A vontade do legislador na defesa do Princípio da Irretroatividade das Leis – Análise da votação da MP 513/10 no Senado Federal

Resumo: Trata-se de artigo que objetiva analisar a defesa do princípio da irretroatividade das leis no ordenamento brasileiro, promovida durante as votações da MP 513/10 no plenário de Senado Federal e os efeitos de sua conversão para as demandas securitárias no Sistema Financeiro da Habitação.


Palavras-chave: Irretroatividade, Leis, Medida Provisória, Indenização, Seguro, SFH.


Sommario: Questo articolo si propone di analizzare la difesa del principio della irretroattività delle leggi nel’ordinamento brasiliano, promosse nel corso delle votazioni in seduta plenaria dela MP 513/10 nel Senato Federale e i respettivi effetti della sua conversione sui processi giudiziali proposti nell’ambito del Sistema Finaziario di Allogigiamento.


Parole principali: Irretroattività, Leggi, provvisorio, risarcimento, assicurazione, SFH


Sumário: Introdução. I – Considerações de Ordem Histórica. II – Análise da votação da MP 513/10 no Senado. III – Da absorção do FESA pelo FCVS. IV – Conclusões. Referências bibliográficas.


INTRODUÇÃO


Na a semana passada, enquanto os holofotes iluminavam as bancadas dos ministros da Suprema Corte, o ballet do Sistema Financeiro da Habitação proporcionava mais um de seus espetáculos. Durante a votação da MP 513/10 no Senado Federal, a partir de um debate eminentemente jurídico, observou-se em plenário o profundo respeito pelos direitos dos mutuários do SFH, com a repetida afirmação de suas garantias fundamentais e dignidade.


Apesar de toda a descrença que assola o Legislativo brasileiro, disseminada por todos os níveis da sociedade, e apesar de a MP 513/10 não ter sido editada a partir de uma exemplar técnica legislativa, nem de ter recebido as emendas de que profundamente necessitava, nosso Legislador demonstrou sobriedade e reafirmou toda a essência da democracia, mostrando verdadeiro respeito pelo cidadão e pelos seus direitos.


I – CONSIDERAÇÕES DE ORDEM HISTÓRICA


Antes de adentrar no assunto trazido à baila, não é de hoje que se conhece a relevantíssima função social que desempenha o Sistema de Habitação no Brasil, nascido da necessidade de alojar a crescente população diante dos históricos déficits de moradia existentes no país. Voltada para as camadas da população com menor poder aquisitivo, a política habitacional, implementada desde a década de 70, proporciona caminho mais curto para a aquisição de moradias próprias a baixo custo, se mostrando como um forte veículo de reequilíbrio econômico-social.


Ao longo dessas décadas, porém, muitas falhas foram evidenciadas e inúmeros problemas acometeram os imóveis construídos sob a égide desse sistema, notadamente quanto aos defeitos oriundos do equivocado método construtivo, a partir do qual foram erguidas essas milhares de unidades habitacionais em todo o país. Tais problemas são constantemente veiculados pela mídia e são de amplo conhecimento das autoridades públicas, nos mais diversos cantos do país, eclodindo a cada dia com mais freqüência.


O Judiciário dos Estados é diariamente chamado a tutelar os direitos dos segurados do SH, conferindo-lhes a proteção de que necessitam. Exemplos não faltam nos Tribunais de Santa Catarina (berço de toda essa problemática e base da consistente jurisprudência nacional sobre o assunto), Paraná, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Paraíba, Rio Grande do Norte e Pernambuco, onde os magistrados não se furtam aos seus deveres e fazem verdadeira justiça frente ao abuso do poder econômico das seguradoras do SFH. Somente em Pernambuco, local onde os problemas se mostram mais latentes, há mais de 300 imóveis interditados pelo poder público, sob risco iminente de desabamento, demonstrando uma alarmante estatística.


Atualmente, não é novidade, também, as seguradoras integrantes do sistema habitacional, responsáveis pela cobertura dos sinistros ocorridos nos imóveis, dão as costas aos mutuários e, diariamente, se recusam a cumprir suas obrigações contratuais e legais. Essa postura, de remotos tempos já conhecida pelo Judiciário, se caracteriza como uma crassa violação a todo o sistema jurídico pátrio, pois, apesar de arrecadar e faturar milhões com os prêmios recebidos dos financiamentos, elas se negam a dar a devida cobertura aos sinistros e a indenizar os mutuários. Na maioria das vezes, estes são obrigados a abandonar seus lares, tendo em vista a interdição e a iminência de desabamento de suas casas, pelo alto grau de risco que oferecem à segurança de suas famílias.


Essas empresas, rotineiramente, se utilizam de meios processuais artificiosos e desleais, beirando a litigância de má-fé, com o fim de reduzir ao máximo a despesa com o pagamento dos sinistros, em atenção exclusiva de seus interesses econômicos. Além disso, possuem uma curiosa obstinação pelo deslocamento da competência jurisdicional para a esfera federal[1], trazida ao seio de cada demanda ajuizada, há décadas, e incessantemente repelida pelos magistrados. Em suma, atuam em patente desrespeito às Leis, à Constituição e debocham das centenas de julgados emanados do Judiciário brasileiro.


Outro assunto que merece registro é a incansável tentativa das seguradoras em modificar, retoricamente, a natureza jurídica da relação entre elas e os mutuários. Esse tema foi bastante abordado em artigo anterior[2], de modo que resta pacificado que a natureza da relação jurídica estabelecida entre os mutuários e as seguradoras do SFH é estritamente privada, não possuindo qualquer viés publicista[3]. É relação de empresa seguradora privada com particular, adquirente do imóvel objeto de cobertura securitária.


Por último, também são notoriamente conhecidas, da sociedade e das autoridades judiciárias, as incansáveis tentativas do poder econômico no sentido de modificar as normas do SH, sempre no intuito de fazer prevalecer os interesses de determinados segmentos atuantes no SH, principalmente, das seguradoras, fazendo-as reduzir o pagamento dos sinistros cobertos, em total desrespeito aos mutuários e às suas famílias, que passam anos pagando os respectivos prêmios e são acintosamente ignorados.


Esse movimento em prol das seguradoras se mostra evidente, por exemplo, com eterna negativa de cobertura para vícios de construção, com a modificação da apólice habitacional promovida em 1999, para extirpar das obrigações contratuais das seguradoras a Multa Decendial, que incidia em razão da mora das seguradoras na regulação do sinistro avisado, dentre outras.


Entretanto, o apoteótico episódio se deu com a edição da MP 478/09, que nasceu no apagar das luzes do ano de 2009 (29/12/09), eivada de inconstitucionalidades[4], e que previu, dentre outras manobras, a extinção da apólice habitacional com aplicação retroativa de seus efeitos e a substituição do responsável pela cobertura dos sinistros, que passaria a ser a Caixa Econômica Federal.


Não se precisa mencionar que tal MP foi ridicularizada no meio jurídico e taxativamente repelida[5], em TODAS as demandas em que foi discutida, nos mais diversos Estados da Federação, por magistrados de primeiro e segundo graus. Tornou-se verdadeira anedota nos corredores do judiciário e, por conseqüência, sequer foi apreciada pelo Congresso Nacional, tendo sido rejeitada e perdido sua eficácia por decurso de prazo. 


Não satisfeitas com a derrota, as seguradoras, mais uma vez, se mobilizaram contra os mutuários e promoveram mais uma tentativa de modificação das regras do SFH, desta vez, com a edição da MP 513/10, pouco mais de um ano após a anterior. Esse diploma também não é merecedor de elogios técnicos e foi igualmente criticado pela comunidade jurídica, já havendo, inclusive vários pronunciamentos judiciais contrários às suas disposições[6], assim como também pelos próprios parlamentares em sessão plenária do Senado.


Assim, essa Medida Provisória é fruto de mais uma tentativa obtusa de impedir a afirmação dos direitos dos segurados e é justamente sobre esse diploma que recai a análise deste ensaio, porquanto a votação da norma no Senado evidenciou que o Legislador brasileiro está atento e consciente de seu dever constitucional perante toda a sociedade. Ao mesmo tempo em que este percebeu a necessidade de modificar as normas do SFH, com a conversão da MP 513/10 em Lei, o fez com lucidez e juridicidade, com total sintonia e respeito aos valores constitucionais fundamentais.


II – ANÁLISE DA VOTAÇÃO DA MP 513/11 NO SENADO


Em sede de intróito, a MP 513/10 apresenta uma manifesta atecnia legislativa, promovida pelo Executivo. O inciso II do art. 1º do diploma prevê que o FCVS passará a oferecer cobertura direta aos contratos de financiamento habitacional averbados na extinta apólice do SH/SFH.


Ora, é claro que a apólice do SH jamais foi extinta! As notas técnicas da referida MP atestam que tal dispositivo se fundamenta na modificação promovida pela MP 478/09, que previu a extinção da Apólice Habitacional, tendo sido esse o objetivo fundamental da edição da referida norma. Porém, como já dito, a MP 478 foi rejeitada e não foi convertida em Lei, não tendo, efetivamente, produzido nenhum efeito no mundo concreto. Toda a justificativa da MP 513, quanto ao SFH, remonta à MP 478, rejeitada pelo Parlamento.


É senso comum no meio jurídico que, de acordo com o art. 62 da CF/88, em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei – com produção de efeitos instantâneos -, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.


Entretanto, levando-se em conta a natureza da relação securitária no âmbito do SFH, um questionamento se faz premente: se a principal finalidade da MP 478 foi extinguir retroativamente a apólice securitária do SH e se foi integralmente rejeitada, que tipos de efeitos imediatos ela pode ter produzido?


Pela natureza do vínculo jurídico e do complexo procedimento de regulação e cobertura dos sinistros de danos físicos do SFH, não haveria como a MP 478 ter produzido efeitos imediatos, tendo em vista que objetivava extirpar a Apólice Securitária do mundo jurídico. Esse referido diploma não foi elaborado com atributos necessários para a produção de efeitos instantâneos, não possuindo, assim, aplicabilidade imediata. Ou seja, é norma de eficácia limitada – parafraseando analogicamente a classificação das normas constitucionais, de autoria do Ilmo. Prof. José Afonso da Silva.


Daí decorre que, não tendo sido a referida MP permanentemente incorporada ao sistema jurídico, a constatação óbvia é a de que, em sede de conseqüências jurídicas, a MP 478/09 foi inexistente, porquanto seus efeitos eram intimamente vinculados à sua continuidade no tempo. Tal conclusão independe, inclusive, da edição de Resolução pelo Senado Federal regulamentado o seu período de vigência, pois ela sequer possuía os atributos de efeitos imediatos.


Aceitar concepção contrária seria afirmar a possibilidade de essa peculiar norma – que não era autoaplicável durante sua vigência – ser aplicável após ter sido rejeitada pelo Congresso, o que evidencia uma contradição lógico jurídica e uma cristalina violação do sistema de tripartição das funções estatais, pilar das democracias contemporâneas.


Desse modo, a compreensão da aplicabilidade do dispositivo suscitado, por parte de todos os operadores do direito, deve perpassar inexoravelmente pela ciência de tal atecnia, tendo em vista a necessidade de obediência ao devido processo legislativo, para que tal deficiência seja corrigida na aplicação da referida norma.


Obrigatória se faz a menção, inclusive, de que essa MP também não está distante de uma clara inconstitucionalidade, tendo em vista ausência de urgência de determinadas matérias ali normatizadas e a ausência de congruência temática entre os assuntos tratados no diploma. Nesse sentido, no seio dos debates em plenário durante a votação do diploma, esse fato não passou despercebido e oportunas foram as palavras do Senador Álvaro Dias, chamando a MP 513 de árvore de natal, porquanto são vários os seus penduricalhos[7].


Ultrapassada essa questão de ordem, em que pese, porém, fazer menção textual à MP 478/09, de que dependia parte da eficácia de seus dispositivos, a aplicação da MP 513 jamais poderá ter eficácia retrospectiva. Nosso Parlamento deixou isso muito claro quando dos debates em plenário, fazendo questão de consignar o exato alcance da norma e os parâmetros de sua aplicabilidade, como manifestação do Legislador sobre a necessidade de respeito ao princípio da irretroatividade das leis, fundamento inafastável do Estado de Direito.


Tendo isso em conta, não sendo nenhuma novidade que a MP 513 é mais uma tentativa das seguradoras em se eximir do pagamento dos sinistros, editada com a finalidade de reestruturar o SH, os parlamentares fizeram questão de consignar, firmando compromisso com a sociedade, que os efeitos da norma somente se produzirão de forma prospectiva e JAMAIS retroativa.


Durante os debates, algumas palavras representam a personificação da vontade legislativa quanto ao assunto, de modo a resguardar os direitos dos mutuários, conforme discurso do Imo. Relator da Medida Provisória, Senador Renan Calheiros, que assim proclamou:


“Eu queria, na discussão dessa medida provisória, cobrar o compromisso do Líder do Governo nesta Casa para que a interpretação com relação a esse artigo não permita a retroatividade da lei, porque isso, sem dúvida nenhuma, afetaria direitos desses mutuários. O mínimo que o Senado poderia fazer, e eu gostaria de fazer neste momento, é dizer o que é que o legislador pretende fazer para resguardar esses direitos dos mutuários. Isso é fundamental para que amanhã tenhamos uma decisão que assegure a plenitude desses direitos. Os mutuários entram na Justiça, alguns já conseguiram liminares, decisões judiciais, e esses direitos precisam ser resguardados.. Em função de o FCVS assumir a responsabilidade pelo seguro feito pelas empresas privadas, precisamos garantir, pelo menos quanto a essa parte que já entrou na Justiça e já teve uma decisão em favor dos seus direitos, o compromisso do Governo, das Lideranças e do Senado Federal no sentido de que a lei não vai, nesse caso, retroagir. É o mínimo que podemos fazer. (…) Com relação aos mutuários, é fundamental que possamos assumir um compromisso, aqui, na apreciação dessa medida provisória. Qual seja, não contarmos com a retroatividade das leis, porque a retroatividade dessa medida provisória, infelizmente, vai atropelar direitos de pessoas que já foram atendidas pela Justiça, que já tiveram deferido pela Justiça o reconhecimento desses direitos.”


O princípio da irretroatividade da lei é corolário do sistema constitucional do Estado de Direito, porquanto dá sustentação aos pilares da segurança jurídica no ordenamento normativo, notadamente quanto ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito. Por tal princípio, não é permitido, em regra, no Brasil, que lei posterior produza efeitos sobre fatos anteriores à sua vigência. Da mesma forma, o postulado impede que uma alteração legislativa posterior modifique a relação jurídica constituída e concluída sob a égide de norma anterior, assim como os efeitos que dela são esperados.


Com isso, a MP 513 não pode modificar o vínculo jurídico entre os mutuários do SFH e as seguradoras do sistema, sob pena de violação do ato jurídico perfeito. De conseqüência, a cobertura dos sinistros, oriunda de contrato de seguro firmado sob o manto da legislação pretérita, se caracteriza como direito adquirido dos mutuários, não podendo ser-lhes retirada essa prerrogativa, já devidamente incorporada aos seus respectivos patrimônios jurídicos. A exigibilidade de cumprimento do contrato, nos moldes do instrumento firmado, não lhes pode ser tolhida por norma posterior.


O efeito desses pronunciamentos já foram sentidos na comunidade jurídica, através de profissional do assunto, que se manifestou sobre o assunto afirmando:


“O Senador Renan foi muito feliz ao relata a MP 513, em assegurar e preservar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito, afirmando em seu relatório que a lei não poderá ser interpretada com efeito retroativo, ou seja, as seguradoras devem arcar com as indenizações dos contratos assinados antes dessa lei[8].”


  Portanto, os debates entre os Senadores em plenário são a manifestação e a personificação da vontade do nosso legislador em assegurar o respeito e a dignidade dos mutuários, até então acobertados pelas normas então vigentes do SFH, assim como também como forma de balizar a aplicabilidade da Lei resultante da conversão da MP 513/10, que jamais poderá ter aplicação retroativa, impedindo-a de violar ato jurídico perfeito e o direito adquirido dos segurados.


Tal postura evidenciou a mais clara e límpida vontade do nosso Legislador que, promovendo a modificação julgada necessária nas normas do SH, respeitou e resguardou os direitos dos mutuários constitucionalmente assegurados, demonstrando sobriedade e reafirmando o verdadeiro comprometimento com a sociedade e com seus direitos. Em razão disso, toda e qualquer compreensão a ser empreendida no texto da MP 513/10, quanto às alterações do SH, devem perpassar pelo prisma hermenêutico consignado pelo Senado Federal, no sentido da vedação à interpretação retroativa de seu texto.


III – DA ABSORÇÃO DO FESA PELO FCVS[9]


Como já dito, é muito curiosa a fixação das seguradoras em promover o deslocamento da competência nas demandas securitária no seio do SFH, de modo que se pode afirmar com propriedade que elas se preocupam mais com essa tese do que com a própria defesa do mérito na ação. Tal obsessão não se justifica razoavelmente! Talvez suponham que no foro federal gozarão algum tipo de prerrogativa ou vantagem ou serão alvo de decisões mais brandas; talvez porque pretendem que o FESA seja diretamente chamado a arcar com as indenizações, ao invés de seus patrimônios, ou mesmo porque julgam os magistrados estaduais despreparados para o conhecimento dessa matéria. Na verdade, estas são meras ilações.


De fato, ao longo de décadas, as seguradoras renovam e reciclam as teses de incompetência dos juízes estaduais, em clara afronta à autoridade dos tribunais e, principalmente, em resistência à autoridade do Colendo STJ, que já pacificou o tema em sede de recurso repetitivo, como já mencionado[10]


O FESA (Fundo de Equalização da Sinistralidade da Apólice Securitária) sempre foi um fundo composto de recursos exclusivamente privados, oriundos das receitas dos prêmios pagos pelos mutuários, que servia de última instancia para manutenção da liquidez do SFH. Ou seja, a cobertura dos sinistros sempre ocorreu à custa do patrimônio das seguradoras, diretamente responsáveis pela regulação e cobertura dos eventos, de modo que os recursos do FESA somente seriam acionados para a manutenção da estabilidade do sistema em casos extremamente drásticos ou catastróficos, tais como exorbitantes e momentâneos picos de sinistralidade; em caso de falência ou insolvência de seguradora integrante do SFH, quando o passivo não pudesse ser redistribuído entre as remanescentes, etc.. Importante lembrar que o FESA jamais foi acionado para a cobertura de sinistros, não se tendo notícia de qualquer saque de seus recursos para essa finalidade. 


Com a aprovação da MP 513, com a extinção do FESA e a absorção de suas competências pelo FCVS, poder-se-ia suscitar uma possível modificação superveniente da competência jurisdicional decorrente de alteração legislativa, o que acarretaria a quebra da perpetuação da jurisdição, com a remessa de todas as demandas já ajuizadas para a Justiça Federal.


Talvez esse seja o real escopo visado com a edição da MP 513, pois, a um só tempo se modificaria a estrutura do SFH; as seguradoras esquivariam seu patrimônio do pagamento das indenizações; o FESA seria incorporado ao erário público e a cobertura direta para os sinistros seria dada pelo FCVS; e a competência jurisdicional seria deslocada para a Justiça Federal, com a assunção do pólo passivo da obrigação pela União.    


Entretanto, esse intento jamais pode se concretizará! Tal possibilidade resta evidentemente frustrada, tendo em vista a impossibilidade de retroação dos efeitos da MP e de sua conseqüente Lei. Os contratos até então firmados e os sinistros até então deflagrados serão regidos pelas normas anteriores à MP 513. Apenas as relações nascidas em momentos posteriores obedecerão às suas modificações.


O que se observa nas entrelinhas é que de todo esse ballet se assemelha à tentativa de concessão de um perdão para as seguradoras, alcançando todo o passivo das indenizações, que deveriam ser adimplidas com seus próprios patrimônios, transferindo-o à União, que passaria a garantir os contratos, incorporando tais débitos pelo Estado. Em evidente acordo de camaradas, fica claro que a União tenta incorporar as receitas do FESA ao erário público, adquirindo a liquidez dos seus recursos superavitários, e como forma de contraprestação se responsabiliza pelo passivo judicial – passivo este que deveria ser suportado exclusivamente pelas próprias empresas seguradoras – com a oferta do FCVS para garantia do seu pagamento. Em claro detrimento e ofensa aos direitos dos mutuários, essa é uma tentativa a-juridica e equivocada de modificar abruptamente as normas do SH, o que somente aumenta o sentimento de impunidade das seguradoras no coração dos mutuários.


Por fim, em razão do sólido estado de direito sobre o qual se ergue e se constitui o Brasil, essa manobra resta evidentemente frustrada, ao menos quanto às situações já consolidadas, tendo em vista o compromisso do Legislador brasileiro em reafirmar o principio da irretroatividade das leis, estabelecido pelo Senado durante as votações.


IV – CONCLUSÕES


Assim, resta claro que o escopo da referida MP 513 foi burlar certos mecanismos jurídicos para a) modificar a estrutura normativa do SFH; b) esquivar o patrimônio das seguradoras do pagamento das indenizações; c) para transformar os recursos do FESA em dinheiro incorporado ao erário público e extingui-lo, ofertando o FCVS como garantia de cobertura direta para os sinistros; e d) para modificar a competência jurisdicional das demandas para o foro Federal, com a assunção do pólo passivo da obrigação pela União.


Entretanto, observa-se que o objetivo primordial dessa exação foi frustrado, pois ficou bastante e claramente evidenciado que ela não poderá produzir efeitos sobre as situações já consolidadas até o seu advento, permanecendo incólumes todas as ações já ajuizadas, modificando apenas as relações constituídas de hoje em diante.


Desse modo, como já dito, a compreensão da aplicabilidade do dispositivo suscitado por parte de todos os operadores do direito deve perpassar inexoravelmente pela observância desses parâmetros hermenêuticos, sob pena de manifesta inconstitucionalidade.


Assim, mais uma vez, a tentativa antijurídica das seguradoras de se esquivar do pagamento das indenizações aos milhares de mutuários esbarrou na manifestação expressa do Parlamento, no sentido de fixar os exatos limites de aplicabilidade da norma derivada da MP em tela e vedar sua aplicação retroativa, de modo a tutelar os interesses dos segurados e de toda a sociedade. É voz personificada do Legislador brasileiro, que reafirma os direitos fundamentais dos cidadãos e que não pode ser ignorada.


 


Referências bibliográficas:

CUNHA JUNIOR, Dirley da. Curso de direito constitucional. 1 ed. Salvador: JusPodivum, 2010.

FIGUEIREDO. Alcio Manoel de Sousa. Prática Processual no Sistema Financeiro da Habitação, 1. ed. Curitiba: Juruá Editora Ltda., 2009.

OLIVEIRA, Celso Marcelo de. SFH – Sistema Financeiro de Habitação: Questões Controvertidas – Doutrina, Jurisprudência e Modelo Processual, 1. ed. Campinas: LZN, 2002.

FIGUEIREDO, Alcio. M. S. (Org.) ; OLIVEIRA, Álvaro J. Carvalho de (Org.) ; FRANÇA Fº, Walter (Org.) ; CARVALHO, Uesler (Org.) ; LEITE, Tância de Carvalho (Org.) ; NOVAIS, Sérgio H. Andrade (Org.) ; ALMEIDA, Nilzete da Costa (Org.) ; THOMÉ, Márcia Correia (Org.) ; ROCHA, Maria Clara da Silva (Org.) ; GONCALVES, Lindoval C. (Org.) . Sistema Financeiro da Habitação: Reflexos Financeiros e Econômicos. 1. ed. Curitiba: Juruá Editora Ltda, 2004. v. 1.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2008.

 

Notas:

[1] Esse assunto foi tratado em artigo anterior, disponível no domínio https://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=6452 .

[2] Idem.

[3] Em REsp decidido sob a égide da Lei de Recursos Repetitivos, o STJ consolidou esse entendimento, reafirmando que a relação entre seguradora e mutuários do SFH é exclusivamente privada – vide REsp nº. 1091363-SC e nº. 1091393, Segunda Seção Civil, Superior Tribunal de Justiça, à unanimidade, em 14/03/09.

[4] Sobre aspectos de inconstitucionalidade da MP 478/09, vide artigos anteriores disponíveis nos domínios  http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.26100 e em http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.26409  .

[5] Foram proferidas inúmeras declarações de inconstitucionalidade da MP 478/09, em sede de controle difuso, por Juízes e Tribunais dos mais diversos Estados, afastando taxativamente sua aplicabilidade.  

[6] Conferir as decisões proferidas no AgAI nº. 0022902-5.2010.8.17.000 (Des. Fernando Martins, 6ª CC TJPE, DOE 29/03/11), no AI nº. 70041856360 (Des. Luis Augusto Coelho Braga, 6ª CC TJRS, DOE 28/03/11), no AI nº. 2011.000854-3 (Juiz Conv. Artur Cortez Bonifácio, TJRN, DOE 11/03/11) e no AI nº. 733.846-1 (Decisão Monocrática, Juíza Conv. Denise Krüger Pereira, TJPR, DOE 16/12/10).

[7] Declaração constante nas notas taquigráficas da 65ª Sessão Deliberativa Ordinária do Senado em 04/05/11 às 14h.

[8] Matéria disponível em http://www.pbagora.com.br/conteudo.php?id=20110505140021&cat=paraiba&keys=mp

[9] Esse assunto é merecedor de ensaio à parte, tendo em vista a complexidade técnica da matéria e as repercussões no seio dos processos já ajuizados, mas reservo-me a tecer breves comentários sobre minhas primeiras impressões.

[10] Vide REsp nº. 1091363-SC e nº. 1091393, Segunda Seção Civil, Superior Tribunal de Justiça, à unanimidade, em 14/03/09.


Informações Sobre o Autor

Rafael Nogueira de Lucena

Advogado e Pós-Graduando em Direito Público. Atuação profissional com ênfase em Direito Civil, Tributário, Administrativo e Econômico


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