Resumo: O presente artigo foi elaborado precipuamente com o escopo de desenvolver uma análise acerca das ações afirmativas, sopesando-as, sob a perspectiva dos direitos humanos. Tal apreciação se fará através da explicitação sobre suas raízes e quais os caminhos a percorrer-se para construir efetivamente uma sociedade fundada com bases sólidas na igualdade de gêneros. Nesta vênia far-se-á uma exposição acerca da concepção dos direitos humanos e, por conseguinte dos seus aspectos, numa visão jurídica-constitucional, a partir de uma perspectiva da sociedade nos tempos atuais e, ademais, verificando quais são os desafios a serem superados pela política das ações afirmativas na implementação da igualdade étnico-racial. Ainda na desenvoltura deste trabalho apresentar-se-á o caminho trilhado pelas mulheres, que estigmatizadas por aqueles que compõem o sexo masculino, travaram desde então uma luta em prol de conquistarem a igualdade e o seu respeito dentro da sociedade contemporânea. Nessa conjuntura histórica em busca da isonomia pontuar-se-á os principais fatos que caracterizaram o impulso internacional e a posteriori, seus reflexos no ordenamento jurídico brasileiro em prol da tutela de direitos dos grupos minoritários, demonstrando que a história de nosso país é muito rica e permeada de lutas sociais, características de um povo bravo e guerreiro.
Palavras-chave: Ações afirmativas. Direitos humanos. Igualdade de gênero.
Abstract: This article was prepared primarily with the aim of developing an analysis of affirmative action, weighing them, from the perspective of human rights. Such an assessment will be done by making explicit on its roots and what paths to go to effectively build a society founded on strong foundations in gender equality. Bowed far this shall be an exhibition about the human rights conception and therefore aspect of a legal and constitutional vision, from a perspective of society in modern times and, in addition, checking what are the challenges to be overcome by the policy of affirmative action in implementing the ethnic and racial equality. Yet, the nimbleness of this work present shall be the path taken by women who stigmatized by those who make up the male fought since then a struggle for equality and win their respect within contemporary society. In this historical juncture in search of equality rate shall be the main facts that characterized the international momentum and a posteriori, their reflections in the Brazilian legal system for the sake of protection of rights of minority groups, demonstrating that the history of our country is very rich and permeated with social struggles characteristics of a brave, warlike people.
Keywords: Affirmative action. Human rights. Gender equality.
Sumário: 1. Introdução. 2. A concepção dos direitos humanos. 2.1 Legislação Brasileira no percurso à percepção da igualdade. 3. Aplicação das ações afirmativas no universo feminino. 4. Considerações finais.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo foi elaborado essencialmente sob o intuito de explanar sobre algumas considerações relevantes ao que tange as ações afirmativas e consequentemente seu viés de ligação com os direitos humanos.
Essa pesquisa operacionalizou uma análise da discussão engendrada acerca da concepção dos direitos fundamentais, desde a sua inferência como constituinte de um núcleo básico existencial da pessoa humana perpassando pelos objetivos de sua implementação frente a um Estado que inicialmente se integrava em uma atuação essencialmente negativa, qual seja, de se abster de agir na vida em sociedade, frente à idealização da primeira dimensão de direitos e que aos poucos, em consonância com a demanda de cada época e dimensão de direitos foram sendo implementados.
Este trabalho foi realizado através de pesquisa teórica, a partir de uma abordagem transdisciplinar da temática, com estudos na área Jurídica, no âmbito nacional e internacional, na História, Sociologia, Filosofia e Psicologia. Amparado por uma investigação essencialmente bibliográfica, inicialmente busca-se enaltecer as ações afirmativas à luz dos direitos humanos, de modo a expor acerca da abordagem conceitual e quais os reflexos dentro da sociedade em vista de sua implantação.
Outrossim, se discorrerá sobre a essência dessas garantias e seu liame com o princípio da igualdade, expondo dentro da conjuntura histórica os entraves enfrentados e a sua desenvoltura até os presentes dias. O substrato empírico se revela e centra-se na análise das legislações internas e internacionais que ratificaram e contribuíram para a criação de políticas públicas afirmativas em prol do combate à desigualdade de gênero.
Em que pese o objetivo não seja realizar uma dissertação exaustiva acerca das ações afirmativas expor-se-á alguns traços marcantes no percurso das mulheres à conquista de direitos.
2. A CONCEPÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
A priori, ao iniciar uma dissertação acerca dos direitos humanos mister faz-se compreender que eles são o resultado de uma construção histórica, demonstram-se como o fruto de buscas incessantes pelo alcance de direitos essenciais e intrínsecos à própria existência da pessoa humana, pois constituem direitos fundamentais compositores de um núcleo duro existencial básico.
A essência desses direitos é produto da fusão de várias fontes, desde as tradições arraigadas nas mais distintas civilizações até a conjugação dos pensamentos filosóficos jurídicos, das concepções nascidas com o cristianismo e com o direito natural[1].
Esses pensamentos fundaram-se na necessidade de limitar e controlar os abusos de poder do próprio Estado e das autoridades constituídas e ainda, a consagração dos princípios basilares da igualdade e da legalidade como premissas fundamentais de uma sociedade hodierna. Como reinvindicações morais, os direitos humanos nascem quando devem e podem nascer[2]. Como enfatiza Norberto Bobbio, os direitos humanos não nascem todos de uma vez e nem de uma vez por todas[3].
Nesta performance os direitos humanos são interpretados como um conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano, produto de um processo histórico que tem por finalidade o respeito à dignidade, à vida, à liberdade e à proteção contra o arbítrio do poder estatal, proporcionando subsídios a existência de condições mínimas de vida e de desenvolvimento da personalidade humana.
Esse entendimento além de se referir a princípios que resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservado para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, igual de todas as pessoas[4].
Dentro da gama de direitos e garantias que foram sendo instituídos se amolda o princípio da igualdade, conjecturado como um salvaguarda do mínimo essencial dos direitos humanos fundamentais ele se revela como um postulado fundamental, deste modo, sua precípua função é obstar discriminações e extinguir privilégios analisada em dois aspectos, quais sejam, a igualdade na lei e a igualdade perante a lei.
A partir das Revoluções liberais dos séculos XVII e XVIII o direito à igualdade traçava suas marcas à retórica jurídica. Destarte que até não muito tempo atrás a mulher não era incluída entre o universo dos “iguais”. Em que pese à afirmação de que todos eram iguais, uns eram de fato menos iguais do que os outros e, o mundo feminino aqui se enquadrava.
A alusão a exemplos é muito fácil como ao referir-se que as mesmas sequer tinham direito ao voto, alcançado no Brasil somente na década de 30, ou ainda, mencionar que num lapso temporal não muito longínquo os homens é que eram os “chefes da casa” ou o “chefe do casal” [5].
Sopesando as considerações já delineadas, ao que concerne aos direitos humanos, sucintamente se explorará as questões que envolvem a discussão acerca do ordenamento jurídico brasileiro na trajetória engendrada em prol do direito à igualdade.
2.1. LEGISLAÇÃO BRASILEIRA NO PERCURSO À PERCEPÇÃO DA IGUALDADE
A concepção da igualdade, historicamente, se demonstrou como um desígnio a ser alcançado pelas políticas públicas brasileiras, miscigenado por movimentos sociais que exigiam uma postura mais ativa do Poder Público frente a questões de desigualdade e discriminação quanto à raça, etnia e gênero.
Observar o modo como políticas que respondam a essas demandas vão sendo constituídas e as implicações que trazem para a sociedade exige uma compreensão dos seus antecedentes sociais e históricos e do desenvolvimento das conjunturas políticas e das ações coletivas que as tornaram possíveis[6].
Diante dessa perspectiva, seguindo essa linha de raciocínio, indicar-se-á alguns dos acontecimentos e discussões que influíram na forma como as ações afirmativas estão sendo delineadas hoje no Brasil, especialmente aquelas voltadas para a questão da discriminação e desigualdades de gênero.
Em 1968, encontra-se o primeiro assentamento registrado em torno da implantação de Ação Afirmativa no Brasil, através de pareceres de técnicos do Ministério Público do Trabalho e do Tribunal Superior do Trabalho manifestando-se aderentes à promulgação de uma lei que obrigasse as empresas privadas a manter uma percentagem mínima de empregados de cor (20%, 15% ou 10%, de acordo com o ramo de atividade e a demanda), como única solução para o problema da discriminação racial no mercado de trabalho[7]. Contudo, esta lei nem chegou a ser elaborada.
No mesmo ano o Estado brasileiro ratificou a “Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial” assumindo a partir desta, compromissos jurídicos internacionais, inclusive sobre a adoção de políticas afirmativas.
Apenas em 1983 ocorreu a primeira formulação de um projeto que versasse sobre esse assunto, sendo a Lei nº 1.332 formulada pelo Deputado Federal Abdias Nascimento, que propunha uma ação compensatória estabelecendo mecanismos amenizadores da discriminação para o afro-brasileiro. Entre as ações figuravam: reserva de 20% de vagas para mulheres negras e 20% para homens negros na seleção de candidatos ao serviço público; bolsas de estudos; incentivos às empresas do setor privado para a eliminação da prática da discriminação racial; incorporação da imagem positiva da família afro-brasileira ao sistema de ensino e à literatura didática e paradidática, bem como introdução da história das civilizações africanas e do africano no Brasil. No entanto, o projeto não foi aprovado pelo Congresso Nacional, mas, as reivindicações continuavam através das mobilizações em prol da solução dos problemas raciais existentes no país.
Logo em 1984, o governo brasileiro decretou que a Serra da Barriga, local do antigo Quilombo dos Palmares, se tornasse patrimônio histórico do país. Em 1988, motivado pelas manifestações por ocasião do Centenário da Abolição, cria a Fundação Cultural Palmares vinculada ao Ministério da Cultura a qual teria a função de servir de apoio à ascensão social da população negra.
Ainda em 1988 com a promulgação da Constituição Federal o contexto histórico começa a se alterar positivamente, vez que, essa lei suprema trazia em seu texto a inclusão dos objetivos da República Federativa do Brasil, quais sejam, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, mediante a redução das desigualdades sociais e a promoção do bem de todos, sem quaisquer formas de discriminação.
Ela consagrou o princípio da igualdade como um direito fundamental básico, inserindo-o no artigo 5º, caput e no inciso I, este último, declarando que “homens e mulheres são iguais, nos termos desta Constituição”.
A Carta Magna ainda estabeleceu importantes dispositivos que demarcam essa busca de igualdade destacando o artigo 7º, inciso XX, que trata da proteção do mercado de trabalho da mulher mediante incentivos específicos, bem como o artigo 37, inciso VII, que determina que a lei reservará percentual de cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência.
A partir desse momento, as políticas públicas garantidoras da igualdade material começaram a surgir em nosso país.
Ademais, quanto à lei infraconstitucional, ressalta-se a chamada “Lei das Cotas” de 1995 (Lei n. 9.100/95) que dispôs sobre a reserva de candidaturas dos cargos às mulheres de ao menos 20% às eleições municipais. Acrescenta-se, além disso, o Programa Nacional de Direitos Humanos criado em 1996 que faz expressa alusão às políticas compensatórias, prevendo como meta o desenvolvimento de ações afirmativas em favor de grupos socialmente vulneráveis.
Em novembro do mesmo ano, o Presidente da República instituiu o Grupo de Trabalho Interministerial com o intento de desenvolver políticas de valorização e promoção negra realizando dois seminários sobre ações afirmativas. Este grupo permanece até hoje, entretanto possui recursos muito limitados e, por conseguinte, impacto restrito na nossa sociedade.
Mister faz se, ainda, destacar o Programa de Ações Afirmativas na Administração Pública Federal e a adoção de cotas para afrodescendentes em universidades – como é o caso da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ –, da Universidade do Estado da Bahia – Uneb –, da Universidade de Brasília – UnB –, da Universidade Federal do Paraná – UFPR –, entre outras.
Inobstante a observação da igualdade como extensão universal dos direitos humanos, como um princípio, deve-se buscar não somente essa igualdade formal, pois a ideia de igualdade no Estado Democrático de Direito não se resume a essa isonomia, mas, principalmente à igualdade material, na medida em que a lei deverá tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades[8].
Mas o que isso significa?
De um modo sintético significa que apesar de todos serem iguais perante e para a lei, sendo detentores de direitos de modo isonômico dentro da sociedade, em razão das diferenças entre as pessoas (sexo, cor, raça, idade, etc.) advindas dos aspectos físico-psicológicos e culturais, postula-se um tratamento desigual, sendo necessário refletir sobre essa discriminação aplicável a cada situação, para que não ocorra a agressão aos objetivos do princípio da igualdade.
Nesta esteira de pensamento uma sociedade que se denomina inclusiva necessita vitalmente construir e aplicar o Direito de modo a promover no plano dos fatos a igualdade material entre os indivíduos, reduzindo os desníveis sociais e as discrepâncias de poder existentes.
Neste pano de fundo é que se insurge a preocupação com os grupos mais vulneráveis, subjugados numa perspectiva histórica, como os afrodescendentes, as mulheres, os pobres e os homossexuais. A proteção efetiva dos direitos fundamentais dos integrantes destes grupos é um trabalho fundamental para a construção de uma sociedade livre, justa, solidária e pluralista, em conformidade com a magnânima ideação do constituinte.
Atento a uma perspectiva histórica, a concepção da necessidade de se implementar uma proteção em face dos direitos humanos se deu com a trágica ocorrência do período nazista. Este foi um marco para introdução da concepção de que deveria existir uma atuação das leis contra a ingerência do Estado, em prol de garantias fundamentais dos cidadãos.
Neste percorrer, adveio a Declaração de 1948 que precipuamente veio a conjugar o valor da liberdade ao valor da igualdade, dando ênfase à universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos. Inobstante ao escopo para o qual foi criada, sua instituição comportou o processo e formação de um sistema internacional de proteção aos direitos humanos, dada sua relevância em âmbito mundial.
Consignado a essa intuição internacional nosso país, num delinear histórico, veio a aderir a proteção dos direitos humanos na Constituição da República Federativa Brasileira de 1988, concentrando a tutela dos direitos da personalidade, elencados principalmente em seu artigo 5º, quais sejam à igualdade, liberdade, vida, propriedade, entre outros. Concluindo-se que, a adoção dos valores vitais da pessoa humana, o sistema internacional com o nacional e regional se complementam, destacando a primazia a tais direitos.
Partindo dessas premissas, conduzindo-se a uma salvaguarda dos parâmetros protetivos mínimos, ou seja, do mínimo ético irredutível[9], e considerada a vultuosa e deplorável existência de discriminação e opressão exercidas em face de componentes de grupos vulneráveis, no contexto de uma sociedade profundamente assimétrica como a brasileira, que ainda carrega fortes traços de racismo, machismo, elitismo e homofobia, encontra-se frequentemente mascarada pela linguagem abstrata e aparentemente neutra das leis é que foram adotadas as chamadas "políticas de ações afirmativas".
Pois bem, o que são elas e pra que servem?
As ações afirmativas são normas jurídicas, intituladas como instrumentos de inclusão social. Tratam se de medidas especiais e temporárias, desenvolvidas precipuamente com o fim de perquirir uma remediação a um passado discriminatório, acelerando o processo de alcance a uma igualdade perante os membros de uma sociedade, protegendo os direitos humanos e as liberdades fundamentais.
Lutar contra a desigualdade e promover a inclusão são ditames de justiça dentro de uma visão específica desenvolvida por essa política afirmativa, mas, que demanda modéstias a parte, a exacerbação do espírito crítico e ainda, a elevação do manto diáfano das formas e aparências, que desvelará, muitas vezes, o preconceito e a dominação, na sua crua nudez. Torna-se fundamental, em suma, analisar como determinadas normas e institutos, às vezes de longínqua origem, repercutem sobre os segmentos sociais mais frágeis, vítimas imemoriais do preconceito e da exclusão[10].
Em que pese toda essa dialética, é importante que não se confunda a igualdade com a homogeneidade. Respeitar a igualdade, de acordo com a maestria dworkiniana, é “tratar a todos com o mesmo respeito e consideração”. E não se trata com o mesmo respeito e consideração um outsider ou integrante de um grupo minoritário, que não compartilhe dos mesmos valores, estilo de vida e projetos da maioria hegemônica, quando não se reconhece o seu direito de ser diferente e de viver de acordo com esta diferença. Como afirmou Boaventura de Souza Santos – autor que não pertence à mesma escola intelectual de Dworkin, mas que parece em sintonia com ele neste ponto – “temos o direito de ser iguais quando a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza”[11]. Aliás, poder-se-ia talvez emendar o grande sociólogo português, afirmando que o direito à diferença não está em colisão com a igualdade, mas é antes uma importante faceta sua.
Com o olhar de transformação é que se primou pela necessidade de se criar um instrumento para eliminar ou ao menos esmaecer esses preconceitos e diferenças entre os cidadãos. De certa forma, percebeu-se que era inaceitável que humanos viventes em um mesmo universo e que de certa forma são iguais em sua essência sejam discriminados por sua cor, raça ou gênero, assim, nesse contexto é que surgiram as ações afirmativas.
3. APLICAÇÃO DAS AÇÕES AFIRMATIVAS NO UNIVERSO FEMININO
É com base nestas premissas teóricas expostas que se aborda a desigualdade criada em desfavor das mulheres, pois que, viola a igualdade entre os gêneros, na medida em que as subjuga, atribuindo-lhes uma condição de inferioridade, de menosprezo e ainda, tratando de forma tendente a perpetuar a assimetria de poder entre os gêneros presente em nossa sociedade.
Quando se aduz ao termo "gênero" dentro da concepção da ciência sociológica ou humanitária, mister faz ressaltar que, seu conceito não se resume somente a pertinência a um objeto ou a um instrumento de análise, mais se vai muito além. Destarte, trata-se de um meio de autoconstrução humana no seio das relações sociais que devem pautar-se na justiça e na equidade, seja no reconhecimento quanto no respeito às diferenças, rompendo, assim, com a visão de determinismo biológico até então carregado por uma trajetória histórica e cultural. Pois, até mesmo a força da linguagem se configura como elemento que corrobora para a afirmação do masculino como regra e como algo que aparece de forma supostamente natural e representado como norma nas relações sociais[12].
Em que pese a vigência de normas que prezem pela existência e aplicação da igualdade no seio social, o emprego e efetividade prática destas não ocorrem em sua completude. Os avanços em busca ao avanço a essa "igualdade" vêm acontecendo de uma forma lenta e haverá muito ainda a se cumprir para que isso realmente ocorra.
Tais considerações são feitas com base no argumento de que, utilizando-se, como exemplo, o sexo feminino, o machismo é algo muito forte no corpo social brasileiro e não só nele, mas, como na maioria dos países do mundo. As mulheres aos poucos vêm conquistando muitos lugares que, antes eram só ocupados pelos homens, principalmente cargos de maior representatividade social, como por exemplo, os políticos ou ainda os trabalhos considerados "mais pesados", como o da construção civil.
Elas vêm galgando, paulatinamente, as posições que eram exercidas preferencialmente por indivíduos do sexo masculino, na indústria, no comércio, no magistério, nas ciências sociais, nas ciências humanas, enfim em todos os ramos e nas mais variadas profissões.
Destarte que estas realizações são frutos de um grande batalha e manifestações de um grupo de pessoas que vêm despendendo grande força de vontade e que detém capacidade para conquistar e desenvolver as mesmas funções que os homens desempenham, na maioria das vezes de uma forma melhor.
Porém, há ainda muito a melhorar para que se cumpra o mandamento constitucional. Uma das tarefas indispensáveis é a revisão dessa altivez machista. A igualdade como sendo um direito humano inerente a qualquer indivíduo, segundo Herrera Flores, traduz um processo que abre e consolida espaços de luta pela dignidade humana[13].
No mesmo sentido, Celso Lafer, lembrando Danièle Lochak, realça que, os direitos humanos não são nem a história de uma marcha triunfal, nem a história de uma causa perdida, de antemão, mas a história de um combate[14].
A mulher submissa tratada como "sexo frágil" é fruto de um pensamento que foi corroborado por normas elaboradas no passado, por um legislativo composto quase exclusivamente por homens, que elucubram estereótipos saturados de preconceitos e que implicam no congelamento ou até no aprofundamento da desigualdade entre os gêneros.
Para conceber esta tarefa de igualitarização é essencial, como afirmou Flávia Piovesan, “criar uma doutrina jurídica sob a perspectiva de gênero, que seja capaz de visualizar a mulher e fazer visíveis as relações de poder entre os sexos”, o que seguramente demandará a análise do “padrão de discriminação e as experiências de exclusão e violência sofridas por mulheres"[15]. Assim, o direito passará a ser um instrumento para realizar as transformações culturais necessárias e melhorar a condição de vida dessas pessoas no meio social.
A adoção de políticas é um compromisso a ser assumido por todos os meios apropriados e sem demora em implantar a igualdade no exercício dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. Entre os objetivos dessas ações encontra-se a busca por uma igualdade de oportunidades. Bobbio[16] aduz, quanto ao princípio da igualdade de oportunidades, que “[…] tem como objetivo colocar todos os membros daquela determinada sociedade na condição de participar da competição pela vida, ou pela conquista do que é vitalmente mais significativo a partir de posições iguais”.
Essa igualdade alvo de uma busca premente pelas ações afirmativas é um objetivo quisto ao longo dos séculos e retrata-se como uma das principais preocupações de grupos feministas, em detrimento da situação de discriminação e desvantagem por tempos sofridos.
Esses critérios podem servir de parâmetros para a aplicação destas discriminações positivas, na medida em que, segundo as lições de David Araujo e Nunes Júnior, o constituinte tratou de proteger certos grupos que, a seu entender, mereceriam tratamento diverso. Enfocando-os a partir de uma realidade histórica de marginalização social ou de hipossuficiência decorrente de outros fatores, cuidou de estabelecer medidas de compensação, buscando concretizar, ao menos em parte, uma igualdade de oportunidades com os demais indivíduos, que não sofreram as mesmas espécies de restrições[17].
Com o intuito de demonstrar e esclarecer melhor a atuação das ações afirmativas no universo feminino pode se citar a indicação de uma mulher para o Supremo Tribunal Federal, órgão máximo do Poder Judiciário Brasileiro.
Ellen Gracie Norhfleet foi a primeira mulher a integrar o STF, tendo tomado posse na data de 14 de dezembro de 2000. Conforme assegurou o Ministro Celso de Mello, o ato de escolha da Ministra Ellen Gracie para o Supremo – além de expressar a celebração de um novo tempo – teve o significado de verdadeiro rito de passagem, pois inaugurou de modo positivo, na história judiciária do Brasil, uma clara e irreversível transição para um modelo social que repudia a discriminação de gênero, ao mesmo tempo em que consagra a prática afirmativa e republicana da igualdade[18].
Nesta ótica, na maestria das palavras de Marcelo Campos Galuppo, as ações afirmativas se traduzem em medidas públicas e/ou privadas, coercitivas ou voluntárias, praticadas com vista à promoção da inclusão social, jurídica e econômica de indivíduos ou grupos sociais/étnicos tradicionalmente discriminados por uma sociedade[19].
Assim, a implementação do direito à igualdade é crucial para que se intensifiquem e se aprimorem ações em prol do alcance dessas duas metas que por serem indissociáveis hão de ser desenvolvidas de forma conjugada. Há assim que se combinar estratégias repressivas e promocionais, que propiciem a prática de um direito isonômico.
Apoiado a essa idealização é que se criou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a mulher em 1979. Ela aponta esta dupla vertente, qual seja a primeira como repressivo-punitiva que condiz à proibição e à eliminação da discriminação racial e a segunda sendo a linha promocional que versa sobre à promoção da igualdade, apresentando deste modo, um projeto efetivo na construção da isonomia.
Dada à magnificência desta convenção sua composição conta com 170 Estados-parte, inclusive o Brasil que o ratificou no ano de 1984. Sua essência constituiu-se no resultado de reivindicações do movimento de mulheres a partir da primeira Conferência Mundial sobre a Mulher realizada no México em 1975.
No que concerne à violência contra a mulher, cabe mencionar à Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher, aprovada pela ONU em 1993, bem como à Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (“Convenção de Belém do Pará”) de 1994. Ambas reconhecem que a violência contra a mulher, no âmbito público ou privado, constitui grave violação aos direitos humanos e limita total ou parcialmente o exercício dos demais direitos fundamentais. Importante consignar que quanto à acepção de violência, esta última se demonstrou abrangente e definiu que a constitui "qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública, como na privada".
No que tange à legislação brasileira na tutela da mulher em face à violência, um marco histórico a se destacar é a lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, delineada com vistas à implantação de medidas severas para coibir a violência doméstica e familiar, com reflexos no âmbito civil e penal. Esse regulamento é um exemplo significativo da influência das ações afirmativas como medida de política pública contra a discriminação da mulher, atento a prescrição do artigo 226, § 8º da nossa Carta Magna que dispõe ter o Estado o dever constitucional de criar mecanismos para coibição da violência doméstica.
Em consonância com os acontecimentos já explicitados e, ademais segundo o entendimento de Flávia Piovesan[20], uma avaliação das últimas três décadas aufere se afirmar que o movimento internacional de proteção de direitos humanos das mulheres centralizou como focos principais a questão de discriminação contra a mulher, a violência e os direitos sexuais e reprodutivos.
Em relação à última questão citada, em 1994 na Conferência do Cairo sobre População e Desenvolvimento, 184 Estados conheceram os direitos reprodutivos como direitos humanos. Nela se afirmou como um direito fundamental o controle relativo à sexualidade e à saúde sexual e reprodutiva, assim como a decisão livre de coerção, discriminação e violência. Ademais, há uma recomendação internacional de que sejam revistas as legislações punitivas em relação ao aborto, a ser reconhecido como um problema de saúde pública. Em 1995 as Conferências internacionais de Copenhague e Pequim reafirmaram a concepção tida em Cairo.
Na esfera brasileira uma decisão recente e de demasiada relevância para as mulheres se trata da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 julgada pelo STF em 2012.
Os princípios fundamentais tutelados constitucionalmente são direitos humanos codificados no ordenamento jurídico. Deste modo, estes além de funcionarem como limitadores para os órgãos jurisdicionais são plataformas basilares que se pauta o Estado para zelar por eles. Assim, são o norte e limite da lei e respectivamente de seus operadores que através de instrumentos por ela garantidos assegurem sua aplicabilidade. Nesse liame é que o Supremo Tribunal Federal, órgão máximo e supremo do poder jurisdicional realizou sua função ao analisar e julgar a ADPF n° 54, como um dever que a ele incumbia em dar solução a uma questão de muitos conflitos e polêmica.
A premissa básica discutida na Arguição se desenvolveu objetivamente no escopo principal de conceder autorização da interrupção da gravidez de fetos anencéfalos e que após uma vultosa análise foi julgada procedente.
Neste viés, apresentando as hipóteses de aborto que legalmente no ordenamento jurídico eram admitidas e não se enquadrando a presente situação como integrante permissiva sua discussão foi levantada, a bem de regulamentar uma situação vivida por milhares de mulheres em nosso país sendo, portanto, mais um direito alcançado pelo sexo feminino.
De todo o exposto é possível consignar que o alcance de muitos direitos se aperfeiçoou por meio de conquistas, ao delinear de uma história marcada por muitos entraves e lutas, mas, que aos poucos e com apoio de instrumentos eficazes vão se efetivando.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os esboços conceituais da isonomia e sua perspectiva dentro da constitucionalidade, expostos no presente artigo, traçam os contornos gerais dos ideais a serem alcançados não só em vista do princípio da igualdade, mas, de modo geral a ser perquirido pelas políticas afirmativas.
Nesta performance a igualdade deveria funcionar como um princípio inspirador e ademais, regulador do tentame constitucional. Desta forma, como um alvo a ser conquistado pela sociedade, em meio a manifestações e reivindicações de um povo que almeja ter de fato e não apenas no direito um tratamento equitativo, demanda-se do Estado uma postura e um efetivo trabalho em prol de alcance a esse objetivo.
Diante dessa cobrança da população em face do Estado é que surgem as ações e políticas afirmativas, como contexto de concretização exemplificadora de um trabalho jurídico-político. Embora elas ainda não sejam dotadas de efetividade suficiente para eliminar as desigualdades históricas, vez que o preconceito é um mal cultural, elas desempenham um papel fundamental na redução das desigualdades.
As políticas se traduzem em instrumentos que visam proporcionar o ressarcimento por toda a dor e subjugação que permearam as minorias nas mais diversas sociedades. É uma forma de, em meio ao presente Estado Democrático de Direito, promovermos a igualdade material, baseada não apenas em mérito, mas em necessidades. Este processo de humanização das minorias ainda é permeado de lacunas não resolvidas, mas é notório que o tema constará cada vez mais nas pautas de discussão dos Estados democráticos.
No Brasil o tema ainda não é muito articulado, mas já demonstra eficácia em sua aplicação, como no caso da Lei Maria da Penha que visa coibir a violência doméstica. Deve-se ter em mente, sobretudo, os princípios da liberdade e da igualdade, tomando as ações afirmativas como mecanismos necessários para a concretização da inclusão social, da proteção dos direitos humanos e do fim do preconceito frente às minorias, construindo assim, uma igualdade entre gênero, não só no plano jurídico, mas, também no plano fático.
Informações Sobre o Autor
Daniela Daijane de Souza Leal
Advogada. Pós graduanda em Direito Aplicado na Escola da Magistratura do Paraná EMAP