Resumo: O trabalho retoma os principais elementos que compõem o ideário do acesso à justiça. Ressalta-se que a melhoria do acesso à justiça não se faz apenas em função de alterações da legislação processual em sentido estrito, estendendo-se a preocupação para a administração judiciária. A análise se dá, em especial, quanto à atuação das Varas Especializadas da Infância e da Juventude. A eficiência da prestação jurisdicional dessa Justiça especializada se dará através da atuação de magistrados com afinidades e interesses mais intimamente ligadas às responsabilidades da Vara da Infância e da Juventude, o que constitui instrumento de garantia às crianças e adolescentes do pleno exercício de sua cidadania.
Palavras-chave: Acesso à justiça; Varas especializadas.
Abstract: The work resumes the main elements that compose the ideas of access to justice. The text highlights that the improvement of access to justice does not happen solely in function of amendments to the civil procedure laws in strict sense, but extends the concern to the judicial administration. The analysis is especially as regards the Specialized Lower Courts of Childhood and Youth. The efficiency of the judgments of such specialized court takes place through the action of magistrates with affinities, and interests more intimately attached to the responsibilities of a Childhood and Youth Lower Court, which constitutes the instrument of guarantee to child and adolescents in full exercise of their citizenship.
Keywords: access to justice, specialized lower courts
I – INTRODUÇÃO
A temática do acesso à justiça é extremamente rica, de modo que é sempre possível retomar alguma de suas inúmeras vertentes para fundamentar uma nova abordagem ou um novo olhar sobre pontos que permanecem sem muita discussão no direito processual, seja em termos de doutrina, seja em termos de jurisprudência, ou mesmo no campo de propostas legislativas.
O tema a que nos propomos discutir insere-se nesse contexto, mais especificamente no âmbito da atuação das Varas da Infância e da Juventude, buscando-se suas características, peculiaridades e necessidades, visando a ampliação do acesso à justiça, garantindo, assim, às crianças e adolescentes o pleno exercício da cidadania.
Para o mais adequado desenvolvimento do tema, iremos primeiramente retomar os principais elementos que compõem o ideário do acesso à justiça. A célebre sistematização empreendida por Mauro Cappelletti, com suas três ondas renovatórias, será o pano de fundo da nossa abordagem.
Julgamos importante relembrar esses pontos por sentirmos que hoje em dia alguns desses aspectos são descurados, quase esquecidos. Fala-se muito em modificar a legislação processual para tornar o processo mais célere, o que é preocupação sem dúvida importante, mas o acesso à justiça certamente não se esgota nisso.
Faremos, desse modo, um brevíssimo apanhado do que consiste cada uma das ondas renovatórias, inclusive destacando o que se tem feito no Brasil em direção ao acesso à justiça, sob essas três perspectivas.
Tudo isso nos permitirá inserir o tema do trabalho no grande movimento do acesso à justiça e nos permitirá extrair conclusões mais coerentes.
II – O ACESSO À JUSTIÇA
Muito se tem falado em matéria de acesso à justiça, podendo-se dizer que se trata de uma das idéias-força que anima o processo civil contemporâneo. Falar em acesso à justiça implica quase necessariamente falar em Mauro Cappelletti, cujas lições sobre esse tema influenciaram profundamente a doutrina nacional a partir da década de 80. Particularmente importante nesse sentido foi o resultado do estudo “Projeto Florença”, minuciosa pesquisa, que gerou o ensaio, escrito em conjunto com o americano Bryant Garth, “Access to Justice – a worldwide movement to make rights effective”. O relatório geral, que compõe o primeiro volume da obra, foi traduzido para o português, e constitui a principal referência na matéria (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, s.p.).
Parte daí a identificação de três ondas dentro do movimento pelo acesso à justiça. A primeira onda, destinada a remover os obstáculos econômicos; a segunda, relacionada à tutela coletiva; e a terceira, chamada de “novo enfoque do acesso à justiça”, de conteúdo bastante amplo, envolvendo, por exemplo, mudança de procedimentos tendo em vista a melhor adequação à relação material, celeridade, mecanismos de tutela jurisdicional, enfim, tudo o que for necessário para tornar o processo mais efetivo.
Falemos mais um pouco de cada uma dessas ondas, que tem amplitude suficiente para captar a temática em sua inteireza. Vamos refletir brevemente sobre o que tem sido feito, em terras brasileiras, para aperfeiçoar nosso sistema de acesso à justiça.
Quanto à primeira onda, já se falava, há tempos, no “custo do processo e miserabilidade das pessoas” como algo que constituía o verdadeiro centro das preocupações (DINAMARCO, 1987, p. 392/393). As altas custas processuais, somadas às deficiências do sistema de assistência gratuita (DINAMARCO, 1987, p. 393/394) compunham um quadro que merecia cuidadosa atenção [1].
Uma das formas encontradas para minimizar o problema foi a criação dos Juizados de Pequenas Causas (Lei 7.244/84), que permitiu uma larga utilização do Judiciário por parte dos desprovidos de recursos financeiros, diminuindo aquilo que Kazuo Watanabe tão expressivamente denominou de “litigiosidade contida” (WATANABE, 1985, p.2).
A própria Constituição Federal deu um passo à frente quando previu expressamente no seu art. 5º, LXXIV, a garantia de que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”. Conforme se costuma destacar, a norma constitucional fala em assistência jurídica, e não apenas judiciária, o que significa dizer que a promessa constitucional envolve não apenas o amparo em juízo, mas, também, a assistência extrajudicial [2].
Por outro lado, a Constituição Federal de 1988 também foi positiva ao instituir a Defensoria Pública como o órgão responsável para realizar a missão de proporcionar assistência jurídica aos necessitados (art. 134) [3]. É certo que a efetiva implantação dessas defensorias fica a cargo de cada Estado-membro [4]. Todavia, ainda que dependente de fatores estruturais, a norma constitucional significou uma tomada de posição em face das várias alternativas existentes [5].
Sobre a segunda onda, que se destina a remover os óbices de legitimação ativa, podemos dizer que o avanço foi bastante grande. Partimos de uma legitimidade individual e restrita, identificada no art. 6º, CPC, para um sistema de tutela coletiva que desperta elogios da comunidade jurídica internacional.
A começar pela Constituição Federal de 88 que, como indica Horácio Wanderley Rodrigues (RODRIGUES, 1994, p. 60/61), operou as seguintes mudanças em termos de legitimidade:
“(a) as entidades associativas passaram a possuir legitimidade para representar seus filiados, judicial ou extrajudicialmente, quando expressamente autorizadas (art. 5.º, XXI); (b) ao Estado foi concedida a legitimidade para promover, na forma da lei, a defesa do consumidor (art. 5.º, XXXII); (c) aos partidos políticos com representação no Congresso Nacional foi dada a legitimidade para impetrarem mandado de segurança coletivo (art. 5.º, LXX, “a”); (d) as organizações sindicais, entidades de classe ou associações, desde que legalmente constituídas e em funcionamento há pelo menos um ano, foi concedida legitimidade para impetrarem o mandado de segurança coletivo em defesa dos interesses de seus membros ou associados (art. 5.º, LXX, “b”); (e) aos sindicatos foi atribuída a competência para a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judicais ou administrativas (art. 8.º, II); e (f) ao Ministério Público a legitimidade privativas para promover a ação penal pública, bem como a legitimidade para promover o inquérito civil e a ação civil pública com o objetivo de proteger o patrimônio público e social, o meio ambiente e outros interesses difusos e coletivos […]”
Essas diretrizes mais amplas da nossa Constituição foram acompanhadas de diplomas legais, em nível infraconstitucional, que mudaram a feição da tutela coletiva no Brasil. Referimo-nos particularmente à Lei da Ação Civil Pública, Código de Defesa do Consumidor e Estatuto da Criança e do Adolescente.
Através da legislação ordinária implantou-se uma sistemática bastante eficiente do ponto de vista processual. Foram identificados (e devidamente conceituados) três tipos de interesses coletivos (no sentido amplo da palavra): (a) interesses transindividuais de natureza indivisível e de titularidade de pessoas indeterminadas (ex: direito a um meio ambiente sadio); (b) interesses transindividuais indivisíveis, de titularidade de um grupo, categoria ou classe (ex: direito dos trabalhadores de uma certa categoria à proteção no exercício de sua função) e (c) interesses individuais homogêneos (ex: direito dos contribuintes de serem eximidos de pagar um imposto inconstitucional). Tudo conforme expressa claramente o art. 81 do CDC. Por outro lado, em simetria com essa divisão, o legislador, no art. 103, do mesmo Diploma Legal, mudou os rumos do tradicional instituto da coisa julgada, para permitir sua ampliação subjetiva, dependendo de determinadas circunstâncias. Para os interesses definidos na letra “a”, a coisa julgada produzirá efeitos erga omnes, salvo se julgada improcedente por insuficiência de provas; na “b” haverá coisa julgada ultra partes (isto é, abrangendo os membros daquele grupo, categoria ou classe), salvo improcedência decorrente de falta de provas; e “c”, em que a coisa julgada será erga omnes, mas apenas em caso de procedência.
É verdade que esse bem construído sistema de vez em quando sofre tentativas de diminuição de sua eficácia. É o caso, por exemplo, da lei 9494/97, que pretendeu confinar os resultados da ação civil pública ao território em que a demanda foi ajuizada, confundindo competência com coisa julgada [6]. Apesar dessas vicissitudes, o sistema de tutela coletiva se mantém e ganha novas promessas, com o anteprojeto de Código de Processo Civil Coletivo.
Quanto à terceira onda, podemos também dizer que atingiu em cheio as terras brasileiras. Nessa categoria estão inseridos todos os esforços para dotar o processo de mecanismos eficazes para atingir os seus escopos [7].
Essa é a onda mais ampla e, de certa forma, engloba as outras duas. Tudo o que puder ser feito para tornar o processo melhor em termos de qualidade e mais célere está envolvido nessa terceira onda. Cândido Dinamarco expressa muito bem a visão de que o acesso à justiça não pode ser confinado a limites estreitos de acesso ao Poder Judiciário, sendo bastante oportuno, a essa altura, reproduzir sua lição:
“Acesso à justiça não equivale a mero ingresso em juízo. A própria garantia constitucional da ação seria algo inoperante e muito pobre se se resumisse a assegurar que as pretensões das pessoas cheguem ao processo, sem garantir-lhes também um tratamento adequado. É preciso que as pretensões apresentadas aos juízes cheguem efetivamente ao julgamento de fundo, sem a exacerbação de fatores capazes de truncar o prosseguimento do processo, mas também o próprio sistema processual seria estéril e inoperante enquanto se resolvesse numa técnica de atendimento ao direito de ação, sem preocupações com os resultados exteriores. Na preparação do exame substancial da pretensão, é indispensável que as partes sejam tratadas com igualdade e admitidas a participar, não se omitindo da participação também o próprio juiz, de quem é a responsabilidade principal pela condução do processo e correto julgamento da causa. Só tem acesso à ordem jurídica justa quem recebe justiça”. (DINAMARCO, 2001, p. 115)
Como o mesmo autor resume em seguida, trata-se de qualidade-tempestividade-efetividade. A reforma processual empreendida sistematicamente desde os anos 90 é reflexo direto dessa terceira onda. A generalização da antecipação de tutela (art. 273), a nova tutela dos deveres de fazer, não-fazer e entrega de coisa (arts. 461 e 461-A), a audiência preliminar (art. 331), o cumprimento de sentença em substituição à antiga execução fundada em título judicial são alguns dos exemplos mais marcantes.
O esforço tem sido muito grande em termos de técnica processual. Aliás, alguns dos resultados obtidos são muito positivos. Ocorre que essa melhoria do acesso à justiça não se faz apenas em função de alterações da legislação processual em sentido estrito. É extremamente importante que a aparelhagem destinada a executá-la seja adequada. Em outras palavras, nossa preocupação também deve ser com a organização judiciária.
Marinoni já teve oportunidade de observar, há alguns anos que:
“Para a efetividade do acesso à Justiça e, em especial, da tutela jurisdicional é necessária uma boa organização judiciária.
Não basta a criação de novos órgãos, com o inevitável gasto de dinheiro, quando a organização judiciária não é pensada de forma racional e criteriosa.” (MARINONI, 1996, p. 50)
Entretanto, essa preocupação com a organização judiciária, quando existente, costuma voltar-se apenas para o aspecto da celeridade processual. Melhorar a organização judiciária, dotá-la de melhores recursos, como uma forma de combate à morosidade processual. Isso é realmente importante, mas o acesso à justiça transcende a esse aspecto. Devemos melhorar a organização judiciária também como forma de melhorar a qualidade da prestação jurisdicional.
José Renato Nalini manifestou preocupação específica com a organização judiciária, defendendo que a especialização – uma experiência bem sucedida em São Paulo – pode ser ampliada, dando diversos exemplos de situações em que ela revela-se conveniente, como no caso de demandas na área ambiental, que exige conhecimentos em áreas diversas, como geologia, biologia etc. (NALINI, 1994, p. 42/50)
É, entretanto, no contexto da atuação da justiça especializada das Varas da Infância e da Juventude que se inserem as preocupações do presente texto, no sentido de buscar suas características, peculiaridades e necessidades, visando a ampliação do acesso à justiça, garantindo, assim, às crianças e adolescentes o pleno exercício da cidadania.
III – DAS VARAS ESPECIALIZADAS DE PROTEÇÃO DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
Resultante de longa luta e pressão dos movimentos dos direitos das crianças e dos adolescentes, acompanhando a Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1959 e a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança de 1989, a sociedade e o Estado brasileiros assumem a responsabilidade constitucional de garantir um futuro digno aos mais jovens.
A Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei n. 8.069.90 – ECA inauguraram, assim, uma nova fase na história, até então trágica, da proteção da infância e da juventude no Brasil. Pela primeira vez a criança e o jovem passaram a serem tratados como sujeitos de direitos, desvinculados da família e da sociedade, o que representou, em termos jurídicos, mudança paradigmática no tratamento dos pequenos e dos mais jovens.
De fato, a nova legislação incorpora a doutrina jurídica da proteção integral, uma nova forma de se olhar a infância e a adolescência, colocando-as como prioridade e propondo um novo modelo de estruturação e gerenciamento das políticas públicas a elas destinadas.[8]
O art. 6º. do Estatuto da Criança e do Adolescente faz clara menção à condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento. Foi justamente essa percepção, ou seja, de que a temática da infância e da juventude pressupõem uma especialização, que motivou a criação de instâncias especializadas no julgamento de processos que envolvem a violação desses direitos, as chamadas Varas da Infância e da Juventude.
Galdino Bordallo assinala que sempre foi regra no direito brasileiro a existência de um juízo especializado no atendimento às crianças e adolescentes. O Código Melo Matos ( Decreto 17.943-A de 12 de outubro de 1927) criava, em seu art. 146, um juízo privativo dos menores abandonados e delinquentes no Distrito Federal. O Código de Menores ( Lei n. 6.697.79), em seu art. 6º. e 84, denominava de juiz de menores aquele com competência para conhecer das matérias constantes naquela lei (BORDALLO, 2009, p. 373).[9]
A denominada Justiça da Infância e Juventude constitui, na verdade, uma especialização da Justiça Estadual, conforme dispõe expressamente o art. 145 do Estatuto da Criança e do Adolescente e se constituía, até poucos anos, de apenas dois tipos: as Criminais, dedicadas a processos em que os adolescentes fossem considerados autores de atos infracionais, e as Cíveis voltadas para questões como suspensão e perda do poder familiar, adoção, guarda, tutela, autorizações de viagens de crianças e adolescentes e outros temas pertinentes.
A essas se acresceram as chamadas Varas Especializadas em Crimes Contra Crianças e Adolescentes, com competência anteriormente afeta às varas criminais comuns. Trata-se de experiência das mais inovadoras, que teve seu início na cidade de Recife, em 1992. É importante anotar a opinião Saulo de Castro Bezerra, ex-presidente da Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e da Juventude ( ABMP) no tocante a essa iniciativa pioneira:“ Até então, as Varas Judiciais sé eram concebidas pelo Poder Judiciário com base na natureza do crime. Ao ser instituída em razão da vítima, a Vara Privativa de Recife passa a cumprir a prioridade absoluta prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente”[10]
O disposto no art. 145 do Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece um critério quantitativo para a instalação de novas varas especializadas, determinando que caberá ao Poder Judiciário estabelecer a sua proporcionalidade por número de habitantes.
A realidade demonstra, entretanto, que somente em um pequeno percentual de comarcas se encontram instaladas varas especializadas da infância e juventude. [11]
A lacuna quantitativa somente traz prejuízos ao atendimento dos direitos dos quais crianças e adolescentes passaram a serem sujeitos. Não restam dúvidas de que as varas da infância e da juventude, com suas peculiares características, constituem o espaço privilegiado e ideal para o trato dos problemas e conflitos que envolvem esta população que tem tão peculiar condição. O auxílio diferencial de uma equipe interprofissional composta de profissionais com formação em serviço social, psicologia, pedagogia e educação permite que a autoridade judiciária faça uma análise mais real do caso “sub judice” (art. 150 e 151 do ECA).
Nesse contexto, vale lembrar, novamente, as preocupações do José Renato Nalini, no sentido da preparação dos juízes para o enfrentamento de determinadas situações. A existência de uma equipe auxiliar interprofissional não exclui a necessidade de preparo interdisciplinar dos juízes, com uma visão fora do mundo jurídico, possibilitando a outorga de uma prestação jurisdicional mais adequada, obviamente respeitados os princípios garantidores do Estatuto da Criança e do Adolescente (NALINI, 1994, p. 49).
O Conselho Nacional de Justiça tem demonstrado interesse na alteração das regras para a criação de novas Varas da Infância e da Juventude, pretendendo acrescer ao critério populacional estabelecido no Estatuto da Criança e do Adolescente e demais critérios quantitativos previstos nas leis estaduais de organização judiciária, índices de vulnerabilidade social (CNJ, 2010, s.p.).
A ausência de Varas Especializadas da Infância e Juventude faz com que se acresça à competência das Varas de Família as questões que tratem de Direito da Criança e do Adolescente. Aqui vale a interessante observação de Ricardo Nery Falbo de que tendo o Estatuto da Criança e do Adolescente acolhido a teoria da proteção integral à criança e ao adolescente, o que representou o fim da diferenciação do Código de Menores (Lei n. 6.697.79) entre menor em situação regular e menor em situação irregular, e tendo em vista o previsto no art. 28, no sentido de que a colocação em família substituta, mediante guarda, tutela ou adoção será feita independentemente da situação jurídica da criança e do adolescente, não há como, em princípio, deixar de reconhecer a competência do Juízo da Infância e Juventude para todas as hipóteses que envolvam crianças ou adolescentes.(art.98, inciso II do ECA)(FALBO, 2002, p.118)
No entanto, este nem sempre tem sido o entendimento dos juízes e tribunais, que insistem, em uma interpretação sistemática parcial do Estatuto da Criança e do Adolescente, atribuindo a competência das Varas da Infância e Juventude para as questões cíveis somente para as crianças e adolescentes em situação reveladora de ameaça ou violação de direito, que, na maior parte das vezes, se caracteriza pela “ falta” dos pais ou responsável, estando as demais sob a responsabilidade das Varas de Família. [12]Como bem explicita Ricardo Nery Falbo:
“A razão decisória constrói classificações jurisprudenciais da infância e da juventude recortadas do já revogado Código de Menores. Desta forma, a noção de “ falta” dos pais e responsável vem associada à idéia de irregularidade pela privação de condições essenciais à subsistência do menor e, portanto, à certa idéia de família definível em termos econômicos-financeiros, sob o qual não se agrupariam, por exemplo, os meninos de rua e seus pais e responsáveis” (FALBO, 2002, p.182).
Não se pretende, aqui, conferir excessiva ênfase ao trabalho dos juízes da Infância e Juventude e detrimento ao também especializado Juízo da Família, ou outros juízes da Justiça Comum. Trata-se, na verdade de tornar a Justiça mais eficiente em sua prestação, através da atuação de magistrados com afinidades, interesses e características mais intimamente ligadas às atribuições e responsabilidades, quando à frente de uma Vara da Infância e Juventude.
O Juiz da Infância e da Juventude possui uma diversidade de funções que o diferenciam dos demais. Não possui apenas competência para conhecer e julgar todos conflitos de interesses que cheguem às portas do Poder Judiciário, possuindo atribuições que fogem da esfera judicial de atuação. (arts. 95 e 149 do ECA ). Ao Juiz da Infância e Juventude caberá, também, o julgamento das ações civis públicas fundadas em interesses individuais, difusos ou coletivos afetos à criança e ao adolescente. ( arts. 213 e art. 148, inciso IV do ECA)
Para o exercício do cargo de Juiz de Direito da Infância e Juventude é necessário, assim, não somente conhecimento teórico e prático, mas sensibilidade para lidar com a problemática específica dessa população, formada por sujeitos mais frágeis, merecedores de maiores cuidados pelo legislador. Como salienta Galdino Bordallo:
“Deverá ele, em muitas situações, abandonar a imponência e a severidade que o cargo impõe e voltar a ser criança, a ser adolescente, para poder entender os anseios, as necessidades e as angústias pelas quais passam. Deverá saber conversar com a criança e o adolescente em pé de igualdade. O juiz da infância precisa ter um perfil especial, que nem todos os juízes de direito possuem” (BORDALLO, 2009, p. 374/375).
Ao juiz que atua na vara especializada é requerida, ainda, uma postura ativa e voltada ao cumprimento dos preceitos constantes da Constituição Federal, já regulamentadas do Estatuto da Criança e do Adolescente.
IV – CONCLUSÃO
A especialização do juiz é questão fundamental para o êxito da defesa dos direitos da criança e do adolescente. Não restam dúvidas de que as questões ligadas aos infantes e jovens devam ser tratadas por uma autoridade judiciária cuja postura seja de alguém “humanamente criativo e inquieto, no sentido de querer com a mente e com o coração o cumprimento dos direitos pertencentes às crianças e adolescentes” (VERONESE, 1997, p.207). Faz-se, também, necessário um conhecimento multidisciplinar, a ser aprimorado constantemente.
Somente um juiz especialmente sensível às questões dessa população carente estará preparado para decisões que não sejam somente reprodução do texto legal, mas que atendam aos interesses de jovens cidadãos abandonados pela família e pelo fracasso dos muitos programas sociais do governo brasileiro.
Por fim, cabe lembrar as lúcidas palavras de José Renato Nalini (NALINI, 1994, p. 49) no sentido de que na há como deixar de reconhecer que a intervenção do Poder Judiciário representa a plenitude do acesso à justiça e, sem dúvida, a sua resposta adequada, ao nosso ver, somente poderá advir se o juiz estiver preparado para reconhecer a racionalidade específica das questões a ele submetidas, que no caso da Justiça da Infância e Juventude, se expressa na promoção do mais amplo desenvolvimento da criança e do adolescente.
Informações Sobre os Autores
Carlos Augusto De Assis
mestre e doutor em Direito Processual pela Faculdade de Direito da Universidade São Paulo – professor de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie – advogado em São Paulo
Claudia Maria Carvalho do Amaral Vieira
mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade São Paulo. Doutorando em Direito do Centro de Pós-graduação do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC – professora das Faculdades de Direito da UNIFIEO e da Universidade São Judas.