A Lei 12.015/09 promoveu uma grande alteração no regramento dado à ação penal nos crimes sexuais com a nova redação do artigo 225, CP.
Não mais existe a regra da ação penal privada nos crimes sexuais. A regra agora passa a ser, nos termos do artigo 225, “caput”, CP, a ação penal pública condicionada à representação. Em nenhuma hipótese a ação será privada exclusiva, somente subsistindo, por força de norma constitucional e de regras ordinárias gerais a possibilidade de ação penal privada subsidiária da pública em casos de inércia do Ministério Público (artigo 5º, LIX, CF c/c artigo 100, § 3º, CP c/c artigo 29, CPP).
Também estabelece o Parágrafo Único do artigo 225, CP, as exceções em que a ação penal será pública incondicionada. Isso ocorrerá quando:
a) A vítima for menor de 18 anos;
b) A vítima for “pessoa vulnerável”.
O primeiro caso é de fácil constatação e comprovação nos autos, satisfazendo-se com a prova da idade da vítima mediante juntada de documento hábil (v.g. Certidão de Nascimento).
Já com relação à segunda hipótese, a lei faz referência ao termo indefinido “pessoa vulnerável”.
Em outro trabalho foi abordado o problema da falta de uma definição legal segura da expressão em estudo, o que produz certa insegurança jurídica. [1] O conceito do que seja “pessoa vulnerável” deve ser inferido da análise conjunta dos dispositivos que compõem o Capítulo II, denominado “Dos crimes sexuais contra vulnerável”. Observando-se os dispositivos e especialmente o artigo 217 – A e seu § 1º, CP, chega-se à conclusão de que o termo “pessoa vulnerável” corresponde aos antigos casos de “presunção de violência” outrora previstos no revogado artigo 224, “a”, “b” e “c”, CP.
Portanto, são “pessoas vulneráveis”:
a) Os menores de 14 anos;
b) Aqueles que por enfermidade ou deficiência mental não têm o necessário discernimento para a prática do ato sexual;
c)A queles que, por qualquer outra causa (diversa da etária ou mental), não podem oferecer resistência. Deste caso são exemplos pessoas com incapacidades físicas de mobilidade e fala, embora maiores e mentalmente sãs; pessoas idosas fisicamente incapacitadas e dependentes de terceiros, embora mentalmente sadias etc.
É de se observar que o caso dos menores de 14 anos gera certa redundância legal já que a lei já estabelece a exceção para todos os menores de 18 anos, obviamente abrangendo os menores de 14 anos. No entanto, isso não prejudica nem dificulta a interpretação e aplicação da legislação.
Pode-se concluir, portanto, que a ação penal nos crimes sexuais previstos no Título VI (Dos crimes contra a Dignidade Sexual), Capítulos I e II (Dos crimes contra a Liberdade Sexual e Dos Crimes Sexuais contra Vulnerável), do Código Penal Brasileiro, será em regra pública condicionada e excepcionalmente pública incondicionada, somente quando a vítima for menor de 18 anos ou vulnerável. Jamais a ação penal será privada exclusiva, somente se admitindo, em excepcional caso de inércia do Ministério Público, a ação penal privada subsidiária.
Não se há mais falar nas hipóteses reguladas pelos antigos §§ 1º, I e II e 2º, do artigo 225, CP, os quais foram expressamente revogados pela Lei 12.015/09. Agora a condição de “pobreza” da vítima na acepção jurídica do termo (artigo 32, §§ 1º e 2º, CPP), não tem relevância, sendo dispensável a tradicional juntada do “atestado de pobreza” expedido pela Autoridade Policial (Delegado de Polícia). Ocorre que doravante toda e qualquer ação penal por crimes sexuais será pública, não havendo mais a antiga necessidade de converter a ação privada em pública de acordo com os dispositivos legais agora revogados.
O desaparecimento do cenário legal do antigo § 1º, inciso II e § 2º, parte final, do artigo 225, CP, também não prejudica a adoção da ação penal pública incondicionada em certos casos excepcionais. Os dispositivos revogados tratavam de situações em que o autor do crime era alguém que abusava do “pátrio poder” (leia-se “poder familiar”) ou da “qualidade de padrasto, tutor ou curador”. Ora, na atualidade, estabelecendo a lei, de forma genérica, que em qualquer caso de vítima menor de 18 anos ou “vulnerável” a ação penal será pública incondicionada, certamente as velhas hipóteses elencadas no revogado artigo 225, § 1º, II e § 2º, “in fine”, CP, estarão abrangidas e incólumes, inclusive ampliando-se as hipóteses de excepcional ação penal pública incondicionada. Registre-se, neste sentido, que agora quando um menor de 18 anos, por exemplo, for vítima de crimes sexuais, a ação será sempre pública incondicionada, prescindindo dos elementos do abuso do poder familiar ou outras circunstâncias outrora elencadas pela lei revogada. Em suma, não importará se o autor do crime é pai, tutor, curador, padrasto ou um mero desconhecido. A ação será pública incondicionada pelo simples fato da menoridade ou condição de “vulnerável” do sujeito passivo.
É também interessante notar que embora o artigo 225, “caput”, CP, estenda a regra da ação penal pública condicionada aos crimes previstos nos Capítulos I e II, do Título VI, do Código Penal, na verdade tal regra somente se aplica ao Capítulo I, que trata dos “Crimes contra a Liberdade Sexual”.
Explica-se:
Os crimes tipificados no Capítulo I podem ter por vítimas pessoas não vulneráveis maiores ou menores, de modo que em regra, sendo as vítimas maiores e não “vulneráveis”, a ação será pública condicionada. Excepcionalmente, sendo as vítimas maiores, porém vulneráveis, a ação será pública incondicionada. Em todo e qualquer caso de vítima menor (vulnerável ou não) a ação será incondicionada (artigo 225, “caput” e Parágrafo Único, CP).
Destaque-se, porém, que se a vítima for “pessoa vulnerável”, os crimes serão os tipificados no Capítulo II, tendo por sujeito passivo aquela categoria determinada de indivíduos, situação para a qual é prevista a ação penal pública incondicionada (artigo 225, Parágrafo Único, CP). Dessa forma, na realidade, todo e qualquer crime tipificado no Capítulo II sobredito, sendo necessariamente perpetrado contra vulneráveis ou menores de 18 anos, será, invariavelmente, de ação penal pública incondicionada (artigo 225, Parágrafo Único, CP). Isso porque não existe no Capítulo II nenhum crime que não seja perpetrado contra “vulnerável” ou pelo menos contra menores de 18 anos.
Existem ainda dois outros casos de ação penal pública incondicionada e nestes casos independentemente da idade ou condição de “vulnerável” da vítima. São os casos de estupros qualificados por lesões graves ou morte (artigo 213, §§ 1º e 2º, CP). [2] A tal conclusão se chega por aplicação da regra geral do artigo 101, CP, referente à ação penal nos crimes complexos, devendo prevalecer a ação penal incondicionada prevista para as lesões graves e homicídio sobre a ação condicionada prevista para os delitos sexuais.
Não é crível que o legislador tenha pretendido deixar ao alvedrio da vítima ou seus representantes ou sucessores legais (artigo 31, CPP) a decisão de autorizar o procedimento em casos que envolvem lesões graves e, principalmente, morte. Imagine-se que num caso de estupro seguido de morte os sucessores da vítima (que não fosse menor ou “vulnerável”) não representassem e um crime dessa gravidade deixasse de ser perseguido.
Evidentemente a melhor solução para o caso é prosseguir de acordo com a velha doutrina e jurisprudência consolidadas com relação a essas hipóteses. Não há razão plausível para qualquer mudança de entendimento, vez que até mesmo a antiga regra da ação penal privada era considerada excepcionada pela aplicação do artigo 101, CP. Tenha-se inclusive em mente que a antiga redação do artigo 225, CP, também não fazia menção expressa a tais casos, o que jamais obstou o entendimento pela ação penal pública incondicionada em detrimento da ação penal privada.
O fato de que as qualificadoras tenham mudado de topografia no Código Penal, deixando de integrar o revogado artigo 223, CP, das “Disposições Gerais” e passando a fazer parte direta do corpo do artigo 213, CP, na forma de seus parágrafos 1º e 2º, em nada altera as razões que conduzem à solução da ação penal pública incondicionada. O antigo artigo 225, CP, como o atual, fazia referência à ação penal (então privada) dos crimes definidos nos “capítulos anteriores”. De forma semelhante a atual conformação do artigo 225, CP, (Lei 12.015/09) refere-se à ação penal (agora pública condicionada) dos crimes previstos nos “Capítulos I e II” do “Título VI”, do Código Penal.
Talvez o maior óbice a este entendimento seja o fato de que o antigo artigo 225, CP, se referia aos “capítulos anteriores” e as qualificadoras estavam previstas no mesmo capítulo que o próprio artigo 225, CP (artigo 223, CP, ora revogado). Isso dava a entender claramente que a regra da então ação penal privada não se aplicava aos casos de combinação com o artigo 223, CP, os quais não integravam fisicamente os “capítulos anteriores” citados pelo artigo 225, “caput” que vigia na época. [3] E agora, com a já mencionada mudança topográfica das qualificadoras, a menção do novo artigo 225,CP, aos crimes previstos nos Capítulos I e II, levaria à conclusão de que a regra especial do artigo 225, CP, se sobreporia à regra geral do artigo 101, CP, vez que direcionada pelo legislador inclusive para as qualificadoras que estão nos capítulos referidos e não mais fora deles. Entende-se, porém, que desde sempre não era a topografia das normas a principal razão de ser da ação penal pública incondicionada para os casos de crimes de estupro com lesões graves ou morte. Na verdade, a topografia escolhida na época pelo legislador era condicionada pela opção de aplicação ao caso do artigo 101, CP, que resolvia a questão da ação penal em crimes de tamanha gravidade com bem melhor resultado do que o artigo 225, CP. Por isso, face à gravidade dessas infrações, deve permanecer incólume a conclusão pela ação penal pública incondicionada de forma excepcional nesses casos. Neste ponto deve continuar valendo o disposto na Súmula 608, STF. [4]
O fato de haver hoje regramento de exceções expressas em que a ação é incondicionada também não exclui a existência de outras exceções dadas pelas regras gerais do Código Penal. Tais exceções também existiam antes nos revogados §§ 1º, I e II e 2º, do artigo 225, CP, o que não impedia a conclusão pela ação penal pública incondicionada nos casos de lesões graves ou morte.
Frise-se, porém, que se o caso for de vias de fato, grave ameaça ou mesmo de lesões leves a ação será, em regra, pública condicionada (artigo 225, “caput”, CP).[5]
Especificamente no caso de lesões leves o advento da Lei 12.015/09 vem consolidar entendimento que já se vinha conformando pela ação pública condicionada, considerando o disposto no artigo 88 da Lei 9099/95 c/c artigo 101, CP. [6] Não há agora mais nenhuma razão plausível para acenar com a Súmula 608, STF em tais situações. Aqui não ocorrem resultados mais gravosos como morte ou lesões graves a justificarem a exceção à regra da ação penal pública condicionada.
Consigne-se, por fim, que no que tange aos resultados lesões graves ou morte surgirá certamente o entendimento, diverso do ora defendido, de que a ação penal será pública condicionada pela especialidade do artigo 225, CP em relação ao artigo 101, CP, bem como devido ao fato de que houve mudança topográfica das qualificadoras, agora instaladas num dos capítulos abrangidos expressamente pelo regramento especial e não mais em capítulo que escapava ao seu alcance. Restará à doutrina e à jurisprudência solucionar a controvérsia ensejada pelo legislador que bem poderia ter sido mais claro sobre aspecto tão importante. E até que isso ocorra (um assentamento do entendimento da matéria) é de boa cautela que se siga colhendo a representação de quem de direito, mesmo em casos de lesões graves ou morte, a fim de evitar eventuais reconhecimentos de decadência em virtude da variabilidade interpretativa. Colhendo-se a representação, se o entendimento for de que é realmente necessária, estará satisfeita plenamente a condição de procedibilidade exigida. Se o entendimento for de que a ação é pública incondicionada, o colher da representação é um plus que em nada prejudica o andamento do feito, pois como diz o brocardo “quod abundant non nocet”.
Informações Sobre o Autor
Eduardo Luiz Santos Cabette
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.