Resumo: O presente artigo examina as denominadas ações afirmativas de gênero que, há muito, existem no ordenamento jurídico brasileiro como um instrumento de efetivação da verdadeira igualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho. Através de uma pesquisa essencialmente bibliográfica, primeiramente discorre-se sobre o princípio da igualdade. Posteriormente, verificam-se convenções internacionais, normas constitucionais e dispositivos insertos na CLT que objetivam tutelar o mercado de trabalho da mulher. Outrossim, analisam-se argumentos contrários e a favoráveis às ações afirmativas de gênero, bem como que critérios devem ser seguidos para que essas não firam o princípio da igualdade.
Palavras-chave: Trabalho da mulher. Ações afirmativas. Princípio da igualdade. Gênero. Discriminação
Abstract: The present article examines the so-called gender affirmative actions, which have been part of the Brazilian legal system for long as a means of making equality between men and women in the job market more effective. Through a bibliographical research, first and foremost the principle of equality is verified. Subsequently, relevant international conventions, constitutional and infraconstitucional laws are analysed. Furthermore, arguments against and for affirmative actions are discussed, as well as, which criteria have to be followed so that affirmative actions do not contradict the principle of equality.
Keywords: Women’s work. Affirmative actions. Principle of Equality. Gender. Discrimination
Sumário: 1Introdução. 2 O Princípio da Igualdade: das origens à Constituição Brasileira de 1988. 3. Ações Afirmativas e Combate à Discriminação no Mercado de Trabalho.3.1 Conceito e origem. 3.2 Ações Afirmativas de Gênero: Instrumento contra a Discriminação Ilegítima. 3.3. Ações Afirmativas no Âmbito Internacional. 3.4 Ações Afirmativas nas Constituições Brasileiras 3.5 O Direito do Trabalho da Mulher na Legislação Infraconstitucional. 3.5.1 O momento da “proteção”. 3.5.2 O momento da luta pela promoção da igualdade. 4. Ações Afirmativas e Trabalho da Mulher: Uma Análise Crítica.4.1 Argumentos Contrários e Favoráveis às Ações Afirmativas. 4.2 Analisando a Constitucionalidade das Ações Afirmativas em Face do Princípio Isonômico. 5.Considerações Finais. 6. Bibliografia. 7. Notas.
1. Introdução
A idéia de isonomia é exigência moral em um Estado democrático de direito. Através da análise de inúmeros dispositivos constitucionais, a exemplo do art. 5º, I da CF/88 que preceitua que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, percebe-se o quanto o princípio da igualdade entre os sexos representa para uma sociedade democrática.
Todavia, ocorre que esse cuidado em estabelecer a equiparação entre os sexos não impediu o constituinte de adotar tratamento diferenciado em dispositivos do art. 7º, mais especificamente, quanto à licença-maternidade (art. 7º, XVIII e XIX), que, em consonância com o arts.7º, XX e XXX, tutelam o mercado de trabalho da mulher, haja vista que uma das principais causas da discriminação da mulher no mercado de trabalho é o fato da mesma dar a luz e de ser responsável pela criação dos filhos. Em nível internacional, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), ao longo dos anos, vem editando uma série de convenções e recomendações que protegem a mulher no mercado de trabalho, sendo muitas dessas ratificadas pelo Brasil. Por fim, a legislação infraconstitucional, compilada na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), desde 1934, apresenta dispositivos que corroboram medidas protecionistas sobre o trabalho da mulher.
Essas são as chamadas ações afirmativas de gênero e que serão objeto de análise dessa pesquisa. Destarte, em suma, defendemos a idéia de que as ações afirmativas não são tão recentes assim; nova, portanto, é a denominação.
Saliente-se que, mesmo diante de inúmeros avanços legislativos, as estatísticas revelam que, no Brasil, a discriminação de gênero é latente, encontrando-se refletida no próprio código lingüístico, nas atitudes dos indivíduos e, por conseguinte, no mercado de trabalho nacional. Diante dessa situação, surgem controvérsias quanto à necessidade ou não de adotar legislações específicas, que visam solucionar fenômenos de intolerância, a exemplo do sexismo.
Nesse diapasão, de um lado posicionam-se aqueles que defendem que a positivação de ações afirmativas fere o princípio da igualdade preconizado pela Constituição Federal de 1988. Outros, em contrapartida, sustentam a importância de implementar políticas públicas, objetivando a conquista de uma sociedade mais igualitária, onde todos, independentemente de raça, cor, idade e sexo, tenham as mesmas oportunidades. Em outras palavras, as ações afirmativas não contradizem o princípio da igualdade, e sim, servem como uma ferramenta para a conquista da igualdade real, ou pelo menos, como uma forma de reduzir as disparidades que afetam as minorias.
Este estudo, portanto, foi desenvolvido com o intuito de analisar a legislação que protege o mercado de trabalho da mulher, qual seja, normas internacionais, constitucionais e infraconstitucionais. A par disso, procurou-se apontar quais os limites a serem respeitados para que a legislação brasileira não contradiga o princípio da igualdade entre os sexos. Afinal de contas, uma proteção exacerbada pode resultar em maior discriminação.
2 O Princípio da Igualdade: das origens à Constituição Brasileira de 1988.
Tendo sido criado pelo homem, o princípio da igualdade reflete os valores das sociedades. Dessa feita, a sua acepção varia no tempo e no espaço. Ressalte-se, portanto, que, para que se verifique a inserção do princípio da igualdade na Constituição Brasileira, é necessário fazer uma breve análise de sua evolução ao longo da História.
Na Antiguidade, a regra era a desigualdade, pois só quem tinha poder e riqueza era detentor de privilégios. Aos demais, restava aceitar os mandos e desmandos dos poderosos. Quem bem define esse momento de desigualdade é Carmem Lúcia Antunes Rocha[1]
“[…] a sociedade cunhou-se ao influxo de desigualdades artificiais, fundadas, especialmente, nas distinções entre ricos e pobres, sendo patenteada e expressa a diferença e a discriminação. Prevalecem, então as timocracias, os regimes despóticos, asseguraram-se os privilégios e sedimentaram-se as diferenças, especificadas em leis. As relações de igualdade eram parcas e as leis não se revelavam, nem, resolviam as desigualdades.”
Esse estado de desigualdade não quer dizer que, na Antiguidade, não se almejava a paridade, mesmo porque filósofos, como Platão e Aristóteles, deixaram suas idéias sobre igualdade em suas obras. Ainda hoje, vários estudiosos citam a afirmação de Aristóteles de que a igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais. Contudo, a noção de igualdade defendida por Aristóteles, como ressalta José Afonso da Silva[2] era restrita a alguns, eis que “não seria injusto tratar diferentemente o escravo e seu proprietário, sê-lo-ia, porém se os escravos e os senhores, entre si, fossem tratados desigualmente”.
A desigualdade perdurou por toda a Idade Média, haja vista que a posse de terras era o critério utilizado para dividir a sociedade em classes sociais. Havia os senhores feudais (suseranos) e os servos (vassalos). Os últimos eram a maioria da população, e viviam presos a terra, sendo obrigados a prestar serviços ao senhor.
A igualdade começou a ganhar terreno com o surgimento de uma nova classe social : a burguesia. Com o advento do comércio, a burguesia não só apareceu, mas passou, paulatinamente, a ser detentora do capital, levando o sistema feudal ao seu declínio. Posteriormente, com a Revolução Industrial, o poder dessa classe se consolidou, visto que a mesma tinha o total domínio dos meios de produção. Todavia, como nos ensina a História, embora a burguesia fosse detentora da maior parte da riqueza, não gozava de privilégios, tendo que pagar tributos. Destarte, era preciso se insurgir contra um modelo estatal que privilegiava, exclusivamente, a nobreza e o clero.
Outrossim, nessa época, os iluministas defendiam a idéia da igualdade. Rousseau, por exemplo, argumentava que os homens eram iguais, pois pertenciam à mesma espécie, diferenciando-se apenas física e psiquicamente.
Ocorre que os ideais iluministas e burgueses de “liberdade, igualdade e fraternidade” precisavam ser garantidos. Por conseguinte, o princípio da igualdade foi normatizado na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789. Posteriormente, a igualdade foi inserida no bojo de diversas constituições do final do século XVIII.
Vale salientar, contudo, que, enquanto na filosofia as idéias iluministas dominavam a elite pensante da época, o cenário político revelava um Estado liberal, ou seja, não – intervencionista na esfera econômica, e caracterizado pela ausência de previsão de direitos sociais nos textos constitucionais[3]. Portanto, se por um lado houve a preocupação em positivar a questão da igualdade, do outro, caberia aos operadores do direito efetivá-la. Essa igualdade perante a lei é o que a doutrina comumente denomina de igualdade formal. Nas palavras de Fernanda Duarte Lopes Lucas da Silva [4], igualdade formal é “a que impõe um tratamento uniforme perante a lei e veda tratamento desigual aos iguais”. Assim, tem-se que na igualdade formal, há um tratamento igualitário no âmbito jurídico, ou seja, em termos normativos.
De fato, a realidade demonstrou que as diferenças de classe subsistiram, consubstanciando a idéia de que a isonomia jurídica não havia sido suficiente para igualar os indivíduos. Após a 1ª Guerra Mundial, a pobreza assolava a Europa. Em 1929, houve a quebra da Bolsa de Nova York. Nessa esteira, surgiu o Estado social, um novo modelo estatal preocupado em diminuir as desigualdades da sociedade e, com ele, o conceito de igualdade material. Como define Fernanda Lopes Lucas da Silva [5] “a igualdade material é aquela que resulta em igualdade real e efetiva de todos, perante todos os bens da vida”. Desse modo, no momento em que um ordenamento jurídico procura efetivar a igualdade, estamos diante da busca pela igualdade material ou substancial.
Com efeito, vê-se que o conceito de igualdade evoluiu, passando de uma igualdade meramente jurídica à busca pela igualdade real. Como argumenta José Afonso da Silva[6], o princípio da igualdade não pode ser entendido em sentido individualista e abstrato, não levando em conta as diferenças entre grupos. Quando se cita a célebre frase de Aristóteles de que se deve tratar os iguais igualmente e os desiguais desigualmente, entende-se que “os iguais” assim o são sob certos aspectos considerados pela norma, podendo diferenciarem-se sob outros critérios que o legislador não reputou relevante. As pessoas são iguais ou desiguais dependendo da situação em que se encontram.
A idéia de que a igualdade não pode ser considerada um tratamento idêntico a todos é também defendida por Hans Kelsen. São suas as seguintes considerações:[7]
“A igualdade assim entendida não é concebível: seria absurdo impor a todos os indivíduos exatamente as mesmas obrigações ou lhes conferir exatamente os mesmos direitos sem fazer distinção alguma entre eles, como por exemplo, entre crianças e adultos, indivíduos mentalmente sadios e alienados, homens e mulheres.”
Em suma, o princípio da igualdade formal, por estar no rol dos direitos fundamentais, é assegurado no sistema constitucional, resumindo-se à igualdade perante a lei/ na lei. Todavia, contrário ao que se esperava, a igualdade formal mostrou-se insuficiente para incluir os desfavorecidos socialmente, ou seja, as chamadas minorias. Percebeu-se que o princípio da igualdade formal era dotado de auto-aplicabilidade, mas estava longe de alcançar eficácia. Ora, apenas proibir a discriminação não garantiria a igualdade concreta, denominada igualdade material ou substancial.
Em face disso, vê-se que há situações, dispostas na própria lei, que aceitam discriminações. Entretanto, resta saber quando a discriminação é cabível, ou seja, quando uma norma fere ou não o princípio da igualdade. Não há como não concordarmos com Celso Antônio Bandeira de Mello [8] quando ele argumenta que tratar os iguais igualmente e desigualmente os desiguais seja o ponto de partida para se entender a questão da igualdade, mas não o ponto de chegada. Em sua obra o referido autor faz as seguintes indagações:
“[…] Quem são os iguais e quem são os desiguais? O que permite radicalizar alguns sob a rubrica de iguais e outros sob a rubrica de desiguais?(…) Qual o critério que autoriza distinguir pessoas e situações em grupos apartados para fins de tratamento jurídicos diversos? Afinal, que espécie de igualdade veda e que tipo de igualdade faculta a discriminação de situações e de pessoas, sem quebra e agressão aos objetivos transfundidos no princípio constitucional da isonomia?”
Com efeito, vê-se que a idéia contemporânea de igualdade, num Estado Democrático de Direito, é de não se contentar apenas com a igualdade meramente jurídica, devendo-se lutar, incessantemente, pela igualdade material.
Nesse diapasão, a idéia de acabar ou, pelo menos, reduzir as desigualdades sócio-econômicas e, por conseguinte, promover a justiça social, fez surgir, em vários ordenamentos jurídicos, políticas públicas de apoio a grupos histórica e socialmente discriminados. A essas políticas públicas dá-se o nome de ações afirmativas ou discriminações positivas, que constituem tentativas de concretização da igualdade substancial ou material. Vê-se, através delas, uma verdadeira mudança de posicionamento do Estado, que deixa de ser mero espectador para assumir uma postura mais ativa, com fito de concretizar a igualdade positivada nos textos constitucionais.
Semelhante às constituições de vários países democráticos, as Cartas Magnas brasileiras, desde o Império, recepcionaram o princípio da igualdade, se respaldando na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
A Constituição Brasileira de 1988 já no preâmbulo demonstra preocupação em garantir o direito à igualdade, pois esse é considerado como princípio basilar de uma sociedade democrática de direito.
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte, para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar os exercícios dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, à igualdade, e a justiça, como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus a seguinte Constituição Federativa do Brasil.(grifos nossos)”
A Lei Maior garante a igualdade formal (na lei / perante a lei), considerando-a um princípio fundamental, no seu art. 5º, caput, que estatui: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no país, a inviolabilidade do direito à vida, a liberdade, à igualdade, à segurança e a propriedade”.(grifo nosso)
Em contrapartida, o art. 3º, III e IV, que trata da erradicação da pobreza, da redução das desigualdades sociais, da promoção do bem comum e da extinção de preconceitos e discriminações, o art. 7º, XX, que disciplina a proteção ao mercado de trabalho da mulher, o art. 53, § 7º, que trata das imunidades parlamentares, o art. 201, que dispõe sobre a licença gestante, e muitos outros, constituem nas palavras de José Afonso da Silva[9] “reais promessas de igualdade material”. São normas que visam nivelar as desigualdades existentes.
3 Ações Afirmativas e Combate à Discriminação no Mercado de Trabalho.
3.1 Conceito e origem
Conforme leciona Juliana Lívia Antunes da Rocha[10] após a 2º Guerra Mundial, o paradigma social entra em crise, pois, ao invés de atender às demandas sociais, aglomera o povo num bloco único.Com o fracasso do Estado Social, nasce um novo modelo Estatal: O Estado Democrático de Direito, que reconhece a existência de grupos sociais inferiorizados historicamente. Assim, percebe-se que, para se efetivar a igualdade, não se pode tratar a todos abstratamente, como uma massa indivisa. Tornam-se necessárias políticas sociais denominadas ações afirmativas. Essas são medidas de combate à desigualdade, ou seja, uma tentativa de chegar à igualdade material. Vejamos o que diz Joaquim Barbosa Gomes acerca do assunto:[11]
“A introdução das políticas de ação afirmativa representou, em essência, a mudança de postura do Estado, que em nome de uma suposta neutralidade, aplicava suas políticas governamentais indistintamente, ignorando a importância de fatores como sexo, raça e cor.”
A expressão ‘ação afirmativa’ (affirmative action), de origem americana, tem sofrido mudanças conceituais. Atualmente, as ações afirmativas podem ser entendidas, conforme o magistério de Sell [12] como:
“(…) uma série de medidas destinadas a corrigir uma forma específica de desigualdade de oportunidades sociais: aquela que parece estar associada a determinadas características biológicas (como raça e sexo), ou sociológicas (como etnia e religião), que marcam a identidade de certos grupos na sociedade.”
Renata Malta Vilas –Bôas [13] conceitua as ações afirmativas como um conjunto de medidas especiais e temporárias tomadas ou determinadas pelo Estado, com o objetivo específico de eliminar as desigualdades existentes no decorrer da história da sociedade. Esse caráter de temporariedade é comumente mencionado pela doutrina. Entretanto, como aduz Sidney Madruga da Silva,[14] “não se pode sustentar que as ações afirmativas, em todos os casos, possuam caráter temporário (…) existem agrupamentos minoritários nos quais a implementação e o aperfeiçoamento constante de políticas afirmativas demandariam um lapso de tempo, quando não definitivo”. É o caso, por exemplo, de leis afirmativas que protegem a mulher no mercado de trabalho. Vê-se que certas ações afirmativas perderam sua transitoriedade a partir do momento que foram normatizadas na legislação constitucional e infraconstitucional.
Por seu turno, Barbara Bergman [15]entende as ações afirmativas de forma mais ampla, defendendo que:
“Ação afirmativa é planejar e atuar no sentido de promover a representação de certos tipos de pessoas, aquelas pertencentes a grupos que têm sido subordinados ou excluídos em determinados empregos ou escolas. É uma companhia de seguros tomando decisões para romper com sua tradição de promover a posições executivas unicamente homens brancos(…)”
Por essa definição, evidencia-se que as ações afirmativas não são única e exclusivamente apresentadas pelo poder público. É plenamente possível que um programa de ação afirmativa parta da iniciativa privada.
Através dessas definições, conceituaremos ação afirmativa como: medidas adotadas por órgãos públicos ou privados, podendo as mesmas ser temporárias ou definitivas, voltadas a grupos histórica e socialmente discriminados, com vistas a corrigir o tratamento a eles dispensado, prevenir ou reprimir a discriminação e, por conseguinte, efetivar a chamada igualdade material.
Em suma, conclui-se que as ações afirmativas possuem as seguintes características: a) são medidas temporárias ou definitivas; b) podem partir tanto do Poder Público, como de um particular; c) possuem caráter tanto reparatório como distributivo; d) procuram prevenir ou reprimir a discriminação arbitrária; e) visam concretizar a igualdade material; f) destinam-se a grupos histórica e socialmente excluídos, as chamadas minorias (negros, mulheres, deficientes, indígenas, homossexuais, etc.); g) podem ser instrumentalizadas através de leis que considerem a discriminação um crime; h) podem vir através de um sistema de cotas, que visem incluir certa porcentagem de indivíduos em determinadas esferas da sociedade, tais como, educação, mercado de trabalho e representação política; h) podem ser promovidas através de incentivos fiscais a empresas que favoreçam a contratação de integrantes de minorias.
Segundo Renata Malta Vilas-Bôas,[16] as ações afirmativas, antes mesmo de adentrarem no universo jurídico, já existiam no campo da moral. Segundo ela, diariamente vivenciamos discriminações positivas, quando uma mãe, ao perceber a dificuldade de sua filha em desempenhar a tarefa de escovar os dentes, providencia um banquinho para ajudá-la a alcançar a pia. Com o passar do tempo, esse objeto torna-se desnecessário com o crescimento da criança. A autora argumenta que nem todas as pessoas podem ser tratadas da mesma forma e, em razão disso, elas devem ser auxiliadas para que saia dessa situação.
Juridicamente, entretanto, a ação afirmativa tem seu berço nos Estados Unidos, na década de 60, época marcada pela luta em favor dos direitos civis e pela extensão de igualdade de oportunidade a todos. Buscava-se a superação da discriminação sofrida pelas minorias, ou seja, negros, mulheres, índios, latinos, entre outras.
Coube a John F. Kennedy editar a Norma Executiva (Executive Order) 10.925, onde a expressão affirmative action apareceu pela primeira vez. Essa norma visava reprimir a discriminação e o preconceito nas relações entre o governo federal e os seus contratantes. Ademais, Kennedy instituiu o President´s Comittee on Equal Employment Opportunity, que pelo próprio nome, ficaria encarregado de lutar contra a descriminação no mercado de trabalho. Em 1963, O Equal Pay Act, por sua vez, pôs termo à remuneração desigual, quando homens e mulheres desempenhassem a mesma função. Por fim, com Civil Right Act, editado por Lydon B. Johnson, então sucessor de John F. Kennedy, proibiu-se qualquer descriminação no mercado de trabalho por motivo de raça, cor, sexo e origem racial.
Embora todos esses fatos tenham ocorrido no século XX, vale ressaltar que acontecimentos anteriores foram fundamentais para que os Estados Unidos consolidassem as ações afirmativas. Em 1865 e 1868, a Constituição Americana foi modificada através da Décima Terceira e Décima Quarta Emendas Constitucionais. A primeira abolia a escravidão, e a segunda dispunha sobre o Equal Protection Clause. Dessa forma, conferiu-se a todas as pessoas nascidas nos Estados Unidos igualdade formal e garantindo-lhes o devido processo legal. A Décima Quinta Emenda garantiu a todos os cidadãos, o direito ao voto.
Ressalte-se que as idéias sobre ações afirmativas não ficaram restritas aos Estados Unidos da América, atingindo vários países do mundo, a exemplo de países da Europa Ocidental, a Austrália, o Canadá, a África do Sul, e evidentemente, o Brasil.
Por fim, mister se faz diferenciar ações afirmativas de política de quotas. Ressalte-se que o sistema de cotas é apenas uma das formas de ação afirmativa. A política de cotas sempre será um meio de implementação de ação afirmativa, porém nem toda ação afirmativa dá-se através do sistema de cotas.
Dayse Coelho de Almeida [17] cita alguns exemplos de adoção de cotas no ordenamento jurídico brasileiro.
“A. Decreto-lei 5.452/43 (CLT), que prevê, em seu art. 354, cota de dois terços de brasileiros para empregados de empresas individuais ou coletivas.(…)
C.Lei 8.112/90, que prescreve, em seu art. 5º, §2º, cotas de até 20% para os portadores de deficiências no serviço público civil da união.
D.Lei 8.213/91, que fixou, em seu art.93, cotas para os portadores de deficiências no setor privado.(…)
E.Lei 9.504/97, que preconiza, em seu art. 10,§ 2º, cotas para mulheres nas candidaturas partidárias.”
3.2 Ações Afirmativas de Gênero: Instrumento contra a Discriminação Ilegítima.
Conforme informações contidas no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa[18] gênero “é um conceito geral que engloba todas as propriedades comuns que caracterizam um dado grupo ou classe de seres ou objetos”. Frise-se que tanto no Dicionário Houaiss como no Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa não existem referências que denotem o significado da palavra em questão, como o utilizado pelo movimento feminista na década de 70. Para as feministas, gênero implica que as diferenças entre homens e mulheres vão além das determinações biológicas, e que essas diferenças são socialmente construídas, resultando em conceitos sobre o feminino e o masculino, estando sujeitos a mudanças ao longo do tempo.[19]
Uma das principais referências para os estudos sobre gênero advém do trabalho da historiadora e feminista americana Joan Scott, especialmente seu artigo publicado em 1988, intitulado “Gender: A useful category of historical analysis”[20], onde a autora formula sua definição de gênero.
“Minha definição de gênero tem duas partes e vários itens. Eles estão inter-relacionados, mas devem ser analiticamente distintos. O coração da definição reside numa ligação integral entre duas proposições: gênero é um elemento constitutivo das relações sociais, baseado em diferenças percebidas entre os sexos (…) Entretanto, minha teorização de gênero está na segunda parte: gênero como uma forma primária de significação das relações de poder. Talvez fosse melhor dizer que gênero é um campo primário no qual ou através do qual o poder é articulado.”
Percebe-se que o novo uso de gênero proposto por Joan Scott avançou, pois não é somente utilizado como a variável ‘sexo’, ou seja, como sinônimo de mulher, mas para analisar como as relações entre homens e mulheres são socialmente construídas. Gênero é para o feminismo uma construção social que especifica os papéis sociais e culturais prescritos que homens e mulheres devem seguir. Aí se incluem os papéis na família, a contribuição para a procriação, ocupação, salário, maneira de vestir-se, comportamento apropriado. Saliente-se que a palavra gênero está associada a sexismo, fenômeno de intolerância que se baseia na falsa crença de que um sexo é superior ao outro.
Gênero difere de raça. Essa diz respeito ao “conjunto de indivíduos cujos caracteres somáticos, tais como, a cor da pele, a conformação do crânio e do rosto, o tipo de cabelo, etc. são semelhantes e se transmitem por hereditariedade, embora variem de indivíduo para indivíduo”[21]. Assim, a definição de raça envolve diferenciação biológica entre seres humanos, no tocante à cor da pele, tipo de cabelo, conformação facial e cranial, ancestralidade e genética. Portanto, o termo raça origina o fenômeno de intolerâcia denominado de racismo.
Visto que as ações afirmativas de gênero são medidas que visam coibir a discriminação contra a mulher, é preciso conceituar discriminação e preconceito. Esse último é a forma de julgar as pessoas de forma negativa, de acordo com idéias pré-concebidas sobre as mesmas, gerando discriminação. Discriminar, por sua vez, denota distinguir, diferenciar, separar.
A Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)[22] considera discriminação
“toda distinção, exclusão ou preferência fundada em raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional, origem social ou outra distinção, exclusão, ou preferência especificada pelo Estado-membro qualquer que seja sua origem jurídica ou prática e que tenha por fim anular ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento no emprego ou profissão.”
O discrimén pode ocorrer em momentos distintos.Ocorre discriminação antes da contratação, por exemplo, quando há critério preferencial injustificado de um sexo em detrimento do outro. Com efeito, pode haver discriminação tanto contra a mulher como contra o homem. Contudo, estudos na área revelam que a discriminação contra a mulher é bem mais latente. Há discriminação na vigência do contrato de trabalho, quando homens e mulheres desempenham a mesma função, mas percebem remunerações diferentes. Por sua vez, é possível haver discriminação depois da extinção do pacto laboral. José Cláudio Monteiro de Brito Filho,[23] cita o exemplo do empregador que, passando por dificuldades financeiras, resolve dispensar parte de seus trabalhadores ou todo o seu quadro de pessoal, e não dispondo de numerário suficiente para o pagamento das verbas decorrentes da extinção dos contratos, resolve pagar apenas aos trabalhadores de procedência local, em detrimento dos que são egressos de outras regiões do país.
Com efeito, a discriminação da mulher no mercado de trabalho ocorre das mais diversas formas, podendo estar mais ou menos visível aos nossos olhos. Assim sendo, para Alice Monteiro de Barros, a discriminação se manifesta da forma direta ou indireta. Em suas palavras, “a primeira pressupõe um tratamento desigual fundada em razões proibidas, enquanto a discriminação indireta traduz um tratamento formalmente igual, mas que produzirá efeito diverso sobre determinados grupos” [24]. Portanto, a discriminação direta ocorre quando se exigem exames que comprovem a esterilidade da mulher.
Por sua vez, a indireta é camuflada. Discrimina-se a mulher, por exemplo, quando após o cumprimento da licença gestante, ela não consegue retornar a sua função ou não obtém igual remuneração. Tudo é feito às escondidas, através do assédio moral, sem que haja alteração formal de seu contrato de trabalho. Nesse sentido, como bem expõe Alice Monteiro de Barros[25] “a discriminação (…) nem sempre advém do preconceito contra as mulheres, mas do fato de que sua contratação poderá elevar os custos operacionais da empresa”.
Renata Malta Vilas-Bôas[26] destaca que apesar do termo “discriminação” ser usualmente utilizado com conotação negativa, nem toda discriminação tem esse sentido. Afirma que quando esta consistir em dar um tratamento diferenciado a um grupo ou categoria de pessoas, visando menosprezá-las, como já foi estudado, será chamada de discriminação negativa. Ao contrário, quando se tratar de ações que objetivam equiparar grupos ou pessoas que são discriminadas negativamente, de modo a trazê-las para a sociedade de uma forma igualitária, ter-se-á a chamada discriminação positiva ou ação afirmativa.
Ações afirmativas de Gênero no Brasil, portanto, encontram-se na legislação brasileira, mais precisamente, nas normas que tutelam o mercado de trabalho da mulher, quais sejam, as convenções internacionais ratificadas pelo Brasil, as normas constitucionais e infraconstitucionais insertas na CLT. Essas são de natureza afirmativa, na medida em que visam eliminar a discriminação criminosa e se destinam a promover a igualdade de oportunidades.
3.3. Ações Afirmativas no Âmbito Internacional.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) é vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU) e visa promover a justiça social. Portanto, sempre houve uma preocupação por parte da OIT com a questão da igualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho.
Segundo Sônia Aparecida Costa Nascimento [27], é possível distinguir dois momentos de desenvolvimento dessas normas. O primeiro, até 1950, é o da proteção do trabalho feminino. Este é marcado pela elaboração de convenções e recomendações sobre maternidade, trabalho noturno, insalubre, perigoso, duração do trabalho, trabalho manual e habitual com cargas, segurança e higiene do trabalho, enfim regras destinadas a limitar o trabalho, com o objetivo de preservar a espécie da mulher e assegurar-lhe condições para cumprir as obrigações familiares. Em um segundo momento, a OIT deixou de se preocupar com a limitação das condições de trabalho da mulher, passando a promover a igualdade entre o trabalho do homem e da mulher. Conseqüentemente, ganharam relevo temas como a igualdade de remuneração, a não discriminação do trabalho em razão do sexo, responsabilidade familiar, entre outros.
Primeiramente, merecem destaque as convenções que versam sobre o trabalho noturno. Embora algumas dessas convenções tenham tratado do assunto, o Brasil ratificou a Convenção n.º 89, de 1948, pelo decreto nº. 41, de 25 de maio de 1957, que se distinguiu das de n.4, 41 e 45, não só pelo escopo de limitação do trabalho noturno, mas, sobretudo, no que diz respeito ao conceito de período noturno. Enquanto as primeiras o consideravam como aquele compreendido entre 22h (vinte e duas horas) de um dia e 5h (cinco horas) do dia seguinte, na convenção nº. 89 esse período passou a ser entre 22 (vinte e duas) horas de um dia e 7 (sete) horas do dia seguinte. Além da convenção nº. 89 proibir o trabalho noturno da mulher, assim como suas antecessoras, essa norma internacional excluía de seu campo de atuação as mulheres que ocupavam postos diretivos ou de caráter técnico, mulheres que trabalhavam em serviço de saúde, higiene e bem-estar e que, normalmente, não desenvolviam trabalho manual.
Embora muito se fale em normas de proteção ao trabalho da mulher, vê-se que uma norma que restringia o trabalho da mulher ao período diurno era dotada de caráter proibitivo. Na verdade, o que se protegia não era o trabalho da mulher, mas a sua reputação, a família, em suma, o lar.
A Convenção nº. 100 da OIT, datada de 1951, foi ratificada pelo Brasil em abril de 1957 e promulgada por meio do Decreto n. 41.721 de 1957. Esta dispõe sobre a igualdade de remuneração entre homens e mulheres por um trabalho de igual valor. Portanto, reza a referida convenção que a remuneração (estando aí incluídas o salário e quaisquer outras vantagens) deve ser fixada em razão da natureza do trabalho, e não do sexo do trabalhador.
Embora a Convenção n. 100 da OIT conte com a ratificação de cerca de 160 Estados-membros, a aplicação desta apresenta obstáculos. Um deles diz respeito à falta de critérios objetivos para a avaliação das operações realizadas pelos trabalhadores. Questiona-se se a expressão “igual valor” denota trabalho idêntico ou se seria possível comparar empregos. Nesta última hipótese, resta saber se os critérios utilizados seriam a força física ou a habilidade manual, a experiência ou a qualificação que requer cada emprego.
Também merece destaque a Convenção n. 111 da OIT, de 1958, que contém normas específicas sobre discriminação no emprego ou profissão. Nela, demonstra-se que a discriminação da mulher no mercado de trabalho não se opera, apenas, em relação à remuneração percebida, mas também quanto ao seu acesso e manutenção no emprego, sem falar nas condições a ela oferecidas.
O art. 1º considera discriminação contra a mulher no mercado de trabalho, excluí-la de determinados postos, que podem ser ocupados indistintamente por homens e mulheres. Segundo Alice Monteiro de Barros [28], essa espécie de discriminação é denominada de segregação horizontal, pois obsta o acesso da mulher a certos empregos. Há também a chamada segregação vertical, que impede a ascensão da mulher a certos cargos de direção.
Um outro fator que causa a discriminação da mulher no trabalho, interferindo em sua manutenção no emprego, é o papel que o sexo feminino ainda desempenha na estrutura familiar. Sabe-se que o fato da mulher engravidar gera o salário-maternidade que, em muitos países, constitui um ônus para o empregador. Somando-se a isso, verifica-se que há distinção quanto às condições de trabalho oferecidas à mulher. Em decorrência da estrutura familiar tradicional, que exige do sexo feminino responsabilidades familiares, as mulheres estão ausentes dos cursos de formação contínua, que proporcionam aperfeiçoamento e promoções.
A ratificação desta convenção por um Estado-membro o obriga a promover a igualdade de tratamento entre homens e mulheres, para que sejam eliminadas quaisquer formas de discriminação na admissão, manutenção e condições de emprego.
Por fim, devemos tecer alguns comentários acerca de algumas convenções que objetivam proteger a maternidade.
A primeira convenção da OIT sobre o tema foi a de nº. 3, de 1919, que dizia respeito ao trabalho da mulher antes e após o parto, garantindo; licença-maternidade de 12 (doze) semanas, sendo seis semanas antes do parto e seis depois do mesmo, pagamento de prestações suficientes à manutenção da mulher e do seu filho durante a licença, dois descansos de meia hora para amamentação e proibição de despedida durante a licença-maternidade.
Em 1952, a OIT editou a Convenção n. 103, dispondo sobre o amparo à maternidade, sendo mais abrangente do que a nº. 3. Com a nova norma, a maternidade passou a ser aplicável não só às trabalhadoras da indústria e do comércio, mas também às das empresas não industriais, às agrícolas, às domésticas. A mesma foi ratificada pelo Brasil em 18 de julho de 1965, mas só foi promulgada em 14 de julho de 1966.
Dessa convenção, merece destaque o art. 3º que garante um prazo mínimo de 12 semanas para o gozo da licença-maternidade, a ser estipulado pela legislação nacional. Por sua vez, o art. 4.º §§ 1º e 8º preceitua que toda mulher tem o direito de se ausentar do seu trabalho, sendo a ela devidas prestações em espécie, sendo que, em nenhuma hipótese, o empregador arcará com o custo dessas. Também foi assegurado um prolongamento do descanso em caso de enfermidade decorrente da gestação.
Outrossim, merece destaque a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. Conhecida internacionalmente como CEDAW (Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination Against Women)[29], foi o resultado dos trabalhos da I Conferência Internacional da Mulher, realizada em 1975 no México. A ratificação pelo Brasil deu-se em 1984.
A Convenção fundamenta-se na dupla obrigação de eliminar a discriminação e de assegurar a igualdade. Para essa norma internacional, a discriminação contra a mulher significa:
“(…) toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objetivo ou resultado, prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo, exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.(art. 1º).”
Como se depreende da leitura desse artigo, a Convenção se preocupa em garantir a igualdade de oportunidades em diversas áreas: na política, no exercício de funções públicas, no tocante à questão salarial, entre outras.
Os Estados-partes assumem o compromisso de, paulatinamente, eliminar a discriminação contra a mulher, adotando políticas que: a) consagrem nos instrumentos legislativos o princípio da igualdade entre homens e mulheres; b) proíbam a discriminação contra a mulher; c) derroguem todas as medidas, legislativas ou não, que discriminem a mulher; d) garantam proteção jurídica aos direitos da mulher. Para tanto, a Convenção prevê a possibilidade de adoção, pelos Estados-partes, de medidas especiais (“ações afirmativas”), destinadas a acelerar a igualdade de fato entre homem e mulher.
Cumpre dizer que, apesar do referido documento incentivar a “discriminação positiva”, visando compensar a discriminação histórico-social vivenciada por determinados grupos, é evidente que a própria convenção é um exemplo de ação afirmativa por meio de legislação internacional.
3.4 Ações Afirmativas nas Constituições Brasileiras
A primeira Constituição Brasileira que abordou o trabalho da mulher foi a de 1934. Nos moldes de Constituição social-democrática de Weimar, a Carta Magna de 1934 positivou direitos trabalhistas que já haviam sido concedidos na legislação infraconstitucional. Em suma, as garantias contidas no texto constitucional eram: jornada diária de oito horas, descanso semanal, férias anuais remuneradas, igualdade de salários entre homens e mulheres, proibição de trabalho feminino em atividades insalubres, assistência médica e sanitária à gestante, salário-maternidade e licença-maternidade.
Posteriormente, apenas três anos depois, a Constituição de 1937 foi promulgada, fruto de um golpe de Estado do então presidente da República Getúlio Vargas. Conforme ensinamentos de Sérgio Pinto Martins[30] a Constituição de 1937 proibia o trabalho da mulher em indústrias insalubres, além de assegurar assistência médica e higiênica à gestante, prevendo um repouso antes e depois do parto, sem prejuízo de salário. Contudo, percebe-se que essa Carta omitiu a garantia de emprego à gestante e não prestigiou a isonomia salarial entre homens e mulheres, embora tenha recepcionado o princípio da igualdade formal. “Tal omissão permitiu que, em 1940, o Decreto-lei n. 2.548 preconizasse a possibilidade de as mulheres perceberem salários 10% menores do que os pagos aos homens” [31].
Já a Constituição de 1946 seguiu o modelo da Carta de 1937. Inspirada no espírito nacionalista que aflorou no pós–guerra, a nova Lei Maior não só assegurou os direitos já existentes, como também: proibiu diferença salarial por motivo de sexo, garantiu o repouso antes e após o parto sem prejuízo de salário e emprego, garantiu não só a assistência sanitária e médica à gestante, mas também a hospitalar. Por fim, previu a previdência em favor da maternidade. Todavia, segundo Sergio Pinto Martins[32] o trabalho da mulher em indústrias insalubres continuou a ser proibido.
Por sua vez, na Constituição de 1967, todos os direitos outrora garantidos foram ratificados. Além dessas conquistas, a mulher passou a ter o direito à aposentadoria após 30 anos de serviço, percebendo salário integral. Quanto ao trabalho da mulher em local insalubre, a Constituição Federal de 1967 confirmou a vedação.
A Constituição Brasileira de 1988 foi mais abrangente do que as anteriores no tocante à proteção aos trabalhadores, pois tutelou o mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei. O art. 7º, XX visa dar a mulher condições de competitividade no mercado de trabalho sem discriminações. Ora, ao inserir essa norma, o legislador constituinte reconheceu que a mulher tem sido vítima de discriminação, não só quanto ao seu acesso ao emprego, como também no que diz respeito à manutenção e condições oferecidas. Consequentemente, mister se faz promover a igualdade de gênero para que seja possível atingir a isonomia prevista no art. 5º, caput.
Vê-se, portanto, que o princípio da igualdade refletiu-se intensamente nas relações de trabalho, visando impedir a discriminação em razão de inúmeros fatores, inclusive o sexo. Ademais, observa-se que para o legislador, a igualdade não deve ser apenas aquela perante a lei ou na lei, ou seja, deve-se sempre buscar a igualdade material. Para tanto, é preciso discriminar positivamente para que se atinja a verdadeira igualdade.
Ademais, o mercado de trabalho da mulher aparece protegido no art. 7º, XXX, pois esse proíbe a discriminação por motivo de sexo, idade, cor, estado civil ou deficiência, no que concerne a critérios de admissão no emprego e salários. Vê-se aí um reflexo da Convenção nº. 111 da OIT supracitada. Vale salientar que tanto a convenção como o dispositivo constitucional têm auto-aplicabilidade, como nos ensina Arnaldo Sussekind, independentemente de qualquer lei regulamentadora “até porque as normas constitucionais proibitivas são ‘self-executing’”.[33]
Somando-se ao exposto acima, cite-se o inciso XVIII do referido artigo, que trata da licença à gestante sem prejuízo do emprego e do salário. De fato, esse dispositivo tem a dupla função de proteger a maternidade e o trabalho da mulher, pois ao engravidar, a mulher, inevitavelmente, terá de se afastar do emprego, podendo, por isso, ser discriminada. Conforme a lei nº. 8.213/91, a licença-maternidade é concedida 28 dias antes do parto e 92 dias após este.
Bem antes da Constituição de 1988, em 1952 a OIT editou uma a Convenção nº 103, dispondo sobre prestações monetárias devidas à empregada durante o licenciamento, não podendo a legislação nacional impor ao empregador o ônus do pagamento da gestante. Consequentemente, o salário da gestante deveria ficar a cargo de um sistema de seguros sociais ou de fundos públicos (art. 4 §§ 4º e 8º). Tendo em vista que o Brasil ratificou a citada convenção em 1965, foi preciso que o salário maternidade, que era à época responsabilidade do empregador, passasse a ser custeado pela Previdência Social, mediante contribuição (Lei n. 6.136/74). Assim sendo, a Constituição Brasileira de 1988 manteve a proteção à maternidade. No entanto, ressalte-se que a legislação brasileira é bem mais benéfica para a trabalhadora gestante do que o que dispõe a convenção 103, pois o salário-maternidade, no Brasil, é de 120 dias. Essa discrepância temporal não traz nenhuma conseqüência à lei brasileira, conforme aduz Sussekind [34] “É que o princípio da condição mais benéfica ou da disposição mais favorável ao trabalhador, que constitui um dos pontos cardiais do Direito do Trabalho, foi explicitamente consubstanciado no art. 19, §8, da Constituição da OIT”.
Como dito, a legislação pátria garante a licença – maternidade de 120 dias, sem que haja prejuízo de salário à gestante. Essa norma constitucional já foi alvo de inúmeras discussões jurídico-doutrinárias devido à Emenda Constitucional nº. 20, de 15 de dezembro de 1998, que limitou os benefícios da Previdência Social ao teto de R$ 1.200,00 mensais. Em face do exposto, o salário-maternidade não poderia ultrapassar o referido valor.
Contudo, vale lembrar que o art. 7º da Constituição Federal é cláusula pétrea, conforme disposto no art. 60, § 4º, IV, não podendo, por conseguinte, ser modificado por emenda constitucional. A questão foi pacificada, com a decisão unânime do STF, que declarou que o salário-maternidade está excluído do limite imposto pela referida Emenda nº. 20, sendo igual à remuneração integral da empregada.
Para completar a proteção à maternidade, devemos interpretar o art. 7º, I , da CF/88, que veda a dispensa arbitrária ou sem justa causa. Está aí incluída a hipótese da empregada gestante. O art. 10, II, b do Ato das Disposições Transitórias garante a estabilidade da gestante no emprego desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto. A norma constitucional, entretanto, até meados de 2006 excluía a empregada doméstica. Sobre o assunto posicionou-se Alice Monteiro de Barros [35], que concordava com tal exclusão.
“Andou bem a norma constitucional ao excluir a doméstica da referida garantia, pois (…) como o serviço é prestado no âmbito residencial, o doméstico desfruta de uma íntima convivência com a família e o elemento pessoalidade ressalta na simpatia, confiança, afinidade e afetividade entre o empregado e o empregador. Portanto, obrigar uma família a manter um empregado doméstico, a pretexto de uma estabilidade provisória, quando a confiança deixa de existir, afronta a natureza humana, invadindo-lhe a privacidade.”
Ora, não seria justo preterir a empregada doméstica da estabilidade, pois isso seria privá-la da liberdade de planejar sua família, o que não condiz com o princípio da dignidade da pessoa humana.
Questão interessante sobre a estabilidade da gestante diz respeito à necessidade de dar ciência ao empregador. Há dois posicionamentos doutrinários. Um deles defende que cabe à gestante comunicar formalmente ao empregador sobre a ocorrência da gravidez. Há uma corrente, porém, que sustenta que “a gravidez da empregada se vincula à teoria do risco objetivo, porquanto o Direito do Trabalho não protege simplesmente, o conhecimento da gravidez pelo empregador, mas a gravidez na sua grandeza biológica”.[36]
Filiamo-nos à segunda corrente, também defendida por Alice Monteiro de Barros, pois entendemos que a “confirmação” não quer dizer, necessariamente, comunicação ao empregador, mas a certeza do estado gestacional pela própria gestante. Aduz a autora, in verbis: [37]
“Ora, confirmar significa ratificar, tornar uma coisa certa, dar certeza, mostrar a verdade, demonstrar, comprovar, enquanto comunicação pressupõe mensagem, informação que alguém presta a outrem. A primeira não exige a presença de outra pessoa, a segunda sim. Ou seja, pode-se confirmar um fato para si mesmo. Já a comunicação se faz para outrem. Com esse argumento conclui-se que o termo confirmação, no dispositivo constitucional em exame não tem sentido de aviso que deve ser feito pela empregada ao empregador. Marca apenas o início, em termos objetivos, da aquisição do direito ao emprego.”
Este também é o entendimento do TST, que editou a súmula n. 244, que diz: “O desconhecimento do estado gravídico pelo empregador não afasta o direito ao pagamento da indenização decorrente da estabilidade”.
O direito à estabilidade no emprego é irrenunciável, pois diz respeito a uma norma de ordem pública. Dessa forma, a dispensa unilateral imotivada é passível de reintegração ou, alternativamente, serão devidos os salários e demais direitos adquiridos no período da estabilidade.
3.5 O Direito do Trabalho da Mulher na Legislação Infraconstitucional
3.5.1 O momento da “proteção”
As mudanças legislativas concernentes ao trabalho feminino têm como um marco divisório a Constituição Brasileira de 1988, dividindo o direito do trabalho da mulher em dois períodos distintos: o momento da “proteção” e o da promoção da igualdade.
Sendo a Carta de 1988 nosso ponto de referência, pode-se dizer que antes do advento da mesma, não se falava em ações afirmativas no Brasil, mesmo porque, como vimos anteriormente, o termo só foi cunhado nos Estados Unidos em 1961. Todavia, a luta para corrigir discriminações e propiciar igualdade de tratamento e oportunidades não teve início da década de 80, com a Constituição de 1988. Na verdade, muito antes da promulgação da referida Carta, procuravam-se meios de regulamentar o trabalho feminino, concedendo à trabalhadora melhores condições de trabalho, igualdade de remuneração, licença-maternidade, estabilidade durante a gestação. Veremos, assim, o que denominaremos de primórdios das ações afirmativas, ou melhor, um primeiro estágio de leis afirmativas, que se revelaram imperfeitas, por serem dotadas de um duplo caráter, ora protetor, ora proibitivo, como explanado a seguir.
Para que posamos entender a necessidade de uma legislação específica para o trabalho da mulher, mister se faz uma contextualização histórica.
Foi só com o advento da Revolução Industrial, responsável pelo surgimento de milhares de postos de trabalho, que a mão-de-obra feminina passou a ser mais utilizada. A História nos ensina que, naquela época, as mulheres sujeitavam-se a 16 horas de trabalho diário, trabalhando, muitas vezes, em locais insalubres e percebendo salários inferiores aos dos homens. Ainda cabia às mesmas executar tarefas domésticas e cuidar dos filhos.
Como bem observa Vera Lúcia Carlos [38], essa época foi marcada por uma total ausência de tratamento legal voltado ao trabalho da mulher. Em face dos problemas enfrentados pela massa trabalhadora feminina, começou a surgir, nas Inglaterra, berço da Revolução Industrial, uma legislação que visava proteger a mulher no trabalho. Assim, em 19/08/42 surgiu o “Coal Mining Act”, que proibiu o trabalho da mulher em subterrâneos. Posteriormente, em 1844, o “Factory Act” limitou a jornada da mulher em 12 horas, impedindo-a de trabalhar no período noturno. O Trabalho insalubre e perigoso lhes foi coibido em 1978 através do Factory and Workshop Act.
No Brasil, o Decreto n.21.417-A de 15.05.1932 foi a primeira norma a tratar do trabalho da mulher. Através desse mandamento legal, proibiu-se o trabalho da mulher das 22h à 5h, em estabelecimentos comerciais e industriais. Além disso, a referida norma assegurava à mulher um descanso obrigatório de quatro semanas antes e quatro semanas após o parto, garantindo-se o recebimento da metade dos salários pelas caixas de Seguridade Social e, na falta destas, pelo empregador. Já naquela época, o decreto previa o retorno da empregada à função que antes exercia. Previa-se, também, a situação de aleitamento, sendo concedidos dois intervalos diários de meia hora para amamentação nos primeiros seis meses de vida da criança. Consequentemente, em estabelecimentos em que trabalhassem pelo menos 30 mulheres, com mais de 16 anos de idade, deveria haver um local apropriado para o aleitamento materno. Ressalte-se, também, que o referido decreto proibia a dispensa arbitrária por motivo de gravidez. Ademais, em caso de aborto não criminoso, havia previsão de um descanso de duas semanas. Por fim, devemos ressaltar a possibilidade que a norma concedia à mulher de romper seu contrato de trabalho, caso o trabalho fosse prejudicial à sua gestação.
É evidente que esse decreto muito influenciou a CLT, originando vários dispositivos referentes ao trabalho da mulher. Oportuno dizer que o Trabalho da Mulher encontra-se dentro do Título III da CLT, mais especificamente no Capítulo III, nos arts. 372 a 401, muitos dos quais já foram revogados por leis afirmativas.
Anteriormente, a primeira secção do Capítulo III disciplinava, apenas, acerca da jornada de trabalho da mulher, estando aí incluída a questão do trabalho extraordinário.
O art. 373, ainda vigente, diz respeito à duração do trabalho da mulher, que sendo igual a do homem, será de 8 (oito) horas diárias e quarenta e quatro horas semanais, nos termos do art. 7º, XIII da Constituição Federal de 1988.
No tocante às horas extraordinárias, a CLT as proibia para o trabalho da mulher, só permitindo-as em duas hipóteses: a primeira, se houvesse compensação de horas, de modo que o excesso de um dia fosse deduzido na jornada de trabalho de outro dia da mesma semana (art. 374, redação dada pelo decreto-lei n. 229 de 28.02.67); a segunda, na ocorrência de força maior (art. 375, redação dada pelo decreto- lei 926 de 10. de outubro de 1969) , desde que fosse apresentado atestado médico, que provaria que a mulher podia trabalhar a mais sem prejudicar sua saúde (art 376).
Através dessas normas, é que se pode ver o caráter mais proibitivo do que protetor. É comum, através de leituras na área, encontrar os argumentos da moral e da importância da preservação da estrutura familiar. Contudo, aduz Cristiane Lopes Sbalqueiro [39] que “o argumento da moral, em verdade, é o argumento da conservação da hierarquia entre homens e mulheres”. É importante que se tenha em mente que à época da edição da CLT, a mulher era, na órbita do direito civil, considerada relativamente incapaz, o que refletia o patriarcalismo da época.
Em seguida, na secção II, procurou-se disciplinar o trabalho noturno da mulher. A redação original do art 379, que se baseava no Decreto –lei n. 21. 417-A / 32, proibia em regra o trabalho noturno da mulher, salvo algumas exceções. Destarte, explica Denise Passelo Valente Novais [40] que o trabalho da mulher era permitido nos seguintes casos: a) em oficinas de família, b) se fossem maiores de 18 anos e prestassem serviço de telefonia, radiotelefonia ou radiotelegrafia; c) se fossem maiores de 18 anos e prestadoras de serviço de enfermagem, d) se, maiores de 21 anos, empregadas em casa de diversão, hotéis, restaurantes, bares e estabelecimentos congêneres; e) às ocupantes de cargo de direção, desde que seu trabalho não fosse contínuo.
A Lei nº 7.189/84 modificou a CLT, passando a permitir o trabalho noturno da mulher maior de 18 anos, exceto se a mesma prestasse serviço em empresas ou atividades industriais. O art. 387 da CLT, já revogado, dispunha sobre a proibição do trabalho da mulher em indústrias insalubres, ou seja, em subterrâneos, nas minerações em subsolo, em pedreiras. Essa regra também foi originada do Decreto-lei n.21.417- A, de 1932.
Os arts 382 a 386 dizem respeito ao intervalo entre jornadas de trabalho, do intervalo devido dentro da própria jornada de trabalho e do repouso semanal. Assim, entre duas jornadas de trabalho deve haver um intervalo de, no mínimo, 11 horas para o repouso (art.383). Por sua vez, antes da prorrogação do trabalho da mulher, é necessário um intervalo de 15 minutos (art.384). A mulher que trabalhar aos domingos terá uma escala de revezamento para que quinzenalmente seu repouso seja aos domingos (art.386). Apesar de vigentes, na legislação infraconstitucional, segundo Sergio Pinto Martins [41]a constitucionalidade dos arts. 383, 384 e 386 é questionada em face do princípio da igualdade, preconizado pela Constituição de 1988, pois não há previsão de descanso, nem escala de revezamento para os homens.
A secção IV trata dos métodos e locais de trabalho, regras essas que não diferem do trabalho masculino, não sendo de grande interesse para essa análise. Todavia, merece destaque o art. 390 dessa secção, que ainda resta vigente, assim como seu parágrafo único, que veda a contratação da mulher para executar serviço que requeira força muscular superior a 20 (vinte) quilos para o trabalho contínuo, ou 25 (vinte e cinco) quilos para o trabalho ocasional. Por sua vez, o parágrafo único abre a exceção se o trabalho for feito por impulso ou tração de vagonetes sobre trilhos, de carros de mão ou quaisquer aparelhos mecânicos.
Por permanecer na CLT, o referido artigo tem sido veementemente criticado pela doutrina. Denise Pasello Valente Novais, citando Alice Monteiro de Barros defende que: [42]
“É notório que várias mulheres trabalham com pesos, sobretudo no campo. E, embora estudos revelem que o sistema muscular é menos desenvolvido do que o do homem, o ideal seria abolir a mencionada restrição e submeter a apreciação de cada caso às condições pessoais da empregada, ao tempo consumido na atividade, às condições de serviço, mas sempre atentos para o disposto no art. 483, da CLT, o qual permite ao empregado considerar rescindido o contrato quando forem exigidos serviços superiores às suas forças.”
Por sua vez, o art. 389 § 1º, ainda vigente, reza que “os estabelecimentos em que trabalharem pelo menos 30 (trinta) mulheres, com mais de 16 anos, terão local apropriado, onde seja permitido às empregadas guardar sob vigilância e assistência os seus filhos no período de amamentação”. Com efeito, embora tenha o legislador pretendido conceder à trabalhadora local adequado para a amamentação, tal norma pode ser vista como restritiva, pois, indubitavelmente, implica em custos para as empresas. Torna-se preferível, contratar menos mulheres. Glauce Gaudêncio[43] defende ser esse dispositivo inconstitucional, ferindo os art. 5º. e 7º. da CF/88, pois “discrimina a mulher e afasta do homem, quando empregado, a possibilidade de ter assistência aos seus filhos.”
Por fim, o legislador preocupou-se em proteger à maternidade. Como exposto, o Brasil ratificou as convenções de n. 3 e 103 da OIT, permanecendo ainda, em vigor, inalteradas uma grande parte das normas emanadas dessas convenções internacionais. Uma mudança significativa diz respeito ao período de licença, que será explicitado posteriormente.
Merece atenção o art. 394 da CLT, no qual o legislador assegura à empregada, durante a gravidez, transferir-se de função, quando as condições de saúde assim exigirem, restando assegurada a retomada à função antes exercida, após o retorno ao trabalho.
O legislador também conferiu à mãe, através do art. 396, da CLT o direito a dois períodos de descanso, de meia hora cada, para amamentação, até os seis meses de idade da criança, sem prejuízo do salário, podendo este prazo ser dilatado, a critério da autoridade competente.
Quanto ao salário-maternidade, frise-se que o instituto evoluiu, pois houve a época do empregador ter de arcar com o pagamento do salário-maternidade. Sendo o pagamento do salário-maternidade ônus do empregador, restava limitado o acesso da mulher ao mercado do trabalho, visto que era bem mais dispendioso empregar uma mulher do que um homem. Posteriormente, com a lei n. 6. 136, de 7 de novembro de 1974, o benefício previdenciário passou a ser custeado pela Previdência Social.
3.5.2 O momento da luta pela promoção da igualdade
Após a promulgação da Constituição de 1988, intensificou-se a luta pela promoção da igualdade de gênero. Ora, apesar das constituições anteriores terem recepcionado o princípio da igualdade, entendendo-se essa como igualdade formal, foi com a Carta de 1988 que se deu relevo à igualdade material. Assim, a atual Constituição instituiu a igualdade de direitos entre homens e mulheres, preconizando que o sexo não pode determinar relações de poder no seio familiar, nem tampouco no mercado de trabalho. Em face disso, tornou-se imperioso adaptar as regras infraconstitucionais às novas normas constitucionais, a exemplo da proibição de discriminação em relação a sexo (art 3º, IV; art. 5º, I) e a abolição do patriarcalismo da sociedade conjugal, passando o homem e a mulher a terem os mesmos direitos e obrigações.
Na esfera trabalhista, é inegável o aumento de mudanças legislativas, dotadas de um caráter puramente igualitário, e constituindo, portanto, uma segunda etapa de leis afirmativas de gênero.
Como exposto acima, o art. 387 da CLT, ao reproduzir o Decreto n. 21.427- A, proibia o trabalho da mulher em certos locais e sob certas condições. Tais restrições resistiram até 1989, quando a Lei 7.855/89 revogou a proibição, pois com a igualdade entre os sexos defendida pela constituição, não havia razão que justificasse tratamento diferenciado à mulher. Afinal de contas, como bem expõe Alice Monteiro de Barros [44] “são poucas as profissões, se realmente existem, nas quais o trabalho insalubre e perigoso é mais prejudicial às mulheres do que aos homens, se uns e outros agirem com a prudência necessária.”
Essa mesma lei foi responsável por revogar expressamente os arts. 374 e 375 da CLT, que disciplinavam a prorrogação e compensação da jornada de trabalho. A CLT só permitia horas extraordinárias para o trabalho da mulher em duas hipóteses: a primeira, havendo compensação de horas, de modo que o excesso de um dia fosse deduzido da jornada de trabalho de outro dia da mesma semana (art. 374); a segunda, na ocorrência de força maior (art. 376). Em ambas as hipóteses deveria haver autorização por atestado médico.
Saliente-se que a lei 7.855/89 só revogou os arts. 374 e 375, da CLT, que dispunham sobre o sistema de compensação, mas o art. 376, que tratava das horas extras em casos excepcionais, só foi revogado anos depois, pela Lei 10.241/2001.
A lei 7.855/89 também revogou o art. 379 da CLT, que vedava o trabalho noturno da mulher. Agora, não há mais restrições quanto ao trabalho noturno da mulher, nem mesmo durante a gestação. Verifica-se, com o advento dessa lei, uma considerável evolução legislativa, principalmente quando remetemos às convenções de nº. 4, 41, 89 da OIT. Permanece o art. 381, §1º, da CLT, que fixa o adicional noturno de 20%, sendo a hora noturna reduzida de 52 (cinqüenta e dois) minutos e 30(trinta segundos).
No tocante à maternidade, a lei 10.421 de 15 de abril de 2002 acrescentou o art. 392 A na CLT. Por força dessa lei, a empregada que adotar ou obtiver a guarda judicial para fins de adoção de criança também terá assegurado a licença-maternidade, cujo período varia de acordo com a idade do/a adotado/a. Sendo assim, a criança que tiver até 1 ano de idade, o período será de 120 dias (cento e vinte dias), de 1 a 4 anos de idade, o período de licença será de 60 (sessenta) dias e, se a criança tiver entre 4 e 8 anos de idade, o período de licença será de 30(trinta) dias. Entretanto, vê-se que o legislador, ao tentar proteger a maternidade, protegeu a gestação, diferenciando os filhos legítimos dos filhos adotivos, o que fere o princípio da igualdade.
Ao discorrermos acerca da proteção ao trabalho da mulher na Constituição Federal de 1988, ressaltamos que a licença- maternidade garante um afastamento de 120 (cento e vinte) dias. Ora, como é comum ocorrer com mudanças legislativas, o aumento do tempo de licença-maternidade tem seus adeptos e opositores. Com efeito, como relata Lea Elisa Silingowschi Calil [45].
“Alguns ameaçaram demitir suas funcionárias, outros começaram a contratar apenas mulheres solteiras e outros tantos a exigir exame de urina na admissão, para certificar-se de que a contratada não se encontrava em estado gravídico. Todos esses abusos terminaram por gerar a Lei 9.029/95, que proíbe a exigência de atestados de gravidez ou esterilização para que se efetive a admissão ou durante o curso do contrato de trabalho”.
A lei em questão foi publicada no Diário Oficial da União de 17 de abril de 1995, tipificando como crime a exigência de atestados de gravidez e esterilização e outras práticas discriminatórias para efeito de admissão ou de manutenção da relação de emprego, assim dispondo em seu art. 1º, verbis:[46]
“Fica proibida a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de emprego, ou sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar ou idade, ressalvadas nesse caso, as hipóteses de proteção ao menor previstas no inciso XXXIII do art. 7º, da Constituição Federal.”
Márcio Túlio Viana [47] chama a atenção para o fato de a lei estabelecer dois momentos distintos, quais sejam, pré-contratual e contratual. Quanto à fase contratual, segundo o autor, a lei é silente. Contudo, vale salientar, como bem expõe o referido autor, que o contrato pode gerar efeitos após sua extinção, como por exemplo, quando ocorre divulgação de conduta desabonadora sobre ex-empregados.
Merecedor de crítica é o art. 4º da referida lei, onde se faculta ao empregado vítima de discriminação na relação empregatícia, a readmissão com ressarcimento integral de todo o período de afastamento ou a percepção em dobro da remuneração do período de afastamento. Trata-se de proibição de dispensa praticada única e exclusivamente por discriminação.
É evidente que houve considerável avanço na legislação. Anterior à vigência da Lei 9.029/95, a rescisão contratual da mulher, motivada ou não por discriminação, seguia as normas previstas para qualquer trabalhador. Sendo arbitrária ou por justa causa, o empregador fica obrigado a conceder aviso prévio, de no mínimo 30(trinta) dias, liberar os depósitos do fundo de garantia, acrescidos de 40%,além de pagar 13º salário e férias proporcionais.
Uma exceção à regra, diz respeito à gestante, cuja dispensa imotivada, mantém o contrato vigente. A CLT também considera nula a dispensa imotivada de dirigente sindical.
Não obstante a mudança legislativa, ressalte-se que a opção do empregado de ser readmitido tem suas desvantagens. Ora, a readmissão de um empregado cuja dispensa foi motivada por discriminação, não será capaz, por si só, de extirpar o preconceito. Ademais, em se tratando de discriminação, há grande dificuldade de comprovação, já que o ônus da prova cabe a quem sofreu discriminação.
A lei prevê ainda, pena de detenção de 1 a 2 anos ou multa de dez vezes o valor do maior salário pago pelo empregador, elevado em 50% em caso de reincidência.
Ademais, merece destaque a Lei 9.799, de 26 de maio de 1999. De autoria da então deputada Rita Camata, a citada lei proíbe medidas discriminatórias contra a mulher empregada, desde atos do empregador anteriores a contratação, a exemplo da oferta de emprego, até atos corriqueiros na vigência do contrato de trabalho. Devido à promulgação dessa lei, foi acrescentado à CLT o art. 373- A.
Através da leitura desse artigo, vê-se que o mesmo visa punir a discriminação contra o trabalho da mulher. A par disso, o referido artigo, em seu parágrafo único, prevê a adoção de ações afirmativas. Saliente-se, contudo, que a própria Lei n.9.799/99 é uma espécie de ação afirmativa, pois como exposto alhures, as ações afirmativas de gênero têm-se insurgido no Brasil, quase que exclusivamente, por meio de normas.
A Lei 9.799/99 também inseriu na CLT os arts. 390-B, 390-C e 390- E, que dizem respeito aos procedimentos a serem observados pelas empresas para garantia da não-discriminação da mulher no mercado de trabalho.
Outro exemplo de ação afirmativa é a lei n. 10.778, de 24 de novembro de 2003, que visa combater a violência contra a mulher, estando aí inserido o assédio sexual no lugar de trabalho. Conforme dispõe essa lei, é compulsório notificar qualquer caso de violência contra a mulher que for atendida em serviços de saúde públicos ou privados.
Merece destaque a Lei 11.324 de julho de 2006, que estendeu à empregada doméstica gestante a estabilidade no emprego. A citada lei foi uma grande conquista, pois até meados de 2006, a empregada doméstica não tinha direito à estabilidade em razão da gestação, o que a impedia de planejar sua família.
Por fim, em setembro de 2008, a Lei 11.770/2008 ampliou a licença – maternidade de quatro para seis meses. Consoante o disposto na lei, é facultado às empresas e às gestantes estender o direito à licença por mais dois meses, somados aos 120 dias já constitucionalmente garantidos. Caso optem pelo prazo maior, as empresas deverão pagar o valor dos dois meses extras, mas poderão abater do Imposto de Renda esse valor. A empregada que gozar do novo direito não poderá exercer trabalho remunerado durante o tempo em que estiver licenciada, e o filho não poderá ser mantido em creche ou organização similar. O mesmo direito também vale para as empregadas que adotarem uma criança.
Uma das desvantagens da lei é que micro ou pequenas empresas optantes do Simples Nacional não podem aderir ao programa fiscal. É lamentável, visto que a lei não beneficiará todas as mães.
Nessa esteira, o Decreto 6.690 de 11 de dezembro de 2008, regulamentou a extensão da licença-maternidade por mais dois meses (60 dias), para as servidoras lotadas nos órgãos e entidades integrantes da administração pública federal direta, autárquica ou fundacional.O direito à licença-maternidade para as servidoras públicas federais é garantido pelo Artigo 207 da Lei 8112/90, que estabelece o prazo de 120 dias consecutivos sem prejuízos da remuneração. Além das gestantes, a medida também alcança as adotantes.
4. Ações Afirmativas e Trabalho da Mulher: Uma Análise Crítica
4.1 Argumentos Contrários e Favoráveis às Ações Afirmativas
A política de ações afirmativas têm sido alvo de acalorados debates, que resultam em posicionamentos favoráveis e contrários ao tema. Vê-se, portanto, que não se atingiu um consenso em torno da necessidade e constitucionalidade das mesmas.
Os que são contrários à implementação dessas políticas aduzem que elas estabelecem um privilégio, pois favorecem um grupo em detrimento de outro. Por conseguinte, as ações afirmativas possuem um caráter inconstitucional, por contrariar o princípio da igualdade formal.
Outrossim, as ações afirmativas são objetos de veementes críticas, eis que são frequentemente vistas como uma discriminação inversa, ou seja, ao avesso. Trocando em miúdos, defende-se a idéia de que o favorecimento de um determinado grupo pode vir a gerar, naquele preterido, sentimento de rejeição e injustiça. Como esclarece Sabrina Moehlecke [48], as ações afirmativas não raro são associadas à oposição de mérito individual, contribuindo para a inferiorização do grupo supostamente beneficiado, pois este seria visto como incapaz de vencer por si mesmo.
Aldacy Rachid Coutinho[49] informa que não obstante essas políticas terem sido implementadas a mais de quatro décadas, nos Estados Unidos, as mesmas não conseguiram superar a segregação de gênero, o que tem levado os Estados Unidos a revisarem suas políticas de ações afirmativas. Ao continuar enumerando os aspectos que desfavorecem o assunto em questão, a autora ressalta o fato das pesquisas demonstrarem que a adoção do sistema de quotas apresenta melhores resultados para as situações de segregação racial do que para as relativas ao gênero. Ademais, argumenta que a legislação, por si só, não é capaz de modificar o fenômeno social da discriminação. Por fim, salienta que o combate à discriminação de gênero depende da percepção por parte das próprias vítimas da segregação. Antes de se criar mecanismos externos de promoção da igualdade, é preciso crer na igualdade, reconhecer a dignidade e o orgulho de ser mulher.
Por sua vez, Renata Malta Vilas-Bôas [50] traz a lume argumentos que explicam porque alguns se opõem às ações afirmativas. Alega a autora que a idéia de que a sociedade brasileira não é racista é amplamente difundida, consequentemente, há aqueles que acreditam que não há diferença entre um branco e um negro. Ora, apesar do argumento ter sido citado em referência ao racismo, poder-se-ia argumentar, por analogia, que não existe mais diferença entre homens e mulheres, logo a sociedade não seria sexista. Assim, em não ocorrendo tal fenômeno de intolerância, não haveria o que se falar em políticas voltadas à inserção da mulher no mercado de trabalho.
Ainda no tocante às críticas sofridas pelo instituto em questão, ressalte-se que, há aqueles que se posicionam contrários apenas, por entenderem, erroneamente, que ações afirmativas e sistemas de quotas são as mesma coisa. Ao determinar um percentual de vagas, acredita-se estar-se desconsiderando o mérito individual de cada um.
Em contrapartida, as ações afirmativas têm encontrado inúmeros adeptos. Com efeito, Sabrina Moehclecke [51] enumera algumas das opiniões citadas por autores que as defendem veementemente.
Para aqueles que advogam a favor dessas políticas, as mesmas estão de acordo com os preceitos constitucionais, à medida que procuram corrigir uma situação real de discriminação. Constituem, portanto, uma discriminação positiva, visto que objetivam atingir uma igualdade de fato, e não fictícia. Além disso, os favoráveis ao instituto argumentam que as ações afirmativas não são contrárias à idéia de mérito individual, pois têm como meta fazer com que este possa efetivamente existir.
Posicionar-se a favor das ações afirmativas significa defender a idéia de que a sociedade é incapaz de garantir que as pessoas vençam por suas qualidades e esforços, ao invés de vencer mediante favores, rede de amizade, cor, etnia, sexo.
Sobre o tema, Renata Malta Vilas-Bôas [52] posiciona-se favoravelmente, afirmando que:
“A razão que temos para que essas normas jurídicas sejam inseridas em nossa legislação deve-se ao fato de que constatamos a existência de pessoas com necessidades diferenciadas e que essas mesmas pessoas precisam de situações específicas para poder tornarem-se iguais às demais. Busca-se criar situações desigualadoras para que no final possamos falar em igualdade de oportunidades.”
Para os idealizadores das ações afirmativas, essas são encaradas sob o enfoque da justiça compensatória, pois há o entendimento de que as minorias hão de ser compensadas pela discriminação histórico-social sofrida ao longo dos séculos, necessitando, portanto, de oportunidade para demonstrarem suas qualidades. Em suma, as ações afirmativas para seus defensores não são vistas como um privilégio, e sim, como um direito.
4.2 Analisando a Constitucionalidade das Ações Afirmativas em Face do Princípio Isonômico
Recentemente, muito se tem sido discutido acerca da constitucionalidade das ações afirmativas, principalmente as que dizem respeito a quotas, com base no argumento de que a ação afirmativa privilegia as minorias, se opondo à idéia de mérito individual. As ações afirmativas estariam, assim, violando o princípio da igualdade.
É imperioso salientar que a Constituição de 1988 não veda a adoção dessas políticas públicas, muito pelo contrário, favorece através de dispositivos afirmativos, que funcionam como alicerce para a implementação das mesmas na esfera infraconstitucional. Basta nos referirmos ao art. 3, que dispõe sobre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I- construir uma sociedade livre, justa e solidária; III- erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV- promover o bem estar de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Como assinala Carmem Lúcia Antunes Rocha [53], os verbos que definem os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil são verbos que evocam ação: construir, erradicar, reduzir e promover. Esses são objetivos a serem alcançados ou efetivados por meio de ações do Estado.
E quanto ao princípio da igualdade: seria correto afirmar que as ações afirmativas o contradizem, já que há um discrimén de um determinado grupo?
Na verdade, o cerne da questão está em entender a evolução do princípio da igualdade ao longo da história. Sob o prisma do Estado Democrático de Direito, o princípio da igualdade adquiriu novos contornos e, portanto, não pode ser entendido, unicamente, como mera igualdade formal, por mostrar-se insuficiente para a resolução dos problemas sociais. Portanto, adotou-se o conceito de igualdade material, princípio esse que urge efetivação.
Destarte, deve-se interpretar com cautela o art. 5º, caput da CF/88, pois o mesmo compreende tanto a igualdade formal como a igualdade material. Assim, entende-se que para que o direito seja justo, é preciso que a lei trate igualmente os iguais, mas desigualmente os desiguais. Percebe-se, claramente, que passa a existir uma espécie de discriminação que é legítima e, até mesmo, necessária. Entretanto, resta saber, como questionou Celso Antônio Bandeira de Mello [54], quem são os desiguais, ou seja, o que distingue determinados grupos que merecem tratamento especial. O autor enumera alguns critérios para que seja possível discriminar sem ferir os interesses constitucionais.
“a) que a desequiparação não atinja de modo atual e absolutamente um só indivíduo;
b) que as situações ou pessoas desequiparadas pela regra de direito sejam efetivamente distintas entre si, vale dizer, possuam características, traços, nelas residentes, diferençados;
c) que exista, em abstrato, uma correlação lógica entre os fatores diferenciais existentes e a distinção de regime jurídico em função deles, estabelecida pela norma jurídica;
d) que, in concreto, o vínculo de correlação supra-referido, seja pertinente em função dos interesses constitucionalmente protegidos, isto é, resulte em diferenciação de tratamento jurídico fundamentada em razão valiosa – ao lume do texto constitucional – para o bem público.”
Em suma, aduz o ilustre autor que na discriminação positiva não se considera o indivíduo isolado, mas um grupo, que se encontra em posição de desvantagem na sociedade, sendo essa situação reconhecida constitucionalmente. Sendo assim, conclui-se que não pode ser um grupo escolhido aleatoriamente. Além disso, é essencial que o discrimén constitucional seja fundamentado numa razão valiosa, ou seja, que se discrimine positivamente para diminuir as desigualdades sociais, gerando, por conseguinte, o bem público.
Ora, se as ações afirmativas objetivam efetivar a igualdade e essa, por ser direito fundamental tem aplicabilidade imediata, logo, as ações afirmativas terão aplicabilidade imediata, ou seja, serão sempre constitucionais.
Entretanto, conforme o magistério de Walber de Moura Agra [55] nenhum direito fundamental é absoluto, não podendo ser usado excessivamente a ponto de afrontar os direitos de uma coletividade.
Nessa esteia, Manoel Gonçalves Ferreira Filho [56] recorre ao princípio da proporcionalidade, ao discorrer sobre a constitucionalidade das ações afirmativas.
O referido princípio subdivide-se em três outros, quais sejam, o princípio da adequação, o princípio da necessidade e o princípio da proporcionalidade em sentido estrito.
Por meio do princípio da adequação exige-se que o meio escolhido esteja em conformidade com o fim pretendido. Para avaliar a adequação, há de se perguntar: o meio escolhido foi adequado e pertinente para atingir o resultado almejado?
Entende-se por necessidade, o emprego do meio mais hábil para alcançar o fim almejado, devendo-se escolher dentre os meios adequados àquele que trouxer menores conseqüências negativas aos interessados. Questiona-se a eficácia para atingir o resultado almejado.
Por fim, através do princípio da proporcionalidade em sentido estrito, avalia-se se o meio utilizado é proporcional em relação ao objetivo pretendido. Importa verificar se a medida utilizada ocasionará mais vantagens do que desvantagens. Nesse sentido, pergunta-se: o benefício alcançado com a adoção da medida preservou direitos fundamentais mais relevantes do que aqueles direitos que sacrificamos?
O referido autor ainda inclui dois outros critérios, considerados fundamentais para a análise da constitucionalidade das ações afirmativas. O primeiro deles é a finalidade. Consoante às explicações do autor, as ações afirmativas devem ter a finalidade de corrigir as desigualdades sociais. Nas palavras do ilustre jurista, “claro está que seria violação da igualdade a diferenciação com o objetivo (ainda que disfarçado) de premiar os que não sofrem as agruras das desigualdades sociais”. O segundo deles é a temporariedade. Aduz o autor que “passado tempo razoável, se elas não atingirem o objetivo colimado, certamente são inadequadas.”
Com a devida vênia, questionamos o critério da temporariedade. Ora, a questão do tempo é difícil de ser mensurada. O que vem a ser tempo razoável? Em se tratando de fenômenos de intolerância existentes há séculos, quais sejam o sexismo ou o racismo, como se pode prever quando uma medida afirmativa atingirá seu objetivo. Em que pese às ações afirmativas que tutelam a maternidade para proteger a mulher no mercado de trabalho, não seria razoável que as mesmas fossem temporárias.
Diante do exposto, cabe-nos examinar o art. 7º, XX da CF/88, que dispõe: “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem a sua condição social: proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei”.
Primeiramente, percebe-se que o legislador definiu as mulheres como grupo minoritário, vitima de discriminação pretérita com efeito presente e, portanto, em situação de desvantagem no mercado de trabalho. Em segundo lugar, vê-se que constituinte fundamentou-se em razão valiosa, cuja finalidade é corrigir desigualdades sociais. Não há o que se falar em inconstitucionalidade, mesmo porque uma norma constitucional não pode ser considerada inconstitucional. Conforme ensinamentos de Alexandre de Moraes [57], o sistema constitucional brasileiro não adota a teoria alemã das normas constitucionais inconstitucionais, que possibilita a declaração de inconstitucionalidade de normas constitucionais positivadas, não havendo possibilidade de declaração de normas constitucionais originárias como inconstitucionais.
Portanto, a diferenciação praticada pela Constituição, ao proteger a mulher no mercado de trabalho, está juridicamente fundamentada e, consequentemente, em consonância com o princípio da isonomia material. Com essa norma, o legislador constituinte abriu a possibilidade de ações afirmativas em nível infraconstitucional.
Em conformidade com os critérios supracitados, Joaquim Barbosa Gomes [58] enumera três requisitos para que uma norma infraconstitucional não fira o princípio da igualdade material.
“A diferenciação deve decorrer de um comando-dever constitucional, no sentido em que deve obediência a uma norma programática que determina as reduções das desigualdades sociais;b)ser específica, estabelecendo claramente aquelas situações ou indivíduos que serão ‘beneficiados’ com a diferenciação;c) ser eficiente, ou seja, é necessária a existência de um nexo causal entre a prioridade legal concedida e a igualdade socioeconômica pretendida.”
Observa-se que a regulamentação do trabalho da mulher na CLT foi, paulatinamente, passando por uma revisão, com vistas a se adaptar à situação da mulher ao longo dos anos.
As primeiras leis que tutelaram o trabalho da mulher e originaram vários artigos na CLT, proibiam o trabalho noturno e em horário extraordinário. Tal limitação foi eliminada diante da revogação dos arts. 374, 375, 378, 379 e 380 da CLT, pela Lei nº 7.855, de 24 de outubro de 1989. Posteriormente, a lei n. 10.244, de 27 de junho de 2001 revogou o art. 376. No mesmo sentido, a proibição do trabalho da mulher em locais insalubres e perigosos foi eliminada pela Lei nº. 7.855/89. Se em algum momento o legislador pretendeu proteger a mulher no mercado de trabalho, infelizmente, a tentativa não restou eficaz, visto que limitava sua condição de trabalho.
Ao aplicarmos critérios de constitucionalidade, evidencia-se que esses artigos da CLT não restam eficazes em promover a igualdade social pretendida pela Constituição de 1988. Vimos que a diferenciação é justificável quando fundamentada em razão valiosa. Ora, que fundamento poderia justificar a proibição do trabalho da mulher em horário extraordinário e noturno? É demasiadamente difícil justificar tal proibição, com base na moralidade e nos bons costumes, quando muitas mulheres, na época, trabalhavam para sustentar o grupo familiar, ou para sua própria sobrevivência.
A CLT ainda possui dispositivos protetivos, (e.g arts. 384, 389 e 390) que urgem revogação, pois ao invés de promover a igualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho, acabam reduzindo as chances da mulher. Tais privilégios concedidos ao sexo feminino acabam por gerar discriminação inversa, dificultando a sua inserção e manutenção no emprego.
Merecem comentário os dispositivos que visam proteger a maternidade. Questiona-se se o tratamento dispensado à maternidade seria uma medida preferencial ou uma forma de promover a igualdade no mercado de trabalho. Nesse passo, estariam as normas infraconstitucionais vigentes de acordo com o princípio da igualdade?
Todas as normas vigentes estão compatíveis com o princípio da igualdade, pelas seguintes razões: a) homens e mulheres são fisiologicamente diferentes, tendo a natureza feito a mulher dotada da capacidade de engravidar e amamentar;b) a maternidade é fator de instabilidade no emprego, aliás até mesmo antes da contratação.;c) a própria Constituição Federal protege a maternidade e a gestante (art.201, inciso II, e art 7º, XVIII, CF) a família (art. 226 CF); d) A própria sociedade ainda impõe à mulher as responsabilidades de criar os filhos, mormente nos primeiros meses de vida da criança. Por esses motivos não é justo que a mulher seja prejudicada no ambiente de trabalho, cabendo ao Estado postura ativa na luta contra a discriminação da mulher, naquilo em que a natureza a fez diferente do homem.
Todavia, frise-se que a Lei 11.770/2008 pode ser alvo de críticas por ter ampliado o tempo de licença-maternidade para 180 dias. Por mais que essa lei afirmativa tenha garantido à mulher e ao seu filho um contato afetivo essencial nos primeiros seis meses de vida da criança, pode-se argumentar que existe desproporcionalidade entre a licença-maternidade (de 180 dias) e a licença-paternidade (de 5 dias). Ora, malgrado o princípio da igualdade material seja um direito humano fundamental, não há direito absoluto, devendo as ações afirmativas ser compatíveis com o princípio da proporcionalidade. A desproporcionalidade pode fomentar a indignação do grupo menos favorecido e o conseqüente aumento da discriminação contra a mulher no mercado de trabalho. Por conseguinte, é justo conceder uma licença-paternidade mais longa, afinal de contas, a responsabilidade com os filhos é de ambos os sexos.
Quanto aos tratados internacionais, vale salientar que a Emenda Constitucional nº. 45, de 08 de dezembro de 2004 acrescentou o § 3º, ao art. 5º da Constituição, equiparando a legislação internacional que versa sobre direitos humanos às emendas constitucionais, desde que sejam aprovadas pelo Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros. Com efeito, não há o que se falar em inconstitucionalidade das ações afirmativas de gênero emanadas de órgãos internacionais face ao princípio isonômico. Quanto às convenções já ratificadas, essas, segundo o entendimento do STF passam a gozar de status supralegal. Assim, as normas infraconstitucionais devem obediência não só à Constituição, como aos tratados (dupla compatibilidade vertical).
5 Considerações Finais.
É evidente que, há muito, o Estado vem se posicionando no sentido de proteger o mercado de trabalho da mulher, mormente na seara legislativa, sob o fundamento da mulher ser vítima de discriminação ao longo da história. As ações afirmativas, por meio de leis, ao contrário do que muitos pensam, não são tão recentes assim; são fruto de uma luta incessante em prol da igualdade de oportunidades.
As primeiras leis que visavam tutelar o trabalho da mulher não raro se revelaram discriminatórias. Ao tentar proteger a mulher no mercado de trabalho, o legislador acabou por discriminá-la: proibiu o seu trabalho noturno, obstou o seu acesso a determinados postos de trabalho, impôs condições ao empregador que aumentaram os custos da mão-de-obra feminina, desincentivando sua contratação. Em contrapartida, a proteção especial dispensada à maternidade, devido a sua função social, encontrou desde cedo guarida na legislação pátria.
Em um segundo momento, as leis meramente ‘protetivas’ foram deixando o ordenamento jurídico brasileiro, principalmente com o advento da Constituição de 1988, quando se passou a lutar pela promoção da igualdade. Enquanto, alguns dispositivos da CLT foram revogados, outros foram inseridos na tentativa de coibir a discriminação negativa, que impede a mulher de competir, no mercado de trabalho, em condições de igualdade com o homem.
De fato, a legislação que outrora protegia a mulher mostrava-se, por vezes, preferencial, necessitando ser retirada do ordenamento jurídico. Apesar de muitos artigos da CLT terem sido revogados, alguns ainda restam vigentes. No entanto, entendemos que é preciso manter a proteção especial à maternidade, pois não é justo prejudicar a mulher no trabalho pelo simples fato de tornar-se mãe. Ademais, a legislação pertinente à maternidade não só resguarda a mulher no emprego, como também garante sua saúde, a do seu filho e o desenvolvimento da criança nos primeiros meses de vida. Contudo, seria justo se fosse concedida, também, uma licença-paternidade mais longa.
No Brasil, costuma-se ignorar a manifesta desigualdade entre homens e mulheres. Há quem diga que a discriminação é coisa do passado. Ora, a discriminação de gênero existiu e ainda persiste, e, por ser negativa e injustificável, tal discrímem resta ilegítimo.
Em contrapartida, entendemos que as ações afirmativas de gênero devem ser vistas como uma diferenciação legítima, pois é prevista pela própria constituição, e não fere o princípio da igualdade entre homens e mulheres; ao contrário, procura efetivá-lo. Frise-se, contudo, que, embora o ordenamento jurídico pátrio permita a discriminação positiva, deve-se sempre escolher a modalidade que seja menos danosa ao grupo não favorecido pela medida. Assim, estar-se-á evitando a indignação do grupo não favorecido.
Em relação às quotas, em particular, saliente-se que ainda não foram propostas ações afirmativas, nessa modalidade, na tentativa de inserir a mulher no mercado de trabalho. Todavia, há quotas no âmbito da representatividade eleitoral, levando-nos a crer que, em breve, possam surgir tentativas no mesmo sentido para o mercado de trabalho. Em se tratando de uma forma mais radical de ação afirmativa e, por isso, objeto de inúmeras críticas, as cotas devem ser vistas com cautela, sempre tendo em mente o respeito ao princípio da proporcionalidade.
Aduzimos que as ações afirmativas não são um remédio capaz de curar o mal da desigualdade social, mesmo porque seria por demais utópico acreditar que numa sociedade complexa como a nossa, todas as desigualdades sejam eliminadas.
Contudo, advogamos a favor do instituto e acreditamos que só seja possível defendê-lo quando se comunga do seguinte pensamento. Primeiramente, reconhecer que, de fato, existe discriminação contra a mulher no mercado de trabalho, e que essa não é passada, mas ainda gritante na atualidade. Além disso, é preciso acreditar na possibilidade de se reduzir a desigualdade social, posto que a mera igualdade formal não é suficientemente eficaz para proporcionar a justiça social. A par disso, é necessário ter em mente que as ações afirmativas não se resumem única e exclusivamente a quotas de negros nas universidades públicas. Ora, pensar dessa forma, é desvirtuar um instituto cujo objetivo é a transformação social.
Embora as ações afirmativas ainda não sejam dotadas de efetividade suficiente para eliminar as desigualdades históricas, eis que o preconceito é um mal cultural, é certo que essas medidas têm desempenhado papel fundamental na redução das desigualdades. Por isso, deve-se entender que há várias formas de implementar ações afirmativas, quer por meio de leis que punam a discriminação, quer por incentivos fiscais concedidos a empresas que empreguem um determinado número de mulheres, ou mesmo através de leis que disciplinem a situação da mulher gestante.
Concomitantemente com as medidas legislativas, acreditamos ser fundamental a conscientização da sociedade na luta contra a discriminação. Mister se faz adotar medidas não só moralizadoras e repressivas contra a discriminação, mas, sobretudo, adotar estratégias preventivas através da educação de nossas crianças e jovens.
Informações Sobre o Autor
Vitória dos Santos Lima Queiroga
pós-graduanda em Direito Público (Universidade Anhanguera-Uniderp/LFG), especialista em Direito Constitucional (UNISUL/LFG/IDP), mestra em Línguística Aplicada (Universidade de Birmingham- Inglaterra), graduada em Direito (UNIPÊ) e em Letras (UFPB),ex-conciliadora da Justiça Federal –seccional da Paraíba.