Resumo: Este estudo tem o objetivo de evidenciar e analisar as circunstâncias que se impõem como pressupostos críticos da tensão existente entre a restrição da liberdade, observada como um bem essencial à natureza humana e o Direito penal, como um sistema formal, institucional, necessário ao controle social. Neste contexto, analisa a ideologia e a utopia como fenômenos que incidem sobre a constituição da imagem social, criando realidades que justificam uma cultura apoiada na maximização da dimensão que se atribui ao exercício da liberdade que se vincula ao âmbito de competência destinado ao controle social formalmente exercido através do Direito penal. Analisa, assim, a liberdade sob uma ótica ideologicamente dissimulada que fundamenta um Direito penal expansivo, bem como, de outro modo, a necessidade de uma liberdade utópica, que estabeleça uma crítica e proponha um ideal de ampliação dos espaços de liberdade e que se vincule a um Direito penal liberal e materialmente democrático.
Palavras-chave: Liberdade; controle social; Direito penal.
Sumário: 1. introdução. 2. um discurso sobre a liberdade. 2.1. a liberdade enquanto essência da humanidade. 2.2. a liberdade condicionada: o espaço de liberdade social. 3. a representação imaginária da sociedade. 4. a dissimulação ideológica: liberdade através da majoração do controle. 4.1. o punitivismo neoliberal: guerra e neutralização do individuo perigoso como pressuposto de liberdade. 4.2. a liberdade condicionada à imposição do direito penal como gestor de riscos globais da nova modernidade. 5. a gestão da segurança através da dissimilação do direito penal. 5.1. o direito penal: aparelho de mantenedor de uma ordem. 5.2 o direito penal simbólico. 5.3 . a pena como instrumento de defesa social. 6. a utopia como fundamento para uma outra experiência de liberdade. 7. direito penal utópico: crítica a uma outra expectativa de direito penal 7.1. princípio da legalidade. 7.2. a função da exclusiva proteção de bens jurídicos. 7.3 – a intervenção mínima. 8 – conclusão
1 – INTRODUÇÃO
A presente investigação se insere no âmbito de discussão inerente à tensão inscrita na relação entre o espaço social destinado à expressão da liberdade individual, na égide de uma sociedade que se diz pós-moderna e globalizada, e o sistema de controle e manutenção da ordem social institucionalizado, através do Direito penal.
Esta tensão é observada num duplo aspecto: através de uma liberdade cada vez mais condicionada e limitada, que se adere a um sistema de controle social centrado na punição e criado por uma realidade construída por uma dissimulação ideológica e, por outro lado, a liberdade observada como essência do ser humano, que se impõe como crítica à construção de espaços para o seu exercício em convergência com o Direito Penal centrado na dignidade humana.
Neste sentido, a análise segue o percurso construído pela dimensão criminológica dada ao contexto da sociedade de risco, numa perspectiva da criminologia radical, contando com os conceitos de imaginário social. Este é capaz de criar as possibilidades liberdade, decorrentes da materialização contida da liberdade que se dispõe como essência da natureza do ser humano.
O estudo segue este caminhar, inicialmente, através da descrição de um panorama geral sobre a liberdade. Traz, assim, as principais acepções do termo, com foco dado à liberdade que resulta da natureza humana em consonância com a liberdade social, concebida por condições externas que se impõem à autonomia. Este delineamento inicial é somado à análise subsequente que se faz do processo de constituição da imagem social, através da ideologia e da utopia. Neste ponto, constitui-se uma análise sobre a liberdade ideologicamente construída sob um viés de dissimulação, alimentando a percepção da constante existência de riscos e perigos que sustentam a gênese de um controle estatal através da maximização do âmbito de tutela penal.
Por sua vez, a utopia da liberdade se constrói como crítica à alienação que sustenta a restrição da liberdade individual. Fundamenta, assim, a materialização de um Direito penal que, no âmbito do Estado Social Democrático de Direito, deve respeitar princípios limitativos, especialmente o de proteção aos bens jurídicos essenciais ao livre desenvolvimento da sociedade.
Discute assim, os limites do Direito penal num período histórico de consolidação do caráter democrático e social de um Estado de Direito, que se amolda ao atual contexto de sociedade pós-moderna, e pauta demandas de ação que fundamentam e justificam uma intervenção Estatal voltada à satisfação comunitária. Limites, que, a priori, fixam-se como parâmetros de controle à intervenção punitiva.
O estudo, neste processo, é construído por uma análise dos princípios que direcionam a intervenção penal. Importa analisar a natureza e as peculiaridades desses princípios a fim de se adequar a uma liberdade que se dispõe como uma expressão da natureza humana, que pode ser condicionada, limitada, mas não deve ser determinada ou excluída pela pré-existência de condições e funções sustentadas por objetivos estranhos ao ser humano.
2 – UM DISCURSO SOBRE A LIBERDADE
A liberdade é o principal instrumento para efetivação autônoma da vontade[1]. Numa descrição mais geral, é um fenômeno que se materializa com o poder de determinação do ser humano para conduzir suas ações conforme sua própria orientação. É o poder que cria o caminho natural para satisfação de necessidades e determinação de interesses em âmbito social.[2]
A liberdade, assim, tem sob a sua tutela o poder de orientar a dinâmica das relações intersubjetivas que caracterizaram a humanidade, é um bem fundamental, uma condição sem a qual não se materializaria a vida. Ela é um bem que se mostra conceitualmente tão diverso quanto a sua própria influência na concretização da vontade no âmbito dos fenômenos que caracterizam o homem enquanto ser social.[3]
2.1 – A LIBERDADE ENQUANTO ESSÊNCIA DA HUMANIDADE
A realização autônoma de uma vontade caracteriza um aspecto inicial e natural da liberdade. O ser humano atua racionalmente, assim, a razão é um primeiro parâmetro para orientação do âmbito de liberdade. Desse modo, a liberdade passa a ser o exercício de expressão da vontade humana segundo uma orientação própria, decorrente de uma moral racionalizada.[4]
A liberdade pode significar uma qualificação psicológica de uma ação voluntária, ou seja, a propriedade de certos atos, na ausência de coação. Pode-se defini-la também numa acepção negativa, significando a ausência de submissão, o próprio livre-arbítrio, a liberdade de escolha, ou seja, o domínio dos próprios atos. Liberdade também se define através da caracterização de situações concretas de determinação, que se aderem aos valores concebidos pela moral, formando uma maturidade que possibilita ao homem, racionalmente, orientar e dominar o seu próprio agir, é em seu sentido positivo a autonomia humana.[5]
Esta racionalidade cria uma diversidade de expressões e significações da liberdade e, ao mesmo tempo, liga a sua expressão ao conteúdo da dignidade humana. A liberdade assume o papel de base na sustentação das ideias que vão da capacidade de autodomínio à possibilidade de participação na vida pública, do livre arbítrio à capacidade de autodeterminação em âmbito social.
2.2 – A LIBERDADE CONDICIONADA: O ESPAÇO DE LIBERDADE SOCIAL
A liberdade, em suas múltiplas variações, expressa um valor essencial à existência do ser humano. No discurso dialético que acompanha sua contínua restrição e promoção – como num processo progressivo-regressivo – solidificaram-se as bases atuais da convivência em comunidade. O exercício e satisfação dos direitos humanos, a constituição de uma sociedade apoiada num sistema de controle exercido por um órgão máximo com a finalidade de preservação comunitária, bem como os ideais de justiça e democracia se sustentam na concepção e expressão da liberdade.
A expressão da liberdade em sociedade, observando o homem enquanto ser social, requer como um dever individual, como um real débito aos seus semelhantes, a restrição a uma parcela da autonomia decorrente da liberdade individual. É neste ponto que o Estado se torna mais evidente, como um ente supraindividual responsável pela tutela do conjunto formado pelas parcelas de liberdade creditada individualmente pelos sujeitos que se veem como cidadãos, em face da promoção de uma ordem, geralmente apoiada num sistema jurídico, capaz de garantir o exercício de suas liberdades, agora condicionada, por uma estrutura normativa. Esta é a liberdade social, que forma um conjunto de condições de libertação e se determina pelo espaço de abertura social para realização das vontades individuais.
É relevante, no entanto, orientar que apesar da importância atribuída à liberdade social, quando constituída como liberdade jurídica, estabelecida entre os indivíduos como a possibilidade de se expressar no universo não proibido, a sua dimensão analítica se expande, passando a transversalizar as convenções típicas da moralidade que ligam a liberdade à essência do ser humano.
As normas sociais que condicionam os limites da vontade interagem com a liberdade que se impõe como valor inerente à maturidade humana, pela possibilidade de se autodeterminar. Orienta socialmente a capacidade de seguir voluntariamente a razão por um caminho legítimo. Neste aspecto, a autonomia, a razão e a vontade são qualificadas por condições de liberdade, definindo a liberdade privada ou pública, liberdade política, de culto, de associação, dentre outras.[6]
A liberdade, neste contexto, se mostra como um fenômeno inerente às relações e ideias postos num contexto social, político, histórico. Só a interação interpessoal em comunidade é capaz de criar o campo de decisão e o gabarito com os parâmetros culturais que dialogam com a percepção subjetiva individual para determinação do espaço de liberdade. “O espaço da liberdade é um espaço mental e cultural. […A] vida humana se apresenta como atividade ritmada por referências inteligíveis e avança, na sua espécie, através de séries de desenvolvimento imprevisíveis.”[7]
3 – A REPRESENTAÇÃO IMAGINÁRIA DA SOCIEDADE
A constituição da imagem de uma comunidade se estabelece por uma relação de afirmação ideológica. A ideologia[8] reforça os parâmetros culturais que sustentam a criação de uma imagem, ela serve como um espelho para que a sociedade crie a visualização, uma representação de si mesma. A ideologia é o elo que conecta cada indivíduo com o seu semelhante, enquanto iguais, reafirmando convenções culturais. É neste sentido que Paul Ricouer, na análise da importância de uma teoria geral da imaginação, em sua função prática, na constituição do imaginário social, afirma que:
“A verdade de nossa condição é que o elo analógico que faz de todo homem o meu semelhante só nos é acessível através de um certo número de praticas imaginativas, tais como a ideologia e a utopia. […] Na minha opinião, este critério pressupõe que os indivíduos, do mesmo modo que as entidades coletivas (grupos, classes, nações, etc.), estão em princípio e desde sempre, ligados à realidade social de um modo diferente do da participação sem distância, segundo figuras de não-coincidência que são precisamente as do imaginário social.”[9]
A ideologia, neste contexto, é observada como opiniões ou convicções de um grupo social que estabelece ideais comunitários de convivência entre os indivíduos postos em condição de intersubjetividade. Bem como, é vista como o fenômeno que auxilia a socialização dos indivíduos enquanto componentes de uma comunidade através de aspectos identitários, é um instrumento de criação e manutenção de poder social.
Assim, partindo dos conceitos de ação social e relação social de Max Weber – quando o comportamento de um é significante para a sociedade e quando o comportamento de um é orientado pelo comportamento de outro[10] – Ricoeur constrói uma análise da ideologia e utopia como fenômenos ligados à necessidade de um grupo social de se auto-representar. Neste caso, atuam como instrumentos de justificação, gerando o conteúdo que constitui a identidade de uma comunidade:
“Este jogo cruzado da utopia e da ideologia aparece como o de duas direções fundamentais do imaginário social. A primeira tende para a integração, a repetição e o reflexo. A segunda, porque excêntrica, tende para a errância. Mas não existe uma sem a outra. A ideologia mais repetitiva, mais reduplicativa, na medida em que mediatiza o elo social imediato – a substância social ética, dizia Hegel -, introduz um afastamento, uma distância, por conseguinte, alguma coisa de potencialmente excêntrico. Por outro lado, a forma mais errática da utopia, na medida em que se move 'numa esfera dirigida para o humano' permanece uma tentativa desesperada para mostrar o que o homem é, fundamentalmente, à luz da utopia”[11]
A utopia se impõe como uma ruptura, uma crítica à realidade social. Ricoeur orienta que a constituição de uma realidade passa por um processo imaginário de adequação ou refutação aos parâmetros culturais dados. Neste contexto, a utopia se mostra como um projeto imaginário de uma “outra” realidade, a contestação do estado das coisas como são, é um instrumento de subversão social frente à integração promovida pela ideologia, quando esta constrói uma realidade alienada: quando a ideologia alimenta a consolidação de uma imagem social referente a um estado das coisas que difere do que efetivamente é.[12]
4. A DISSIMULAÇÃO IDEOLÓGICA: LIBERDADE ATRAVÉS DA
MAJORAÇÃO DO CONTROLE
A liberdade, entendida como expressão autônoma da ação inerente ao potencial humano de autogerir-se em sociedade[13], passa por um período de transição, ou melhor, adequação a um contexto social pautado na ideia de controle. A manutenção de uma ordem coletiva filosoficamente justificada por um contrato social, designado sob a ideia de manutenção de condições básicas de vida em comunidade, tutelado pelas instituições de controle estatais, ganhou significativa ampliação com a fundamentação ideológica de uma suposta necessidade de mais controle e segurança como sinônimos de liberdade social.
Deste modo, para além de um viés de integração, que atribui uma imagem representativa à sociedade, a ideologia atua como um instrumento de dominação através da dissimulação da realidade[14]. Ela coordena a criação ou ampliação de uma imagem social constante na percepção individual que afasta a verdade do sujeito da verdade das relações de dominação, restrição e controle que determinam os padrões que limitam a autonomia e, consequentemente, condicionam a liberdade.
A ideologia, assim, pode ser considerada a “transformação das ideias da classe dominante em ideias dominantes para a sociedade como um todo, de um modo que a classe que domina no plano material (econômico, social e político) também domina no plano espiritual (das ideias)”[15]
O espaço de liberdade social configura as condições ao exercício de direitos e garantias inerentes ao próprio status de cidadão. A ideologia alimenta a criação de uma representação da sociedade na qual a liberdade individual deve ser, cada vez mais, controlada em prol da contenção dos riscos e perigos inerentes a um período que se diz pós-moderno, pós-industrial e globalizado.
4.1 O PUNITIVISMO NEOLIBERAL: GUERRA E NEUTRALIZAÇÃO DO INDIVIDUO PERIGOSO COMO PRESSUPOSTO DE LIBERDADE
A realidade proposta pelo discurso de sociedade pós-moderna avança ao encontro da ruptura dos princípios liberais constituídos sob a égide de um Estado Democrático de Direito. Trata-se de um pensamento penal expansivo que segue a ideologia neoliberal para proliferar práticas punitivas que sobrepõem à concepção filosófica ilustrada de limitação penal. É uma regressão que tende ao fim dos limites à intervenção punitiva.[16]
A concepção é de um Estado que conduz os espaços de liberdade a uma submissão de política criminal neoliberal: apologia a uma política penal expansiva em paralelo com a exigência da mínima intervenção do Estado em âmbito econômico, ou seja, abstencionista em âmbito econômico e intervencionista repressivo no controle das incivilidades de um inimigo[17], através de uma política fundada em estratégias de guerra[18].
A guerra se constrói com a privação do status de cidadão[19] de determinados indivíduos. Esta restrição possibilita um combate que busca a exclusão e inocuização de um suposto inimigo da sociedade formal. O objetivo é a imposição de uma uniformização coletiva da percepção de segurança cognitiva, ou seja, garantir a eliminação de todos que não possam garantir um comportamento conforme ao que ideologicamente foi construído e sedimentado como ordem social.[20]
Assim, se no Estado social, eminentemente intervencionista, houve a preponderância da prevenção especial com base no tratamento da pessoa, no Estado que se diz neoliberal, apoiado no positivismo criminológico, há uma luta contra os possíveis criminosos. A concepção ideológica atual se apoia consolidação do Direito penal duro que impõe um tratamento diferenciado entre os cidadãos (homens honrados) e delinquentes.[21] O Direito penal passa a se orientar por uma prevenção geral inflacionada, constituindo-se menos em um instrumento de paz que uma arma de guerra.
Neste período, a segurança[22] passa a ser um bem maior que a liberdade. Os ideais do liberalismo conservador apoiado numa crítica econômica da função social do Direito fixa a ideia de controle para sustentar novos programas desvinculados daqueles que propunham a construção da ordem social através de políticas sociais apoiadas no ideal de igualdade, solidariedade e fraternidade.
4.2 A LIBERDADE CONDICIONADA À IMPOSIÇÃO DO DIREITO PENAL COMO GESTOR DE RISCOS GLOBAIS DA NOVA MODERNIDADE
A liberdade se vincula a um sistema de controle social decorrente de uma realidade viciada e manipulada por medos que fundamentam um Direito Penal emergente[23]. O vício sobre a realidade cria a ideologia do controle, ou seja, o exercício da liberdade individual que depende da satisfação das demandas de um imaginário social que se apoia na segurança[24], através do afastamento ou eliminação dos riscos[25].
É neste âmbito que se manifesta a dimensão atribuída ao Direito Penal como aparelho repressivo de estado[26] hábil à manutenção de uma ordem por meio da gestão dos riscos[27] da sociedade pós-moderna e globalizada, que se liga ao fenômeno da hipercriminalização[28] e, consequentemente, a uma tutela penal do perigo.
O conceito de sociedade de risco trazido, principalmente, por Ulrich Beck, vincula-se aos efeitos negativos do desenvolvimento tecnológico de uma sociedade tecnológica, industrial e globalizada, com impacto sobre estruturas sociais básicas da humanidade, como o meio ambiente, com efeitos expansivos globais.
Os riscos[29], assim, trariam novas e ameaçadoras fontes de perigo que ampliariam a necessidade de controle, gestão, para manutenção da ordem social, da segurança individual e da garantia de ambiente hábil a continuidade de gerações futuras – mais que isso, riscos que se vinculam a um senso de segurança[30] de distorção utópica[31], que demandam o controle de pessoas e coisas para manter uma ordem pública[32] ideologicamente sustentada por um viés dissimulatório.
Cabe destacar que os perigos[33] que ameaçam a continuidade da vida humana, a coexistência pacífica, sempre existiram na história da humanidade[34]. É importante também considerar que no contexto atual se consolidou como verdade a mudança quantitativa e qualitativa e alguns perigos: destaque ao potencial destrutivo e o alcance dos danos, o que supera os desastres naturais de outras épocas (Por exemplo, os desastres nucleares e a degradação ambiental).
Assim, partidários da tutela penal do risco observa como imprescindível a utilização do Direito penal através de sua reestruturação.[35] Isso se daria com a reorientação de princípios e atualização dogmática, ou seja, com a modificação de institutos construídos para solidificar seu conteúdo e aplicação conforme uma lógica mais liberal e humanitária.
Seguindo essa necessidade, o processo de criminalização passaria a acompanhar uma lógica de maximização penal[36]. Adequando o sistema punitivo a uma demanda expansionista, fundamentada na concepção de Lei e Ordem[37] – supressora dos princípios que estabelecem critérios para gênese de uma intervenção vinculada à dignidade humana – propondo através da imposição simbólica[38] do Direito Penal. A seleção de condutas não atende menos a uma proteção subsidiária de bens fundamentais à sociedade que proibição de valores conflitantes com a demonstração de poder e força que solidifica o domínio ideológico através de uma falsa compreensão da realidade.
Assim, o Direito penal se encontra condicionado por uma suposta necessidade de contenção e repressão dos novos perigos e dos sujeitos perigosos, gerando a objetivação do indivíduo e, consequentemente, da própria liberdade com fins preventivos de defesa social.[39]
5. A GESTÃO DA SEGURANÇA ATRAVÉS DA DISSIMILAÇÃO DO DIREITO PENAL
A determinação do espaço social de liberdade na crise do paradigma liberal e da imposição ideológica de uma realidade apoiada na cultura de repressão conduz a uma tensão na política de controle social, que repercute no Direito Penal[40]. A construção imaginária de uma concepção neoliberal de Estado se dispõe como base política fundamental à determinação e restrição de tal espaço através difusão da ideia de insegurança social.
Nesta lógica, o Estado relativiza as garantias ilustradas de determinação liberal[41] e passa a se constituir como Estado de segurança caracterizado por um sistema de política criminal que se perfaz por um Direito penal amplo, simbólico[42] e que se desvincula da concepção de ser humano como o seu ponto central.
Assim, através de uma política de controle de incivilidades, que passam a ser consideradas como crime[43], o Direito penal se transforma em instrumento político que se materializa, principalmente, através da ruptura ou relativização do princípio de proteção ao bem jurídico, da constituição de uma intervenção simbólica fundada na hipercriminalização, na ruptura do principio da intervenção mínima e na transformação do ser humano em um objeto manipulado pela pena para alcançar fins preventivos de defesa social.
5.1 – O DIREITO PENAL: APARELHO MANTENEDOR DE UMA ORDEM
A constituição de um órgão, o Estado, hábil à promoção de condições de vida em sociedade, com a disposição de espaços ao exercício igualitário de liberdades entre os cidadãos, deve se orientar pela prevalência do interesse humano. No entanto, quando se subleva a este interesse um ideal de manutenção da segurança, do controle e da própria ordem jurídica, os instrumentos utilizados pelo Estado, como o Direito penal, passam a deslocar sua base para uma função de proteção de uma ordem, por vezes desigual.
A função única de manutenção da ordem posta suprime o viés democrático do Estado de Direito, transformando o aparelho punitivo em instrumento de subjugação e controle das minorias, ou seja, deixa de atuar na proteção de bens jurídicos para solidificar a manutenção de um status quo através da conservação da vigência do ordenamento jurídico[44].
Assim, o Direito Penal passa a ser prospectivo, tendo como ponto de referência a supressão de um perigo futuro que se apoia em caracteres da personalidade de alguns cidadãos que supostamente não dão garantias cognitivas de respeito à norma penal. Ou seja, os verdadeiros cidadãos devem demonstrar uma perspectiva de conduta orientada cotidianamente conforme a ordem estabelecida.[45]
A função do Direito Penal passa a ser qualquer situação distante do respeito à manutenção das condições para satisfação de Direitos Fundamentais da comunidade. Não se mostra como uma garantia de proteção à pessoa, mas uma ferramenta que intensifica o poder de um Estado totalitário que deseja conservar uma posição ideológica sobre a realidade. A liberdade social, assim, não é menos restrita que a individual, que passa a representar apenas um fazer voluntário viciado por uma orientação ilegítima.
5.2 O DIREITO PENAL SIMBÓLICO
Este Direito Penal, que se institui meramente com a função de proteger uma ordem, preocupa-se mais com o signo de sua efetividade que com a sua repercussão sobre a pessoa humana[46]. Passa a ser meramente simbólico em sua gênese e eficácia, que por um lado se evidencia com a expansão do processo de criminalização[47] realizada por um método de seleção aberto e ilimitado, por outro lado com a supressão de garantias imprescindíveis à imposição da pena.
A expansão do processo de criminalização, hipercriminalização, acaba por romper com os limites fundados na atenção a um conteúdo material que legitima a atividade do legislador. Assim, a criminalização deixa de seguir como parâmetro a própria dignidade humana numa comunidade. A expansão suprime princípios fundamentais da intervenção penal para satisfazer uma necessidade política fundada numa ideologia de controle que se afirma com a criminalização sobre supostas causas e causadores da criminalidade.
Assim, a intervenção que deveria ser subsidiária passa a ser principal, vive-se a repercussão social da expansão do âmbito penal. Neste ponto, é relevante acentuar a alienação que propõe uma segurança sustentada com a presença dos efeitos da extensa criminalização, multiplicação de leis penais e imposição de penas desproporcionais. O Direito Penal, desta forma, é um instrumento para garantir, em primeiro plano e, por vezes, único plano “a pacificação da consciência jurídica da comunidade.”[48]
O crime e os criminosos são observados como agentes que rompem a relação harmônica de fidelidade à estrutura social e, consequentemente, à ordem jurídica e lesam o valor supraindividual de confiança[49], são tutelados como verdadeiras patologias da sociedade.[50]
A pena, por sua vez, apoiada na função de prevenção extrema, passa a buscar a reafirmação da vigência da norma penal. Para isso, desconhece o status de pessoa do indivíduo perigoso, que passa a ser uma coisa, um objeto de imposição e manipulação penal: a pena busca a sua neutralização individual[51], bem como uma intimidação coletiva, acompanhada da máxima e desproporcional prevenção geral com fins de defesa social.[52]
5.3 . A PENA COMO INSTRUMENTO DE DEFESA SOCIAL
A política de Defesa Social[53]é em termos criminológicos apoiada na concepção de contenção da criminalidade através dos aparelhos repressivos de Estado para defesa do indivíduo considerado cidadão. A questão é verificar que o Direito penal dissimulado seleciona o cidadão através da eficácia material desta concepção, ou seja, são cidadãos aqueles que gozam dos direitos sociais e se obrigam aos demais através do sistema jurídico como forma de manutenção do suposto contrato social de uma sociedade desigualmente ordenada. E aqueles que não gozam dos benefícios decorrentes desse contrato têm o dever de se obrigar juridicamente aos demais para manutenção da ordem?
Estes últimos são inimigos ou, no máximo, cidadãos numa concepção meramente formal[54]. Eles possuem formalmente, mas o gozo de direitos fundamentais é restrito. Vinculam-se ao sistema jurídico por composição normativa que os atribui o status de pessoa ao mesmo tempo em que os obriga ao dever de respeitar a lei e manter ordem. A representação da cidadania tem ampla repercussão sobre o âmbito penal, pois a pessoa não materialmente cidadã[55] tem garantias materiais e processuais penais suprimidas, ela é o objeto de manipulação da pena para defesa social.
O Direito Penal apoiado na ideia de defesa social passa a maximizar a utilização da pena como forma de controle da criminalidade através da prevenção geral. Sobretudo, a prevenção geral negativa, que opera no âmbito psicológico com intuito de intimidar a população com a difusão do castigo, com o aumento e severidade das penas, gerando um direito penal do terror, violador da dignidade humana.[56]
Assim, pune-se apenas como forma de evidenciar a força do Estado no combate e na guerra contra o crime, como forma de dissuasão coletiva ou reafirmação do próprio sistema, desvinculado do devido respeito à pessoa. Desconsidera que “[n]a medida em que é sujeito de direitos, o homem não pode ser tratado como objeto da atividade estatal, e coisificá-lo significa retirar dele sua condição humana.”[57]
A gestão e neutralização se fazem por meio de um Direito penal que atua como primeiro e principal instrumento de controle social. Assim, ele desconsidera o conteúdo constante na orientação transmitida por princípios liberais e transforma a intervenção penal num método para dissuadir e alienar, transformando cidadãos em inimigos: a dissimulação ideológica opera sobre o Direito penal criando a representação social das “pessoas perigosas” que são vistas como os diferentes, os terroristas, os traficantes de drogas, os incivilizados, que supostamente são responsáveis pelo sentimento de insegurança, justificando a imposição de uma intervenção penal específica e especial. Forma-se, então, uma guerra contra a criminalidade que tem, geralmente, como principal front de batalha os espaços de menores índices de desenvolvimento humano.
6. A UTOPIA COMO FUNDAMENTO PARA UMA OUTRA EXPERIÊNCIA DE LIBERDADE
A utopia, em seu caminho viés positivo[58], recai sobre a liberdade como uma crítica construtiva e revolucionária. A utopia é uma alternativa que se coloca à disposição da razão na busca de uma outra liberdade: a liberdade exercida num espaço de menor dominação e dissimulação. Portanto, ela traz uma possibilidade de liberdade num espaço de diálogo, que seja fruto da autonomia decorrente da maturidade da razão, proposta num sistema social democrático e humanitário.
Assim, a utopia se liga a uma reafirmação da natureza racional do homem, um argumento legitimado à busca da verticalidade do entendimento que recai sobre a dignidade humana.[59] O resgate ao pensamento de Descartes traz um contexto de apologia à razão, que fez do homem o detentor do poder de construir a sua própria realidade, as coisas e a significação do que existe ou possa existir – o que, em si, decorre do potencial antropocêntrico atribuído à racionalidade. Esta é capaz de diferir o homem dos outros seres, e mais, se até então Deus era o criador de todas as coisas, o homem poderia a ele se equivaler, pois todas as coisas nada mais significariam que a externalização de um conteúdo racional sobre tudo que há no mundo.[60]
Desta exaltação à natureza humana decorrem, também, os ideais de uma liberdade individual que tende ao absoluto, próximo ao divino. Esta liberdade é típica de uma liberdade originária, interior, desprovida de limitações e condicionamentos de natureza externa.[61] Assim, o conteúdo da liberdade é analisado com a crítica sobre a natureza interna dos elementos subjetivos ligados à ética, que fundamenta a autonomia e a própria vontade.[62]
No entanto, qualquer liberdade, enquanto desvinculada da realidade, figura-se como uma liberdade inconsciente, desorientada e limitada a um potencial esvaziado. Pois a crítica à dimensão da liberdade se constrói através da satisfação da vontade inerente a um processo de racionalização de uma realidade socialmente vivida.
Esta liberdade inicial, autônoma e incondicionada, típica da natureza humana possui importante função na construção da imagem social. Ela tem o poder de influir sobre a dinâmica de uma sociedade construída na conformação de uma cultura restritiva e repressiva solidificada pela ideologia. A utopia de liberdade atua como uma crítica da ideologia para uma possível mudança mais libertária no sistema repressivo da sociedade. É a força da utopia, para além do seu viés esquizofrênico, que tende a demonstrar o descontentamento, uma porta para um novo caminho.
O caminho é em busca de uma liberdade sensata, capaz de respeitar as individualidades do ser humano no espaço social. É neste contexto que o Estado, tendo o homem como referência, assume o papel de propiciar as condições necessárias para que os cidadãos possam exercer suas liberdades. Trata-se, assim, da construção de um espaço de liberdade através da coexistência de vontades numa coletividade, que deve ser respeitada e assegurada por um Direito penal verdadeiramente democrático.
7 – DIREITO PENAL UTÓPICO: CRÍTICA A UMA OUTRA EXPECTATIVA DE DIREITO PENAL
O espaço de experiência é um parâmetro importante para determinação, com a força do presente, de um horizonte de expectativa para realidade das instituições sociais, é um plano sobre a realidade na qual se deseja viver[63]. A utopia se alimenta da imagem resultante deste plano e, ao mesmo tempo, põe-se como crítica de toda “experiência privada ou de experiência transmitida pelas gerações anteriores ou pelas instituições atuais, trata-se sempre de uma estranheza ultrapassada, de um adquirido tornado um habitus”[64]. Ela é capaz de dinamizar o imaginário ao encontro de uma “outra” realidade punitiva, que torne possível o pleno domínio humano sobre a sua liberdade como forma de reconhecimento e construção da sua própria história.
A utopia idealiza uma mudança do estado atual. É uma mutação de qualificação indeterminada[65], mas que no atual cenário se insere como fenômeno que deve agir sobre o imaginário social em busca de Direito penal sustentado pelo respeito à natureza humana[66], como um real instrumento de garantia e proteção da liberdade individual.
É neste Direito Penal, utópico, que a força da experiência, apoiada no pensamento das luzes, por exemplo, deve atuar para criação de melhores expectativas, desvinculada do viés utilitário que põe o homem como simples objeto de intervenção. A busca é pela constituição de uma realidade penal desatrelada da dissimulação ideológica que aliena o sistema de controle social e o desumaniza. Isso se estabelece com a lembrança das atrocidades e dos sacrifícios que marcam a história penal, bem como pelo reconhecimento da luta da humanidade para imposição de limites à intervenção punitiva.[67]
Portanto, a determinação de um Direito penal que se afirma com os parâmetros do Estado de Direito repercute na cominação de princípios básicos à sua limitação, são parâmetros formais e materiais que restringem o jus puniendi. São limites que, obedecendo a uma racionalização do Direito penal[68], formalmente se impõem através do princípio da legalidade e materialmente com a observância de condições que conduzem a intervenção penal ao respeito dos espaços de liberdade.
7.1. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
A ruptura social com os parâmetros ideais de poder postos pelo Antigo Regime fez surgir uma concepção ideológica apoiada na propagação do respeito à liberdade. Liberdade que se apoia na limitação do poder do Estado em intervir na esfera individual. Em âmbito penal, tal concepção foi reforçada por uma defesa à mudança do sistema punitivo concebido por um viés teocrático crime/pecado, como forma de subjugação do indivíduo ao Estado, para um sistema limitado, com foco na construção de garantias à autonomia individual através da lei.
Neste domínio, o princípio da legalidade se mostra como instrumento para proteção da liberdade do indivíduo, ou seja, como importante delimitador formal do fato social considerado crime, bem como um indicativo da prescrição da pena. Reforçado pelos ideais da filosofia ilustrada, o princípio da legalidade evidencia o ideal democrático e se põe como uma garantia de segurança jurídica e política do administrado frente ao poder de punir do Estado.[69]”A legalidade, portanto, é a primeira densificação jurídica da dignidade humana, pois assegura o direito fundamental de liberdade contra a ingerência estatal.”[70]
Do postulado nullum crimen, nulla poena sine lege, determinam-se garantias de uma lei penal praevia, certa, scripta e stricta[71]. O respeito ao postulado resulta numa vinculação da existência do crime e suas consequências a uma composição formal e democrática advinda de processo de legislativo constitucional, o que é capaz de amenizar as consequências de uma política de etiquetamento e a neutralização que pode ser operada através do Direito penal.
7.2. A FUNÇÃO DA EXCLUSIVA PROTEÇÃO DE BENS JURÍDICOS
A ilustração, na história da humanidade ocidental, representa um evento fundamental no espaço de experiência[72], sendo referência à difusão da dignidade humana como ponto central do ordenamento jurídico. Em âmbito penal, através da difusão de princípios humanitários, solidificou fundamentos para superação de problemas básicos do Direito Penal.
Assim, a ilustração orientou a não conversão do Estado num instrumento voltado ao serviço de quaisquer opções moral ou religiosa, igualmente, dispôs sobre o processo de criminalização através da constatação de fatos sociais lesivos ao bem jurídico. Refutou, portanto, a criminalização de concepções morais atribuídas ao imputado, excluindo da pena as finalidades de reeducação moral.[73]
Neste espaço, o poder punitivo estatal passa a demandar uma fonte para fundamentação e determinação de condutas tidas como criminosas, passíveis de pena, ou seja, uma legitimação material. Determinação prévia à atividade do legislador, advinda de um padrão crítico sobre as relações humanas da sociedade. Tal concepção se soma a uma perspectiva ética-social, orientando a missão do direito penal como a tutela dos bens jurídicos mediante a proteção dos valores fundamentais à comunidade.[74]
Vale ressaltar que a filosofia ilustrada já trazia os primeiros contornos da definição ao orientar que o Direito Penal deve reagir a uma ação externa que lese bens jurídicos, atendendo a uma perspectiva racional em prol da proteção do indivíduo. Neste aspecto, os bens jurídicos[75] assumem função de garantia, limitação e humanização da intervenção punitiva, ligando a função do Direito Penal à manutenção das condições imprescindíveis à vida humana em comunidade. .
Em âmbito de política criminal, o fundamento da proteção exclusiva de bens jurídico-penais é a proporcional restrição a um direito fundamental para alcançar a finalidade benéfica de proteção a bens imprescindíveis ao interesse da comunidade. Bens jurídicos que são entendidos como interesses fundamentais diretos ou indiretos dos cidadãos. O princípio de exclusiva proteção ao bem jurídico serve como um parâmetro mínimo na delimitação do que deve ser protegido pelo Direito penal, reafirmando que o poder punitivo do Estado está para servir as pessoas.[76]
Decorre deste limite que o Direito Penal, deve suprimir o seu papel de grande protagonista para manutenção da ordem e controle social na promoção de toda e qualquer segurança[77], ultrapassando princípios sensíveis ligados à sua atuação numa “sociedade que convive com uma 'cultura de emergência', que sempre justificou a repressão, numa suposta exceção que logo vai caracterizar todo o seu funcionamento, bem como o próprio caráter eminentemente repressivo do sistema penal.”[78]
De outra forma, o caminho a seguir é ressaltar a função de proteção fragmentária e subsidiária ao bem jurídico. A noção, inicialmente trazida por Birnbaum, que foi modernamente adaptada como a expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um valor socialmente relevante e juridicamente tido como valioso, e que se vincula às imposições constitucionais implícitas de criminalização.[79]
Este bem que detém a proteção penal, bem jurídico-penal[80], é o fundamento material do processo de criminalização[81], e dele decorre das “circunstâncias reais dadas ou finalidades necessárias para uma vida segura e livre, que garanta todos os direitos humanos e civis de cada um na sociedade ou para o funcionamento de um sistema estatal que se baseia nestes objetivos.”[82]
Assim, o princípio de proteção exclusiva ao bem jurídico-penal se coloca como indicativo de um Direito penal democrático que subordina o poder punitivo ao interesse das pessoas. Interesses revestidos na proteção de bens fundamentais, que direta ou indiretamente repercutem na liberdade do indivíduo, e que orientam uma específica determinação do valor que é tutelado por cada tipo penal.[83]
7.3 – INTERVENÇÃO MÍNIMA
O sistema punitivo atual está apoiado num conflito que se expõe através da contraposição entre uma política criminal fundada na imposição de um Direito penal preventivo e simbólico e, por outro lado, o necessário de respeito aos princípios que direcionam a intervenção penal. Dentre estes princípios, sob a lógica de um Estado Democrático de Direito, observa-se o princípio da intervenção mínima[84], que se expressa através da fragmentariedade e da subsidiariedade da interferência penal.
A intervenção mínima orienta que o Estado deve racionalizar, através da política criminal, a utilização dos seus instrumentos de controle social. Neste sentido, o Direito penal deve interferir na esfera individual de um modo subsidiário e fragmentário, ou seja, como o último instrumento hábil à proteção apenas dos bens jurídicos essenciais à livre determinação da vida em comunidade.
O princípio da fragmentariedade informa que o bem jurídico de uma comunidade é protegido institucionalmente pelos instrumentos contidos nos mais diversos ramos do Direito. O Direito penal não protege todos os bens, cabe a ela a proteção dos mais sensíveis, os quais só poderão resistir com a sua interferência. Assim ele não deve ocupar um espaço disfuncional como promotor de direitos sociais, dever e função de outros instrumentos estatais.
O princípio da subsidiariedade observa que a intervenção penal deve ser utilizada como último meio, ultima ratio, na proteção de bens jurídicos considerados essenciais à vida humana em sociedade. Assim, se outros instrumentos de controle social se mostram adequados, suficientes e necessários à proteção do bem jurídico, torna-se inadequada a utilização da intervenção penal.[85] Este princípio põe o Direito penal como a ultima barreira a ser utilizada quando ultrapassadas as diversas formas de controle[86].
O Direito penal liberal não é o primeiro e principal remédio para a patologia que se instala através da deficiência na socialização primária e na falta de uma efetivação de direitos sociais básicos ligados à cidadania da população. De outro modo, para além da afetação dos espaços de liberdade e da restrição à população dos meios estatais funcionais para sanar suas carências sociais, o Direito penal se torna um instrumento de força e terror.
8 – CONCLUSÃO
A liberdade define a natureza humana, mas não há fundamento em ser humano sem uma interação comunitária. Assim, o limite do exercício da liberdade individual é a manutenção de condições ao exercício da liberdade de seu semelhante, limite determinado por convenções decorrentes de uma cultura estabelecida como parâmetro de convivência em uma sociedade.
A cultura é a expressão de fenômenos específicos que determina e identifica uma sociedade. Ela se constitui através de um método de constante afirmação de uma imagem social capaz de representar uma identidade para realidade vivida, isso por meio do processo de integração da ideologia e de crítica da utopia.
A ideologia tem a função de integração capaz de uniformizar a comunidade de acordo com as convenções estabelecidas pela cultura, mas serve como instrumento de dissimulação. Assim, ela dissimula e cria uma imagem social alienada em torno de um ideal de segurança que passa a ser mantida com a gradativa restrição dos espaços sociais de exercício da liberdade individual, principalmente através do Direito Penal, que se desvincula dos princípios liberais para se tornar simples instrumento de manutenção de uma ordem viciada.
A solução se propõe através da crítica à ideologia que aliena a realidade vivida com o poder revolucionário da utopia. A crítica à ideologia se mostra um processo que leva o homem a conhecer a si mesmo, sendo capaz de instrumentalizar a construção de um maior espaço de liberdade social no qual o exercício da autonomia se amplie de modo a vincular a ação humana, antes de tudo, aos limites impostos por sua própria razão, maximizando a sua responsabilidade.
A utopia do Direito penal reafirma os parâmetros decorrentes dos principais acontecimentos do espaço de experiência ocidental, sobretudo a ilustração, para determiná-lo como instrumento de garantia e proteção ao homem, sobretudo a sua liberdade. A abertura dos espaços de liberdade requer um Direito penal materialmente democrático, que se inscreva apenas como mais um, o último, instrumento para assegurar as condições de vida de em comunidade para todas as pessoas da sociedade.
Advogado. Especialista em Ciências Criminais – Universidade Federal da Bahia. Mestrando em Direito Público – Universidade Federal da Bahia
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