Aborto de anencéfalos: direito a vida e impacto sucessório

Resumo: O presente trabalho demonstra como a decisão do STF, prolatada no último dia 11 de abril na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental sob nº 54, que teve como objetivo ver declarada inconstitucional qualquer interpretação do Código Penal no sentido de penalizar a antecipação terapêutica de parto de fetos anencéfalos, fere a Constituição Federal Brasileira, o Pacto de São José da Costa Rica e o Código Civil Brasileiro, e relata em especial, os reflexos que a permissão do aborto dos fetos anencefálicos produz no âmbito do Direito Sucessório.

Palavras-chave: aborto; anencefálicos; vida; direito sucessório.

Sumário: Introdução – 1. Anencefalia; 2. Direito à vida; 3. A decisão do STF frente ao direito à vida; 4. O impacto da decisão do STF no Direito das Sucessões – Considerações finais.

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INTRODUÇÃO

Polêmica e, para alguns, assustadora foi a decisão do Supremo Tribunal Federal – no STF ao julgar, no último dia 11 de abril, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) sob nº 54, interposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS).

A arguição teve como objetivo ver declarada inconstitucional qualquer interpretação do Código Penal Brasileiro, no sentido de penalizar o que a entidade denominou de “antecipação terapêutica de parto de fetos anencéfalos” e, em consequência, reconhecer o direito da gestante de antecipar o parto nos casos de gravidez de feto anencefálico, devidamente diagnosticado por médico habilitado, sem a necessidade de autorização judicial prévia.

O pedido formulado na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, interposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, teve como fundamento a violação dos preceitos constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, IV), da liberdade e autonomia da vontade (art. 5º, II) e do direito à saúde (art. 6º, caput, e art. 196), todos da Constituição Federal. A autora indicou como ato do Poder Público causador da lesão o conjunto normativo representado pelos arts. 124, 126, caput, e 128, I e II, do Código Penal.

O Pleno do Superior Tribunal Federal julgou, por maioria dos votos, procedente a referida ação e, assim, declarou inconstitucional qualquer interpretação do Código Penal no sentido de tipificar o aborto quando se tratar de feto anencefálico.

Esta decisão afronta olimpicamente o direito à vida – bem maior tutelado pela Constituição Federal Brasileira e pelo Pacto de São José da Costa Rica. Afronta também o Código Civil que põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro e pode, em alguns casos, repercutir no âmbito do Direito das Sucessões.

O presente trabalho tem como objetivo justamente demonstrar como a decisão do STF na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental sob nº 54 fere a própria Constituição Federal, os preceitos constitucionais postos pelo Pacto de São José da Costa Rica e as determinações do Código Civil, além de relatar as possíveis consequências que a permissão do aborto dos fetos anencefálicos traz no aspecto sucessório.

Considerando-se o objetivo mencionado, este trabalho foi dividido em quatro capítulos. O primeiro trata da anencefalia e busca trazer o entendimento do que é esta anomalia e quais as consequências que dela podem surgir.

O segundo capítulo tem a finalidade de destacar, no ordenamento jurídico brasileiro, as regras que protegem o direito à vida e demonstrar que este direito é o bem jurídico de maior valor e, em consequência, merece ser tutelado em toda e qualquer circunstância.

No capítulo seguinte, pretende-se demonstrar que a decisão do Superior Tribunal Federal em questão afronta a própria Constituição Federal, o Pacto de São José da Costa Rica e o Código Civil.

Por último, demonstrar-se-á uma das sérias consequências advindas do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54: o impacto que a possibilidade do aborto dos fetos portadores de anencefalia irá provocar no Direito das Sucessões.

Com as considerações feitas nos capítulos acima enumerados, pretende-se, ainda que se isole a acirrada discussão e divergência doutrinária e jurisprudencial entre o conflito do “direito” da mulher gestante “já nascida” ao aborto de fetos anencefálicos e o direito de nascer do nascituro, provocar a observação dos operadores do Direito, quanto a todos os efeitos de tal fato produzidos no mundo jurídico, incluindo àqueles reportados ao direito de terceiros, o que não deve e não pode ser ignorado pelo Direito.

1 Anencefalia

Para desenvolver o assunto abordado, necessário se faz entender o que é a anencefalia e quais são as suas consequências.

A anencefalia é definida na literatura médica como a “má-formação fetal congênita por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, de modo que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex, havendo apenas resíduo do tronco encefálico”[1].

A enciclopédia Wikipédia define anencefalia como “uma malformação rara do tubo neural, caracterizada pela ausência parcial do encéfalo e da calota craniana, proveniente de defeito de fechamento do tubo neural nas primeiras semanas da formação embrionária”[2].

Como não há ossos frontal, pariental e occipital, o cérebro remanescente encontra-se exposto e o tronco cerebral é deformado. A face é delimitada pela borda superior das órbitas que contém globos oculares salientares.

Conhecida vulgarmente como “ausência de cérebro”, na realidade, a anencefalia não consiste, necessariamente, na ausência total de encéfalo; existem graus variados de danos encefálicos. Trata-se de uma má-formação que passa de quadros menos graves a quadros de indubitável anencefalia. Esta realidade torna impossível uma definição exata e uma classificação rigorosa da anencefalia.

A divergência conceitual pode ser demonstrada nas definições trazidas por Moore e Persaud, para os quais “anencefalia é a existência de uma massa esponjosa, existindo parte do encéfalo e não é a ausência dos hemisférios”[3]; e por Moreira que, ao contrário do entendimento anterior, define anencefalia como “uma alteração congênita do qual resulta a ausência dos dois hemisférios celebrais e estrutura óssea do crânio”[4].

O que não se duvida é que a anencefalia é uma patologia letal; a vida extrauterina é, em 100% dos casos, fatal. Não há qualquer possibilidade de tratamento ou reversão do quadro, o que torna a morte inevitável.

Todavia, embora se saiba que bebês com anencefalia possuem expectativa de vida muito curta, não há como precisar o tempo de vida que terão fora do útero materno. Thomaz Gollop[5] afirma que aproximadamente 75% dos fetos anencéfalos morrem dentro do útero e que, dos 25% que chegam a nascer, todos têm sobrevida vegetativa que cessa, na maioria dos casos, em 24 horas, e os demais nas primeiras semanas de sobrevida.

Conclui-se que, independentemente do aspecto conceitual, psicológico ou científico, a questão unânime sobre a anencefalia é que não havendo atividade cerebral, a chance de sobrevivência deste feto, mesmo que por horas ou dias, é mínima. Mas não é nula!

2 Direito à vida

A Constituição Federal, no seu art. 5º que trata dos “Direitos e Garantias Fundamentais”, assevera que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida". Deste modo, não há dúvida de que o direito à vida é posto como “marco primeiro no espaço dos direitos fundamentais”, de acordo com as palavras do então Procurador Geral da União, Cláudio Lemos Fonteles[6], quando encaminhou seu parecer ao Supremo Tribunal Federal sobre a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde.

Como se não bastasse a Constituição Federal Brasileira tratar do direito à vida como uma das cláusulas pétreas, o Código Civil Brasileiro também o protege e, mais, esclarece e define que, se há processo normal de gestação, há vida intrauterina, ou seja, a vida se forma no ventre materno e deve, desde então, ser protegida. Assim determina o art. 2º do Código Civil: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro".

Logo, nas palavras de Teixeira de Freitas, o nascituro é pessoa por nascer, já concebida no ventre materno, e que por tal fato, já tem o direito intrínseco à vida, livre dos prematuros e falíveis julgamentos humanos.

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Nesse contexto, abstendo-se da discussão doutrinária moderna acerca do início da personalidade jurídica do homem – teoria concepcionista ou teoria natalista – fato é que o começo da vida do homem vai desde o encontro dos gametas masculino e feminino com a fusão dos núcleos (singamia) até o nascimento. Eis, pois, aí, o fundamento do direito de nascer, como o primeiro direito do homem, antes mesmo deste adquirir a personalidade jurídica, em se considerando esta a partir da teoria natalista do art. 2º. Primeira parte do Código Civil Brasileiro.

Se ainda assim persistirem dúvidas acerca da necessidade primeira de proteção do direito à vida e do momento em que este direito passa a existir e, em consequência, o momento em que sua proteção deve iniciar-se, a Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, determina o seguinte, no seu art. 4º: “Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”.

Vale lembrar que as regras do Pacto de San José da Costa Rica incorporam-se ao elenco dos direitos constitucionalmente consagrados, vez que os tratados internacionais e convenções sobre direitos humanos, aos quais o Brasil tenha aderido, são equivalentes às emendas constitucionais (art. 5º, § 3º, da CF).

A Convenção sobre os Direitos da Criança também protege o direito à vida, mesmo antes do nascimento. O Preâmbulo desta Convenção define que “a criança por falta da maturidade física e mental, necessita de proteção e cuidado especiais, aí incluída a proteção legal, tanto antes, como depois, do nascimento”[7].

Desta maneira, demonstrado está que os diplomas legais, internos e internacionais, estabelecem que há vida desde a concepção e que ela deve ser protegida desde então.

No item anterior vislumbrou-se que o bebê portador de anencefalia invariavelmente nascerá e que se apurou no levantamento estatístico, citado por Thomaz Gollop[8], que 75% dos fetos anencéfalos morrem dentro do útero e que, dos 25% que chegam a nascer, podem viver segundos, minutos, horas, dias ou meses.

A questão central é definir se os fetos anencefálicos, unicamente por terem, estatisticamente, 25% de chance de nascerem vivos e, se isto ocorrer, viverão por um indefinido, mas curto espaço de tempo, não merecem a proteção jurídica do seu direito à vida. É juridicamente possível legitimar a morte, aniquilar o direito constitucionalmente previsto, unicamente em função do tempo de previsão humana de vida que o bebê terá fora do útero materno? Pode-se aferir o direito à vida apenas pelo tempo provável, humanamente calculado, de sobrevida extrauterina?

Obviamente que não!

E a razão, não se sustenta em cálculos e previsões humanas, mas em fatos. Fatos, cuja força probatória contradiz no todo o argumento que embasa a legitimação da morte a fim de prestigiar o direito de quem já teve o direito de nascer e viver.

A menina Marcela de Jesus, é exemplo do citado[9]. Nascida em 20 de Novembro de 2006, no Município de Patrocínio Paulista, sem o córtex cerebral, apenas o tronco cerebral, responsável pela respiração e batimentos cardíacos. O caso gerou divergências, pois alguns especialistas levantaram a hipótese de que a menina sofria na realidade de uma má formação do crânio (encefalocete) associado a um desenvolvimento reduzido do cérebro (microcefalia). Outros acharam que o que ocorreu foi uma forma ¨não clássica¨ de anencefalia. Marcela faleceu em 31 de Julho de 2008, em consequência de uma pneumonia aspirativa. E segundo os médicos a sobrevivência surpreendente de Marcela mostra que o diagnóstico não é nada definitivo. Em entrevista feita quando Marcela ainda estava viva, a pediatra Marcia Beani Barcelos, profissional que mais acompanhou o caso, afirmou que a discrepância não era só em relação ao diagnóstico intrauterino, mas aos prognósticos geralmente feitos. Ela não pode ser comparada com uma criança com morte cerebral que não tem sentimentos. A Marcela não vive em estado vegetativo. Agora como ela processa isso, é um Mistério.

Vitória de Cristo, é outro caso raro diagnosticada com anencefalia que sobreviveu além dos prognósticos médicos. Nascida em 13 de Fevereiro de 2010 em uma cidade de São Paulo, tendo completado dois anos agora em 2012. Com 12º semanas de gestação, ela foi diagnosticada com Acrania, situação que evolui para anencefalia, e seus pais foram contra a interrupção da gravides, e ao nascer Vitoria foi diagnosticada como anencéfala e aos quatro meses de vida, um exame de Ressonância Magnética relatou ¨Anencefalia Incompleta¨. Aos dois anos de idade, Vitoria faz fisioterapia, alimentasse normalmente, responde à estímulos, engatinha e até manifesta sorrisos. Os seus pais acreditam que isso só vem demostrar que como o diagnóstico de anencefalia é complexo.

Cláudio Lemos Fonteles[10] avalia as questões referidas afirmando que “o direito à vida é atemporal, vale dizer, não se avalia pelo tempo de duração da existência humana”.

Não se desconsidera a dor da gestante. Não se desconsideram as consequências psicológicas que a gestante poderá vir a ter que suportar.

O que se pretende é demonstrar que o direito à vida do bebê anencefálico é infinitamente mais valioso e é juridicamente protegido, assim como o é a dignidade humana da gestante e a autonomia da vontade; todavia, entre estes valores jurídicos tuteláveis, o direito à vida é primordial e deve prevalecer em qualquer circunstância. Destacam-se, neste ponto, mais uma vez as palavras Cláudio Lemos Fonteles: “o sofrer uma dor, mesmo que intensa, não ultrapassa o por cobro a uma vida, que existe, intrauterina, e que, seja sempre reiterado, goza de toda a proteção normativa, tanto sob a ótica do direito interno, quanto internacional”.

Outra não é a razão para que a legislação penal, assim como as legislações acima mencionadas, estabelecerem de forma contundente a proteção do direito à vida. Pelo tempo que for possível!

3 A decisão do STF frente ao direito à vida

O Supremo Tribunal Federal julgou procedente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) sob nº 54, interposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS).

Com esta decisão, o STF declarou inconstitucional qualquer interpretação do Código Penal no sentido de penalizar a antecipação terapêutica de parto de fetos anencéfalos e, em consequência, reconheceu o direito da gestante de optar pelo aborto do feto anencefálico, sem a necessidade de autorização judicial prévia, quando a anomalia for devidamente diagnosticada por médico habilitado.

A decisão do Pleno do Supremo Tribunal Federal foi por maioria dos votos. Somente os Ministros Ricardo Levandovski e Cezar Peluso votaram no sentido de que a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 deveria ser julgada improcedente.

O ministro Ricardo Levandovski, sexto a votar no julgamento, destacou os limites objetivos do controle de constitucionalidade das leis e da interpretação das normas conforme a Constituição Federal a serem desempenhados pelo STF. Afirmou o ministro que o STF só pode exercer o papel de legislador negativo, cabendo a função de extirpar do ordenamento jurídico as normas incompatíveis com a Constituição. Com isto quis o ministro deixar claro que a Corte usurpou os poderes atribuídos aos integrantes do Congresso Nacional, ou seja, jamais pode promover inovações no ordenamento jurídico brasileiro – cabe ao Congresso Nacional alterar a legislação penal para incluir, dentre os casos em que o aborto não é criminalizado, o dos fetos anencéfalos.

Destacou, também, que a decisão do Tribunal de descriminalizar o aborto de feto anencefálico, ainda que a legislação penal não contemple esta hipótese, pode dar azo à interrupção da gestação em inúmeros outros casos de patologias que resultam em pouca ou nenhuma perspectiva de vida fora do útero materno.

O ministro Cezar Peluso foi o último a votar e destacou seu entendimento de que o feto anencefálico é portador de vida e, em consequência, deve ter os seus direitos tutelados. Afirmou o ministro que para que o aborto possa ser considerado crime, basta a eliminação da vida, abstraída toda especulação quanto à sua viabilidade futura ou extrauterina e, portanto, o aborto de feto portador desta anomalia é uma conduta vedada pela legislação penal.

Acerca da alegação de liberdade e autonomia da gestante, o ministro afirmou que a liberdade jurídica é limitada pela existência das leis, sendo, nestes casos, alegações inócuas.

Cezar Peluso destacou, por último, que não cabe ao STF atuar como legislador positivo – posicionamento defendido pelo ministro Ricardo Levandovski, conforme mencionado.

Todos os demais ministros votaram pela procedência da ação, por entenderem que o direito à vida do feto anencéfalo que não tem chance de sobreviver e, se sobreviver, o será por pouco tempo, não pode prevalecer a qualquer custo, em detrimento dos direitos constitucionais da gestante: dignidade da pessoa humana, autonomia da vontade, integridade física, psicológica e moral.

Afirmaram os ministros que obrigar a gestante a manter a gestação de um feto portador de anencefalia equivale a uma espécie de “cárcere privado em seu próprio corpo”, “assemelha-se à tortura”.

Entenderam, em suma, que os direitos da mulher devem prevalecer frente ao direito do anencéfalo, vez que não se trata de vida em potencial, mas de um natimorto por não ter atividade cerebral, aplicando-se a Resolução nº 1480/97 do Conselho Federal de Medicina, por analogia.

Pois bem. Afora a questão posta pelos Ministros Ricardo Levandovski e Cezar Peluso, de que o Superior Tribunal Federal só pode exercer o papel de legislador negativo, ou seja, a Corte não pode usurpar funções do Legislativo – cuja análise não cabe neste artigo –, a decisão do STF em julgar procedente a arguição afronta a Constituição Federal Brasileira, o Pacto de São José da Costa Rica e o Código Civil Brasileiro. É, pois, e nesse sentido, uma decisão tomada ao arrepio da lei e que aniquila o maior bem jurídico a ser tutelado: o direito à vida.

4 O impacto da decisão do STF no Direito das Sucessões

Sem embargos e afora toda altercação antecedente quanto ao maior e por isso principal direito afetado pela incongruente decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal a qual fere toda ordem do Direito, em especial, a ordem dos Direitos humanos, há que se se deter, ainda, aos demais aspectos daquela resultantes.

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Ora, sabe-se que, a ordem jurídica existe para, e em prol da tutela do homem enquanto sujeito de direitos. Contudo, tal deve se processar sempre, que de nenhum modo prejudique a um terceiro, incluindo, neste caso, o nascituro por nascer.

Por isso, há que atentar-se e não enganar-se com os fatos que estão a ocorrer e com eles os variados efeitos jurídicos, sobretudo contra direitos de terceiros no que se reporta ao Direito das Sucessões.

 Não há dúvida de que o nascituro tem direito à sucessão legítima e testamentária, conforme as variantes a seguir apontadas.

Os já concebidos, legitimam-se a suceder no momento da abertura da sucessão (art. 1784 CC), cujo direito se consolida com a aquisição da personalidade jurídica, no caso do Código Civil, do nascimento com vida, bastando para tanto, que o nascituro venha a respirar, independentemente da sua viabilidade humana.

Os não concebidos, sob a modalidade testamentária, na condição de filhos, ainda não concebidos, de pessoa indicada pelo testador, desde que viva esta, no momento da abertura da sucessão e a concepção do herdeiro nascituro, se consume até dois anos da abertura da sucessão.

Nesse contexto, a princípio, a defesa dos direitos sucessórios do nascituro está devidamente assegurada e em nada se altera por efeitos da decisão citada da suprema Corte em relação ao feto anencefálico.

Entretanto, a análise do direito não está e não pode estar, engessada pelos limites aparentes a que se propõe diretamente o debate. E é por tal razão que se impõe examinar, além do impacto ao direito à vida do nascituro, o impacto nos direitos sucessórios deste, e por consequência de seus eventuais sucessores.

Pois bem, do ponto de vista legal, pelo Código Civil Brasileiro, o nascituro tem a expectativa de vida e por consequência, a expectativa de aquisição da personalidade jurídica, acaso venha a nascer e inspirar pela primeira vez.

Por derradeiro, pelo Direito Civil Brasileiro, qualquer nascituro que venha a falecer ainda durante a gestação, não terá direito a sucessão ou herança. No caso dos anencéfalos, após o nascimento, eles respiram e têm batimentos cardíacos por segundos, minutos ou horas a partir do nascimento, e isso basta para a capacidade de aquisição e também transmissão de direitos, independente da polêmica versão da Lei 9.434/1997, que reconhece o fim da vida com a morte encefálica.

Com efeito, nesse caso, quem será o herdeiro do pai que morreu durante a gestação do anencéfalo?. Se ao feto anencéfalo, for permitido o nascimento, ainda que não tenha potencial de vida, mas, acaso, venha a nascer, respirar e morrer, pelo Código Civil Brasileiro, adquiriu personalidade jurídica. Com isso, tornou-se, portanto, sujeito de direitos e obrigações, em particular dos direitos sucessórios.

 Esta circunstância induz à conclusão óbvia de que o nascituro adquirirá o direito sucessório de seu ascendente progenitor, tornando-se seu legítimo e necessário herdeiro, condição sob a qual irá também ocupar a condição de autor de herança e transmissão de tais direitos no momento de sua morte. A transmissão se dará aos seus legítimos sucessores, no caso à mãe, ou, na falta desta, aos demais herdeiros legítimos, segundo a ordem de vocação hereditária, descrita no art. 1829 do CC.

Ao reverso, acaso ocorra a interrupção da gestação do feto, este, pelas razões acima, não adquirirá os direitos sucessórios do pai e por consequência não os transmitirá à mãe e a ordem de sucessão se altera por completo, seguindo-se pelo ditame e regra seguinte do art. 1829 do CC. Logo, ressalvada a hipótese desta ser casada com o autor da herança e de acordo com o regime de bens, manter eventual direito de concorrência com os ascendentes daquele, não fará jus a qualquer parte da herança deixada pelo progenitor do feto, em especial em se tratando dos regimes de separação de bens.

Na mesma linha de raciocínio, siga-se pelo exemplo de alteração da ordem sucessória, com reflexos sobre terceiros no seguinte caso: Falecimento após o parto e sem relação necessária com este, de mulher casada pelo regime de separação total de bens com o pai do feto anencéfalo, o qual vem a falecer depois da mãe. Pergunta-se, acaso ocorrida a interrupção da gravidez, o pai do feto, à época marido da autora da herança, seria sucessor dos bens da mesma forma?

Semelhante tumulto poderá incidir em caso dos direitos sucessórios que possam ser adquiridos e transmitidos pelo nascituro anencefálico, na sucessão testamentária. Isso, tanto em relação ao nascituro anencefálico já concebido ao tempo da abertura da sucessão, seja em relação aos filhos ainda não concebidos de pessoas indicadas pelo testador, e que por ventura venham a ser concebidos com a deficiência de anencefalia, no prazo estabelecido pelo Código Civil.

Do todo, corresponde o destaque para tão somente pretender dar ensejo ao início do debate voltado ao impacto da decisão do Supremo Tribunal Federal – autorizadora e a partir de então, motivadora da interrupção da gravidez dos fetos anencefálicos, totalmente desvinculada de preocupação com seus principais reflexos e lesões ao direito de terceiros, incluindo nestes, o próprio nascituro, cujos interesses se divorciam da esfera patrimonial e se unem à esfera estritamente humana, até então, largamente difundida e ecoada como de principal defesa pelas vozes do próprio Supremo Tribunal Federal.

Considerações finais

Todo direito pressupõe o direito à vida. E cada vida humana é única e insubstituível. Se o nascituro não goza, ao menos deveria gozar de igual dignidade tal goza a mãe, digo – nesse caso – mulher, sobre seu corpo. Assim se esperava devesse continuar ecoando as vozes do Supremo Tribunal Federal.

Ao que parece, como já outrora citado em artigo, com a multiplicação dos direitos, está a ocorrer uma horizontalização e inflação de direitos fundamentais, a qual pode não ser boa, gerando um desequilíbrio e por consequência, um conflito, e surge aí o efeito da neutralização e nesse sentido, se todos estão protegidos, ao mesmo tempo ninguém está na verdade do modo como merecem, a exemplo: ao proteger o direito da dignidade, da liberdade e autonomia da vontade e o direito à saúde da mulher que já teve o direito de nascer, o Supremo Tribunal Federal desprotegeu o direito de nascer de terceiros, primeiro e maior direito do ser humano, o que, sucessivamente, por efeito “dominó”, veio a atingir outros direitos envolvidos na cadeia, ainda que secundários, no caso, os direitos sucessórios do nascituro e de terceiros.

Ademais, colhendo-se da fundamentação do Ministro Ricardo Levandovski quanto ao limite de objetivo de controle de constitucionalidade do STF, depara-se com os riscos de desequilíbrio e conflito de faculdades entre o executivo, legislativo e judiciário, com resultado de tensão entre os poderes do Estado Democrático de Direito.

Segundo Ricardo Luis Lorenzetti (1998, p. 145 e 253), “o grupo de direitos fundamentais atua como um núcleo, ao redor do qual se pretende que gire o Direito Privado; um novo sistema solar, no qual o Sol seja a pessoa”.

Não se pode admitir, sob a versão do exercício do “direito” de autodeterminação procriativa e de liberdade sobre seu próprio corpo, o exercício do direito de matar, sob pena de, em se desviando da justiça, se perder o próprio Direito. Afinal, onde na verdade o direito é injusto, e me parece que o direito de decidir pela morte o é, não há o próprio Direito. Aliás, Gustav Radbruch concluiu em sua doutrina pós segunda guerra: O “direito” extremamente injusto, não é Direito.

O debate é inexaurível e o diálogo, espera-se poder continuar.

 

Referências Bibliográficas
BEHRMAN, Richard E.; Kliegman, Robert M.;Jenson, Hal B. Nelson – Tratado de Pediatria. Tradução Diorki Serviços Integrais de Edição. décima sétima edição. Madri. MMIV. 2002.
FONTELES, Cláudio. “PGR emite parecer contrário ao aborto de anencéfalos”. Jus Navigandi, Teresina, 24 ago. 2004, ano 9, nº 413. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/16603.
GOLLOP, Thomaz. “Todos morrem”. Disponível em http://cienciahoje.uol.com.br/especiais/reuniao-anual-da-sbpc-2011/2018todos-morrem2019/
LORENZETI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. São Paulo:Revista dos Tribunais, 1998.
MOORE, K. L.; Persaud, T. V. N. Embriologia Básica. quinta edição. Rio de Janeiro. Guanabara Koogan. 2000.
MOREIRA, Alexandre Mussoi. “Anencefalia e antecipação do parto: a legislação de Buenos Aires”. Revista Ajuris. volume 31, número 95, setembro de 2004.
NERY Junior, Nelson. Código civil comentado / Nelson Nery Junior, Rosa Maria de Andrade Nery. – 8. Ed. Ver., ampl e atual. Até 12.07.2011. – São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2011.
REVISTA Süddeutsche Juristenzeitung (v. 1, p. 105-108, 1946). O título original em alemão é “Gesetzlicher Unrecht und übergesetzliches Recht”. Em espanhol, é mais corrente a tradução para Arbitrariedad legal y derecho supralegal”. Em inglês, prefere-se Statutory Non-Law and Suprastatutory Law. Disponível em: www.conjur.com.br/…/direito-comparado-formula-radbruch-risco.
 
Notas:
 
[1] Behrman, Richard E.; Kliegman, Robert M.;Jenson, Hal B. Nelson – Tratado de Pediatria. Tradução Diorki Serviços Integrais de Edição. décima sétima edição. Madri. MMIV. 2002. p. 1777.

[2] Anônimo. “Anencefalia”. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Anencefalia. Data da captura: 18/08/2012.

[3] Moore, K. L.; Persaud, T. V. N. Embriologia Básica. quinta edição. Rio de Janeiro. Guanabara Koogan. 2000. p. 455.

[4] Moreira, Alexandre Mussoi. “Anencefalia e antecipação do parto: a legislação de Buenos Aires”. Revista Ajuris. volume 31, número 95, setembro de 2004. p. 95.

[5] Gollop, Thomaz. “Todos morrem”. Disponível em http://cienciahoje.uol.com.br/especiais/reuniao-anual-da-sbpc-2011/2018todos-morrem2019/ Data da captura: 18/08/2012.

[6] Fonteles, Cláudio. “PGR emite parecer contrário ao aborto de anencéfalos”. Jus Navigandi, Teresina, 24 ago. 2004, ano 9, nº 413. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/16603. Data da captura: 19/08/2012.

[7] Convenção sobre os Direitos da Criança. Disponível em http://www.unicef.org/brazil/pt/resources_10120.htm. Data da captura: 19/08/2012.

[8] Gollop, Thomaz. “Todos morrem”. Disponível em http://cienciahoje.uol.com.br/especiais/reuniao-anual-da-sbpc-2011/2018todos-morrem2019/ Data da captura: 18/08/2012.

[9] Anencefalia – Os casos de Marcela e Vitória. Disponível em: http://delmosaud.blogspot.com.br/2012/04/anencefalia-os-casos-de-marcela-e.html. Data da captura: 26/08/2012.

[10] Fonteles, Cláudio. “PGR emite parecer contrário ao aborto de anencéfalos”. Jus Navigandi, Teresina, 24 ago. 2004, ano 9, nº 413. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/16603. Data da captura: 19/08/2012.


Informações Sobre os Autores

Adriane Guasque

Doutoranda em Ciências Jurídicas pela Pontifícia Universidade Católica Argentina – UCA. Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. Especialista em Direito Contemporâneo pelo Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos – IBEJ. Advogada e Professora do curso de Direito

Consuelo Guasque

Doutoranda em Ciências Jurídicas pela Pontifícia Universidade Católica Argentina – UCA. Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. Especialista em Direito Contemporâneo pelo Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos – IBEJ. Advogada e Professora do curso de Direito

Mariantonieta Pailo Ferraz

Doutoranda em Ciências Jurídicas pela Pontifícia Universidade Católica Argentina (UCA). Especialista em Direito Contemporâneo pelo Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos (IBEJ). Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Ponta Grossa – PR. Advogada nas áreas: cível e trabalhista. Professora do curso de Direito das Faculdades Integradas dos Campos Gerais (CESCAGE) e Faculdades Integradas de Itararé – SP.


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