Resumo: Havendo liberdade de pensamento e de soluções, pessoas diferentes definem as situações problemáticas de formas diferentes e sugerem soluções diferentes. Dessa diversidade de opiniões, surgem as mais variadas soluções, mas todas com o mesmo elo de ligação: o nível de intervenção social (ou penal). Nesse aspecto, entre os movimentos e teorias aprimoradas no final do século XX estão o Abolicionismo Penal e a Terceira Velocidade do Direito Penal ou Direito Penal do Inimigo. Dessas ultimas é que trataremos neste trabalho, incluindo a análise das posições básicas e algumas conclusões possíveis a cerca de uma e outra corrente.
Sumário: 1. Introdução. 2. Abolicionismo penal: 2.1. Aspecto histórico. 2.2. Posições básicas. 3. Terceira velocidade do direito penal. 3.1. Antecedentes históricos do “inimigo”. 3.2. Aspectos históricos do direito penal de terceira velocidade. 3.3. Noções básicas. 3.4. Eleição do inimigo e exercício real do poder punitivo. 3.5. O direito penal do inimigo de Günther Jakobs. 3.6. Fundamentos: a teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhmann. 3.7. Fundamentos: o pensamento de Carl Schmitt. 4. Influências da terceira velocidade do direito penal. 5. Conclusão. Bibliografia.
1. Introdução
Ao abordar ‘correntes’ opostas, Abolicionismo e Terceira Velocidade do Direito Penal, é necessário enfrentar o fato de que essa antítese possui um vínculo inseparável, qual seja a medida da intervenção penal.
Nesse aspecto torna-se bastante didática a parábola indicada por Louk Hulsman[1] intitulada “cinco estudantes”. Descreve que cinco estudantes moram juntos e que num determinado momento um deles danifica, de maneira violenta, uma televisão e alguns pratos. Cada um dos outros estudantes adotam uma atitude diferente: o primeiro, furioso, fala em expulsar da casa o morador; o segundo apóia a compra de outros pratos e televisor as expensas do autor dos danos; o terceiro sugere um tratamento psiquiátrico; o ultimo posiciona-se a favor de um exame de consciência envolvendo toda aquela pequena comunidade. Dessa forma Hulsman indica quase toda gama de reações possíveis diante de um acontecimento, respectivamente: modelo punitivo, modelo compensatório (ou reparador), modelo terapêutico; e modelo conciliador.
Do proveitoso exemplo acima se extrai que havendo liberdade de pensamento e de soluções, pessoas diferentes definem as situações problemáticas[2] de formas diferentes e sugerem soluções diferentes.
Dessa diversidade de opiniões, surgem as mais variadas soluções, mas todas com o mesmo elo de ligação: o nível de intervenção social (ou penal). Nesse aspecto, entre os movimentos e teorias aprimoradas no final do século XX estão o Abolicionismo Penal e a Terceira Velocidade do Direito Penal ou Direito Penal do Inimigo. Dessas ultimas é que trataremos neste trabalho, incluindo a análise das posições básicas e algumas conclusões possíveis a cerca de uma e outra corrente.
2. ABOLICIONISMO PENAL
2.1. ASPECTO HISTÓRICO
A partir dos anos 1950 surgem movimentos pensamentos criminológicos denominados usualmente de “criminologia crítica” cujas bases atingiram os mais variados centros acadêmicos das áreas correlatas (sociologia, direito, criminologia[3], etc).
Porém em decorrência do desenvolvimento das citadas teorias, da censura por meio de manifestação intelectual contrária, censura por meio de repressão política[4] e física, além do envolvimento de seus pensadores com movimentos políticos de ‘esquerda’, socialistas libertários e revolucionários contrários ao status quo então vigente. Aliado a tais problemas a criminologia crítica indicou diferentes respostas às perguntas “o que fazer?” e “como fazer?”.
Diante dessa crise da criminologia crítica surgiram, nos dizeres de Gabriel Ignácio Anitua[5], “três distintas correntes dentro do movimento crítico posterior a essa crise, ( … ) o abolicionismo, o realismo de esquerdas e o garantismo penal, …”.
Conforme lembrado por Anitua[6] a partir dos anos 1980 surgiu o Abolicionismo com força singular. Em suas palavras:
“Embora seu nome seja tomado da luta histórica contra a escravidão, e contra a pena de morte, nesses anos, e no interior da criminologia crítica, essa denominação seria atribuída à deslegitimação mais radical do sistema carcerário e da própria lógica punitiva. Esta reflexão antipunitiva estava estreitamente relacionada à reivindicações teóricas e práticas de alguns criminólogos de antiga tradição nos países escandinavos e na Holanda.”
Uma das fontes de contribuição para o desenvolvimento, fortalecimento e disseminação foram as reuniões da ICOPA – conferência abolicionista internacional, que desde 1983 tem realizado eventos em todo o mundo, porém uma de suas primeiras[7] grandes defesas ocorreu no IX Congresso Mundial de Criminologia, realizado em Viena em 1983.
Impossível não citar alguns autores se destacaram no desenvolvimento dessa corrente, entre eles Hermann Bianchi[8], Louk Hulsman[9], Thomas Mathiesen[10], Nils Christie[11], entre outros.
Na América Latina destaca-se, entre outros, Eugenio Raúl Zaffaroni[12], que é definido por alguns autores como defensor do realismo criminológico, aproximando-se, em alguns momentos da carreira, das idéias abolicionistas não radicais. A margem da indefinição classificatório da posição abolicionista de Zaffaroni, o próprio Louk Hulsman[13] assim faz referência a ele:
“As mais importantes contribuições para a integração da abordagem abolicionista no contexto da América Latina vêm de Zaffaroni em seu livro ‘En busca de las Penas Perdidas’.”
Segundo Zaffaroni[14], ao se referir as diferenças de pensamento dos autores abolicionistas, “neste sentido, deve ser assinalada a preferência marxista de Thomas Mathiense, a fenomenológica de Louk Hulsman, a estruturalista de Michel Foucault e, poderia ainda ser acrescentada, a fenomenológico-historicista de Nils Christie.”
Por fim, importante ressaltar que da diversidade de opiniões e contribuições de dezenas de outros autores, surgiram após os anos de 1980 pensamentos que afirmavam a necessidade de consolidar um senso comum, aproximando-se assim do movimento denominado realismo criminológico.
2.2. Posições Básicas
As posições básicas do abolicionismo penal podem ser verificadas do extrato do pensamento de seus principais autores, obviamente construindo-se com isso tão somente um esboço dos princípios e objetivos dessa corrente, pois a diversidade de posições doutrinárias e a interrelação entre elas torna praticamente impossível delimitar quesitos básicos e comuns a todas. Assim os autores abolicionistas, não sendo provenientes de idênticas vertentes de pensamento, não compartilham de uma completa coincidência de métodos, princípios, e objetivos.
Segundo Hermann Bianchia, além da abolição das prisões, deveria ser abolida a própria idéia de castigo, levando a sociedade a um sistema alternativo de controle de delito que não se baseie no modelo punitivo, mas em princípios éticos e legais. Segundo Anitua “os princípios dessa justiça são os da reconciliação e da reimposição da paz, que seriam aceitos em seguida em todo o movimento da justiça restaurativa”.
Louk Hulsman estabelece os valores morais como limite para as violências, propondo destruir a definição de delito em parceria com a resolução de problemas sociais. A própria nomenclatura de “crime” é substituída por “situações problemáticas”.
Referindo-se a alguns delitos, Hulsman[15] registra que:
“a única coisa que tais situações têm em comum é uma ligação completamente artificial, ou seja, a competência formal do sistema de justiça criminal para examiná-las. O fato deles serem definidos como ‘crimes’ resulta de um decisão humana modificável; o coneito de crime não é operacional. (…). É a lei que diz onde está o crime; é a lei que cria o ‘criminoso’.”
Segundo Anitua[16]:
“para o professor holandês, o delito não tem realidade ontológica; ele é apenas o produto da política criminal que também constrói, desse modo, a realidade social. ‘Os problemas são reais, mas o delito é um mito’, direita também Heinz Steinert. Um ‘mito’ que tem conseqüências reais, quais sejam as de criar novos problemas e ainda mais graves.”
Referindo-se ao movimento conciliador, o autor ressalta[17]:
“Hulsman parece inclinar-se pela última solução, fazendo uma aposta corajosa na indiferenciação das fortes fronteiras traçadas entre os seres humanos, entre o ‘eu’ e o ‘outro’, ou pior, entre ‘amigos’ e ‘inimigos’.”
Zaffaroni defende que o atual sistema penal tem uma legitimidade utópica pois a legitimidade não pode ser suprida pela legalidade. Segundo o autor[18]:
“O abolicionismo nega a legitimidade do sistema penal tal como atua na realidade social contemporânea e, como princípio geral, nega a legitimação de qualquer outro sistema penal que se possa imaginar no futuro como alternativa a modelos formais e abstratos de solução de conflitos, postulando a abolição radical dos sistemas penais e a solução dos conflitos por instâncias ou mecanismos informais. (…)
Na verdade, existem diferentes abolicionismos e, sem dúvida, é até possível falar-se de um abolicionismo anárquico, (…). Entretanto, o abolicionismo aqui referido não é este e, sim, o abolicionismo radical do sistema penal, ou seja, sua radical substituição por outras instâncias de solução dos conflitos (ao contrário do abolicionismo da pena de morte, da prisão, etc.), que surge nas duas últimas décadas como resultado da crítica sociológica ao sistema penal. (…)
O abolicionismo representa a mais original e radical proposta político-criminal dos últimos anos, a ponto de ter seu mérito reconhecido até mesmo por sues mais severos críticos.”
De maneira bastante generalista, para fins didáticos comparativos, pode-se indicar esquematicamente as seguintes características ou aspectos relacionados ao abolicionismo:
1) aumento de políticas preventivas das situações, atuação antes de se tornar situações problemáticas (delito/crime);
2) solução dos conflitos sem a necessidade de apelar para o modelo punitivo atual, fazendo uso, por exemplo, do modelo conciliador.
3) deslocamento do poder punitivo do Estado para um tecido social, revigorado, baseado em princípios morais e éticos comunitários.
4) abolir não o direito penal, mas o sistema punitivo atual, mudando percepções, comportamentos, extinguindo os paradigmas do sistema penal, sobretudo o encarceramento.
3. TERCEIRA VELOCIDADE DO DIREITO PENAL
Antes de iniciarmos é fundamental esclarecer que o termo terceira velocidade do direito penal é utilizado na doutrina como sinônimo, ou ao menos como grande semelhança, de direito penal do inimigo. Posteriormente iremos detalhar essa distinção porém, no momento, usaremos como sinônimos, utilizando a doutrina atual que, invariavelmente, utiliza-os dessa forma.
3.1. Antecedentes históricos do “inimigo”
Antes de aprofundar a análise do tema, verificaremos seus antecedentes e estrutura básica a partir de escritos de Eugenio Raúl Zaffaroni.
O direito romano faz a distinção entre inimicus (inimigo pessoal) e o hostis (inimigo político, contra quem é possível a guerra, negando-se a condição de ser – humano). Entre esses últimos, destaca Zaffaroni[19], são compreendidos em duas categorias: o hostis alienígena, que “abarcará todos os que incomodam o poder, os insubordinados, indisciplinados ou simples estrangeiros; e o hostis judicatus, aquele declarado hostis “em situações excepcionais, nas quais um cidadão romano ameaçava a segurança da República por meio de conspirações ou traição, o Senado podia declará-lo hostis, inimigo público.”[20]
Durante a Idade Média, com um discurso teocrático, o inimigo tornou-se os colonizados rebeldes e as mulheres desordeiras[21].
Durante o período da Revolução Mercantil, na fase de expansão marítima e colonialista européia, elegeu-se, mais uma vez baseados no hostis alienígenas, os nativos como inimigos, exercendo o poder sob a forma de genocídio, eliminando grande parte da população americana indígena.
Até o século XIX a Inquisição estabeleceu como inimigo os opositores das monarquias, por meio de hereges ou dissidentes, retomando o conceito romana de hostis judicatus.
Com a revolução industrial ocorreu acentuada concentração urbana, “que aumentou consideravelmente o número de indesejáveis e também as dificuldades do seu controle social”.
Já no século XIX e XX, sobretudo nos países onde instaurou-se oligarquias coloniais, submissas aos países hegemônicos (Estados Unidos e Inglaterra) cuja repressão elegia como inimigo aqueles que interessavam aqueles outros países.
Com o surgimento e, no caso da América Latina, a proliferação de ditaduras (em resposta a governos “populistas”) instalou-se “regimes militares que praticaram o terrorismo de Estado com inusitada crueldade, em especial no Cone Sul”[22]. Nesse período o inimigo era o dissidente político, surgindo assim ‘estados de emergência’ (estado de sítio, de guerra, etc), “que procedia à eliminação direta por morte e ao desaparecimento forçado, sem nenhum processo legal”.
Desde o final do século XX surgem legislações penais voltadas a ‘controle’ da criminalidade interna, autores de crimes patrimoniais, vadios, os indesejáveis, além de tráfico, crime organizado, entre outros. Entre as correntes de política criminal verificou-se a three strikes out[23], ‘tolerância zero’, etc.
A esse respeito Zaffaroni[24] registra que:
“estimulou-se uma legislação inquisitória, contendo elementos provenientes da Idade Média (espiões, delatores, procedimentos secretos, posições de garantia absurdas, etc.), aplicável a um nebuloso conjunto de infrações, designadas genericamente como crime organizado, que motivou um número incrível de instrumentos internacionais.”
3.2. Aspectos históricos do Direito Penal de Terceira Velocidade
O tema em debate, nos moldes recentemente reintroduzidos, tem como seu mais conhecido defensor o catedrático emérito de Direito Penal e Filosofia do Direito da Universidade de Bonn (Alemanha), Günther Jakobs, que consolidou sua tese em três fases: 1985, 1999/2000 e 2003-2005.
Discípulo de Welzel, Jakobs criou o funcionalismo sistêmico[25], defendendo como função primordial do Direito Penal a proteção a norma, e secundariamente a tutela dos bens jurídicos mais fundamentais[26].
A evolução do pensamento de Jakobs de 1985 a 2003 partiu da descrição do denominado “Direito Penal do Inimigo”, numa postura pejorativa[27] a essa vertente, criticando o “endurecimento legislativo das últimas décadas”. Analisa o tema como algo mais próximo de um “Direito Penal de colocação em risco”[28].
A partir de 1999 “diante do ameaçador avanço dessa tendência, passou a defender a mencionada necessidade de sua legitimação parcial como modo de deter o crescimento do próprio direito penal do inimigo” [29], orientando-se mais por delitos graves contra bens jurídicos individuais. Nesse período Jakobs preocupa-se em legitimar certos institutos do direito penal do inimigo com o objetivo de evitar a completa contaminação do modelo de inspiração iluminista (direito penal do cidadão), diante do aumento da corrente extremada.
Já em 2003 passa a empunhar com mais vigor esta linha de pensamento[30], com uma tese legitimadora dessa linha de pensamento.
De maneira resumida temos:
– 1ª Fase (1985): descrição do denominado “Direito Penal do Inimigo”, numa postura pejorativa a essa vertente, criticando o “endurecimento legislativo das últimas décadas.
– 2ª Fase (1999): “diante do ameaçador avanço dessa tendência, passou a defender a mencionada necessidade de sua legitimação parcial como modo de deter o crescimento do próprio direito penal do inimigo” [31]
– 3ª Fase (2003): passa a empunhar com mais vigor esta linha de pensamento (fazendo referência direta a 11 de setembro de 2001).
No mesmo contexto de Günther Jakobs, acima resumido, Jesús-Maria Silva Sánchez criou uma classificação baseada em ‘velocidades’ do Direito Penal, estabelecendo três velocidades.
A primeira velocidade do Direito Penal, com base no modelo clássico, conforme registrado por Alexandre Rocha A. de Moraes[32], “traduz a idéia de um Direito Penal da prisão por excelência, com manutenção rígida dos princípios político-criminais iluministas”. Tem portanto, a utilização preferencial da pena privativa de liberdade mas com ‘respeito’ as garantias individuais irrenunciáveis.
A segunda velocidade é estabelecida mediante a flexibilização de algumas garantias penais e processuais penais aliadas a adoção de penas não restritivas da liberdade, as chamadas penas restritivas de direitos e pecuniárias. No Brasil, por exemplo, tal elasticidade é encontrada na Lei 9.099/95, que estabeleceu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, normatizando a transação penal, conversão da pena privativa de liberdade em restritiva de direitos, além de outros institutos.
A terceira velocidade do Direito Penal, para Sánchez, é a relativização de garantias político-criminais sem, contudo, haver proporcional diminuição do uso da prisão como resposta da intervenção penal, como ocorre na segunda velocidade. Além dessa relativização há regras distintas de imputação e critérios processuais distintos constituindo, cujo conjunto unido a teoria de Jakobs foi rotulado genericamente de Direito Penal do Inimigo.
Alguns autores tem preferido o uso do termo Terceira Velocidade do Direito Penal ao invés do Direito Penal do Inimigo. Mas como referenciado anteriormente, tendo características semelhantes, ao menos quanto a declaração de seus efeitos práticos, o denominado direito penal do inimigo têm sido mais polemizado e também mais debatido, principalmente quanto a seus fundamentos.
3.3. NOÇÕES BÁSICAS
De maneira resumida o Direito Penal do Inimigo fundamenta-se na teoria contratualista de Rousseau (teoria do contrato social), partindo da premissa de que quem infringe o contrato social deixa de participar dos benefícios deste, não mais podendo viver com os demais dentro de uma relação jurídica[33]. Faz referência a Fichte[34] ainda quanto ao contrato social e também se alicerça em Hobbes e Kant[35].
Assim, elege como inimigo todos os que se afastam do modelo contratual, “quem por princípio se conduz de modo desviado”[36], e que não ofereça garantia de um comportamento pessoal. Enquadra-se nesse perfil o criminoso econômico, terrorista, delinqüente organizado, autores de delitos sexuais, etc[37].
Recusando-se a entrar em um estado cidadão (estado de cidadania), conforme Kant, o indivíduo não pode participar dos benefícios do status de cidadão, inclusive sequer do conceito de pessoa. Consequentemente deixa de ser sujeito processual.
Conforme Jakobs:
“o Direito Penal do cidadão é o Direito Penal de todos, o Direito Penal do Inimigo é daqueles que o constituem contra o inimigo: frente ao inimigo, é só coação física, até chegar à guerra. O Direito Penal do cidadão mantém a vigência da norma, o Direito Penal do inimigo combate perigos.”[38]
Luiz Flávio Gomes[39] aponta as seguintes características do Direito Penal do Inimigo:
(a) o inimigo não pode ser punido com pena, sim, com medida de segurança;
(b) não deve ser punido de acordo com sua culpabilidade, senão consoante sua periculosidade;
(c) as medidas contra o inimigo não olham prioritariamente o passado (o que ele fez), sim, o futuro (o que ele representa de perigo futuro);
(d) não é um Direito Penal retrospectivo, sim, prospectivo;
(e) o inimigo não é um sujeito de direito, sim, objeto de coação;
(f) o cidadão, mesmo depois de delinqüir, continua com o status de pessoa; já o inimigo perde esse status (importante só sua periculosidade);
(g) o Direito Penal do cidadão mantém a vigência da norma; o Direito Penal do inimigo combate preponderantemente perigos;
(h) o Direito Penal do inimigo deve adiantar o âmbito de proteção da norma (antecipação da tutela penal), para alcançar os atos preparatórios;
(i) mesmo que a pena seja intensa (e desproporcional), ainda assim, justifica-se a antecipação da proteção penal;
(j) quanto ao cidadão (autor de um homicídio ocasional), espera-se que ele exteriorize um fato para que incida a reação (que vem confirmar a vigência da norma); em relação ao inimigo (terrorista, por exemplo), deve ser interceptado prontamente, no estágio prévio, em razão de sua periculosidade.
3.3. ELEIÇÃO DO INIMIGO E EXERCÍCIO REAL DO PODER PUNITIVO
A eleição de quem é ou deva ser considerado ‘inimigo’ é questão fundamental no tema ‘direito penal de terceira velocidade’.
Conforme Zaffaroni:
“É preciso entender que na América Latina quase todos os prisioneiros são tratados como inimigos no exercício real do poder punitivo.(…)
Em outras palavras, a história do exercício real do poder punitivo demonstra que aqueles que exercem o poder foram os que sempre individualizaram o inimigo, fazendo isso da forma que melhor conviesse ou fosse mais funcional – ou acreditaram que era conforme seus interesses em cada caso, e aplicaram esta etiqueta a quem os enfrentava ou incomodava, real, imaginária ou potencialmente. O uso que fizeram deste tratamento diferenciado dependeu sempre das circunstâncias políticas e econômicas concretas, sendo em algumas vezes moderado e em outras absolutamente brutal, porém os eixos centrais que derivam da primitiva concepção romana de hostis são perfeitamente reconhecíveis ao longo de toda história real do exercício do poder punitivo no mundo. Até hoje subsistem as versões do hostis alienígena e do hostis judicatus.” [40]
Ainda conforme observação de Zaffaroni, das políticas repressivas das últimas décadas surgem correntes doutrinárias como o direito penal simbólico, direito penal de várias velocidades, e destaca-se que do reconhecimento expresso do inimigo no direito penal leva ao direito penal do autor.
Quanto a esse último aspecto, direito penal do autor, mesmo considerando aberrante tal teoria frente a igualdade perante a lei, verifica-se um tratamento penal diferenciado limitado aos a pessoa ou grupo claramente identificáveis, afetando apenas seus destinatários.
Quando os destinatários da diferenciação penal, ou seja, os eleitos inimigos, são seres humanos não claramente identificáveis, Zaffaroni interroga acerca da possibilidade de que o Estado de direito possa limitar as garantias e as liberdades de todos os cidadãos com o objetivo de identificar e conter os inimigos.
Conclui que:
“admitir um tratamento penal diferenciado para inimigos não identificáveis reconhecíveis significa exercer um controle social mais autoritário sobre toda a população, como único modo de identificá-los. Não só é ilusória a afirmação de que o direito penal do inimigo afetará unicamente as garantias destes, como também é ilusória a sua suposta eficácia contra os inimigos”.
Partindo da imagem de que “o Direito Penal do Inimigo não estabiliza normas (prevenção geral positiva), mas demoniza (exclui) a determinados grupos de infratores”[41] consequentemente não é um Direito Penal do fato, mas do autor. MELIÁ afirma ainda que mediante a demonização de grupos de autores, ou seja, através da exclusão do círculo de mortais ‘normais’ surge a tipificação, e completa dizendo “a demonização tem lugar mediante a exclusão”.
No decurso da história, extremamente simplificada no início destes apontamentos, verificou-se a constante “inclusão/exclusão”, a inafastável luta entre os normais e anormais, os membros dos grupos dominantes e não dominantes, os colonizadores e os colonizados, etc. Para melhor entender a ‘eleição’ do inimigo, no século XX e XXI, recorre-se a Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann[42].
3.3. O DIREITO PENAL DO INIMIGO DE GÜNTHER JAKOBS
Jakobs denominou direito penal do inimigo “o tratamento diferenciado de alguns delinqüentes (em especial dos terroristas), mediante medidas de contenção, como tática destinada a deter o avanço desta tendência que ameaça invadir todo o campo penal”. [43]
Na análise de Zaffaroni, coforme o professor alemão:
“o direito penal deveria habilitar o poder punitivo de uma maneira para os cidadãos e de outra para inimigos, reservando o caráter de pessoa para os primeiros e considerando não-pessoas os segundos, confinando, porém, esta habilitação num compartimento estanque do direito penal, de modo que todo o resto continue funcionando de acordo com os princípios do direito penal liberal. Trata-se-ia de uma espécie de quarentena penal do inimigo.”
Segundo MELIÁ[44], as principais características da política criminal aplicada nos últimos tempos, tendo como mesma base a filosofia que estrutura o direito penal do inimigo, são:
a) caos normativo (hipertrofia legislativa irracional)
b) instrumentalização do direito penal
c) inoperatividade, seletividade e simbolismo
d) excessiva antecipação da tutela penal (prevencionismo)
e) descodificação
f) desformalização (flexibilização das garantias penais, processuais e execucionais
g) explosão carcerária
De maneira esquemática temos a seguinte tabela comparativa entre o denominado direito penal do inimigo e o direito penal do cidadão:
As principais bandeiras do Direito Penal do Inimigo são[45]:
(a) flexibilização do princípio da legalidade (descrição vaga dos crimes e das penas);
(b) inobservância de princípios básicos como o da ofensividade, da exteriorização do fato, da imputação objetiva etc.;
(c) aumento desproporcional de penas;
(d) criação artificial de novos delitos (delitos sem bens jurídicos definidos);
(e) endurecimento sem causa da execução penal;
(f) exagerada antecipação da tutela penal;
(g) corte de direitos e garantias processuais fundamentais;
(h) concessão de prêmios ao inimigo que se mostra fiel ao Direito (delação premiada, colaboração premiada etc.);
(i) flexibilização da prisão em flagrante (ação controlada);
(j) infiltração de agentes policiais;
(l) uso e abuso de medidas preventivas ou cautelares (interceptação telefônica sem justa causa, quebra de sigilos não fundamentados ou contra a lei);
(m) medidas penais dirigidas contra quem exerce atividade lícita (bancos, advogados, joalheiros, leiloeiros etc.).
3.4. FUNDAMENTOS: A TEORIA DOS SISTEMAS SOCIAIS DE NIKLAS LUHMANN
Conforme anteriormente anotado, o funcionalismo sistêmico defendido pelo ‘direito penal do inimigo’, ou terceira velocidade do direito penal, tem como base sua vertente mais radical em relação a vertente modera de Claus Roxin (também denominada de teológico-racional). A fundamentação das estrutura da terceira velocidade do direito penal está amparada, entre outros, na Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann, na qual, a grosso modo, a sociedade é colocada no centro do sistema e o homem considerado um subsistema.
Luhmann propõe substituir o funcionalismo estrutural (ou funcionalismo da manutenção das estruturas, que tem origem nos estímulos de estudos etnológicos e social-antropológicos), de raízes ontológicas e que, a seu ver, continha uma série de limitações, por um consistente em equivalências funcionais. Conforme Javier Torres Nafarrate[46], “o equifuncionalismo é o conceito para designar um método, que, para resolver problemas, desenvolve uma especial sensibilidade frente a diferentes soluções equivalentes”.
Unida a essa alteração do funcionalismo, de estrutural para funcional (mais tarde denominado de sistêmico) aprimorou e adaptou a teoria da ação, de Talcott Parsons, cujas obras influenciou de uma maneira ou outra o sistema de Luhmann.
Nesse aspecto é interessante a reprodução do texto de Luhmann[47]:
“Assim, a teoria da ação se apresenta mais orientada para o indivíduo na qualidade de sujeito e, dessa maneira, a sociologia se abre à possibilidade de integrar aspectos psíquicos e orgânicos daquele que age; em contrapartida, emprega-se a teoria do sistema para designar realidades de grande escala (macrossociais), de modo a conservar seu caráter de elevada abstração.” (grifo nosso).
Dessa forma expressamente Luhmann estabelece um distanciamento das relações inter-pessoais, ou microrelações, tomando como princípio a grande escala da teoria do sistema, fator preponderante para não só a própria fundamentação teórica de sua teoria mas, para o tema aqui abordado, incorporação a base filosófica do ‘direito penal do inimigo’.
Outro aspecto desenvolvido por Niklas Luhmann foi a adoção de um modelo de sistema aberto, em substituição ao usual modelo fechado. Importando conceitos da física, economia, biologia, mecatrônica, entre outros, e aplicando-os a sociologia, importantes conceitos foram adaptados como entropia (que faz com que os sistemas estabeleçam um processo de troca entre sistema e meio) e intercâmbio. Nesse aspecto o sistema deve ter capacidade de se distinguir do meio, sendo capaz de combinar todas as possibilidades de operações, existindo sistemas que podem observar e distinguir, ou seja, com capacidade de diferenciação dos sistemas e meio.
Tomando as premissas já citadas, desenvolvendo aspectos da biologia, estabelece com conceito fundamental a autopoiesis[48], ou seja, a autoreprodução da vida, por meio de elementos que são reproduzidos pela vida. Aplicando a sociologia, é dizer que a reprodução os elementos e estruturas do sistema é realizada com ajuda de seus próprios elementos. Essa característica é responsável por um aumento constante de possibilidades até que a complexidade atinja limites intoleráveis pelo sistema, levando-o a mudar sua forma de diferenciação.
Sendo o sistema estabelecido por Luhmann um sistema complexo, contém mais possibilidades do que pode realizar num dado momento, portanto é capaz de fixar seus próprios limites ao diferenciar-se do ambiente (capacidade de distinguir sistema e meio), limitando as possibilidades no seu interior. Porém, como forma de evolução objetivando o enfrentamento com o ambiente, que por meio “perturbação” ao sistema (denominado também de irritação) serve de estímulo a mudança da estrutura, dependendo da tolerância do sistema. Assim, graças a sua capacidade de produzir a si mesmo, autopoiese, evolui e responde ao meio na medida que entende necessário[49].
Nas palavras de Niklas Luhmann[50]:
“a Teoria dos Sistemas foi se constituindo em um sistema de auto-observação, recursivo, circular, autopoiético, dotado de uma dinâmica intelectual própria e fascinante, (…)”
Em resumo temos que o sistema é uma organização autopoiética e essa contém estruturas muito diversas, dependendo do tipo de sistema, podendo reagir a irritação e estímulos provenientes do meio ou de autoirritação. Desses aspectos extrai-se que:
“É possível dizer, então, que a seleção de acontecimentos ocorridos no meio – e capazes de produzir efeitos no sistema – é condição de possibilidade para que o sistema, com esse espectro tão seletivamente apurado, possa empreender algo.” [51]
Baseado na teoria da redução de complexidade [52] na qual o sistema desenvolve um modelo de reação padrão, frente a dados distintos provenientes do meio, porém, a um mesmo estímulo oriundo do meio, o sistema pode reagir diferentemente, dependendo do estado em que se encontre. Assim, segundo Luhmamm[53] “nas crises, pode-se fazer o inabitual: mudar estruturas em situações em que normalmente não se transformariam”.
Esse entendimento é primordial para a compreensão do mecanismo do direito penal de terceira velocidade: conforme devido a um estímulo do meio, ou seja, uma irritação causada por quem não é considerado integrante da ‘pacífica e ordeira’ convivência social nos moldes estabelecidos por quem detém o poder, gera uma resposta inabitual do meio. Nesse ambiente situa-se a explicação Luhmanniana quanto ao direito penal de emergência e as mais variadas reações, normalmente drásticas e inusitadas.
Diferentemente da teoria da ação, na qual a comunicação é entendida como o êxito ou o fracasso da transmissão de uma informação, na teoria dos sitemas o que é enfatizado é a verdadeira emergência da comunicação. Considerando a comunicação como única operação genuinamente social, a teoria dos sistemas considera que “a função da comunicação reside em tornar provável o altamente improvável: a autopoiesis do sistema de comunicação, denominado sociedade”[54].
Sendo a comunicação o principal foco do sistema social, essa é forma de interação sistema e meio, e de estruturação interna com relação aos subsistemas, Luhmann toma como foco de estudo justamente essa diferença entre sistema e ambiente. Segundo esse foco, a sociedade não é constituída de pessoas e de relações entre pessoas, mas a sociedade seria constituída exclusivamente de comunicação. As pessoas estão no ambiente do sistema social, sendo, portanto um subsistema, denominado sistema psíquico.
É estabelecido alguns sistemas entre eles os: não-vivos, incapazes de produzirem a si mesmos (não autopoieticos, ou allopoietico – depende de interferência externa); vivos, compostos de operações vitais, responsável pela manutenção do sistema – células, animais, corpo humano, etc; psíquicos, formado pela consciência e composto de pensamento (autopoiético); e por fim os sociais, composto de comunicação.
O poder é exercido numa ameaça de sanção, por meio da comunicação. Assim o sistema político vai selecionar somente as informações que sirvam para manter o governo no poder, ou seja, que sirvam para que o ambiente continue obedecendo às decisões políticas.
Fazendo um paralelismo, o simbolismo de punitivismo pode ser considerado um método de comunicação do sistema político com o ambiente que quer dominar.
Portanto, fundamentando-se em Luhmann, o direito penal de terceira velocidade estabelece uma análise macrossocial, isolando e até mesmo desconsiderando o ser humano individualmente, dando foco apenas a comunicação, que no direito penal é traduzido com os princípios do simbolismo penal.
Assim, o sistema estabelece uma comunicação com o meio, e quem é considerado externo ao sistema, posto a margem (marginalizado nas palavras de Erving Goffman[55]), ou seja, estiver fora da linha periférica, é considerado inimigo em potencial. Por meio da comunicação do direito penal (seu forte simbolismo) é estabelecida a relação do meio com o sistema e esse responde drasticamente as irritações excepcionais (que ultrapassam a normalidade aceita pelo sistema), ou seja, a essência do direito penal do inimigo.
3.5. FUNDAMENTOS: O PENSAMENTO DE CARL SCHMITT
Além da teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhmann, o direito penal de terceira velocidade adotou também alguns pensamentos e fundamentações de Carl Schmitt[56]. Dele se extrai alguns dos principais aspectos da terceira velocidade do direito penal: critérios de eleição do ‘inimigo’ e a legitimação dessa eleição e do poder decisório.
Schmitt é apontado como anti-normativista, contrário ao positivismo normativo de Hans Kelsen. Essa característica é que sustenta seu pensamento e explica sua defesa de um estado de exceção, defendendo que os poderes presidenciais de urgência deveriam estar livres de entraves constitucionais[57].
Citando Richard Wolin, Cândido Moreira Rodrigues[58] registra que:
“Assim, a utilização de conceitos teológicos por Schmitt no campo da política não visa outra coisa senão o fortalecimento do político como éter vital do estado de exceção e o qual ocorreria somente através da ação de um soberano carismático que equivalesse ao monarca de direito divino da época absolutista”.
Ainda segundo o mesmo autor, Schmitt em 1927 estabelece as bases conceituais de uma das vertentes de seu pensamento cujos frutos surgiram durante o governo nazista. Tomava como princípio a natureza conflituosa como constitutiva da vida política, o que redundaria na idéia de que “o político supõe um grau de associação/dissociação entre os grupos políticos cuja intensidade resulta na distinção entre amigo-inimigo”[59].
Assim, para Carl Schmitt[60]
“quando um povo existe na esfera do político ele precisa… determinar por si mesmo a diferenciação de amigo e inimigo. Aí se encontra a essência de sua existência política. Se ele não tem mais a capacidade ou a vontade para esta diferenciação, ele cessa de existir politicamente.”
Na análise de Rodrigues,
“A idéia segundo a qual o inimigo político é um inimigo público e contra o qual não é necessário ter ódio ou antipatia privada, também é própria de Schmitt. Estritamente, considera-o ‘um conjunto de homens… segundo a possibilidade real, combatente, que se contrapõe a um conjunto semelhante. Inimigo é apenas o inimigo público’ (SCHMITT, O conceito do político, p. 55).”
Assim, aliado a teoria de Luhmann, a filosofia política de Schmitt serviu de fundamentação para a terceira velocidade do direito penal. Como dito anteriormente, ressalta-se que, em Carl Schmitt o ‘soberano’ detém o poder de eleger quais são os perigos que afetam a nação, indicando os ‘inimigos’, bem como legitimação para atuar da maneira que entender ‘melhor’ para a nação objetivando as defesa.
4. INFLUÊNCIAS DA TERCEIRA VELOCIDADE DO DIREITO PENAL
Antes das conclusões propriamente ditas, ressalta-se que perceptivelmente neste trabalho foi dado maior ênfase aos movimentos ligados a terceira velocidade do direito penal, ou direito penal do inimigo. Essa aparente desigualdade de abordagem justifica-se pelo surgimento de legislações nacionais e internacionais, atos governamentais e discursos comunitários, de características e efeitos típicos desses movimentos de exceção.
No Brasil, por exemplo, tem-se a polêmica “Lei do Abate” (Lei 9.614/98 que alterou o art. 303 da Lei 7.565/86 – Código Brasileiro de Aeronáutica), que ‘autoriza’ medidas de destruição de aeronave civil, suspeita de estar a serviço do narcotráfico, em pleno ar quando classificada como “hostil”.
O Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) estabelecido na Lei de Execuções Penais (LEP – Lei 7.210/84 após alteração legislativa por meio da Lei 10.792/03), cujas críticas vão no mesmo sentido, porém em menor intensidade, que às prisões americanas de Guantánamo na ilha de Cuba (América Central).
Os movimentos de tendência totalitária em países da América do Sul, sem falar nas ações praticadas pelos governos militares sob o manto da ‘legalidade’ formal durante décadas cujas sequelas ainda são perceptíveis. Tais movimentos ainda têm eco no Brasil do início do século XXI, por meio de regulamentos disciplinares militares e leis penais militares de duvidosa constitucionalidade e, por vezes, pouco respeito aos direitos humanos, além de ações de ‘Polícia de Governo’ e não polícia de Estado.
A própria instituição do rito sumaríssimo, na qual o suposto autor do delito abre mão de sua defesa assumindo desde o início sua responsabilidade em troca da transação penal tem sido elogiada por muitos, mas duramente criticada por outros tantos em decorrência da flexibilização de garantias processuais e até mesmo constitucionais em prejuízo do acusado.
A respeito da expansão dos movimentos de terceira velocidade, lembra Zaffaroni:
“Para os teóricos da exceção, sempre se invoca uma necessidade que não conhece lei nem limites. A estrita medida da necessidade é a estrita medida de algo que não tem limites, porque esses limites são estabelecidos por quem exerce o poder.”[61]
5. CONCLUSÃO
Em meio as mais variadas posições a cerca do nível e forma de intervenção penal, ou até mesmo do completo afastamento de sua intervenção, verificamos a existência de dois pólos de uma mesma questão: o nível de intervenção e sua relação com os indivíduos objeto da ação do poder intervencionista.
De um lado o abolicionismo penal que, conforme apontado, apregoa a deslegitimação do sistema penal em decorrência de seus métodos violentos, estigmatizantes e de sua aplicação seletiva, por meio da abolição não só das prisões mas do sistema penal.
De outro, a terceira velocidade do direito penal, vertente mais radical de intervenção penal das últimas décadas, defendendo não apenas a flexibilização de direitos e garantias processuais e constitucionais, como a segunda velocidade, mas a completa anulação de alguns deles e até mesmo buscando a justificação/legitimação de atentados contra a própria dignidade da pessoa humana.
Conforme proposta expressamente externada no título deste trabalho, buscou-se apresentar as posições básicas de ambas correntes, permitindo uma visão mais ampla e possibilitando indicar algumas das conclusões possíveis, tendo em vista o universo de possibilidades ser indeterminado em razão da complexidade e a diversidade existente de ‘subcorrentes’ e pensamentos divergentes em relação ao tema.
Assim, diante das restrições que a natureza e finalidade deste trabalho acarretam, conclui-se que:
1. O abolicionismo penal tem forte apelo humanitário, sociológico e filosófico, deslegitimador de todo o sistema penal, apresentando justificativas a abolição e críticas ao sistema penal que raramente enfrentam réplica do mesmo nível por parte dos defensores do sistema.
2. Há tendência, ao menos na área acadêmica, de adesão a seus conceitos e objetivos teóricos, porém, enfrenta barreiras práticas quanto a sua aplicabilidade, sobretudo no sistema capitalista, e a quebra dos paradigmas existentes. Assim, têm sua teoria básica aceita por muitos e com aumento de adesão, porém, pouca aplicabilidade frente a força do sistema penal atual baseado, em última análise, no exercício das mais variadas formas de poder.
3. O direito penal de terceira velocidade, cujos princípios extremados levam até mesmo a denominá-lo de direito penal do inimigo, tem enfrentado críticas por parte de acadêmicos, grupos de defesa dos direitos humanos, religiosos, etc., porém, diferentemente do abolicionismo, tem influenciado em muito a legislação de vários países, que tem aplicado, velada ou expressamente, suas bases filosóficas e jurídicas.
4. Numa sociedade de risco, midiática, globalizada, a cobrança por respostas rápidas tem levado a um aumento vertiginoso na intervenção penal nas últimas décadas reforçando o simbolismo penal por meio de um número maior de leis e de punições mais rígidas. Porém, com o desenvolvimento do direito penal de terceira velocidade e a conveniente adoção de suas bases teóricas pelos detentores de poder, tem aumentado sua aplicação em inúmeros países, inclusive no Brasil, conforme exemplos indicados.
5. Por fim, concluímos que os pilares do abolicionismo são bem estruturados, de grande densidade científica, legitimados pela defesa da dignidade humana, porém de difícil aplicação no sistema social e governamental existente. Em contrapartida, apesar da clara inconstitucionalidade das medidas do direito penal do inimigo, da nítida involução do desenvolvimento das garantias individuais, tem se mostrado movimento de franca expansão.
Informações Sobre o Autor
Eduardo Henrique Alferes
Mestre em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Pós-graduado em Direito Penal pela Escola Superior de Advocacia (ESA/OABSP). Pós-graduado em Direitos Humanos e Direito Internacional Humanitário. Especialista em Justiça e Sistema Criminal pela Universidade de São Paulo (USP).Professor universitário com docência em Direito Penal, Direito Processual e Penal Militar, e Direitos Humanos.