A Vila – A segurança não está nos muros

Segurança e liberdade não são
inconciliáveis. São, em certa medida, complementares. Em tempos de
criminalidade crescente, terrorismo, desemprego e insatisfação o recurso ao
discurso da segurança como perda de liberdade e aumento de controle encontra
respaldo em uma sociedade assombrada, amedrontada pela mídia e pelos governos.

A busca da segurança com a criação
de mecanismos de controle, de isolamento, pode manter distante o perigo que vem
do outro externo a uma comunidade, mas não tem como nos afastar de nós mesmos,
não nos isola da condição humana. Se há a crença falsa de que alguns entre nós
já nascem criminosos (o que é uma bobagem) o isolamento entre muros não nos
afasta desta possibilidade que estaria na nossa natureza. Se a violência é
inerente à condição humana e diante de determinadas circunstâncias todos nós
podemos praticar atos violentos, de nada adianta, também, vivermos entre muros,
pois o que deve ser evitado é que a paixão, a história, os encontros e
desencontros não sigam determinados caminhos. Logo assim será necessário
controlar a história de cada pessoa, casal, família, comunidade e sociedade.
Como controlar as ações das pessoas? Como controlar as ações e desejos de agir
que não podem ser percebidos pelas câmeras de controle? Colocando um mecanismo
de controle dentro de cada pessoa, o medo, o sentimento permanente de medo.

O filme “A vila” cuida do controle;
do isolamento; da busca de
uma sociedade ideal, isolada, controlada e limitada por muros externos e pelo
medo interno. Pessoas cansadas e amedrontadas querem controlar o tempo; o
espaço e os valores de uma sociedade criada para não viver a violência. Mas a
qual violência nos referimos? A violência do medo; do
não poder; do não desejar; a violência de não sair dos muros seguros e de esconder
sua própria condição de sujeito.

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Do controle exercido sobre as
crianças, o mais cômodo e eficaz parece ser o medo. A geração artificial do
medo. Não o temor sobre o real, mas um temor que ultrapassa o real. O perigo
pode estar em cada esquina, em cada pessoa, em cada ação. O desconhecido é, por
essência, perigoso mesmo que seja desconhecido. O medo paralisa e quanto
maiores os temores do que não existe menos nos expomos ao que existe. A
segurança nestes termos não passa pelo conhecimento dos limites, mas pela
limitação da ação, do desejo, trancafiando qualquer transgressão nos limites
culpados de um sonho que se esconde de si mesmo.

Portanto, a segurança está em gerar
um medo além dos limites do real. A partir daí tudo passa a ser idealizado e
distanciado do real: os muros; o controle; as câmeras de controle policial; o
efetivo policial; a armas que protegem; os presídios de segurança máxima; etc.

O medo torna as pessoas dóceis.
Facilita a negociação com os direitos. As pessoas estão dispostas a abrir mão
de qualquer coisa até o limite do medo que estas sentem. Quanto maior o medo
mais fácil se torna a negociação.

O filme trata de uma comunidade de
se afasta do real e projeta uma nova realidade controlada, idealizada e
controlada pelo medo. O medo infantil do lobo na floresta, de animais
desconhecidos e perigosos, o medo do escuro, o medo de sons na noite. A
descoberta da violência dentro dos membros da comunidade apresenta um problema
sem solução: como nos proteger de nós mesmos.

O filme foi realizado em uma
realidade histórica específica: o mundo pós 2001. Os
atentados terroristas e o fortalecimento dos mecanismos de controle com a
concordância da população amedrontada. Quanto maior o medo do outro gerado pelo
poder mais fácil se torna abrir mão de qualquer coisa. O outro é desconhecido;
diferente de nós; meio humano meio selvagem. Os valores do outro não são os
nossos valores e esta condição meio humana facilita a compreensão da
necessidade de eliminação deste outro.

Este outro estranho aos valores
“humanos”, esta invenção deste outro não humano, que não merece direitos
humanos por não ser humano é necessária para não enxergamos este outro em nós. A compreensão
de nossa condição se torna logo uma ameaça à segurança. Não podemos nos
enxergar no outro. Este “outro” estranho passa a ser a razão de toda nossa
insegurança e a sua eliminação (impossível) se torna o meio de garantir a nossa
segurança.

No século XXI este outro é para
alguns o terrorista; para outros o ocidental; para alguns o “monstro assassino”;
para outros a polícia. Lembrando de um trecho da letra da musica “Les uns et les
autres” do filme “Retratos da Vida” de Claude Lelouch: “Se cada um é outro para um, raramente ele é um
para o outro, apesar de todos os discursos e os pedidos de socorro, dos outros.”

Para refletirmos este século XXI na
sua busca impossível por segurança e liberdade; realização de desejos nas
demandas criadas pelo mercado e a castração do sonho, vamos buscar algumas
reflexões a partir da história do século XIX.

O século XIX (e não só ele) foi o
século do encarceramento, o afastamento físico dos não adaptados em
estabelecimentos de internação coletiva como os presídios e os manicômios. Um
exemplo típico de encobrimento do real.

O liberalismo econômico não saiu
como esperado (por muitos). Da promessa de uma sociedade com oportunidade para
todos, liberdade e igualdade, livre mercado e economia democratizada, o
liberalismo se mostrou na prática o que a teoria não escondia
mas o discurso disfarçava: radicalmente excludente. Se o direito liberal
era para homens brancos e a democracia para homens brancos e ricos a economia
não poderia oferecer oportunidades para todos. Nem igualdade perante a lei, nem
oportunidade, nem tampouco liberdade foi o resultado do liberalismo no século
XX, e as conquistas do voto igualitário e do voto feminino veio da ação dos
partidos e sindicatos socialistas.

Desigualdade, exclusão e miséria, se
não são os únicos fatores para a criminalidade são os fatores preponderantes no
século XIX assim como nas sociedades e economias neoliberais contemporâneas. Não
seriam necessários os muros se não houvesse tanta desigualdade que gera as
novas cidades burguesas, os bairros ricos, os condomínios fechados com
segurança privada, fundados na desigualdade e em valores tão individualistas.
Uma sociedade fundada no individualismo, na competição e no egoísmo parece não
ter muito futuro.

A equação que se formou no século
XIX tem características interessantes que mostram a necessidade de encobrimento
do real para aqueles que se encontram no poder. Vigia a época o voto censitário
previsto na ordem constitucional liberal de boa parte dos paises ocidentais.
Por este mecanismo só votava quem tivesse propriedade e renda anual superior a
um determinado patamar e só poderia ser votado quem tivesse renda ainda maior.
Ora, a equação é fácil. A economia denominada liberal com total ausência de
intervenção estatal permitiu que poucos dominassem os mercados. Estes poucos
votavam e podiam ser votados e logo estavam no poder do estado. Para eles, o sistema
econômico que excluía a maioria e gerava exclusão trazendo criminalidade,
exclusão, desigualdade, não era um problema mas a
solução. Logo como fazer com a criminalidade: para reduzir substancialmente o
problema era necessário mudar o sistema econômico o que lhes traria um enorme
problema uma vez que comprometeria sua crescente riqueza. Mas no poder do
Estado estes conservadores-liberais,
mesmo para manter seu poder deveriam controlar a criminalidade. Logo para
resolver o problema sem criar problemas para o sistema que lhes beneficiava
nada melhor que desconectar os dois: separar criminalidade do sistema
econômico-social. Mesmo que não se pudesse negar no mundo real uma relação
entre os dois, agora no discurso os dois estão separados. A criminalidade passa
ser responsabilidade exclusiva dos criminosos: que conclusão obvia diriam
alguns! Mas resta uma pergunta: porque os criminosos cometem crimes? Respondem
os conservadores e liberais: ora, porque nascem doentes ou maus ou adoecem ou
escolhem o caminho do mal. Afinal vivemos numa sociedade livre diriam os
liberais e os conservadores. Logo para resolver o problema construíram
presídios e manicômios, aumentaram as penas e os crimes, radicalizaram o
tratamento e expandiram as patologias. Então gradualmente todos passam
acreditar que solucionariam o problema da insegurança e criminalidade com
presídios, muros, códigos, penas, manicômios, drogas legais, médicos e choques
elétricos. Um problema semântico é ignorado: o controle passa a ser sinônimo de
solução. Mas como solucionar um problema com controle? O controle controla,
logo se ele controla ele não soluciona mas
simplesmente mantém a situação como está.

Este resumo de extrema simplicidade
que acabo de fazer como um filme mudo em preto e branco se repete em pleno
século XXI remasterizado, colorido artificialmente e
com falsos diálogos científicos introduzidos com requintes de avanços biotecnológicos, pesquisas genéticas e outros espetáculos
pirotécnicos que novamente buscam encobrir o real de uma parcela expressiva da
classe média. A classe média existe ou é uma invenção terminológica para se
referir aos trabalhadores que se sentem capitalistas, pessoas que dependem de
seu trabalho para viver mas que acreditam firmemente
pertencer a uma outra categoria social que não se enquadre no termo
“trabalhador”. Será que alguns sujeitos de classe média se escondem de si
mesmos diante do espelho? Ou, referindo-se a classe média como uma entidade,
será que a “classe media” se esconde de si mesma diante do espelho? Antes de
prosseguir… Uma outra frase: para ser de classe média é necessário acreditar
ser de classe média antes de qualquer outra coisa. Classe média é um estado
mental. Classe média é uma crença.

O que eu quis demonstrar é como a
ideologia pode nos desviar a atenção. Desviar nosso olhar. Enquanto a bola esta
na área adversária o goleiro de nosso time pode fazer qualquer coisa, pois
ninguém olha para ele. Logo ele nunca faz nada, pois ninguém viu. Isto me faz
lembrar o filme “O medo do goleiro diante do pênalti –Die angst des tormanns beim
elfmeter”, do cineasta alemão Wim
Wenders de 1972.


Informações Sobre o Autor

José Luiz Quadros de Magalhães

Especialista, mestre e doutor em Direito Constitucional pela UFMG Professor da graduação, mestrado e doutorado da PUC-MINAS e UFMG.


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