar Square, na Potsdamer Platz ou na Avenida Paulista não é capaz de conceber no xadrez das relações inter-estatais.

Notas:
[1][1] Divulgado no website da RTP Multimédia: http://www.rtp.pt/index.php?article=48638&visual=5
[2][2] Sobre a distinção, ver Hans J. Morgenthau. A Política entre as nações : a luta pelo poder e pela paz. Brasília: Edunb, IPRI, 2003. Cap. XVII, pp. 483-501.
[3][3] HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. 2. ed. São Paulo: Cia das Letras, 2001.
[4][4] Ver, da obra de Tocqueville, a 2ª parte do Livro I (Leis e Costumes), em especial o caps. VII e VIII. Do Livro II (Sentimentos e Opiniões), dedicar atenta leitura à 2ª e 3ª partes.
[5][5] À exceção da Grã-Bretanha, dos países escandinavos, dos Países Baixos e da Bélgica, todos os demais países europeus têm uma tradição democrática ininterrupta não superior a 60 anos.
[6][6] Justa exceção deve ser feita à obra de Morgenthau, cujo cap. XVII – mas também os caps. XV, XVI e XX – oferecem uma explicação clara e bem argumentada sobre o conceito de opinião pública nacional aplicado à política externa. MORGENTHAU, Hans. Op. cit.
[7][7] Para fins de diversão intelectual, vale a pena conferir as abordagens históricas contra-factuais da obra “More What If? Eminent historians imagine what might have been” (Pan Books, London, 2001), editado por R. Cowley. Ver o ensaio de Andrew Roberts, “Prime Minister Halifax” (pp. 279-290), onde é desenvolvido um cenário no qual a Grã-Bretanha havia lavrado a paz com a Alemanha em 1940.
[8][8] Não somente, deve-se dizer. O caráter laico da sociedade civil não basta para que a opinião pública nacional tenha o caráter crítico já desenvolvido neste artigo.
[9][9] LÊNIN, V. I. Que Fazer? São Paulo: Hucitec, 1979. Virtualmente disponível em: http://www.marxists.org/portugues/lenin/1902/quefazer/
[10][10] Neoconservadores que estão sobejamente representados na administração Bush por Paul Wolfowitz, Richard Pearl e Donald Rumsfeld, sem falarmos nos think-tanks conservadores como a Heritage Foundation ou o Hudston Institute.
[11][11] ARON, Raymond. República Imperial: Os Estados Unidos no Mundo do Pós-Guerra. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. pp. 290-314.
[12][12] Penso que tenha faltado a George H. Bush tanto a vontade ativa (que implica em danos colaterais) quanto um melhor levantamento das probabilidades por parte de sua equipe. Por certo o establishment de Reagan e a determinação de Caspar Weinberg não teriam deixado o “trabalho iraquiano” inconcluso, bem como teriam feito uso de uma conjuntura moral favorável a essa ação.
[13][13] Embora os regimes de orientação marxista-leninista jamais tenham renunciado à política de poder e às intrigas de chancelaria, o que parece ter sido uma constante na história diplomática soviética.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Lindolpho Cademartori

 

Está com um problema jurídico e precisa de uma solução rápida? Clique aqui e fale agora mesmo conosco pelo WhatsApp!

Acadêmico de Direito na Universidade Federal de Goiás e colunista da Revista Autor (www.revistaautor.com.br), do Mídia Sem Máscara (www.midiasemmascara.org), d’O Debatedouro (www.odebatedouro.com.br), do DupliPensar (www.duplipensar.net) e do Jornal Opção.

 


 

Está com um problema jurídico e precisa de uma solução rápida? Clique aqui e fale agora mesmo conosco pelo WhatsApp!
logo Âmbito Jurídico