Resumo: Há tempos em que a vítima vem sendo esquecida pela máquina estatal não recebendo o devido tratamento por parte dos agentes públicos e da população. Os estudos sobre a Vitimologia ganharam força a partir da Segunda Guerra Mundial mais precisamente após o desprezível episódio conhecido como o Holocausto no qual os prisioneiros de guerra eram colocados em situações desumanas e cruéis pelos Nazistas. Trata-se a Vitimolgia de uma ciência interdisciplinar na qual passa pelas áreas da psicologia psiquiatria e direito sendo ou não um ramo de uma ciência maior denominada Criminologia. Abrange também a Vitimologia ao estudo da contribuição da vítima para a consumação do crime até que ponto a vítima deixa de ser vítima e passa a ser a principal causadora do conflito. Por fim a aplicabilidade da Vitimologia no caso concreto visa dar uma maior celeridade à persecutio criminis trazendo a vítima para dentro do problema além de uma maior aproximação da Justiça apresentando programas de acolhimento urgente à vítima após o evento criminoso.
Introdução
A Vitimologia em si é uma ciência que estuda o papel da vítima no crime, trazendo uma posição de equilíbrio, colocando a vítima no local central do crime e não o réu, obviamente respeitando todos os seus direitos e garantias.
Quando o Estado democrático de direito começou a se organizar e assumir o monopólio da justiça, a vítima foi passada para segundo plano e com o surgimento do Direito Penal moderno, as atenções passaram a ser voltadas para a pessoa do réu. Todavia, a vítima já ocupou a posição central do delito, e não apenas uma posição periférica como acontece nos dias atuais, dava-se a ela a colocação de destaque, a opção de escolha entre a vingança e a compensação, esta era foi conhecida como idade de ouro.
O surgimento da Vitimologia se deu como uma disciplina derivada de uma ciência maior denominada criminologia, entretanto, há divergência doutrinária sobre a existência ou não de uma autonomia científica desse estudo. Existem autores que tratam a Vitimologia como uma ciência autônoma, pelo fato de existir método, finalidade e princípio próprios. Porém a maior parte da doutrina entende de maneira diversa, qual seja, a Vitimologia sendo um ramo de uma ciência maior denominada Criminologia. Ocorre também um terceiro posicionamento isolado que não reconhece a existência da Vitimologia, nem como ramo específico da criminologia, tampouco por ciência autônoma.
A análise da vítima no contexto delitivo é extremamente importante no caso concreto, pois irá gerar consequências jurídicas podendo, em alguns casos, ocorrer a exclusão da culpabilidade do agente pela aplicação da inexigibilidade de conduta diversa, ou até mesmo a exclusão do próprio crime em virtude da inexistência da tipicidade. A relação entre a vítima e o agente ofensor no contexto delitivo não é caracterizada apenas pela divergência de vontades, ou seja, pela contraposição, mas também pela convergência de vontades, pela harmonia.
Nos tempos modernos a vítima se vê abandonada pela máquina estatal onde a atenção é voltada para o sujeito ativo do crime. Em um delito a vítima fica sujeita a passar por danos físicos, psíquicos, sociais, econômicos, além de outros.
Com o principal objetivo de amenizar o dano causado à vítima de crime, alguns países trazem programas de indenização às vítimas, entre eles podemos citar a Nova Zelândia, a Inglaterra, a Argentina, a Espanha, o México, entre outros.
No Ordenamento Jurídico Brasileiro há certa preocupação do legislador em relação à análise do comportamento da vítima em alguns casos específicos, como por exemplo, como forma de agravar ou atenuar a pena do acusado. Todavia, houve uma significativa mudança a partir da criação da Lei 9.099, de 26 de setembro de 1.995, que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, na qual trouxe a implementação da chamada justiça consensual. Com a criação da Lei em comento, a vítima foi trazida para dentro do conflito, tendo agora um papel significativo.
A sociedade possui uma maneira equivocada de enxergar vítima e criminoso, sendo o criminoso culpado e a vítima inocente, afora em alguns casos específicos como, por exemplo, os de provocação grave por parte da vítima ou nos casos de legítima defesa. Apesar de na maioria dos casos não restar dúvidas sobre a culpabilidade do delinquente, não se pode enxergar com exatidão a inocência da vítima, pois essa em inúmeros fatos delituosos contribui com sua conduta para o comportamento criminoso.
O ilustre autor Edgard de Moura Bittencourt ensina que a principal finalidade dos estudos sobre a Vitimilogia é:
“Contribuir para que o legislador e o juiz criminal sejam advertidos do problema, hoje bem focalizado pela Vitimologia […], tentando mostrar que na terapêutica e na profilaxia do crime, o estudo da vítima conduz a resultados satisfatórios para decisões justas e humanas e para prevenções de crimes (1971: 88).”
Destarte, torna-se o principal intuito da presente pesquisa observar até qual ponto o comportamento da vítima pode influenciar na conduta criminosa, levando como parâmetro os estudos vitimológicos apresentados, como fim de se obter uma maior celeridade da persecução criminal e uma real aproximação da Justiça.
1.Vitimologia: uma visão geral
Foi no período pós Segunda Guerra Mundial, devido aos terríveis acontecimentos do Holocausto e das situações desumanas em que as vítimas da guerra eram tratadas, mais precisamente prisioneiros Judeus, que houve a necessidade de um estudo mais amplo sobre a vítima, seu comportamento e sua relação com o agressor.
O notável advogado israelita exilado nos Estados Unidos, Benjamin Mendelsohn deu início aos primeiros estudos sobre a matéria no ano de 1.945. Mendelsohn, no ano de 1.947 proferiu uma conferência na Universidade de Bucareste, intitulada “Um novo Horizonte na ciência biopsicossocial – a Vitimologia”, o Professor Emérito da Universidade Hebraica de Jerusalém foi considerado por muitos o grande precursor da Vitimologia. Todavia, existem autores que defendem que o verdadeiro fundador da Vitimologia foi o professor alemão Hans Von Henting, que no ano seguinte (1.948) escreveu a obra denominada “O criminoso e sua vítima”, em que usou o termo Vitimogênese ao invés de Vitimologia, deixando claro que com a análise do contexto delitivo tanto a vítima quanto o agente ofensor possuem a mesma importância.
A Vitimologia tem por baldrame o estudo da conduta da vítima e de sua cooperação na gênese do crime, levando em consideração suas características psicológicas, culturais e morais, além de sua personalidade, a sua relação com o criminoso e as condições diversas que fazem com que a vítima colabore para a realização do crime. O ilustre professor Márcio Rodrigo Delfim ensina que a Vitimologia nos tempos modernos:
“[…] procura estudar a complexa órbita da manifestação do comportamento da vítima face ao crime, numa visão interdisciplinar em seu universo biopsicossocial, procurando encontrar alternativas de proteção, material ou psicológica, às vítimas.”
Destarte, trata-se a Vitimologia de uma ciência que abrange áreas da psiquiatria, psicologia, sociologia, direito, entre outras, além de traçar o caminho de onde se originou o crime, às catástrofes sociais ou naturais, estudando os comportamentos e manifestações da vítima com o delinquente.
1.1.Abordagem histórica
Os ilustres professores Luiz Flávio Gomes e Antonio García-Pablos de Molina ensinam que: “há anos vem a Vitimologia […] estudando a vítima e suas relações, seja com o infrator, seja com o sistema” (2010: 479).
Hodiernamente, a doutrina divide a evolução dos mecanismos legais de amparo à vítima em dois grandes momentos, o primeiro denominado de antecedentes históricos remotos e o segundo de antecedentes históricos próximos.
Os antecedentes históricos remotos apesar de sua antiguidade e do desconhecimento técnico do instituto da responsabilidade civil, já demonstravam uma preocupação com a reparação do dano sofrido pela vítima. O ilustre professor Lélio Braga Calhau, preceitua que entre os antecedentes históricos remotos estão presentes:
“O Código de Ur-Nammu, por volta do ano 2000 a.C. ou as Leis de Eshununna, ou o Código de Hamurabi, da Babilônia (datado de aproximadamente 23 séculos a.C.), o Código de Manu (cinco séculos antes da era cristã), ou mesmo a Legislação Mosaica (aproximadamente 1500 anos a.C.), o Tamulde, passando pelo Direito Romano […]” (2003: 24).
No Direito Talmúdico, é possível constatar a existência de diversos dispositivos que versam sobre o efeito da reparação dos danos causados às vítimas. Já no Direito Romano, se fazia uma distinção entre o dano de natureza material e o dano de natureza moral, sendo este um grande percursor, trazendo o estudo da personalidade da vítima. Dessa forma, Heitor Piedade Júnior ensina:
“Com a aceitação da reparação por danos morais vislumbra-se, embrionariamente, a preocupação dos romanos com outra vertente da Vitimologia, qual seja, a do estudo da personalidade da vítima, uma vez que somente através do conhecimento da personalidade, do psiquismo e da sensibilidade da vítima, poder-se-á entender a necessidade da reparação do dano moral, pois ele é de natureza psicológica” (1993: 50).
Com relação aos antecedentes históricos próximos há uma divisão criada pela doutrina. Existem os antecedentes históricos criados pelas Escolas Penais e os criados pelo Direito Canônico. Trata-se das chamadas Escolas Penais de uma sistematização do pensamento jurídico filosófico reinante em meados do século XVIII na Europa na qual acabou exercendo grande influência no desenvolvimento do Direito Penal. Dentre as Escolas Penais duas adquiriram grande importância, a Escola Clássica e a Escola Positiva.
A Escola Clássica representada por juristas de notório saber como Beccaria, Francesco Carrara, entre outros, demonstrava certa preocupação sobre aspectos relacionados à Vitimologia, onde pode ser notado através da análise da obra “Dos delitos e das penas” do marquês de Beccaria publicada no ano de 1.764. O autor Heitor Piedade Júnior relaciona a Escola Clássica com a Vitimologia do seguinte modo:
“A Escola Clássica cumpriu seu ciclo histórico, lutando pelo empenho da liberdade, através do exercício da justiça. E a plenitude da liberdade afasta qualquer processo de vitimização, de vez que só existe vitimização quando não há justiça e esta só se impõe, quando existe liberdade” (1993: 57/58).
Já a Escola Positiva sofreu uma grande influência sobre as teorias evolucionistas de Darwin e Lamarck, e a partir da obra de Cesare Lombroso intitulada de “O Homem Delinquente” publicada no ano de 1.876, houve o ponto de partida para os estudos relacionados à Vitimologia. Nesta obra Lombroso defende o criminoso nato, ou seja, pessoas que podem ser consideradas criminosas pelo simples fato de serem portadoras de anomalias psíquicas ou físicas. Ainda integrando a Escola Positiva o professor Enrico Ferri através da obra “O homicídio-suicídio” publicado no ano de 1.892, além de realçar a importância da vítima, Ferri chama a atenção sobre a questão relacionada ao estudo da Vitimologia.
Uma subdivisão dos antecedentes históricos próximos é o denominado Direito Canônico, ou seja, o direito codificado que rege a Igreja Católica Apostólica Romana. É possível encontrar nos Códigos Canônicos, diversos dispositivos que demonstram uma preocupação com a reparação dos danos causados à vítima.
Verifica-se, com isso, que desde os primórdios existe uma preocupação do legislador em relação ao amparo às vítimas de danos sucedidos de terceiros.
1.2.O surgimento e o desenvolvimento da vitimologia no brasil
No Brasil, foi através do professor Paul Cornil que o primeiro trabalho sobre Vitimologia foi publicado no ano de 1.958, o artigo foi intitulado de “Contribuição da Vitimologia para as ciências criminológicas'' e publicado pela Revista da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Paraná, anos VI e VII, nº 06 e 07, de 1.958 e 1.959. A partir daí o assunto sobre a Vitimologia passou a ser cada vez mais abordado e debatido no país.
Em 1.971, o autor Edgard de Moura Bittencourt publicou a obra “Vítima: a Dupla Penal Delinquente-Vítima, Participação da Vítima no Crime. Contribuição da Jurisprudência Brasileira para a Nova Doutrina”. Mais tarde, necessariamente em 1.990, Ester Kosovski, Eduardo Mayr e Heitor Piedade Júnior coordenaram a obra “Vitimologia em Debate”, trazendo inúmeros artigos nacionais e estrangeiros sobre o tema em comento.
Um importante marco para a Vitimologia em nosso país se deu em 28 de julho de 1.984, a partir de um encontro de intelectuais realizado na cidade do Rio de Janeiro, na qual foi fundada a Sociedade Brasileira de Vitimologia (SBV), sendo de grande importância para a implementação do estudo da vítima por meio de grandes estudiosos e especialistas das áreas de Serviço Social, Sociologia, Medicina, Psicologia, Psiquiatria e Direito. O artigo 1º da Sociedade Brasileira de Vitimologia diz que: “fica constituída uma sociedade civil sem fins lucrativos, que se regerá pelo presente estatuto, por instruções normativas e por disposições legais aplicáveis”.
Nota-se a finalidade do Estatuto nos incisos I, II e III, do artigo 3º, qual seja, “in verbis”:
“I – a realização de estudos, pesquisas, seminários e congressos ligados à pesquisa vitimológica;
II – formular questões que sejam submetidas ao estudo e decisão da Assembleia Geral;
III – manter contato com outros grupos nacionais e internacionais, promovendo reuniões regionais, nacionais ou internacionais sobre aspectos relevantes da ciência penal e criminológica, no que concerne à Vitimologia.”
Desta forma, com o surgimento da Sociedade Brasileira de Vitimologia acarretou uma nova explosão de estudiosos dedicados ao assunto em nosso país.
2.A vitimologia no ordenamento jurídico brasileiro
O Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1.940, que instituiu o Código Penal Brasileiro trata a vítima como o diretamente prejudicado pelo crime, ou seja, o ofendido. O legislador se preocupou em alguns casos com a análise da vítima para que influa na responsabilidade penal e na devida punição do réu, alguns antes mesmo do início dos estudos sobre Vitimologia no país.
O artigo 59 do Diploma Repressivo, alhures, mencionado, na chamada dosimetria da pena, trata da realização da análise do comportamento da vítima, sendo um requisito avaliado pelo magistrado para a fixação da pena base do acusado. Vejamos o artigo em comento, “ipsis litteris”:
“Art. 59 – O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime […].”
Isto só foi possível com a nova redação da parte geral implementada pela Lei nº 7.209, de 11 de julho de 1.984. Antes desta reforma, o Código Penal Brasileiro em sua parte especial somente tratava o comportamento da vítima quando houvesse a provocação injusta da mesma em face do ofensor nos crimes de lesões corporais ou em um homicídio por exemplo.
No mesmo Codex Penal, o artigo 65, inciso III, alínea C, última parte, expõe sobre o comportamento da vítima como circunstância atenuante, “in verbis”:
“Art. 65 – São circunstâncias que sempre atenuam a pena: […]
III – ter o agente: […]
c) cometido o crime sob coação a que podia resistir, ou em cumprimento de ordem de autoridade superior, ou sob a influência de violenta emoção, provocada por ato injusto da vítima;”
Já o artigo 121, também do Código Repressivo em comento, em seu parágrafo primeiro estabelece como causa de diminuição da pena no homicídio privilegiado “[…] se o agente comete o sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço”.
Todavia, cumpre salientar que a análise do comportamento da vítima nos artigos mencionado não serviu a seu favor, mas sim contra ela, ou seja, apenas como forma de agravar ou atenuar a pena do acusado.
Mais recentemente veio à tona a Lei 9.807, de 13 de julho de 1.999, que dispõe sobre a matéria, na qual instituiu o Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas. O capítulo primeiro da Lei trata da proteção especial a vítimas e testemunhas, além das regras gerais sobre o programa de proteção. O artigo 1º dispõe, “in verbis”:
“Art. 1º As medidas de proteção requeridas por vítimas ou por testemunhas de crimes que estejam coagidas ou expostas a grave ameaça em razão de colaborarem com a investigação ou processo criminal serão prestadas pela União, pelos Estados e pelo Distrito Federal, no âmbito das respectivas competências, na forma de programas especiais organizados com base nas disposições desta Lei.”
No artigo 5º, § 2o, inciso II da aludida Lei, nota-se a necessidade irrefutável de se obter uma perícia psiquiátrico-forense mais abrangente, sendo necessário um apoio médico, social e psicológico ao prejudicado, vejamos, “ipsis litteris”:
“Art. 5º A solicitação objetivando ingresso no programa poderá ser encaminhada ao órgão executor: […]
§ 2º Para fins de instrução do pedido, o órgão executor poderá solicitar, com a aquiescência do interessado: […]
II – exames ou pareceres técnicos sobre a sua personalidade, estado físico ou psicológico.”
No entanto, uma significativa mudança ocorreu com o advento da Lei 9.099 de 26 de setembro de 1.995, que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais. A Lei em comento trouxe uma significativa mudança no aspecto ofensor/vítima, sendo agora, a vítima trazida para dentro do conflito e ocupando uma parte central, tendo um papel preponderante. Houve com isso uma valorização da participação da vítima no processo penal, tornando-se possível que o magistrado em audiência preliminar, promova a conciliação das partes, levando-se em consideração o crime sofrido ser considerado de menor potencial ofensivo.
Por fim, a Lei 11.340, de 7 de agosto de 2.006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, trouxe um novo modelo de justiça penal, na qual a prisão e a repressão a qualquer custo, via de regra, perderam lugar para as medidas consensuais e despenalizadoras.
2.1.A audiência preliminar e a lei 9.099/95
Uma das principais novidades trazidas pela Lei 9.099, de 26 de setembro de 1.995, que trata dos crimes de menor potencial ofensivo, foi a chamada Audiência Preliminar ou Audiência de Conciliação, pois houve, a partir de então, a possibilidade das partes conflitantes transigirem em uma composição civil, reparar danos provenientes da efetivação do delito, ou a aceitação da transação penal proposta pelo Ministério Público, pelo autor do fato, antes do oferecimento da Denúncia.
Em Audiência Preliminar, o juiz atua com o intuito de promover a conciliação das partes, atribuindo efeito de título executivo à sentença que homologa em relação ao autor do fato e à vítima, possibilitando a sua posterior execução no Juízo Cível. Houve, portanto, certa valorização da vítima, fazendo com que esta agora fosse chamada para dentro do problema, o que tornou a reparação do dano sofrido mais importante que a punição dada ao acusado (autor do fato). Todavia, houve certo receio de que tal medida sobrecarregasse os Juizados Especiais Criminais, devido à falta de estrutura para suportarem o aumento de ações, o que realmente acabou acontecendo em alguns casos.
Todavia, a mencionada Audiência era para ser acompanhada por um Juiz de Direito, um Promotor de Justiça, um Defensor Público ou Dativo, além das partes conflitantes estarem presentes, mas não é o que acontece. Na prática, a audiência é presidida por, na maioria das vezes, um estagiário, onde apenas este e as partes (autor do fato e vítima) ficam presentes na sala de audiência.
Não levantando o questionamento sobre a capacidade intelectual de um estagiário para com o Juiz, mas sim de que um prestou concurso público e se mostrou capaz de realizar essa tarefa e o outro não. Por sorte, um juiz leigo em alguns casos consegue promover a conciliação com mais facilidade que um Juiz de Direito que aplica a legislação ao pé da letra, indo às vezes de encontro ao bom senso.
Se o principal objetivo da Audiência Preliminar era evitar a morosidade nas ações judiciais, funcionou. Todavia, manifesto a crítica de que a impunidade e a injustiça prevalecem nos Juizados Especiais Criminais, pois na maioria das vezes, o autor do fato mesmo sem ter cometido o ilícito aceita a transação penal ofertada pelo Ministério Público, para que, não seja dada continuidade à Ação Penal passível de oferecimento de Denúncia por parte do Ministério Público.
Sobre o tema, o ilustre professor da Universidade de São Paulo (USP), Frauzi Hassan Chouckr ensina:
“[…] ao mesmo tempo em que a vítima apresenta-se ainda descompromissada com a verdade pelo tratamento que lhe é conferido pelo Código de Processo Penal, tendo apenas algum engajamento ético com o tema, surge agora a possibilidade de construir uma verdade como fruto de "consenso" entre ofendido e o autor do fato, numa fase que ainda não é considerada como de persecução penal e se constitui num óbice a esta quando frutífero o "acordo". […] sobretudo quando se pensa que ao autor do fato é não raras vezes mais "cômodo" ressarcir um prejuízo para que se veja livre da persecutio criminis […] e com isto compor uma "verdade" que pode ter, na base, uma alegação completamente descompromissada com o mundo da vida.”
Destarte, a verdadeira vítima (aquela que realmente sofreu o dano), se vê injustiçada, pois além de ter sofrido o primeiro dano, sofre também o desgaste de um processo penal (no Juizado Especial Criminal é chamado de Termo Circunstanciado de Ocorrência), além de não receber benefício algum, pois a multa aplicada no caso concreto não serve para reparar os danos por ela sofridos. Lado outro, o autor do fato quando inocente, sai com a mesma sensação de injustiça sofrida, pois mesmo se houver algum meio de provar que não cometeu o ilícito, em alguns casos o mesmo prefere tomar o caminho mais célere e menos danoso, tendo em vista que com o cumprimento da transação penal não haverá danos posteriores, como por exemplo, em face de antecedentes criminais, ou seja, será extinta sua punibilidade.
Ademais, fica também a dúvida do que seria o crime de menor potencial ofensivo na visão da vítima, como exemplo, o crime de ameaça (previsto no artigo 147 do Código Penal Brasileiro), que posteriormente poderia desencadear um crime mais grave, o Estado que poderia punir com mais rigidez com o objetivo de proteger a vítima, praticamente se omite, fazendo com que o agente ofensor apenas se comprometa a comparecer, tardiamente, ao Juizado Especial Criminal, em Audiência Preliminar.
3.A vitimologia criminal
Para uma melhor abordagem sobre a Vitimologia, vale ressaltar alguns conceitos pertinentes. Temos a definição da palavra vítima elucidada no dicionário da seguinte forma:
“Criatura viva, imolada em holocausto a uma divindade; pessoa sacrificada aos interesses ou paixões de outrem; pessoa assassinada ou ferida; pessoa que sucumbe a uma desgraça ou que sofre algum infortúnio; tudo o que sofre qualquer dano; sujeito passivo do ilícito penal; aquele contra quem se comete um crime ou contravenção” (1987: 1251).
A ilustre professora criminóloga Ester Kosovski ensina que o termo vítima “deriva de víncere – o vencido, ou de vincire – animais que são sacrificados aos deuses”.
Vale ressaltar, por oportuno, o conceito dado pelo ilustre advogado e professor Benjamin Mendelsohn, no qual é citado por Heitor Piedade Júnior. Para Mendelsohn, a vítima:
“[…]é a personalidade do indivíduo ou da coletividade na medida em que está afetada pelas consequências sociais de seu sofrimento, determinado por fatores de origem muito diversificada: físico, psíquico, econômico, político ou social, assim como do ambiente natural ou técnico” (1993: 88).
Torna-se praticamente impossível expor um conceito único de vítima, tendo em vista que são inúmeros, dados por diversos autores de grande renome, porém, apesar de serem conceitos tecnicamente distintos, acabam por chegar em um mesmo objetivo. De um modo geral, a vítima é a pessoa que sofre os resultados infelizes dos próprios atos, dos de outrem ou do acaso, sendo aquela que é ofendida diretamente ou possui um bem tutelado ameaçado.
Adentrando na esfera vitimológica, temos o conceito sobre Vitimologia dado pelo professor Eduardo Mayr, sendo este um dos principais e mais utilizados sobre o tema, qual seja:
“Vitimologia é o estudo da vítima no que se refere à sua personalidade, quer do ponto de vista biológico, psicológico e social, quer o de sua proteção social e jurídica, bem como dos meios de vitimização, sua inter-relação com o vitimizador e aspectos interdisciplinares e comparativos” (apud MOREIRA FILHO, 2004: 23).
A professora Ester Kosovski cita a sintetização do objeto da Vitimologia feita pela criminóloga Lola Aniyar de Castro, da seguinte forma:
“1º) Estudo da personalidade da vítima, tanto vítima de delinquente, ou vítima de outros fatores, como consequência de suas inclinações subconscientes.
2º) O descobrimento dos elementos psíquicos do ‘complexo criminógeno’ existente na ‘dupla penal’, que determina a aproximação entre a vítima e o criminoso, quer dizer: ‘o potencial da receptividade vitimal’.
3º) Análise da personalidade das vítimas sem intervenção de um terceiro […]
4º) Estudo dos meios de identificação dos indivíduos com tendência a se tornarem vítimas […]
5º) A importantíssima busca dos meios de tratamento curativo, a fim de prevenir a recidiva da vítima.”
Desse modo, a Vitimologia trata-se de um novo caminho biopsicossocial, ou seja, havendo a necessidade de se obter uma visão integral do ser que compreende as dimensões físicas, psicológicas e sociais, tornando-se cogente a exploração da matéria pelo Direito Penal, pela Criminologia e pela Psiquiatria.
3.1.A vítima
Se difícil já é expor um conceito completo de vítima, mais complexo ainda são as diferentes classificações e vertentes dadas por diversos professores e autores sobre o assunto, todavia, as primeiras classificações dadas por Benjamin Mendelsohn e pelo professor alemão Hans Von Henting trouxeram uma significativa evolução sobre o tema. Mendelsohn classifica as vítimas da seguinte forma:
Vítima completamente inocente ou vítima ideal: é aquela em que não teve nenhuma participação com o resultado delitivo. “O delinquente é o único culpado pela produção do resultado. Exemplos: sequestros, roubos qualificados, terrorismo, vítima de bala perdida, etc.” (apud MOREIRA FILHO, 2004: 47).
Vítima por ignorância ou vítima menos culpada que o delinquente: é a vítima que de uma forma ou de outra, consciente ou inconscientemente contribuiu para o resultado delitivo. Outrossim, é aquela que “contribui, de alguma forma, para o resultado danoso, ora frequentando locais reconhecidamente perigosos, ora expondo seus objetos de valor sem a preocupação que deveria ter em cidades grandes e criminógenas” (apud MOREIRA FILHO, 2004: 47).
Vítima tão culpada quanto o delinquente: neste caso a participação ativa é indispensável para a caracterização do crime. Como exemplo está o crime de estelionato (artigo 171 do Código Penal Brasileiro), no qual é caracterizado pela torpeza bilateral, ou seja, a vítima age de má-fé desejando obter benefício ao final de determinada transação.
Vítima mais culpada que o delinquente ou vítima provocadora: são as vítimas de lesões corporais ou vítimas de homicídios privilegiados cometidos após injusta provocação da própria vítima.
Vítima como única culpada: para este caso a doutrina aponta o seguinte exemplo:
“Indivíduo embriagado que atravessa avenida movimentada vindo a falecer atropelado, ou aquele que toma medicamento sem atender o prescrito na bula, as vítimas de roleta-russa, de suicídio, etc.” (apud MOREIRA FILHO, 2004: 48).
Já o ilustre autor Hans Von Henting classifica as vítimas de um modo mais simples, sendo vítima resistente e vítima cooperadora.
Vítima resistente: a doutrina menciona como exemplo a vítima que repele uma injusta agressão atual ou iminente, agindo em legítima defesa.
Vítima coadjuvante e cooperadora: é aquela em que devido à imprudência, imperícia ou negligência, ou até mesmo por ter agido de má-fé acaba convergindo para a produção do resultado.
Por oportuno, vale ressaltar, que o amplo aspecto dado por Mendelsohn recebeu críticas de estudiosos, como de Gerd Ferdinand Kirchhoff, o autor expõe:
“A grande maioria dos cientistas rejeitou esta ampla noção de Vitimologia e o que eu acho é que ela nunca ocupou uma posição de autoridade acadêmica ou de títulos que talvez contribuíssem para as dificuldades na interação com o mundo de fala inglesa onde a Criminologia floresceu.”
Embora Kirchhoff ache a classificação de Mendelsohn com uma amplitude excessiva, parece devidamente adequada, principalmente por não se limitar no binômio criminoso/vítima, como é trazido pela Criminologia.
3.2.A criminologia como gênese da vitimologia
Para alguns autores, a Criminologia teria se originado a partir da publicação da obra “Dos Delitos e das Penas”, escrita em 1.764 por Cesare Beccaria, na época com 26 anos, no qual, partindo de ideias iluministas conseguiu expor reformas sociais indo a confronto com o absolutismo coroado.
O desenvolvimento sociológico da Criminologia se deu no início do século XX, como consequência dos trabalhos de Durkheim, onde originou teorias sociológicas em que colocaram o delinquente em um contexto social.
Devido ao aumento da criminalidade a preocupação migrou do crime para o criminoso, deixando a vítima em segundo plano. Logo, a partir dos estudos da Criminologia, se deu a necessidade de uma abordagem maior sobre a problemática da vítima, originando-se então a Vitimologia.
Ocorre que a doutrina que versa sobre a criação e o surgimento da Vitimologia não está pacificada, ou seja, há discordância sobre a existência ou não de autonomia científica dessa matéria.
Parte da doutrina entende a Vitimologia como sendo uma ciência autônoma, pelo fato de existir método, finalidade e princípio próprios, dentre os adeptos dessa teoria está o autor Ramírez González, que considera a Vitimologia como sendo:
“[…] o estudo psicológico e físico da vítima que, com o auxílio das disciplinas que lhe são afins, procura a formação de um sistema efetivo para a prevenção e controle do delito” (apud PIEDADE JÚNIOR, 1993: 83).
A doutrina considera majoritária trata a Vitimologia de outra forma, qual seja, sendo uma ramificação da Criminologia. Para o autor Henry Ellenberger a Vitimologia é:
“[…] um ramo da Criminologia que se ocupa da vítima direta do crime e que compreende o conjunto de conhecimentos biológicos, sociológicos e criminológicos concernentes à vítima” (apud PIEDADE JÚNIOR, 1993: 81).
Nesse mesmo sentido, temos o entendimento do criminólogo Raúl Goldstein, que considera a Vitimologia como:
“[…] parte da Criminologia que estuda a vítima não como efeito consequente da realização de uma conduta delitiva, mas como uma das causas, às vezes a principal, que influenciam na produção de um delito” (apud PIEDADE JÚNIOR, 1993: 81).
Oportunamente, vale ressaltar um posicionamento doutrinário minoritário que não reconhece a existência da Vitimologia, nem como um ramo da Criminologia, tampouco por uma ciência autônoma, utilizando o pretexto de não haver uma autonomia científica. Nesse aspecto, há o posicionamento de Manuel Lopez Rey Y Arrojo que diz que a Vitimologia “não é mais que o resíduo de uma concepção superada da criminalidade e da Criminologia” (apud PIEDADE JÚNIOR, 1993, p. 128).
Há de se ressaltar que com o crescimento abissal do tema em vários países e principalmente no Brasil, acaba por tornar esse último posicionamento isolado e talvez até mesmo inaplicável.
O professor Marcelo Paes de Menezes completa sobre o tema em comento:
“Pensamos que atrelar a Vitimologia ao estudo do binômio criminoso/vítima, além de ser uma posição restritiva e conservadora, se traduz em inaceitável retrocesso, porquanto nega a própria razão de ser da disciplina. É bem verdade que a mudança do olhar sobre o criminoso para a vítima encerra uma fantástica alteração de paradigma. A vítima, quase sempre renegada pela Criminologia, toma o lugar de destaque e se posiciona como o centro das atenções. […] De toda sorte, não fosse a Vitimologia uma ciência autônoma, a preocupação com o bem-estar do homem, aspecto que deve presidir qualquer atividade humana, está a sugerir, senão impor, o alargamento do campo de estudo e atuação deste novo e fascinante ramo.”
O fato é que sendo ou não um ramo da Criminologia, a Vitimologia acaba enriquecendo a estrutura criminológica, levando em conta que esta além de estudar a vítima em si, estuda também a colaboração do ofendido e sua responsabilidade na conduta. E por fim, tratando a Vitimologia como uma ciência autônoma, por óbvio visa abranger uma maior área, abordando todas as vítimas existentes e não somente as vítimas de crimes.
3.3.A vitimização e sua classificação
O professor Benjamim Mendelsohn ensina que vitimização é o processo que uma pessoa passa para se tornar vítima.
Estudos realizados na Europa demonstram que toda a população está suscetível à ocorrência de três danos distintos, chamados respectivamente de: dano de primeiro grau ou vitimização primária, dano de segundo grau ou vitimização secundária e dano de terceiro grau ou vitimização terciária.
Trata-se da vitimização primária, aquela originada diretamente do fato criminoso, ou seja, o contato direto, imediato, com a lesão a um bem jurídico tutelado pela Lei. Marwin Wolfgang, presidente da Academia Americana de Ciências Políticas e Sociais, citado pelo professor Heitor Piedade Júnior, preconiza a vitimização primária da seguinte forma:
“[…] ‘vitimização primária’ é utilizada para referir a vítima personalizada ou individual, que pode ser diretamente atacada e ferida em transgressão frontal, que é ameaçada ou tem uma propriedade furtada ou danificada;”
A vitimização secundária ocorre quando a vítima sofre os efeitos do processo penal, quando o sistema a trata de forma ofensiva, muitas vezes com descaso, violando assim outro bem jurídico. A “grosso modo” trata-se de um novo sofrimento imposto à vítima por aqueles que deveriam lhe fazer Justiça. Para o autor Antonio Beristain, a vitimização secundária “emana de respostas formais ou informais obtidas pela vítima” (2000: 103).
Ainda sobre a vitimização secundária, Beristain cita o autor Elias Neuman, o qual assevera:
“Ao longo do processo penal (já desde o começo da atividade policial), os agentes do controle social, com frequência, se despreocupam com (ou ignoram) a vítima; e, como se fosse pouco, muitas vezes a vitimam ainda mais. Especialmente em alguns delitos, como os sexuais. Não é raro que nessas infrações o sujeito passivo sofra repetidos vexames, pois à agressão do delinquente se vincula a postergação e/ou estigmatização por parte da polícia, dos médicos forenses e do sistema judiciário” (2000: 106).
Dentro dessa vitimização secundária estão as chamadas “cifras negras” ou “cifras ocultas” que são os crimes que não chegam ao conhecimento do sistema penal, seja por medo da vítima em avocar o Poder Público, ou por não possuir testemunhas de um crime por exemplo.
Sobre o dano de terceiro grau ou vitimização terciária, Antonio Beristain leciona:
“Quando alguém, por exemplo, consciente de sua vitimação primária ou secundária, avoca um resultado, em certo sentido, paradoxalmente bem sucedido (fama nos meios de comunicação, aplauso de grupos extremistas, etc.), deduz que lhe convém aceitar essa nova imagem de si mesmo(a), e decide, por meio desse papel, vingar-se das injustiças sofridas e de seus vitimadores (legais, às vezes)” (2000: 109).
Um exemplo atual que podemos utilizar sobre a vitimização terciária é o episódio que aconteceu na Universidade Bandeirante de São Paulo (UNIBAN), onde a aluna do curso de Turismo Geisy Arruda, após adentrar na Universidade usando um vestido curto foi hostilizada e xingada com inúmeros palavrões pelos demais alunos que também filmaram o episódio e posteriormente disponibilizaram o vídeo na internet. Todavia, após o ocorrido, a garota aproveitou o acontecimento como forma de autopromoção, para divulgar sua imagem nos meios de comunicação com o escopo de obter fama.
Impende salientar que parte da doutrina entende sobre a vitimização terciária de modo oposto, qual seja, aquela em que a vítima sofre um abandono não só por parte do Estado, mas também pelo seu grupo social, se tratando principalmente de delitos que deixam sequelas graves. O ilustre doutrinador Lélio Braga Calhau expõe:
“No processo penal ordinário e na fase de investigação policial, a vítima é tratada com descaso e, muitas vezes, com desconfiança pelas agências de controle estatal da criminalidade. A própria sociedade também não se preocupa em ampará-la, chegando, muitas vezes, a incentivá-la a manter-se no anonimato, contribuindo para a formação da malsinada cifra negra, o grupo formado pela quantidade considerável de crimes que não chegam ao conhecimento do sistema penal” (2003: 27).
A polícia geralmente é a primeira a ter contato com a vítima após o acontecimento do crime, e infelizmente esta se mostra despreparada a desempenhar tal função, o que se fez imprescindível a realização de estudos para apontar algumas alternativas com o objetivo de suavizar o dano sofrido pela vítima, essencialmente ao dano de segundo grau, por ser o mais comum. Os estudos apontam a criação de alguns programas assistenciais, entre eles estão:
A criação de programas de acolhimento urgente, ou seja, após o acontecimento de um evento criminoso a vítima seria imediatamente atendida por um profissional qualificado, se necessário teria um alojamento temporário, tratamento médico, tratamento psicológico, etc.
Um segundo programa assistencial seria a criação de centros de atendimento às vítimas dentro do próprio sistema de direito penal. O Estado deve propiciar o atendimento tanto sobre a perspectiva psicológica quanto sobre a perspectiva material de forma contínua, ou seja, antes, durante e depois do processo criminal, desde o inquérito policial até a fase da execução penal. O autor Antonio Beristain preconiza sobre o programa de prestação de auxílio às vítimas da seguinte forma:
“Antes, facilitando-lhes as gestões da denúncia que em algumas situações de terrorismo deveriam manter certo anonimato […]; durante, evitando-lhes a segunda vitimação; e, depois, com os programas de compensação e os possíveis intentos restaurativos e reconciliadores, etc.” (BERISTAIN, 2000: 113).
Em países como os Estados Unidos da América e o Canadá é comum esse tipo de programa assistencial ser visto na prática.
O terceiro grupo de programa assistencial mencionado pela doutrina está relacionado à compensação de natureza financeira que a vítima deve receber. Alguns doutrinadores fundamentam este programa pelo simples fato de vivermos em um Estado social de direito, com isso acarretaria a imprescindibilidade do Estado indenizar a vítima, entretanto para outros doutrinadores esse fundamento reside no fato do Estado ter se demonstrado incompetente ao coibir a ocorrência de determinado delito o que se justificaria a necessidade de reparar os danos causados à vítima. A autora A. Karmen ensina nesse sentido:
“Alguns baseiam-na no Estado social de direito, outros na estrita justiça, outros na compensação que deve o poder governamental, por não conseguir evitar a criminalidade, etc.” (apud BERISTAIN, 2000: 115).
Portanto, deve ser dado tratamento diferenciado para cada grupo vitimizado, ou seja, aqueles com maiores condições financeiras sofrem danos posteriores menores em face dos mais necessitados, pois estes possuem condições de arcarem com despesas médicas, psicológicas e jurídicas. Por fim, vale ressaltar o conceito de igualdade, utilizado pelo ilustre advogado Rui Barbosa, citado por Celso Ribeiro Bastos, o qual narra que igualdade significa “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que eles se desigualam” (1978: 225).
4.A participação da vítima no processo delitivo
O ilustre autor Vasile Stanciu é o criador uma brilhante frase na qual não conceitua a Vitimologia, mas aponta uma das principais dúvidas que surgem logo no início do estudo do tema, qual seja: “Se nem todos os réus são culpados, nem todas as vítimas são inocentes”. Com isso, faz-se imprescindível uma análise completa da vítima, essencialmente àquela possivelmente colaboradora com a conduta criminosa.
Destarte, Edgard de Moura Bittencourt, levando como base os preceitos de Walter Raul Sempertegui, preconiza:
“[…] essa brilhante concepção traz como consequência que a vítima adquire relevante preponderância no estudo do delito e que se elimine o critério que a reduzia à condição de passiva receptora da ação delituosa. E assim igualmente se destrói a insuficiente afirmação de que só o delinquente pode decifrar o problema do crime, sem considerar que sua existência como tal só é possível com a correlata existência da vítima e que toda ação dirigida única e exclusivamente ao delinquente fundar-se-á sobre bases falsas” (1971: 21).
O professor Roque de Brito Alves, em seu livro denominado “Criminologia”, faz uma ampla abordagem sobre os diferentes tipos de vítima, levando como base os caminhos traçados por Benjamin Mendelsohn e Hans Von Hentig. Dentre os conceitos dados pelo autor, se encontram as vítimas que contribuem de alguma forma com o fato delituoso, entre elas está a chamada vítima falsa, ou seja, aquela que induz e/ou instiga o agente de tal forma, a ponto deste não suportar mais e acabar praticando o delito.
Outra vítima também citada pelo autor é a chamada vítima provocadora, sendo aquela criadora de uma situação na qual acaba obrigando o agente do delito a atuar contra ela. Neste contexto, Edgard de Moura Bittencourt ensina:
“[…] em vista dos antecedentes do fato, da personalidade de cada um dos sujeitos do crime e de sua conduta nas cenas que culminaram na infração penal. A vítima será então estudada não como efeito nascido ou originado na realização de uma conduta delituosa, senão, ao contrário, como uma das causas, às vezes principalíssima, que representa na produção dos crimes. Ou, em outras palavras, a consideração e a importância que se deve dar à vítima, na etiologia do delito” (1971: 84).
Portanto, em alguns casos a vítima pode ser a principal causadora do delito pelo fato do acusado não suportar a injusta provocação a ponto de cometer o crime.
Neste caso podemos levar o seguinte exemplo: uma mulher cotidianamente é vítima de agressões por parte do marido, certo dia o marido chega em casa visivelmente embriagado e manda o filho, menor de idade, amolar um machado dizendo que ao anoitecer irá usá-lo para deferir golpes em sua esposa. Passado algumas horas o homem cai ao sono, a mulher movida pelo medo e sabendo que o homem, quando acordasse poderia ceifar a sua vida e talvez até de seu filho. Movida então por violenta emoção, esta pega o machado e defere golpes no pescoço de seu marido, onde este não resiste e vem a falecer.
O presente caso, apesar de parecer espúrio, ocorreu na Comarca de Palma/MG, no qual tive a oportunidade de acompanhar a Ação Penal Pública Incondicionada, onde a autora se vê apenas na oportunidade de ser absolvida pelo Tribunal do Júri, ou ter a pena atenuada em caso de condenação nos termos do artigo 65, inciso III, alínea C, última parte, do Código Penal Brasileiro. Impende salientar que não há em nosso ordenamento jurídico a possibilidade de se excluir a culpabilidade, tampouco a ilicitude nesse fato especificamente.
Nesse contexto, importante aludir alguns crimes que tomaram destaque na mídia, entre eles estão os lamentáveis casos denominados de bullying, que ocorrem geralmente nas escolas, onde crianças e adolescentes reprimem e provocam outra por uma simples indiferença desta para com o resto do grupo. O caso de maior divulgação em nosso país foi o que ficou conhecido como o “Massacre de Realengo”, onde um jovem adentrou na Escola Municipal Tasso da Silveira, no Rio de Janeiro, na qual já havia estudado e ter sido vítima de bullying, armado com dois revólveres começou a disparar contra os alunos presentes, matando doze deles (com idade entre 12 e 14 anos), com a chegada de um Policial Militar no local, o jovem se suicidou.
Portanto, uma análise biopsicossocial realizada em pessoas que são constantemente vítimas de bullying e que visivelmente se mostram conturbadas por isso, poderia possivelmente evitar outras tragédias como a citada acima.
4.1.O instituto da legítima defesa
A autotutela é a forma mais primitiva que o homem tem de disputar bens necessários à sua sobrevivência, ou seja, a prevalência do mais forte sobre o mais fraco. Tal forma foi expurgada da ordem jurídica brasileira por apresentar perigo à paz social. Todavia, no Direito Penal Brasileiro tal forma é aceita excepcionalmente em alguns casos, como nos de legítima defesa.
O artigo 25 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1.940, que instituiu o Código Penal Brasileiro, diz que é permissível à vítima que “usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.” De tal modo, não sendo possível que a vítima recorra ao Estado para que o mesmo proteja seu direito ameaçado, pode esta prevenir ou punir a possível agressão utilizando moderadamente os meios necessários, excluindo assim a ilicitude, tronando-se o fato atípico.
Eduardo Correia expõe da seguinte forma sobre o tema:
“É claro que o reconhecimento de um direito de legítima defesa, cujo exercício logo formalmente afasta a antijuridicidade do fato, tem na sua base a prevalência que à ordem jurídica cumpre dar ao justo sobre o injusto, à defesa do direito contra a sua agressão, ao princípio de que o Direito não tem que recuar ou ceder nunca perante a ilicitude” (2000: 35-36).
Hodiernamente no Brasil, é proibida a prática de duelo, ou seja, ambas as partes de um conflito não podem alegar estarem protegidas pela excludente de ilicitude do instituto da legítima defesa. Neste caso específico, torna-se necessário a análise da vítima com o fim de avaliar se esta estaria se colocando na situação de agredida para alcançar o seu objetivo principal, qual seja, consumar a agressão injusta ou imoderada à outra parte.
4.2.A reparação civil na investigação criminal
Em nosso ordenamento jurídico há um instituto no qual possibilita a vítima de impetrar uma ação civil, com o objetivo de reparar os danos causados decorrentes de uma ação penal. A chamada actio civilis ex delicto está capitaneada nos artigos 63 a 68 do Decreto-Lei 3.689 de 03 de outubro de 1941, que instituiu o Código de Processo Penal Brasileiro. A propositura da ação poderá ser promovida “[…] pelo ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros”, de acordo com o artigo 63 do Diploma Repressivo, alhures, mencionado.
A ação civil poderá ser proposta antes, durante ou até mesmo depois da respectiva ação penal, apenas com a exigência de que esta tenha trazido algum dano para a vítima. Portanto, não se faz necessária uma sentença penal condenatória transitada em julgado para que a vítima prejudicada promova uma ação civil ex delicto com o escopo de reparar os danos causados a ela decorrentes de uma investigação criminal.
Enquanto a reparação civil movida pelo particular se mostra eficaz, por outro lado, a reparação civil movida por parte do Estado para reparar danos causados por particulares, se mostra impotente.
Na esfera internacional, existem países nos quais apresentam legislações específicas com a finalidade de auxiliar e indenizar as vítimas de crimes, entre eles estão Espanha, Itália e França. Infelizmente no Brasil não há uma legislação específica para esse fito, entretanto, existem alguns raros casos nos quais os aplicadores da Lei tomam iniciativas ao invés de se manterem inertes aguardando uma solução por parte do Poder Público.
Um desses casos é o que acontece na região sul de Minas Gerais, mais precisamente no Município de Santa Rita do Sapucaí, onde presos acusados por roubos, furtos ou até mesmo tráfico de drogas têm tido a oportunidade de trabalhar para indenizar suas vítimas, como contrapartida o detento tem parte de sua pena reduzida de acordo com a quantidade de dias trabalhados. Os presos executam serviços de reforma dos prédios públicos do Município. Isso só foi possível graças à iniciativa do juiz titular Henrique Mallmann. O projeto visa também reduzir o número de presos da cadeia local, que se encontra superlotada, além de reciclar o preso, restaurar o patrimônio público e restituir o dano à vítima. O juiz explica:
“A ideia foi de buscar uma alternativa, porque a gente sabe que o sistema penitenciário está falido, não funciona, não recupera. As prisões hoje estão se tornando um foco de criminalidade, ao invés de ser um lugar para recuperar as pessoas. […]
O preso ganha redução da pena, ganha dignidade, ganha oportunidade de até às vezes aprender uma profissão, já que alguns não sabem fazer nada há não ser roubar e praticar o mal.”
Ao projeto, no qual foi dado o nome de “Restituir, Restaurar e Reciclar”, o preso recebe o valor mensal de um salário mínimo no qual é pago por empresários da cidade, a metade do salário é repassada para sua família, e a outra metade usada para ressarcir os danos das vítimas. O magistrado completa:
“[…] a gente está criando um fundo para encontrar outras vítimas de outros processos para ressarcimos. Nos casos dos crimes de tráfico, que a vítima é a sociedade, metade do salário é destinado para uma fazendinha que cuida de pessoas com problemas de dependência. Já que ele (traficante) fabricou o dependente, agora ele vai pagar o tratamento.”
Aos detentos que manifestarem o interesse de trabalhar, têm que demonstrar bom comportamento carcerário e por óbvio o trabalho não é obrigatório. O magistrado diz ainda que, por incrível que pareça, em alguns casos “às vítimas se tornaram amigas de seus algozes”.
Este caso específico traz em si um conceito de Justiça, ou seja, Justiça não é apenas aplicar a Lei de modo cogente e coeso, e sim trazer para o caso concreto, através do bom senso, a prática de atos que além de reparar a vítima da maneira correta, trazem também uma ressocialização do delinquente, fazendo com que este possivelmente se arrependa de seus atos antes de regressar para a sociedade.
Por fim, neste contexto temos a lição deixada por Paulo Queiroz:
“[…] assim postas as coisas, cumprirá, decorrentemente, reintegrar a vítima no conflito, devendo-se privilegiar alternativas que minorem o sofrimento pelo qual tem passado aquele diretamente ofendido pelo delito. Vale dizer: deve a sentença penal buscar não apenas reprimir a conduta praticada pelo agente, mas também, dentro de certos limites, consultar os reais interesses da vítima do crime (de reparação do dano, prestação de serviços a ela, etc.), sempre que isso seja possível” (2001: 130).
Considerações finais
Tendo em vista o que foi analisado e apresentado, torna-se imprescindível na análise da “persecutio criminis in judicio” a verificação de aspectos relacionados à vítima como sua personalidade, seus antecedentes e históricos criminais, o que podem influenciar na aplicação da pena, além da real classificação do crime.
A reparação dos danos causados à vítima sempre existiu, desde os primórdios da civilização, em praticamente todas as codificações. Na era moderna, a vítima está tendo sua redescoberta, há cada vez mais a necessidade de reconhecer por parte dos Estados a importância da vítima.
No Brasil já se havia uma devida noção sobre Vitimologia antes mesmo da realização dos primeiros estudos sobre o tema no país, como podemos observar no parágrafo 1º do artigo 121 do Código Penal Brasileiro, sendo causa de diminuição de pena se o agente comete o crime sobre injusta provocação da vítima. Todavia, lamentavelmente a legislação brasileira não possui uma ampla abordagem sobre a matéria o que fatalmente traria uma melhor compreensão do fenômeno da criminalidade, e posteriormente se mostraria decisivo para sua prevenção.
Mais tarde, foi de suma importância a criação da Lei nº. 9.099 de 1995, na qual trouxe o modelo de justiça consensual, todavia fica a dúvida se a conciliação entre autor do fato e vítima realmente gera Justiça, ou apenas é mais uma tentativa de desafogar o Judiciário, provocando assim uma possível injustiça para com a verdadeira vítima ou com o autor do fato quando inocente.
É de se saber que a pena privativa de liberdade, mais necessariamente a pena de prisão em nosso país não ressocializa, ao contrário, acaba por fazer com que o detento passe por uma “escola do crime” e na maioria das vezes volte para a sociedade com menos disciplina e com uma motivação ainda maior para cometer o próximo delito. Há tempos em que os movimentos de direitos humanos protestam contra tratamentos desumanos que os presidiários sofrem no sistema penitenciário brasileiro. Noutra banda, as vítimas desses criminosos, são esquecidas e desamparadas pela máquina estatal, na qual se vê obrigada em cumprir apenas o dever de punir, deixando de lado o dever de resguardar a pessoa ofendia, como se essa não tivesse sofrido o bastante com o dano de primeiro grau (o ilícito passado), tendo que passar por um dano de segundo grau, quando por muitas vezes, os agentes públicos praticamente culpam a vítima pela violência sofrida, ampliando assim sua agonia psíquica.
Destarte, para uma melhor análise do “iter criminis” como um todo, imprescindível se faz observar não apenas um papel específico da vítima, mas sim seu papel geral, desde os atos preparatórios, até a consumação do delito. Assim sendo, a Vitimologia merece uma melhor atenção de nossos juristas, devendo ter uma aplicação mais abrangente e uma melhoria significativa, na prática, dos meios de proteção e acolhimento às vítimas expostos no presente trabalho, levando como parâmetro outros países que possuem grandes organizações de amparo e proteção à vítima. Por outro lado a sociedade civil também deveria participar com mais rigor a estes problemas. No entanto, apesar do descaso sofrido, a própria vítima em alguns casos desconhece a importância da reparação do dano, deixando de lado esse importante fato para se consagrar a Justiça.
Enfim, visa o presente trabalho apresentar a adoção de um modelo de justiça reparadora, visando abandonar aos poucos o modelo atual de justiça punitiva, indo além ao modelo de justiça consensual trazido com o advento da Lei 9.099/95, demonstrando a preocupação com a reparação dos danos causados à vítima, vinculando o tema à questão da cidadania, pois não há o pleno exercício da cidadania sem a devida proteção da vítima criminal.
Informações Sobre o Autor
Victor Minarini Gonçalves
Advogado criminalista e processualista. Pós-graduado em Direito Processual Penal