A valoração da palavra isolada da vítima no processo penal brasileiro

Resumo: O presente artigo tem por objetivo a discussão a respeito do valor probatório que pode ser dado à palavra da vítima quando esta vem isolada no processo penal brasileiro, dissociada de outros elementos acerca da autoria delitiva, no que tange à possibilidade de ensejar um édito condenatório, considerado o princípio do in dubio pro reo. Com base em pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, procura-se discutir a idoneidade e a suficiência ou não da palavra do ofendido no processo penal como meio probatório apto a dar cabo a uma condenação penal, especialmente nos denominados crimes praticados na clandestinidade. O artigo aborda a classificação doutrinária da palavra da vítima, fazendo uma exposição inicial breve acerca da teoria geral da prova, adentrando, também, na análise do papel do ofendido no processo criminal. Demais disso, examinam-se ônus da prova no processo penal brasileiro, bem como os sistemas de avaliação de prova existentes nessa seara, explicitando-se aquele adotado pelo Código de Processo Penal vigente.

Palavras Chave: Provas. Palavra da vítima. Sistemas de avaliação de provas. Convencimento do juiz. Suficiência probatória.

Abstract: The purpose of this article is to discuss the probative value that can be given to the victim's word when it is isolated in the Brazilian criminal proceedings, dissociated from other elements about delinquent authorship, regarding the possibility of provoking a condemnatory edict, considered the principle of in dubio pro reo. Based on bibliographical and jurisprudential research, it is sought to discuss the suitability and sufficiency or not of the offender's word in the criminal process as a probative means capable of ending a criminal conviction, especially in the so-called crimes practiced in the underground. The article deals with the doctrinal classification of the victim's word, making a brief initial exposition about the general theory of proof, also going into the analysis of the offender's role in the criminal process. In addition, the burden of proof in Brazilian criminal proceedings is examined, as well as the systems of evaluation of evidence in this area, explaining the one that is adopted by the Code of Criminal Procedure in force.

Keywords: Evidences. Word of the victim. Systems of evaluation of evidence. Conviction of the judge. Probative sufficiency.

Sumário: Introdução; 1.Teoria geral da prova; 1.1. Classificação doutrinária das provas; 1.2. Distinção entre meios de prova e meios de obtenção de provas; 1.3. Sistemas de avaliação da prova; 1.4. Ônus da prova no processo penal; 2. Do ofendido; 2.1. Direito a livre versão dos fatos pelo ofendido; 2.2. Valoração da palavra isolada da vítima no processo penal brasileiro e sua utilização como prova na jurisprudência dos Tribunais Estaduais e Cortes Superiores. Considerações finais. Referências.

INTRODUÇÃO

O processo penal está umbilicalmente ligado à produção probatória e sua suficiência e idoneidade, pois lida com precioso bem da vida, qual seja, a liberdade do indivíduo.

Com efeito, o objetivo da produção probatória será sempre o de demonstrar o que realmente ocorreu no mundo fático. A prova vincula-se à verdade e à certeza que se ligam à realidade, todas voltadas, entretanto, à convicção de seres humanos. A meta da parte, no processo, portanto, não é gerar a verdade objetiva, visto ser atividade complexa e nem sempre possível, mas, sim, construir no espírito do magistrado, a certeza de que a verdade corresponde aos fatos alegados em sua peça, seja ela de acusação, seja de defesa.

No sistema jurídico brasileiro, cumpre ressaltar, não se admite que ninguém seja denunciado sem que exista pelo menos indícios de autoria e materialidade de alguma atividade criminosa. É dizer, ninguém será processado criminalmente com base em suposições ou presunções. A toda evidência, no transcorrer do processo penal, estes indícios de autoria e materialidade deverão ser cabalmente comprovados e demonstrados, caso contrário deverá o réu deverá ser absolvido, de acordo com o princípio do in dubio pro reo.

Para haver condenação, portanto, exige-se do magistrado o estado de certeza, não valendo a mera probabilidade (juízo que enumera motivos convergentes e divergentes acerca da ocorrência de um fato, prevalecendo os primeiros). Não fosse isso, deve o juiz valer-se de prova idôneas, seguras e concretas para dar cabo a uma condenação.

Nesse contexto, impõe-se a análise da possibilidade de consideração da isolada palavra da vítima como prova plena, tema central deste artigo.

1. Teoria Geral da Prova

O termo prova origina-se do latim – probatio -, que significa ensaio, verificação, inspeção, exame, argumento, razão, aprovação ou confirmação. Dele deriva o verbo provar – probare -, significando ensaiar, verificar, examinar, reconhecer por experiência, aprovar, estar satisfeito com algo, persuadir alguém a alguma coisa ou demonstrar.

A prova, em outras palavras, é a demonstração lógica da realidade, no processo, por meio dos instrumentos legalmente previstos, buscando gerar, no espírito do julgador, a certeza em relação aos fatos alegados e, por consequência, trazer a convicção objetivada para o deslinde da demanda.

Nas palavras de Aury Lopes Jr (p. 50), verbis, o processo penal é um instrumento de retrospecção, de reconstrução aproximativa de um determinado fato histórico. Como ritual, está destinado a instruir o julgador, a proporcionar o conhecimento do juiz por meio da reconstrução histórica de um fato. Nesse contexto, as provas são o meio através dos quais se fará essa reconstrução do passado (crime). O tema probatório é sempre uma afirmação de um fato (passado), não sendo as normas jurídicas, como regra, tema de prova (princípio iura novit curia).

1.1. Classificação doutrinária das provas

Quanto à classificação das provas, a doutrina subdivide-as denominando como típicas aquelas previstas expressamente em lei, que possuem procedimento próprio para a sua produção (ex.: prova testemunhal, pericial). São atípicas, por outro lado, as provas não previstas explicitamente em lei com tal ou quando, embora previstas, não possuem procedimento específico para sua obtenção (ex.: reconstituição de crime).

Também, indica a doutrina como diretas aquelas provas cujo procedimento probatório consiste na constatação empírica direta do enunciado que se prova; é a observação imediata do fato ao qual esse enunciado se refere. Indiretas, aquelas cujo procedimento probatório permite chegar ao fato que se prova a partir de outro ou outros, mediante um processo de inferência.

Consideram-se provas plenas aquelas que possuem valor probatório suficiente para fundamentar por si só a decisão judicial sobre o fato que se pretende provar. Não plenas, de outro lado, são as que não são idôneas nem suficientes para fundamentar por si só a decisão judicial sobre os fatos que se pretende provar, senão que funcionam conjuntamente com outros enunciados probatórios, como um elemento a mais a permitir ao juiz inferir uma hipótese sobre esses fatos mediante um procedimento de prova indireta ou indutiva.

Em arremate, são positivas as provas que tem por objeto demonstrar a verdade de um enunciado fático. São negativas as que tendem a demonstrar que um enunciado fático é falso, vale dizer, que o fato não aconteceu, sendo na maioria das vezes uma prova complexa, impossível de se demonstrar. Ex.: provar que a pessoa nunca esteve em determinado lugar na vida.

1.2. Distinção entre meios de prova e meios de obtenção de provas

É importante compreender a distinção que a doutrina de escol faz entre “meios de prova” e “meios de obtenção de prova”.

Com efeito, meio de prova é aquele através do qual se oferece ao juiz meios de conhecimento, de formação da história do crime, cujos resultados probatórios podem ser utilizados diretamente na decisão. São exemplos de meios de prova: a prova testemunhal, os documentos, as perícias etc.

De outro lado, meio de obtenção de prova (mezzi di ricerca della prova, como denominam os italianos), são instrumentos que permitem obter-se, chegar-se à prova. Não é propriamente “a prova”, senão meios de obtenção. Não são por si fontes de conhecimento, mas servem para adquirir coisas materiais, traços ou declarações dotadas de força probatória. Não são propriamente provas, mas caminhos para chegar-se à prova. A título de exemplo, as delações premiadas, buscas e apreensões, interceptações telefônicas etc.

A respeito, explica BADARÓ que, enquanto os meios de prova são aptos a servir, diretamente, ao convencimento do juiz sobre a veracidade ou não de uma afirmação fática (p. ex., o depoimento de uma testemunha, ou o teor de uma escritura pública), os meios de obtenção de provas, por seu turno, (p. ex. uma busca e apreensão) são instrumentos para colheita de elementos ou fontes de provas, estes sim, aptos a convencer o julgador (p. ex.: um extrato bancário (documento) encontrado em uma busca e apreensão domiciliar).

Em outras palavras, os meios de prova se prestam ao convencimento direto do julgador, ao passo que os meios de obtenção de prova somente o fazem indiretamente, e dependendo do resultado de sua realização, poderão servir à reconstrução da história dos fatos”.

1.3. Sistemas de avaliação da prova

Conforme leciona NUCCI, considera-se valoração da prova a atividade de percepção por parte do juiz dos resultados da atividade probatória que se realiza em um processo. Há métodos para a ponderação desse sopeso, valendo-se o juiz de mecanismos totalmente flexíveis, parcialmente vinculados e completamente adstritos.

Os sistemas da avaliação da prova mais conhecidos são:

a) Livre convicção: é o método mais flexível, concentrando-se a força maior de avaliação na figura do juiz. Permite a livre valoração ou a íntima convicção do magistrado, significando haver necessidade de motivação para suas decisões. É o sistema que prevalece no Tribunal do Júri, visto que os jurados não motivam o voto;

b) Prova legal: é o método mais limitado, ligado à valoração taxada ou tarifada da prova, fazendo com que o juiz fique adstrito ao critério fixado pelo legislador, bem como restringido na sua atividade de julgar. Há resquícios desse sistema no art. 158 do CPP, que exige o exame do corpo de delito para a formação da materialidade da infração penal, que deixar vestígios, vedando sua produção através da confissão.

c) Persuasão racional: é o método misto, parcialmente vinculado, também chamado de livre convencimento motivado. Trata-se do sistema adotado, majoritariamente, pelo processo penal brasileiro, que encontra, inclusive, fundamento na Constituição Federal (art. 93, IX), significando a permissão dada ao juiz para decidir a causa de acordo como seu livre convencimento, devendo, todavia, cuidar de fundamentá-lo, nos autos, buscando persuadir as partes e a comunidade em abstrato.  Tal método misto encontra disciplina legal no art. 155 do CPP, podendo o juiz estruturar a sua persuasão íntima à custa das provas colhidas no contraditório judicial e, também, em elementos extraídos do inquérito policial, desde que não se faça dessa fonte a única a fornecer dados para a formação da convicção do magistrado, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas produzidas na fase policial.

Nesse norte, cito o Superior Tribunal de Justiça, no HC 362961/ SP 2016/0185822-0, de relatoria do Ministro Jorge Mussi, julgado em 07/12/2016:

HABEAS  CORPUS.  IMPETRAÇÃO  EM  SUBSTITUIÇÃO  AO  RECURSO  CABÍVEL. UTILIZAÇÃO  INDEVIDA  DO REMÉDIO CONSTITUCIONAL. VIOLAÇÃO AO SISTEMA RECURSAL. NÃO CONHECIMENTO (…). No processo  penal  brasileiro,  vigora  o  princípio  do livre convencimento  motivado,  em  que  o  julgador,  desde  que de forma fundamentada,  pode  decidir  pela  condenação,  não se admitindo no âmbito  do  habeas  corpus  a  reanálise  dos  motivos pelos quais a instância  ordinária  formou  convicção  pela  prolação  de  decisão repressiva em desfavor do acusado (…).

1.4. Ônus da prova no processo penal

Na esteira da lição de NUCCI, ônus representa um encargo, um responsabilidade, uma incumbência. Possui um sentido negativo, valorando-se como obrigação da qual não se pode subtrair sob pena de sofrer as consequências desfavoráveis ao próprio interesse.

A parte, pois, que bem desempenhar seu ônus, produzindo as provas pertinentes, cabíveis e adequadas, terá maior chance de obter triunfo na ação penal.

Quanto ao conflito aparente entre o ônus da prova e a presunção de inocência do réu, soluciona-se considerando-se o acusado inocente até prova em contrário, resumida por sentença penal condenatória, com trânsito em julgado.

Com efeito, o órgão acusatório deve desincumbir-se de provar suas imputações descritas na denúncia, ao passo que o réu, em regra, está desincumbido de ônus probatório,  podendo permanecer inerte, se pretender apenas negar a imputação, ressalvadas as hipóteses em que traz à baila no processo penal defesa baseada em alegação de fato novo, como, por exemplo, a existência de um álibi (dizer que estava em local diverso daquele onde aconteceu o crime), na dicção do art. 156 do CPP.

Tal critério também deve ser adotado, segundo NUCCI, quando o acusado invoca alguma excludente de ilicitude ou de culpabilidade. No entanto, se o réu não demonstrar o alegado, não significará que irá sofrer a sanção de ser considerado culpado. Afinal, não é essa a “sanção processual” direta para a sua falha probatória. Porém, não demonstrado o fato alegado (excludente de ilicitude do estado da necessidade, por exemplo), permitirá o avanço da acusação e, com isso, poderá ser condenado pela prática de furto, porque o ônus do órgão acusatório desenvolveu-se satisfatoriamente, sem a contraposição do ônus da defesa em evidenciar essa causa impeditiva (excludente de ilicitude).

Há doutrinadores de relevo, no entanto, como AURY LOPES JR., que defendem a tese de que, no direito processual penal, não há distribuição de cargas probatórias, estando a carga da prova totalmente nas mãos do acusador, não só em razão de que a primeira afirmação é feita por ela na peça acusatória (denúncia ou queixa), mas também porque o réu está protegido pela presunção de inocência.

A respeito, referido doutrinador diz que gravíssimo erro é cometido por numerosa doutrina jurisprudência ao afirmar que à defesa incumbe a prova de uma alegada excludente. Afirma o autor que a carga do acusador é de provar o alegado, demonstrando que alguém (autoria) praticou um crime (fato típico, ilícito e culpável), além de se desincumbir também do encargo de provar, logicamente, a inexistência de causas de justificação.

Cumpre ressaltar, em arremate, que prevalece no âmbito doutrinário que o sistema processual adotado no processo penal brasileiro é o misto, também denominado de inquisitivo-acusatório, inquisitivo garantista ou acusatório mitigado, pois a CFRB/1988 possui princípios norteadores embasados no sistema acusatório puro, porém é patente que a legislação processual penal, como o CPP, possui ainda resquícios do sistema inquisitivo.

2. Do ofendido

O ofendido, na sua concepção eventual ou material, é o sujeito passivo ou a vítima do crime.  Deve ser considerado, no processo penal, como parte, ora principal, quando atuar no polo ativo, ora secundária, quando agir, ao lado do Ministério Público, por intermédio do assistente de acusação, na ação penal pública.

Todavia, quando não atuar no processo por meio de advogado, certamente, parte não será, mas deverá ser ouvido e dará suas declarações, segundo NUCCI, sem o dever de dizer a verdade, o que se justifica pela sua natural posição de interessado no deslinde da ação penal.

A saber, NUCCI refere que quando ouvido, simplesmente, o ofendido atua como interveniente, de caráter parcial, visto que o resultado positivo da demanda, condenando-se o acusado, sempre lhe pode ser benéfico. Ademais, diz o autor que o ofendido é convidado pelo juiz a indicar provas e auscultado para dizer quem se presuma ser o autor da infração penal, em posição peculiar (art. 201, caput, do CPP), completamente diversa da imparcialidade exigida da testemunha, por exemplo.

2.1. Direito a livre versão dos fatos pelo ofendido

Não se tratando de testemunha e não estando sujeito ao compromisso de dizer a verdade, além de ser figura naturalmente parcial na disputa travada no processo, inexiste possibilidade lógico-sistemática de se submeter o ofendido a processo por falso testemunho, o que constitui hoje posição majoritária na doutrina, podendo, todavia, responder pelo crime de denunciação caluniosa (art. 339 do CP).

A respeito, RENATO BRASILEIRO DE LIMA leciona que pela própria disposição do Código de Processo Penal, percebe-se que o ofendido não deve ser confundido com as testemunhas. Segundo o doutrinador, o ofendido está previsto no Capítulo V do Título VII (“Da prova”) do CPP; a prova testemunhal está prevista no Capítulo VI (“Das testemunhas”) do mesmo Título. Logo, ofendido não é testemunha, razão pela qual não presta compromisso legal de dizer a verdade.

No entanto, apesar de não ser possível responsabilizar o ofendido criminalmente pelo delito de falso testemunho, já que não é testemunha, BRASILEIRO afirma que nada impede que responda pelo delito de denunciação caluniosa, caso reste comprovado que deu causa à instauração de investigação policial, processo judicial, investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabia inocente”.

2.2. Valoração da palavra isolada da vítima no processo penal brasileiro e sua utilização como prova na jurisprudência dos Tribunais Estaduais e Cortes Superiores

Em que pesem as declarações da vítima sejam colhidas sem o dever de dizer a verdade (não é considerada testemunha no processo penal, conforme referido alhures), podendo, eventualmente, ser parciais, espelhando uma visão particular dos fatos narrados na peça acusatória, o certo é que não devem suas palavras serem vistas como necessariamente parciais e distorcidas, podendo, sim, ensejar, por si só, nos autos (forma isolada, ou seja, sem corroboração por testemunhas), um édito condenatório no processo penal, desde que se apresentem resistentes e firmes, sem razões de suspeição de isenção, sobretudo quando ressonantes com demais circunstâncias coligidas no curso da instrução.

E isso porque, em se tratando a vítima de pessoa desconhecida do réu, sem qualquer vínculo anterior ou interesse em prejudicá-lo, a sua narrativa deve ser considerada com especial valor, especialmente nos chamados delitos clandestinos, praticados às escondidas, sem a presença de testemunhas, como é o caso, em regra, dos crimes contra o patrimônio, em que o ofendido desconhece o acusado e termina por contar os fatos exatamente como se deram.

Nesse sentido é o escólio de NUCCI, o qual assevera que a palavra isolada da vítima, nos autos, pode dar margem à condenação do réu, desde que resistente e firme, harmônica com as demais circunstâncias colhidas ao longo da instrução.

Ainda, AURY LOPES JR., o qual, apesar de sustentar que a palavra isolada da vítima jamais poderá justificar uma sentença condenatória, necessitando-se da presença de testemunhas a título de respaldo, ressalva a possibilidade de sua valoração nos crimes contra o patrimônio, cometidos com violência ou grave ameaça (roubo, extorsão etc.), bem como nos crimes sexuais.

A saber, cito, in verbis, p. 473:

“Nesses casos, considerando que tais crimes são praticados – majoritariamente – às escondidas, na mais absoluta clandestinidade, pouco resta em termos de prova do que a palavra da vítima e, eventualmente, a apreensão dos objetos com o réu (no caso dos crimes patrimoniais), ou a identificação do material genético (nos crimes sexuais)”.

Nesse sentido, manifestou-se o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, na Apelações Crime n.s 70071583348 e 70068883990, conforme se vê das seguintes ementas, deixando clara a possibilidade de utilização isolada da palavra da vítima como suporte para uma condenação penal, a qual preponderará sobre a versão do réu, se inexistirem motivos para se suspeitar de eventual falsa acusação deliberada por parte do ofendido em desfavor do acusado:

Ementa: ROUBO  (Alexandre). PROVA. PALAVRA DA VÍTIMA. VALOR. CONDENAÇÃO MANTIDA. ROUBO (Valcir). AUSÊNCIA DE PROVA DA CO-AUTORIA. ABSOLVIÇÃO MANTIDA. I – Em termos de prova convincente, a palavra da vítima, evidentemente, prepondera sobre a do réu. Esta preponderância resulta do fato de que uma pessoa, sem desvios de personalidade, nunca irá acusar desconhecido da prática de um delito, quando isto não ocorreu. E quem é acusado, em geral, procura fugir da responsabilidade de seu ato. Tratando-se de pessoa idônea, sem qualquer animosidade específica contra o agente, não se poderá imaginar que ela vá mentir em Juízo e acusar um inocente. Foi o que ocorreu no caso em julgamento. Além de o apelante ter sido reconhecido pela vítima da ameaça – aliás, ele confessa a subtração, mas não a ameaça -, a vítima foi firme em afirmar que ele a ameaçou se tentasse reagir. Roubo caracterizado. II – Tem-se afirmado que, para a prolação de um decreto penal condenatório, é indispensável prova robusta que dê certeza da existência do delito e seu autor. A livre convicção do julgador deve sempre se apoiar em dados objetivos indiscutíveis. Caso contrário, transformar o princípio do livre convencimento em arbítrio. É o que ocorre no caso em tela, como registrou o Magistrado, em sua sentença. Ou seja, não se provou, de forma convincente que o apelado participara do roubo denunciado.

Ementa: APELAÇÃO. CRIME CONTRA O PATRIMÔNIO. ROUBO MAJORADO. CONCURSO DE AGENTES. MANUTENÇÃO DO DECRETO CONDENATÓRIO. PROVA SUFICIENTE. DOSIMETRIA DA PENA. – MANUTENÇÃO DO DECRETO CONDENATÓRIO. As provas existentes no caderno processual são suficientes para o julgamento de procedência do pedido condenatório deduzido na denúncia. Palavra das vítimas. Acusados identificados. Versão defensiva fraca e isolada, destituída de mínimo respaldo. – PALAVRA DA VÍTIMA. VALOR PROBANTE. Conforme tranquilo entendimento jurisprudencial, a prova testemunhal consistente na palavra da vítima tem suficiente valor probante para o amparo de um decreto condenatório, especialmente quando se trata de delito praticado sem testemunhas presenciais. Os relatos da vítima, ao se mostrarem seguros e coerentes, merecem ser considerados elementos de convicção de alta importância (…).

Quanto aos delitos sexuais, do mesmo modo, sendo a palavra da vítima coerente e harmônica com o restante dos elementos coligidos ao caderno processual, desconhecendo a identidade do acusado até a ocasião do fato, não resta dúvida de que pode, isoladamente, dar ensejo a uma condenação penal, desde que inexistam motivos no processo para que se possa suspeitar de que teria razões para deliberadamente imputar acusação falsa contra o acusado.

A respeito, lembra FEITOZA, que, nos crimes contra os costumes (hoje, delitos contra a dignidade sexual), por exemplo, tendo em vista as circunstâncias em que normalmente é praticado (sem testemunhas, local ermo etc.), a palavra da vítima se reveste de especial valor e credibilidade. O mesmo ocorre com outros crimes que são praticados em circunstâncias semelhantes, como a concussão, corrupção passiva etc.

Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça, no AgRg no REsp 1346774 / SC, salientando a importância da palavra da vítima como elemento de convicção nos crimes sexuais:

AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. CONDENAÇÃO CONFIRMADA EM 2º GRAU. NEGATIVA DE AUTORIA QUE SE ENCONTRA ISOLADA DOS DEMAIS ELEMENTOS PROBATÓRIOS. ABSOLVIÇÃO. NECESSIDADE DE EXAME APROFUNDADO DE PROVAS. SÚMULA Nº 7 DO STJ. 1. Nos crimes contra a liberdade sexual, a palavra da vítima é importante elemento de convicção, na medida em que esses crimes são cometidos, frequentemente, em lugares ermos, sem testemunhas e, por muitas vezes, não deixam quaisquer vestígios, devendo, todavia, guardar consonância com as demais provas coligidas nos autos (…).

Do mesmo modo, não se pode deixar de mencionar a relevância da palavra da vítima nos crimes praticados mediante violência doméstica, a incidir os ditames protetivos da Lei 11.340/2006.

Com efeito, de regra, os delitos praticados mediante violência de gênero são levados a cabo no interior do ambiente residencial, de coabitação entre agente e vítima, de tal arte que, não raras as vezes, também se classificam como “clandestinos”, pois não há presença de testemunhas da agressão praticada contra a mulher, cabendo ao juiz, portanto, valer-se apenas da palavra da vítima para eventual condenação penal, contanto que esta se mostre segura e  coerente, não se depreendendo motivos no processo para que se pudesse suspeitar de que teria razões a ofendida para deliberadamente imputar acusação falsa contra o acusado.

A respeito, cito o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, na Apelação Crime Nº 70071781777, que bem destaca a relevância probatória da palavra da ofendida nos crimes praticados no âmbito da violência doméstica, uma vez que, de regra, são cometidos à clandestinidade:

Ementa: APELAÇÃO CRIME. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. LESÃO CORPORAL. ART. 129, § 9º DO CÓDIGO PENAL. MATERIALIDADE E AUTORIA DELITIVA. PALAVRA DA VÍTIMA.. SUFICIÊNCIA PROBATÓRIA. MANUTENÇÃO DA CONDENAÇÃO. Nos crimes praticados em ambiente doméstico, onde há apenas a convivência familiar, dificilmente existe alguma testemunha ocular, afora as partes diretamente envolvidas no ocorrido. Assim, em se tratando de fatos relativos à lei Maria da Penha, a palavra da ofendida – até por ser a principal interessada na responsabilização do seu ofensor – assume especial relevância probatória, sendo suficiente, se coerente, para ensejar condenação, a menos que haja algum indicativo de que possui interesses escusos em eventual condenação do acusado (…).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Notadamente, não se objetiva esgotar o tema como o presente artigo jurídico, mas, sim, contribuir, de forma bastante modesta, na formação de conhecimento a respeito do tema abordado, que vem tendo destaque nas decisões dos Tribunais pátrios.

Com efeito, a restrição do valor probatório que se faz às declarações da vítima, em regra, é observada quando são elas o único elemento de convicção do magistrado e estão em confronto com a versão do acusado.

Todavia, há oportunidades, como demonstrado acima, em que a palavra do ofendido alcança extremo valor probante, podendo até mesmo ser suficiente para isoladamente embasar uma condenação penal, o que aqui se sustenta, principalmente nos delitos praticados na clandestinidade, quando estão ausentes testemunhas oculares da cena criminosa, situação que é corriqueira nos crimes contra a dignidade sexual (p. ex. estupro etc.) e nos crimes patrimoniais, como o roubo, delitos estes que, por sua natureza, em regra, só participam agente e vítima.

Há de se ressaltar que a utilização da palavra da vítima para sustentar isoladamente uma condenação penal deve vir, necessariamente, acompanhada do exame de sua pessoa, ou seja, seus antecedentes, sua formação moral, a forma com que prestou suas declarações em juízo (de maneira firme ou não, por exemplo), a manutenção de um relato coeso, maior verossimilhança da versão da vítima em cotejo com a do réu e sua posição em relação a este (se o conhecia previamente ou fato ou não, podendo-se dessumir que haveria algum motivo para acusá-lo falsamente de crime), o que é bem ressaltado pela doutrina de DEMERCIAN e MALULY.

 

Referências
BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. Rio de Janeiro. Campus, Elsevier, 2012.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC n. 362961/ SP 2016/0185822-0. Relator: Ministro Jorge Mussi, julgado em 07/12/2016. Disponível em: < http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia>. Acesso em: 07  fev. 2017.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Crime Nº 70071583348. Relator: Sylvio Baptista Neto, julgado em 08/02/2017. Disponível em: < http://www.tjrs.jus.br/busca/>. Acesso em: 20  fev. 2017.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Crime Nº 70068883990. Relator: Dálvio Leite Dias Teixeira, julgado em 14/12/2016. Disponível em: < http://www.tjrs.jus.br/busca/>. Acesso em 20. Fev. 2017.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1346774 / SC. Relator: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, julgado em 18/12/2012. Disponível em: < http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia>. Acesso em: 07  fev. 2017.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Crime Nº 70071781777. Relator: Luiz Mello Guimarães, julgado em 15/12/2016. Disponível em: < http://www.tjrs.jus.br/busca/>. Acesso em 20. Fev. 2017.
DEMERCIAN, Pedro Henrique e MALULY, Jorge Assaf. Curso de Processo Penal. 9ª edição, revista e atualizada. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
FEITOZA, Denilson. Direito processual penal. Teoria, crítica e práxis, 5 ed. Niterói: Impetus. 2008.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 4ª edição, revisada, ampliada e atualizada – Salvador: JusPodivm, 2016.
LOPES JR., AURY. Direito Processual Penal. 13ª edição. São Paulo: Saraiva, 2016.
NUCCI, Guilherme de Souza. Provas no Processo Penal. 4ª edição, revista, atualizada e ampliada. Rio de Janeiro: Forense. 2015.

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Bruno Barcellos de Almeida

Advogado


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