Administração pública democrática e efetivação de direitos fundamentais

“O campo dos direitos do homem – ou, mais precisamente, das normas que declaram, reconhecem, definem, atribuem direitos ao homem – aparece, certamente, como aquele onde é maior a defasagem entre a posição da norma e sua efetiva aplicação” (Norberto Bobbio, A Era dos direitos, 1992, p. 77.).


” … o Direito Administrativo, além da finalidade de limite ao poder e garantia dos direitos individuais ante o poder, deve preocupar-se em elaborar fórmulas para a efetivação de direitos sociais, econômicos, coletivos e difusos, que exigem prestações positivas, …” (Odete Medauar, Apresentação da 1. ed. de seu Direito Administrativo Moderno, 1997.).


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Sumário: 1. Contextualização. 2. Estado democrático de direito e administração pública democrática. 3. Administração pública democrática e participação administrativa. 4. Administração pública democrática e efetivação de direitos fundamentais. 5. Considerações finais.


1. CONTEXTUALIZAÇÃO


A Administração Pública contemporânea configura a interface entre o Estado e a sociedade.


Cumpre aprioristicamente à organização administrativa estatal conferir respostas às demandas sociais. A principal função do aparato administrativo estatal é a de receber os influxos e estímulos da sociedade, rapidamente decodificá-los e prontamente oferecer respostas aptas à satisfação das necessidades que se apresentam no cenário social.


Tal afirmação possui relacionamento estreito com a temática atinente às atuais relações entre Estado, Administração Pública e sociedade civil.


Na relação entre Estado e Administração Pública, Sabino CASSESE coloca em xeque a concepção reducionista de Administração Pública como administração de um ente público.


Para CASSESE, tal concepção serviu (i) para reforçar os vínculos entre corpo político e corpo administrativo, colocando em evidência a posição funcional deste em referência àquele, e (ii) destacar a impessoalidade e imparcialidade da Administração, em relação ao Estado-Governo. Tanto a visão unitária de Estado, como a perspectiva “estadocêntrica” de suas relações estariam – na abalizada opinião do jurista italiano – superadas pelo direito positivo e pelas transformações atualmente em curso.


Para o autor, a Administração Pública não mais poderia ser compreendida como Administração do Estado, nem mesmo seria, necessariamente, uma Administração de um sujeito público ou de um sujeito. A natureza pública de uma Administração, no entendimento de CASSESE, reside “no elemento interno da Administração, ou seja, na forma em que aparece regulada sua função e, dentro do âmbito da função, no tipo de disciplina a que se encontram submetidos os seus fins”.[1] Para o autor, “os interesses públicos representam um fim, indicado pela norma, que deve ser necessariamente perseguido”.[2]


Por tais razões, assevera CASSESE que “hoje o fenômeno administrativo converteu-se em algo independente do Estado. Estado e Administração seguiram direções diversas. Mais do que isso, o primeiro é um conceito que deve ser abandonado, porque não correspondente mais a nenhum instituto de direito positivo”.[3] No esteio desse raciocínio, o autor confere peso, importância e relevância cada vez maiores à Administração Pública


No que tange às relações entre Estado, Administração Pública e sociedade civil, observe-se a opinião expressada por Luís Felipe Colaço ANTUNES:


O actual Estado administrativo encontra-se confrontado com uma sociedade ao mesmo tempo dividida e relutante em delegar a resolução dos seus interesses e conflitos em aparelhos rígidos, legitimados pelos mecanismos partidários e representativos. Por sua vez, as organizações espontâneas resultantes do pluralismo social, permitem cada vez mais uma relação directa do cidadão com a Administração e o Estado, substituindo-se às instituições que tradicionalmente celebravam esta relação. O Estado encontra-se permanentemente no dever de repensar o seu papel e os seus objectivos em relação à sociedade, assim como no dever de justificar a sua presença e a sua acção. Nesta perspectiva pode falar-se de uma função arbitral do Estado, ainda que contestada, no sentido de que, salvaguardando os direitos do cidadão e da sociedade, deve conter os conflitos, predispondo os serviços necessários à satisfação das necessidades colectivas manifestadas segundo as articulações sociais e territoriais.[4]


No âmbito da efetivação dos direitos individuais e coletivos, espera-se da Administração Pública uma postura pró-ativa. Tal postura pode ser expressada por meio de prestações positivas, v.g. aquelas decorrentes de obrigações de serviços públicos de saúde ou de educação.[5]


Contudo, parece cristalizada a idéia de que a efetivação dos direitos individuais ou coletivos não ocorre tão-somente por intermédio de prestações positivas, tampouco mediante a prestação de serviços públicos.


A realização desses direitos pode exigir uma omissão por parte de órgãos e entidades administrativas,[6] bem como demandar o desempenho de atividades outras que não aquelas inseridas na categoria serviços públicos, tais como ações administrativas relacionadas com o poder de polícia, intervenção direta na economia, regulação ou fomento. 


Este trabalho pretende discutir a relevância, para a efetivação dos direitos fundamentais no Estado contemporâneo, da estruturação de uma Administração Pública Democrática. Esta democracia administrativa há de ser principalmente erigida a partir da observância, pelos Poderes Públicos, do denominado direito à participação administrativa, consagrado na Constituição Brasileira de 1988. Sucedendo a análise proposta, buscar-se-á colocar em destaque a importância da ação administrativa na efetivação dos direitos fundamentais, seguindo-se para as considerações finais do trabalho.


2. ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA


A consagração da noção de Estado de direito por um Texto Constitucional tem, originalmente, dupla finalidade: a imposição de limites ao exercício do poder estatal e a criação de uma autêntica garantia constitucional aos cidadãos.


No que tange à democracia, mesmo sendo difícil conquistar a unanimidade na determinação precisa de seus contornos elementares, Norberto BOBBIO alude à existência de uma definição mínima. O autor assinala a possibilidade de caracterizá-la como “um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos”.[7] A democracia estaria, assim, essencialmente relacionada à formação e atuação do governo.


Da concepção de democracia, extrai-se uma outra noção: a de legitimidade, concebida por Diogo de Figueiredo MOREIRA NETO como “submissão do poder estatal à percepção das necessidades e dos interesses do grupo nacional que lhe dá existência.[8]


José Joaquim Gomes CANOTILHO aduz que a consagração constitucional da noção de democracia (Estado Democrático de Direito) tem a finalidade de erigi-la a um autêntico princípio informador do Estado e da sociedade, e assevera que o sentido constitucional desse princípio é a democratização da democracia, ou seja, a condução e a propagação do ideal democrático para além das fronteiras do território político.[9]


Para Odete MEDAUAR, “a preocupação com a democracia política leva, muitas vezes, ao esquecimento da democracia administrativa, quando, na verdade, esta deveria ser o reflexo necessário da primeira”.[10]


É o que José Joaquim Gomes CANOTILHO denomina democratização da administração, a qual pode manifestar-se (i) na substituição das estruturas hierárquico-autoritárias por formas de deliberação colegial, (ii) introdução do voto na seleção das pessoas a quem foram confiados cargos de direção individual, (iii) participação paritária de todos os elementos que exercem a sua atividade em determinados setores da Administração, (iv) transparência ou publicidade do processo administrativo e (v) gestão participada, que consiste na participação dos cidadãos por meio de organizações populares de base e de outras formas de representação na gestão da Administração pública.[11]


Assim, conforme ressaltou-se em trabalho anterior, não é possível deixar de notar que o Texto Constitucional Pátrio, em diversos momentos, “pautou o caminho para uma maior participação dos cidadãos na esfera administrativa. Em face disso, teve início no Brasil a real democratização administrativa, a ser implementada por intermédio da participação popular na Administração pública …”.[12]


Insta observar que a junção da noção de democracia à de Estado de direito, muito mais do que estabelecer um qualificativo do modo de ser do Estado, é responsável pela atribuição aos cidadãos do direito de participação nas decisões estatais.[13]


A Constituição Espanhola de 1978 – considerada uma das grandes referências contemporâneas em matéria de reconhecimento, proteção e incentivo à participação popular – faz referência expressa ao direito de participação nas decisões estatais em ao menos três momentos. Seu art. 9.2 estabelece, como um dos princípios constitucionais basilares, corresponder aos poderes públicos facilitar a participação de todos os cidadãos na vida política, econômica, cultural e social. Qualificando-o como um direito fundamental, estatui o art. 23.1 que os cidadãos têm o direito de participar nos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes. Por seu turno, o art. 105 (a) reza que a lei regulará a audiência dos cidadãos, diretamente ou através das organizações e associações reconhecidas por lei, no procedimento de elaboração das disposições administrativas que os afetem.  


A Constituição Brasileira de 1988 estabelece no par. único do art. 1° que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Exemplificando, cumpre registrar que, sinalizando o caminho da colaboração entre Administração e população, a Lei Maior admite no inc. X do art. 29 “a cooperação das associações representativas no planejamento municipal, concretizando-se, por exemplo, na idealização do plano diretor (art. 182 e seguintes). Por seu turno, o inc. VII do § único do art. 194 possibilita uma gestão democrática e descentralizada da seguridade social, “com a participação da comunidade, em especial de trabalhadores, empresários e aposentados”. Gestões similares estão previstas no inc. III do art. 198 (saúde), inc. II do art. 204, (assistência social) e inc. VI do art. 206 (ensino público). A conservação do patrimônio cultural brasileiro deve ser promovida com a cooperação da comunidade (§ 1º do art. 216), e a tutela do meio ambiente (bem de uso comum do povo) há de ser levada a efeito com a participação da comunidade (caput do art. 225), sendo dever do Estado a promoção da educação ambiental e da conscientização pública para o fim aludido (inc. VI do art. 225).


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A configuração, no sistema constitucional brasileiro, do direito à participação nas decisões estatais, comprova que, de uma perspectiva unidimensional Estado-súdito (o indivíduo não era possuidor de direitos frente ao Estado, mas unicamente de deveres para com o Estado), passou-se a uma perspectiva bidimensional Estado-cidadão (direitos e deveres originados do vínculo da cidadania destinam-se tanto ao Estado quanto aos indivíduos). A noção de cidadania foi e continua a ser objeto de transformações, razão do contínuo aprofundamento de seu conteúdo e extensão de seu alcance.[14]


Fábio Konder COMPARATO, traçando a evolução histórica de seu conceito, distingue três etapas da cidadania: (i) a cidadania na civilização greco-romana, (ii) a cidadania individualista do Estado liberal e (iii) a nova cidadania no Estado social. Com relação a nova cidadania, o autor destaca que sua noção elementar reside “em fazer com que o povo se torne parte principal do processo de seu desenvolvimento e promoção: é a idéia de participação”.[15] Segundo o autor, tal participação há de instaurar-se em cinco níveis: (i) na distribuição dos bens, materiais e imateriais, indispensáveis a uma existência socialmente digna, (ii) na proteção dos interesses difusos ou transindividuais, (iii) no controle do poder político, (iv) na administração da coisa pública e (v) na proteção dos interesses transnacionais.


E no que tange à participação popular na administração da coisa pública, cabe transcrever as considerações de Fábio Konder COMPARATO:


A relevância da atuação administrativa do Estado social é um fato sobejamente conhecido. Convém, no entanto, advertir para a falsa dicotomia que se procura hoje inculcar, no tocante à distribuição eqüitativa do bem-estar social, entre o estatismo e o privatismo. O princípio da participação popular permite evitar esses extremos, introduzindo uma linha de ação mais democrática na administração da coisa pública.[16]


Eis a figura do cidadão que manifesta sua vontade em fazer parte de procedimentos passíveis de culminar em decisões estatais que afetem direitos seus, não somente de natureza individual, mas de ordem coletiva ou difusa.


É o cidadão consciente de seus direitos civis, políticos e sociais (porque bem informado), e que deseja tomar a palavra e expressar sua opinião nos assuntos relativos à condução das atividades públicas. É o cidadão responsável, conhecedor de seu compromisso social de intervir na esfera estatal, visando com que as decisões dela emanadas possam ajustar-se o mais possível com a realidade social. É o cidadão cooperador, que almeja não ser visto como intruso ou estranho na organização administrativa, mas como o seu principal colaborador. Enfim, é o cidadão participador, que assume posturas pró-ativas perante uma Administração pública que deve agir em proveito dos cidadãos e de toda a sociedade.[17]


Clémerson Merlin CLÈVE, enumera cinco qualificativos do vocábulo cidadão,[18] centralizando sua análise na figura do cidadão propriamente participante, ou seja, aquele que se insere na esfera decisória da Administração Pública. Para o autor, a participação do cidadão na esfera estatal é uma aplicação de mecanismos de democracia direta no âmbito das ações estatais:


A questão da democracia não pode ser posta apenas em termos de representatividade. Não há dúvida que em Estados como os modernos não há lugar para a prescindibilidade da representação política. Os Estados modernos, quando democráticos, reclamam pela técnica da representação popular. A nação, detentora da vontade geral, fala pela voz de seus representantes eleitos. Mas a cidadania não se resume na possibilidade de manifestar-se, periodicamente, por meio de eleições para o legislativo e para o executivo. A cidadania vem exigindo a reformulação do conceito de democracia, radicalizando, até, uma tendência, que vem de longa data. Tendência endereçada à adoção de técnicas diretas de participação democrática. Vivemos, hoje, um momento em que se procura somar a técnica necessária da democracia representativa com as vantagens oferecidas pela democracia direta. Abre-se espaço, então, para o cidadão atuar, direta e indiretamente, no território estatal.[19]


A concepção acima aludida corresponde à noção de democracia participativa, entendida por José Joaquim Gomes CANOTILHO como “a formação da vontade política de ‘baixo para cima’, num processo de estrutura de decisões com a participação de todos os cidadãos”.[20] Para o autor, a noção compreenderia um sentido amplo e um sentido restrito. O primeiro significaria “a participação através do voto, de acordo com os processos e formas da democracia representativa”[21]; o segundo, traduziria “uma forma mais alargada do concurso dos cidadãos para a tomada de decisões, muitas vezes de forma directa e não convencional”.[22]


Passa-se a desenvolver o tema da participação administrativa, evidenciando seu papel na construção e consolidação da Administração Pública Democrática.


3. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA E PARTICIPAÇÃO ADMINISTRATIVA


O fenômeno da participação administrativa configura uma das linhas de evolução da Administração pública contemporânea.


Para Odete MEDAUAR, participação administrativa refere-se (i) à identificação do interesse público de modo compartilhado com a população, (ii) ao decréscimo da discricionariedade, (iii) atenuação da unilateralidade na formação dos atos administrativos e (iv) às práticas contratuais baseadas no consenso, negociação e conciliação de interesses.[23]


Como premissas ao enfrentamento do tema proposto, cumpre apreciar as noções de democracia representativa e democracia participativa.


Diogo de Figueiredo MOREIRA NETO alude  a um ciclo do poder, o qual englobaria (i) destinação, (ii) atribuição, (iii) exercício, (iv) distribuição, (v) contenção e (vi) detenção. Restringir a democracia ao último momento de referido ciclo acabaria por desvirtuar, se não aniquilar, o seu significado.[24]


Entretanto, embora o fenômeno da democracia participativa encontre-se em expansão em todo o mundo, importa ressaltar a importância de conciliá-la com a lógica democrática ainda dominante,[25] ou seja, a democracia representativa.


Odete MEDAUAR aponta que uma das justificativas para o alargamento da participação administrativa seria a “perda de ascendência, de fato, do Legislativo sobre o Executivo e a Administração e na dúvida quanto à adequada representação de valores e interesses da população pelos integrantes do Legislativo”.[26] Entretanto, indica a autora que favoravelmente à participação poder-se-ia defender que a mesma permite “aprimoramento da conduta dos parlamentares ante o paralelismo da atuação popular; e pode-se ponderar que se trata de mais um meio de compatibilizar as decisões estatais às aspirações e reais interesses da coletividade”.[27]


André MOLITOR posiciona-se favoravelmente à participação, enfatizando que as práticas participativas, longe de colocarem em risco os sistemas representativos, poderão afastar o peso da burocracia que encontra-se em suas bases.[28]


Debruçando-se sobre a problemática, João Baptista MACHADO conclui que por meio da participação reencontram-se, em convergência, os dois vetores da democraticidade, “um que vai buscar a sua origem ao sufrágio político universal, outro que procura harmonizar a acção do Estado com os interesses, necessidades e votos expressos pelos grupos sociais organizados e activos através dos quais uma sociedade pluralista se manifesta”.[29]


Boaventura de Souza SANTOS apresenta soluções para o que denomina problema democrático: a (necessária) compatibilização em um determinado país da democracia representativa com a democracia participativa.


A primeira solução é a que admite a coexistência entre as duas espécies democráticas: a democracia representativa em nível nacional, convivendo com a democracia participativa em nível local.


A segunda solução seria a complementaridade, que expressaria uma articulação mais intensa entre as duas espécies de democracia. Aqui pressupõe-se que o governo reconheça ser possível a substituição de parte do processo de representação e deliberação típicos da democracia representativa por mecanismos e procedimentos típicos da democracia participativa (v.g. formas públicas de monitoramento, processos de deliberação pública). O objetivo da complementariedade, para o autor, é “associar ao processo de fortalecimento da democracia local formas de renovação cultural ligadas a uma nova institucionalidade política que recoloca na pauta democrática as questões da pluralidade cultural e da necessidade de inclusão social”.[30] Prossegue, esclarecendo que a complementariedade seria diferente da coexistência, pois “implica uma decisão da sociedade política de ampliar a participação em nível local através da transferência ou devolução para formas participativas de deliberação de prerrogativas decisórias a princípio detidas pelos governantes”.[31]


Para Boaventura de Souza SANTOS, enquanto a coexistência da democracia representativa com a participativa prevaleceria nos países centrais, a complementariedade entre ambas emergiria nos países semiperiféricos e periféricos. E arremata, registrando que “é na originalidade  das novas formas de experimentação institucional que podem estar os potenciais emancipatórios ainda presentes nas sociedades contemporâneas”.[32]


Boaventura de Souza SANTOS propõe três teses para o fortalecimento da democracia participativa: (i) fortalecimento pela demodiversidade, com a ampliação da deliberação pública e da intensificação da participação, (ii) fortalecimento da articulação contra-hegemômica entre o local e o global, e (iii) ampliação do experimentalismo democrático, no sentido de que as práticas bem sucedidas de participação originam-se em gramáticas sociais, “nas quais o formato da participação foi sendo adquirido experimentalmente”.[33]


Dessarte, passa-se a examinar conceito e características da participação administrativa.


Odete MEDAUAR informa que a participação administrativa é uma técnica retificadora do distanciamento da organização administrativa em relação ao cidadão e à realidade.[34]


Nesse sentido, razão assiste a Mario NIGRO quando afirma que por meio da participação “o Estado procura introduzir o mais de sociedade possível em sua esfera, atraindo para o campo do aparato estatal o maior número de interesses sociais e garantindo sua defesa e gestão aos seus titulares, considerados singularmente ou em grupo; …”.[35]


Conforme expressado em trabalho anterior,[36] é possível definir a participação administrativa como a intervenção individual ou coletiva dos cidadãos na gestão dos órgãos e entidades que integram a Administração pública, com reflexos no conteúdo das decisões deles emanadas.[37]  


No contexto da Administração Pública Democrática, entende-se que da participação administrativa decorrem efeitos extremamente positivos.


Em primeiro lugar, a adoção de instrumentos participativos enseja uma maior publicidade e transparência no que tange à condução dos assuntos que envolvem a coletividade, concretizando o princípio da publicidade insculpido no caput do art. 37 da Lei Maior.[38]


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Em segundo lugar, possibilita aos cidadãos maior e melhor informação e conhecimento sobre as diretrizes dos órgãos administrativos, harmonizando-se com o preconizado no inc. XXXIII  do art. 5º da Constituição da República. Este caráter informativo integra ainda as garantias constitucionais do contraditório e ampla defesa, previstas no inc. LV do art. 5º da Carta Magna. Contudo, possível é afirmar que os mecanismos participativos exercem um duplo papel informativo. De um lado, propiciam a obtenção de dados por parte dos cidadãos; de outro, habilitam o órgão administrativo decididor, tornando-o apto a emitir um provimento mais acertado e mais justo, pois estabelece um maior conhecimento acerca da situação subjacente à decisão administrativa.


Em terceiro lugar, o emprego de mecanismos participativos enseja a criação de espaços de efetiva negociação, nos quais as decisões administrativas são tomadas, não somente a partir da perspectiva da ponderação ou da harmonização dos interesses envolvidos, mas também sob a ótica da reciprocidade de concessões. O enfoque da negociação significa que Administração pública, empresas, organizações não-governamentais e cidadãos mutuamente cedem sobre pontos relativos ao objeto em discussão, favorecendo a obtenção de um equilíbrio de interesses originalmente contrapostos, que permaneceriam contrapostos se não fosse pela que a ocorrência de trocas e  concessões entre as partes.[39] 


Eduardo GARCÍA DE ENTERRÍA e Tomás-Ramón FERNÁNDEZ apresentam três justificativas para o fomento ao exercício da participação popular na Administração pública.


Primeiramente, a consciência da necessária aproximação do poder com a sociedade, em substituição à separação antes dominante, e que servira de base à construção liberal. Em segundo lugar, a exigência de afastar os riscos que um governo dominado por burocratas pode gerar para a sociedade, tornando possível a identidade entre governantes e governados. E em terceiro lugar, considerando ser a ideologia participativa um autêntico contraponto ao desenvolvimento dos sistemas burocráticos, os autores defendem que a Administração participada ou concertada é uma técnica essencial de eficiência, a qual visaria complementar ou substituir a tradicional Administração autoritária. De acordo com os autores, “a idéia de participação dos administrados nos processos de decisão parece capaz não somente de diminuir as disfunções organizativas e burocráticas, mas também de obter um novo consensus, uma nova legitimidade  (…) que permita superar a atual crise do poder autoritário…”. [40]   


Com efeito, percebe-se que a efetivação do direito à participação na esfera administrativa – o qual pode ser consubstanciado pela estruturação de Conselhos de Políticas Públicas que contem com a participação de membros da comunidade ou de organizações da sociedade civil – têm grande importância na efetivação dos direitos fundamentais, notadamente por tratar-se, esta efetivação, de um resultado direito do desenvolvimento da ação administrativa.


4. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA E EFETIVAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS


Não há dúvidas de que a crise do modelo providencialista pôs em xeque a figura do Estado prestador, trazendo à baila a discussão em torno de uma co-responsabilidade entre Estado, empresas e sociedade na busca da concretização de uma extensa lista de direitos – sobretudo aqueles com sede constitucional – e portanto caracterizados formal e materialmente como direitos fundamentais.[41]


Para Gilmar Ferreira MENDES, “os direitos fundamentais são, a um só tempo, direito subjetivos e elementos fundamentais da ordem constitucional objetiva. Enquanto direitos subjetivos, os direitos fundamentais outorgam aos titulares a possibilidade de impor os seus interesses em face dos órgãos obrigados. Na sua dimensão como elemento fundamental da ordem constitucional objetiva, os direitos fundamentais – tanto aqueles que não asseguram, primariamente, um direito subjetivo, quanto aqueloutros, concebidos como garantiais individuais – formam a base do ordenamento jurídico de um Estado de Direito Democrático”.[42]


Os direitos fundamentais têm origem nas transformações pelas quais passa a humanidade, e advêm das demandas e necessidades do homem em virtude da sua existência, sobrevivência e desenvolvimento. Nas palavras de Norberto BOBBIO, “são direitos históricos, ou seja nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas”.[43] Dessa natureza histórica, resultou o surgimento de fases, gerações ou dimensões dos direitos fundamentais.[44]


Atualmente, vigora o entendimento de que haveria ao menos três dimensões consolidadas, havendo aqueles que sustentam ou vislumbram a quarta e a quinta dimensões de direitos fundamentais.[45] 


Os direitos fundamentais de primeira dimensão são oriundos do pensamento liberal do século XVIII, possuem forte caráter individualista e exigem uma abstenção do Estado. Aqui englobam-se os direitos à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade, à participação política, entre outros direitos que passaram a ser referidos genericamente como direitos civis e direitos políticos.


Entre os direitos fundamentais de segunda dimensão estão os direitos sociais, culturais e econômicos, os quais encontram sua gênese no século XIX, notadamente a partir da percepção de que a formal consagração dos direitos à liberdade e à igualdade não implicavam necessariamente a sua realização do ponto de vista substancial.[46] Para a realização dessa categoria de direitos fundamentais – v.g. direitos à saúde, à educação, ao trabalho, assistência social –  seriam exigidas intervenções ativas, prestações por parte do Estado.[47] A titularidade desses direitos, compreendidos como a densificação do princípio da justiça social,[48] continua pertencendo ao indivíduo, não podendo ser confundidos com direitos coletivos ou difusos.


Os direitos fundamentais de terceira dimensão, conhecidos por expressarem valores atinentes à solidariedade e à fraternidade,[49] são construídos em torno da titularidade coletiva ou difusa de um certo elenco de direitos, fruto de reivindicações e destinados à proteção de grupos humanos, povos, nações, coletividades regionais ou étnicas. Enfim, destinam-se ao genêro humano, em sentido amplo.[50] Originalmente formatados no âmbito internacional, seriam aqueles direitos decorrentes da percepção da divisão do mundo entre nações desenvolvidas e subdesenvolvidas, nascendo na segunda metade do século XX, a partir de reflexões sobre temas como desenvolvimento, meio ambiente e paz, entre outros.[51] Entretanto, solidificou-se o entendimento segundo o qual constituem direitos dessa dimensão os relativos (i) ao desenvolvimento, (ii) à autodeterminação dos povos, (iii) à paz, (iv) ao meio ambiente e à qualidade de vida, (v) à conservação e utilização do patrimônio comum da humanidade – histórico e cultural, e (vi) à comunicação.[52]


Importa evidenciar que o Estado não pode desobrigar-se do seu papel de indutor, promotor e garantidor dos direitos fundamentais. Ao contrário, cumpre à organização estatal – mormente por meio de seu aparato administrativo – exercer ações em número, extensão e profundidade suficientes para bem desincumbir-se da obrigação constitucional de realizar um dos valores que fundamentam a República Federativa do Brasil: a dignidade da pessoa humana (inc. III do art. 2° da Constituição Brasileira).[53]


Ao lado disso, cumpre frisar que os direitos sociais encontram-se intimamente relacionados com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.


Paulo BONAVIDES assegura que “uma linha de eticidade vincula os direitos sociais ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, o qual lhes serve de regra hermenêutica”,[54] e por isso ressalta que “a observância, a prática e a defesa dos direitos sociais, a sua inviolável contextura formal, premissa indeclinável de uma construção material sólida desses direitos, forma hoje o pressuposto mais importante com que fazer eficaz a dignidade da pessoa humana nos quadros de uma organização democrática da Sociedade e do Poder”.[55]


Assim, nesta seara, há um itinerário obrigatório a ser percorrido pelo ente estatal, mormente em respeito aos valores fundamentais do Estado Brasileiro dispostos no art. 1° da Lei Maior.


Isso significa que mesmo diante da escassez de recursos públicos – fato que eventualmente pode ser tido como obstáculo para a efetivação de direitos sociais pela via direta da prestação de serviços públicos – o Estado não pode isentar-se de suas responsabilidades nesse campo. A ele cumpre promover uma série de outras ações (v.g. fomento, regulação, parcerias), as quais igualmente visam promover os valores fundamentais constitucionalmente consagados.[56]


José ORTIZ DÍAZ esclarece que atualmente, e sobretudo na  doutrina alemã, “a denominação ‘Estado Constitucional’ é utilizada para identificar e tipificar um determinado modelo de Estado em que a Constituição alcança ‘primazia’ qualificadora e um caráter ‘prevalente’ em face do todo e em relação aos fins estatais”.[57] Pondera que no estabelecimento desses fins estatais há a necessidade de se conciliar a dimensão subjetiva dos direitos fundamentais com o caráter objetivo dos fins do Estado.


No cenário deste Estado Constitucional, acrescenta José ORTIZ DÍAZ que “os genéricos e clássicos fins estatais (…) concretizam-se em grande parte (…) na satisfação efetiva dos direitos fundamentais da pessoa, principalmente a cargo das Administrações Públicas, …”.[58] E explicita:


A clássica, indeterminada e universalista função dos fins estatais como o bem comum, o ‘interesse público’, as necessidades públicas, concretizam-se na atualidade (em sua grande maioria) na satisfação dos direitos humanos e nas liberdades positivas da pessoa. Objetivo primordial das Administrações Públicas em nosso tempo deve ser precisamente a satisfação dos direitos e liberdades fundamentais, sendo missão do Direito Administrativo garantir efetivamente essa satisfação.[59]


Sob tal enfoque, Manuel VILLORIA MENDIETA põe em relevo uma nova configuração da função administrativa, propondo readequações na estrutura e na gestão administrativas, notadamente voltadas à valorização do processo de diálogo:


A Administração não pode esquivar-se de seu papel central de sustentação do sistema. A ela cabe, goste disso ou não, a responsabilidade final dos grandes fracassos sociais (DE LEÓN, 1989). Também é sua responsabilidade gerar uma rede público-privada que confira respostas às necessidades da sociedade como um todo. Ela é a responsável pelo processo de diálogo, fazendo com que o mesmo atenda as garantias de igualdade para todos os implicados em virtude da aplicação de determinadas políticas. Tudo isso demanda responsabilidade, não hierarquias; centralidade, não monopólio. Governar será, a partir de agora, configurar e manter um adequado espaço de co-direção e equilíbrio entre as partes implicadas em cada política (KOOIMAN, 1993). Como alcançar isso sem hierarquias, como concretizar tal objetivo sem autoridade, são perguntas a procura de respostas (WILDAVSKY), ainda que determinados dados e práticas apontem para a resultados positivos.[60] 


Ora, uma vez engendradas as políticas públicas voltadas à promoção dos direitos fundamentais – sobretudo daqueles de caráter social – é por intermédio do exercício da função administrativa[61] que o Estado irá efetivar tal direito. Por isso, em última análise, sua efetivação ocorrerá por meio de uma ação administrativa.


Os indivíduos e as organizações da sociedade civil têm o direito de pleitear frente à Administração Pública a efetivação dos direitos fundamentais. As correspondentes obrigações administrativas destinadas a conferir respostas a tais reivindicações encontram-se baseadas em competências e procedimentos fixados em lei; decorrem de posturas que devem ser assumidas em virtude de diretrizes e políticas públicas formuladas pelo Governo, tudo em atendimento aos valores fundamentais do Estado Brasileiro, previstos na Constituição de 1988.


No entanto, é essencial que a organização, a composição e o funcionamento da Administração pública encontrem-se devidamente aparelhados e preparados para conferir elevado grau de realização aos direitos fundamentais, em todas as suas dimensões.


E como “o exercício das funções estatais apenas pode legitimar-se como instrumento de realização e tutela da dignidade da pessoa humana”,[62] a função administrativa deverá, não somente pautar-se em atenção a esse valor, mas também ser desempenhada no sentido de que as decisões tomadas pelos agentes, órgãos e entidades administrativas estejam o mais próximo possível dos anseios do indivíduo e da sociedade. Isso demanda a obrigatória disponibilização de canais participativos aos cidadãos, gerando soluções concertadas, tornando possível a concretização do ideal constitucional da dignidade da pessoa humana.


Por isso, concorda-se com Marçal JUSTEN FILHO, para quem importa revisar os pressupostos e as formas de abordagem do direito administrativo. E um dos possíveis novos eixos desse ramo jurídico decorreria de tese defendida pelo autor, que prega a personalização do direito administrativo, ao revelar que o núcleo da disciplina jurídica “não é o poder (e suas conveniências), mas a realização do interesse público – entendido como afirmação da supremacia da dignidade da pessoa humana”.[63]


Assim, cristaliza-se a noção de que a Administração Pública encontra-se a serviço do cidadão, da coletividade. À Administração Pública cabe o papel de principal agente da realização do interesse público, no sentido acima referido. Isso significa que a efetivação dos direitos sociais, econômicos, culturais e de todos os demais direitos consagrados constitucionalmente dependem, rigorosamente, de uma ação administrativa.


Conforme frisou-se anteriomente, ação administrativa não equivale necessariamente a uma prestação de serviço público, mas a qualquer uma das atividades que compõem a dinâmica da Administração Pública.[64]


Ademais disso, cabe frisar que o § 1° do art. 5° da Constituição da República estipula a aplicabilidade imediata das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais. Ora, todos os órgãos e entidades administrativas – compreendidas as entidades privadas colaboradoras da Administração Pública (v.g. concessionárias e permissionárias de serviços públicos) – encontram-se imediatamente vinculados às normas definidoras de direitos e garantias fundamentais.[65]


É óbvio que tal vinculação não pode ser afastada no caso dos direitos fundamentais decorrentes (v.g. direito ao desenvolvimento), em face de os mesmos não serem objeto de norma expressa no Texto Constitucional. Por força do § 2° do art. 5° da Lei Maior, o elenco dos direitos fundamentais reconhecidos pelo sistema brasileiro engloba tanto os direitos fundamentais decorrentes do regime e dos princípios, como aqueles decorrentes de tratados internacionais em que o Brasil seja parte.


Por isso, concorda-se com Ingo Wolfgang SARLET, para quem “os direitos fundamentais vinculam os órgãos administrativos em todas as suas formas de manifestação e atividades, na medida em que atuam no interesse público, no sentido de um guardião e gestor da coletividade”.[66]


Após o desenvolvimento destes tópicos, passa-se ao desfecho do trabalho.


5. CONSIDERAÇÕES FINAIS


Defende-se que há de ser definitivamente afastada a idéia de que a Administração Pública atual seja reduzida a representar, unicamente, um aparato a serviço do Governo.


Por isso, razão assiste à Manuel VILLORIA MENDIETA, para quem “a Administração Pública é instrumento do governo que esteja governando naquele momento, mas também instrumento da sociedade”.[67]


Evidenciando a vocação da Administração Pública da atualidade, Odete MEDAUAR assinala que “… a vida da Administração deve ser considerada como produto do contemporâneo desenvolvimento de várias tendências, correspondentes a exigências reais da sociedade; exigência de quadro organizacional resultante da integração de Administração e governo, capaz de produzir atividades com o empenho e a presteza que a realidade atual exige dos Poderes Públicos”.[68] Ressalta a autora, baseando-se em ensinamentos de Mario NIGRO, que há uma exigência no sentido de que os processos de decisão em curso na esfera administrativa tenham em conta “os direitos e as aspirações dos cidadãos isolados, associados e de toda a sociedade”.[69]    


Em trabalho que exorta a participação dos cidadãos na Administração pública, João Baptista MACHADO ressalta que a satisfação dos interesses e necessidades vitais é mediatizada pela máquina administrativa, razão pela qual um meio apropriado aos cidadãos para lutarem por tais interesses é a sua atuação sobre o funcionamento desta máquina.[70]


Na esfera administrativa, o consenso entre Administração pública, cidadãos e sociedade civil – ou ao menos as decisões administrativas previamente negociadas – resultam do exercício do direito de participação na Administração Pública.


Mais do que uma tendência da Administração Pública contemporânea, a participação administrativa é uma realidade inafastável, e deve ser entronizada no corpo administrativo do Estado.


No entanto, para serem considerados mecanismos cooperativos úteis, tudo o que for discutido ou configurar resultado do emprego de instrumentos participativos (v.g. audiências pública, consultas públicas, referendos administrativos, coletas de informação, entre outros) deve ser devidamente considerado pelo órgão ou autoridade decididora, previamente à emissão do provimento administrativo.


Assim, a concordância ou aderência dos cidadãos aos provimentos emitidos pelos centros decisórios administrativos será uma conseqüência da maior legitimidade dessa decisão, pois seus pleitos, opiniões e sugestões foram ao menos apreciados. Isso acarretará maior eficácia e efetividade das decisões administrativas, sendo o caso de defender-se hodiernamente a legitimidade pela participação, inclusive como meio de obter-se maior eficiência no desempenho da função administrativa e maior justiça da decisão administrativa.


Parece estreme de dúvidas que a estruturação e a consolidação de uma Administração Pública Democrática, com a observância generalizada do direito à participação nas decisões estatais, representa um inestimável reforço para que o Estado possa desincumbir-se daquela que é a maior de todas as suas atribuições no mundo contemporâneo: a de responsável primário pela efetivação dos direitos fundamentais.


 


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Notas:



[1]CASSESE, Sabino. Las bases del derecho administrativo. Madrid: Instituto Nacional de Administración Pública, 1994. p. 44.

[2] Id.

[3] Ibid., p. 45.

[4] ANTUNES, Luís Felipe Colaço. A tutela dos interesses difusos em direito administrativo: para uma legitimação procedimental. Coimbra: Almedina, 1989. p. 77.

[5] José Joaquim Gomes CANOTILHO salienta que “a expressa consagração constitucional de direitos económicos, sociais e culturais não implica, de forma automática, um ‘modus’ de normativização uniforme, ou seja, uma estrutura jurídica homogénea para todos os direitos. Alguns direitos económicos, culturais e sociais são verdadeiros direitos self-executing (ex.: liberdade de profissão, liberdade sindical, igualdade no trabalho); outros são direitos a prestações, que pressupõem a actividade mediadora dos poderes públicos (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 5. ed. 2. reimp. Coimbra: Almedina, 1992. p. 554.).  

[6] Segundo Robert ALEXY, tais omissões estatais configuram direitos de defesa, entendidos como “direitos do cidadão frente ao Estado a ações negativas do Estado”, os quais dividem-se em três grupos: (i) direitos a que o Estado não impeça ou dificulte determinadas ações do titular do direito; (ii) direitos a que o Estado não afete determinadas propriedades ou situações do titular do direito, e (iii) direitos a que o Estado não elimine determinadas posições jurídicas do titular do direito (ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. p. 189.). De natureza diversa são os direitos de proteção, os quais não configuram omissões, mas autênticos “direitos a prestações positivas do Estado”, a quem compete encarregar-se de que terceiros omitam intervenções (Ibid., p. 441.) Assevera o autor que “os direitos a ações negativas impõem limites ao Estado na busca de seus fins”, ao passo que “os direitos a ações positivas impõem ao Estado a busca de determinados objetivos” (Ibid., p. 429-430.).  

[7] BOBBIO, Norberto.O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 18. Cf. ainda BOBBIO, Norberto et al. Crisis de la democracia. Barcelona: Editorial Ariel, 1985. Sobre as teorias da democracia, cf. SAMPAIO, José Adércio Leite. Democracia, constituição e realidade. Revista Latino-americana de Estudos Constitucionais. Belo Horizonte, n.1, p. 741-823, jan./jun. 2003.

[8] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito da participação política. Rio de Janeiro: Renovar, 1992. p. 65. Explicita o autor que o controle de legalidade advém da configuração do Estado de direito. Por sua vez, o Estado de direito democrático institucionalizaria o controle de legitimidade (Id.). Para Paulo BONAVIDES, em um regime democrático a legalidade “é o seu enquadramento nos moldes de uma constituição observada e praticada; sua legitimidade será sempre o poder contido naquela constituição, exercendo-se de conformidade com as crenças, os valores e os princípios da ideologia dominante, no caso a ideologia democrática” (BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 112.). Sobre legitimidade no Estado contemporâneo, cf. GABARDO, Emerson. Eficiência e legitimidade do Estado: uma análise das estruturas simbólicas do direito político. Barueri: Manole, 2003.

[9] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 5. ed. 2. reimp., 1992. p. 421. Para Regina Maria Macedo Nery FERRARI, “a Democracia corporifica-se como um processo dinâmico, próprio de uma sociedade que aceita o desenvolvimento do cidadão, proporcionando sua participação no processo político em condições de igualdade, o que se reflete no campo econômico, político, social e jurídico” (FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Participação democrática: audiências públicas. In: CUNHA, Sérgio Sérvulo; GRAU, Eros Roberto (orgs.) Estudos de direito constitucional em homenagem a José Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 325-351. p. 331.).

[10] MEDAUAR, Odete. Administração pública ainda sem democracia. Problemas Brasileiros, São Paulo, a. 23, n. 256, p. 37-53., mar./abr. 1986. p. 38.

[11] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 5. ed. 2. reimp., 1992. p. 433. O tema da democracia administrativa suscita a preocupação com o reforço das garantias de determinados direitos fundamentais, pela via da participação dos cidadãos nas organizações e nos procedimentos. Nas palavras de José Joaquim Gomes CANOTILHO, “certos direitos fundamentais adquiriam maior consistência se os próprios cidadãos participassem nas estruras de decisão” (Ibid., p. 558.). Para o autor, “as condições reais em que se desenvolve a eficácia de um direito fundamental apontam para a necessidade de a lei criar estruturas organizatórias funcionalmente efectivantes desse direito” (Ibid., p. 652.). Miguel SANCHEZ MORON faz alusão a manifestações participativas “institucionalizadas e juridicamente reguladas” (SANCHEZ MORON, Miguel. Espagne. In: DELPEREE, Francis (Org.). Citoyen et administration. Bruxelas: Bruylant, 1985. p. 63-94. p. 69.). No Brasil, participação regulada ocorreria, por exemplo, nos termos do inc. VI do art. 206 da Lei Maior, preceito que estabelece como um dos princípios constitucionais do ensino, a “gestão democrática do ensino público, na forma da lei”.  

[12] OLIVEIRA, Gustavo Justino de. As audiências públicas e o processo administrativo brasileiro. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 209, p. 153-167, jul./set. 1997. p. 156.    

[13] Maria Sylvia Zanella DI PIETRO afirma ser a participação popular na Administração Pública “uma característica essencial do Estado de Direito Democrático, porque ela aproxima mais o particular da Administração, diminuindo ainda mais as barreiras entre o Estado e a sociedade” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Participação popular na administração pública. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 191, p. 26-39, jan./mar 1993, p. 32.). Elencando formas de atuação direta (direito de ser ouvido, enquete) e indireta (participação popular em órgãos de consulta e de decisão, por meio do ombudsman e por via do Poder Judiciário), a autora aduz que a atuação dos cidadãos deve ocorrer diretamente na gestão e no controle da Administração pública (Ibid., p. 38.). Adriana da Costa Ricardo SCHIER sustenta que o direito de participação no âmbito administrativo é um meio de democratização da esfera do poder público, determinando uma maior contribuição dos cidadãos na tomada das decisões estatais (SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. A participação popular na Administração pública , 2002. p. 74.). Especificamente sobre o tema, cf. SOARES, Fabiana de Menezes. Direito administrativo de participação. Belo Horizonte: Del Rey, 1997. 

[14] O dinamismo e o evolucionismo imanentes à cidadania são orientados principalmente pelo vetor democrático, e por isso concorda-se com Jaime PINSKY, para quem cidadania em sua acepção mais ampla é a “expressão concreta do exercício da democracia” (PINSKY, Jaime. Introdução. In: PINSKY, CARLA Bassanezi; PINSKY, Jaime (Orgs.). História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2003. p. 9-13. p. 10.).

[15] COMPARATO, Fábio Konder. A nova cidadania. In: _____. Direito público: estudos e pareceres. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 3-24. p. 10.

[16] Ibid., p. 19.

[17] Cf. DELPEREE, Francis (Org.). Citoyen et administration. Bruxelas: Bruylant, 1985 e NIGRO, Mario. Il nodo della partecipazione. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Milão, a. 34, n. 1, p. 225-236, mar. 1980, entre outros.  

[18] Seriam eles o cidadão eleitor, o agente do poder, o colaborador (gestão privada de interesses públicos), o  seduzido e o censor. Cf. CLÈVE, Clèmerson Merlin. O cidadão, a administração pública e a nova Constituição. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 27, n. 106, p. 81-98, abr./jun. 1990.

[19] Ibid., p. 82-83.

[20] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 5. ed. 2. reimp., 1992. p. 413.

[21] Ibid., p. 414.

[22] Id.

[23] MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. 2. ed. São Paulo: RT, 2003. p. 230.

[24] MOREIRA NETO, Diogo Figueiredo. Direito da participação política, 1992.  p. 7. 

[25] “Se, por um lado, tal debate foi resolvido em favor da desejabilidade da democracia como forma de governo, por outro lado, a proposta que se tornou hegemônica ao final das duas guerras mundiais implicou em uma restrição das formas de participação e soberania ampliadas em favor de um consenso em torno de um procedimento eleitoral para a formação de governos (Schumpeter, 1942). Essa foi a forma hegemônica de prática da democracia no pós-guerra, em particular nos países que se tornaram democráticos após a segunda onda de democratização” (AVRITZER, Leonardo; SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução: para ampliar o cânone democrático. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 39-82. p. 39-40.).

[26] MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. 2. ed., 2003. p. 233.

[27] Id.

[28] MOLITOR, André. Prefácio. In: DELPEREE, Francis (Org.). Citoyen et administration. Bruxelas: Bruylant, 1985. p. 11-17. p. 17.

[29] MACHADO, João Baptista. Participação e descentralização: democratização e neutralidade na Constituição de 76. Coimbra: Almedina, 1982. p. 52.

[30] AVRITZER, Leonardo; SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução: para ampliar o cânone democrático, 2002. p. 76.

[31] Id.

[32] Ibid., p. 77.

[33] Ibid., p. 78.

[34] MEDAUAR, Odete. Administração pública ainda sem democracia, 1986. p. 38. Insta registrar a opinião de Caio TÁCITO, para quem “a moderna tendência do direito público marca (…) a transição do Direito Administrativo que, absorvendo a ação participativa dos administrados, valoriza o princípio da cidadania e coloca o indivíduo e a empresa em presença da Administração Pública, como colaboradores privilegiados para a consecução do interesses público” (TÁCITO, Caio. Direito administrativo participativo. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 209, p.1-6, jul./set. 1997. p. 6.). Entretanto, cabe salientar o destacado papel de participação das ONGs, não somente nesse processo de estreitamento de laços da população com o Estado, mas principalmente como defensora dos cidadãos em seus pleitos emancipatórios frente ao Estado. Por isso Maria Célia PAOLI observa que “o caminho das ONGs opta por representar as demandas populares em negociações pragmáticas, tecnicamente formuladas, com os governos, dispensando a base ampliada da participação popular” (PAOLI, Maria Célia. Empresas e responsabilidade social: os enredamentos da cidadania no Brasil. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 373-418. p. 378.). 

[35] NIGRO, Mario. Il nodo della partecipazione, 1980. p. 230.

[36] Cf. OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Participação administrativa. A&C Revista de Direito Administrativo e Constitucional, Belo Horizonte, a. 5, n. 20, p. 167-194, abr./jun. 2005

[37] Cumpre registrar que participação administrativa, na visão de Diogo Figueiredo MOREIRA NETO, é espécie do gênero participação política, definida como “a atuação formal e informalmente admitida, dos indivíduos e dos grupos sociais secundários, na ação juspolítica do Estado. Como este, nas organizações políticas contemporâneas, se diversifica em grandes funções e órgãos específicos – os Poderes do Estado -, a participação política se tripartirá em participação legislativa, participação administrativa e participação judiciária, …” (MOREIRA NETO, Diogo Figueiredo. Direito da participação política, 1992. p. 56-57.). Cf. GORDILLO, Agustin. Ideas sobre participación en america latina. Revista de Direito Público, São Paulo, a.13, n. 57-58, p. 29-38, jan./jun. 1981; GORDILLO, Agustin. La garantia de defensa como principio de eficacia en el procedimiento administrativo. Revista de Direito Público, São Paulo, n. 10, p. 16-24, out./dez. 1969; e GORDILLO, Agustin. Participación administativa, Revista de Direito Público, São Paulo, a. 18, n. 74, p. 15-25, abr./jun. 1985.

[38]Sobre o tema, cf. MARTINS JUNIOR, Wallace Paiva. Transparência administrativa: publicidade, motivação e participação popular. São Paulo: Saraiva, 2004.

[39] Sobre a temática, cf. CASSESE, Sabino. La arena pública: nuevos paradigmas para el Estado. In: _____. La crisis del Estado. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 2003. p. 101-160.

[40] FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón; GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. Curso de derecho administrativo. 6. ed. Madrid: Civitas, 1999, v. 2, p. 84.

[41] Para Jorge MIRANDA, direitos fundamentais são “direitos ou posições jurídicas subjectivas das pessoas enquanto tais, individual ou institucionalmente consideradas, assentes na Constituição, seja na Constituição formal, seja na Constituição material – donde, direitos fundamentais em sentido formal e direitos fundamentais em sentido material” (MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional: direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra, 1988. t. 4. p. 7.);  “são direitos inerentes à própria noção de pessoa, como direitos básicos da pessoa, como os direitos que constituem a base jurídica da vida humana no seu nível actual de dignidade …” (Ibid., p. 9.). José Joaquim Gomes CANOTILHO afirma que direitos fundamentais materiais seriam “os direitos que conferem subjectivamente um espaço de liberdade de decisão e de auto-realização, servindo simultaneamente para assegurar ou garantir a defesa desta subjectividade pessoal” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 5. ed. 2. reimp., 1992. p. 542.). Robert ALEXY sustenta que direitos fundamentais em sentido formal seriam posições tão importantes que a decisão sobre sua outorga (ou não outorga) não pode estar inserida no campo da lei (“simples maioria parlamentar”). Por seu turno, a concepção material de direitos fundamentais é determinada pelo conceito de dignidade da pessoa. E acrescenta, no que tange aos direitos à prestações do Estado, que “toda a concepção material dos direitos a prestações inclui uma resposta à questão de saber se, desde o ponto de vista do direito constitucional, as posições de direitos a prestações que se têm em mira são tão importantes que não podem ser confiadas à simples maioria” (ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales, 1997. p. 432-435.). No Brasil, considerando a abertura material consagrada pelo § 2° do art. 5° da Lei Maior, Ingo Wolfgang SARLET conceitua direitos fundamentais como “todas aquelas posições jurídicas concernentes às pessoas, que, do ponto de vista do direito constitucional positivo, foram, por seu conteúdo e importância (fundamentalidade em sentido material), integradas ao texto da Constituição e, portanto, retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos (fundamentalidade formal), bem como as que, por seu conteúdo e significado, possam lhes ser equiparados, agregando-se à Constituição material, tendo, ou não, assento na Constituição formal (aqui considerada a abertura material do Catálogo)” (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 85.). Cf. ALEXY, Robert. Direitos fundamentais no Estado constitucional democrático. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 217, p. 55-66, jul./set. 1999; ALEXY, Robert. Colisão de direitos fundamentais e realização de direitos fundamentais no Estado de direito democrático. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 217, p. 67-79, jul./set. 1999 e ROTHENBURG, Walter Claudius. Direitos fundamentais e suas características. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, a. 8, n. 30, p. 146-157, jan./mar. 2000.

[42] MENDES, Gilmar Ferreira. A doutrina constitucional e o controle de constitucionalidade como garantia da cidadania. Declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade no direito brasileiro. Revista de direito administrativo, Rio de Janeiro, v. 191, p. 40-66, jan./mar. 1993, p. 44.

[43] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 5.

[44] Emprega-se o termo dimensão, e não geração de direitos fundamentais, uma vez que não se tratam de direitos que existem em períodos distintos e isolados. Embora surjam em épocas diversas, passam a coexistir e reforçar-se uns aos outros, de modo que a existência de uma nova dimensão não implica a extinção daquela que a precedeu. Por isso, Ingo Wolfgang  SARLET ressalta que “não há como negar que o reconhecimento progressivo de novos direitos fundamentais tem o caráter de um processo cumulativo, de complementariedade, e não de alternância, …” (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed., 2003.  p. 50.).

[45] A doutrina não é unânime em relação à existência de uma quarta dimensão de direitos fundamentais. Na visão de Paulo BONAVIDES, a quarta dimensão surgiria a partir da noção ampla de globalização, fenômeno integrado por aspectos não somente de índole econômica, mas igualmente política e cultural, entre outros. É no tocante à globalização política que poder-se-ia extrair a idéia de  globalização dos direitos fundamentais, o que equivaleria a “universalizá-los no campo institucional” (BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 524.). Os direitos de quarta dimensão levariam à última fase do processo de institucionalização do Estado Social, de forma que englobam o direito à democracia, à informação e ao pluralismo. Tais direitos culminariam na efetiva globalização política e, por via de consequência, na liberdade de todos os povos. Lembrando-se que o surgimento de uma nova dimensão de direitos não elide ou supera as dimensões anteriores (ao contrário, as pressupõe), o direito à democracia globalizada significa a ampla responsabilidade – planos nacional, internacional, transnacional – pela defesa, proteção e principalmente efetivação dos direitos das outras três dimensões. Nas palavras de Paulo BONAVIDES, “a nova universalidade procura, enfim, subjetivar de forma concreta e positiva os direitos da tríplice geração na titularidade de um indivíduo que antes de ser o homem deste ou daquele País, de uma sociedade desenvolvida ou subdesenvolvida, é pela sua condição de pessoa um ente qualificado por sua pertinência ao gênero humano, objeto daquela universalidade”  (Ibid., p. 527.). Norberto BOBBIO menciona uma quarta dimensão, porém relacionando-a a bioética, ou seja, “aos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo” (BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, 1992. p. 6.). Para o autor, tanto a quarta, quanto a terceira dimensões, constituem-se em “expressão de aspirações ideais, às quais o nome de ‘direitos’ serve unicamente para atribuir um título de nobreza” (Ibid., p. 9.).

[46] Celso LAFER alude a uma complementariedade entre as duas primeiras dimensões,  pois os direitos fundamentais de segunda dimensão “buscam assegurar as condições para o pleno exercício dos primeiros, eliminando ou atenuando os impedimentos ao pleno uso das capacidades humanas” (LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. 5. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 127.). Todavia, o autor aponta uma contradição no campo da tutela desses direitos, pelo fato de “os direitos de primeira geração almejarem limitar os poderes do Estado, demarcando com nitidez a fronteira entre Estado e sociedade, e os direitos de segunda geração exigirem a ampliação dos poderes do Estado” (Ibid., p. 129.). Com efeito, a positivação dos direitos fundamentais de segunda geração trouxe problemas ligados à sua realização, inaugurando-se a temática da eficácia social ou efetividade  das normas constitucionais que os reconhecem, entendida por Luis Roberto BARROSO como a “concretização do comando normativo, sua força operativa no mundo dos fatos” (BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 220.). 

[47] Ressalva Ingo Wolfgang SARLET que os direitos fundamentais de segunda dimensão “não englobam apenas direitos de cunho positivo, mas também as assim denominadas ‘liberdades sociais’, do que dão conta os exemplos da liberdade de sindicalização, do direito de greve, bem como o do reconhecimento de direitos fundamentais aos trabalhadores, tais como o direito a férias e ao repouso semanal remunerado, …” (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. , 2003. p. 53.). Todavia, alerta o autor que tais direitos abrangem “bem mais do que os direitos de cunho prestacional, de acordo com o que ainda propugna parte da doutrina, inobstante o cunho ‘positivo’ possa ser considerado como o marco distintivo desta nova fase na evolução dos direitos fundamentais” (Id.).

[48] Id.

[49] Manoel Gonçalves FERREIRA FILHO registra que “a primeira geração seria a dos direitos de liberdade, a segunda, dos direitos de igualdade, a terceira, assim, completaria o lema da Revolução Francesa: liberdade, igualdade, fraternidade” (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 57.). Informa que foi Karel VASAK em 1979 quem primeiro chamou a atenção para um terceira dimensão de direitos fundamentais, denominando-os de direitos da solidariedade (Id.).

[50] Enfatiza Celso LAFER que “na passagem de uma titularidade individual para uma coletiva, que caracteriza os direitos de terceira e quarta geração, podem surgir dilemas no relacionamento entre o indivíduo e a coletividade que exacerbam a contradição, ao invés de afirmar a complementariedade do todo e da parte. Estes dilemas provêm, em primeiro lugar, da multiplicidade infinita dos grupos que podem sobrepor-se uns aos outros, o que traz uma difusa e potencial imprecisão em matéria de titularidade coletiva…” (LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos. 5. reimp., 2003. p. 132.).

[51] BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 11. ed., 2001. p. 522. Carlos Ayres BRITTO visualiza um constitucionalismo fraternal, resultado da incorporação da dimensão da fraternidade pelas constituições. Para o autor, isso equivale à dimensão das ações estatais afirmativas, “que são atividades asssecuratórias da abertura de oportunidades para os segmentos sociais historicamente desfavorecidos, como, por exemplo, os negros, os deficientes físicos e as mulheres (para além, portanto, da mera proibição de preconceitos). De par com isso, o constitucionalismo fraternal alcança a dimensão da luta pela afirmação do valor do Desenvolvimento, do Meio Ambiente ecologicamente equilibrado, da Democracia e até de certos aspectos do urbanismo como direitos fundamentais” (BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 216.).  

[52] Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais, 1995. p. 57-68. É importante observar que para muitos autores a essência dos direitos fundamentais de terceira dimensão situar-se-ia em seu aspecto coletivo ou difuso, em sua titularidade indefinida ou indeterminável. Concernem a um indivíduo e a cada indivíduo; concernem a um todo, a um grupo; concernem à universalidade, à humanidade. E nos campos atinentes à proteção e à efetivação desses direitos, demanda-se um esforço mundial, universal, decorrendo da titularidade difusa e coletiva uma responsabilidade igualmente difusa e coletiva em função desses direitos.

[53] José Afonso da SILVA aduz que “a dignidade humana constitui um valor que atrai a realização dos direitos fundamentais do homem, em todas as suas dimensões, e, como a democracia é o único regime político capaz de propiciar a efetividade desses direitos, o que significa dignificar o homem, é ela que se revela como o seu valor supremo, o valor que a dimensiona e humaniza” (SILVA, José Afonso da. A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 212, p. 89-94, abr./jun. 1998. p. 94.). Convém notar que José Joaquim Gomes CANOTILHO alude a uma base antropológica dos direitos fundamentais, composta não somente pelo ‘homem individual’, mas também pelo homem inserido em relações sócio-políticas e sócio-econômicas e em grupos de várias naturezas, com funções sociais diferenciadas (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 5. ed. 2. reimp., 1992. p. 542.). A partir de raciocínio similar, José Afonso da SILVA apresenta uma classificação dos direitos fundamentais no Brasil, com base no Texto Constitucional: (i) direitos individuais (art. 5°), (ii) direitos coletivos (art. 5°), (iii) direitos sociais (arts. 6° e 193 e ss.), (iv) direitos à nacionalidade (art. 12) e (v) direitos políticos (art. 14 a 17) (SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 186-187.) Concorda-se com a divisão proposta pelo autor, à qual se acrescentaria a modalidade dos direitos econômicos (arts. 170 e ss.), em razão de qual tais direitos integram a perspectiva de realização do princípio maior da dignidade da pessoa humana. Estão relacionados ao desenvolvimento do indivíduo e da sociedade, e por isso não podem ser alijados da categoria maior dos direitos fundamentais. Sobre a estreita relação entre direitos fundamentais e princípio da dignidade da pessoa humana, cf. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. , 2003. p. 100-121 e SCHIER, Paulo Ricardo. Novos desafios da filtragem constitucional no momento do neoconstitucionalismo. A & C Revista de Direito Administrativo e Constitucional, Belo Horizonte, a. 5, n. 20, p.145-165, abr./jun. 2005.

[54] BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, 11. ed., 2001. p. 595.

[55] Ibid., p. 594.

[56] Embora de extrema importância, não será aqui enfrentada a problemática da efetivação dos direitos fundamentais e da aplicação, no sistema brasileiro, da doutrina da reserva do possível. Todavia, cabe apontar que a reserva do possível evoca o difícil ajuste e equilíbrio da razoabilidade da pretensão dos indivíduos frente ao Estado e a existência de disponibilidade financeira pública para tornar efetivas as prestações positivas reclamadas, fortemente vinculadas ao princípio da dignidade da pessoa humana. Nessa temática, cumpre colocar em evidência as linhas evolutivas de inestimável valor para o direito brasileiro, sobretudo no campo do controle judicial das políticas públicas, lançadas pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 45 MC/DF, em abril de 2004. No voto condutor do julgado, o Rel. Min. Celso de Mello destacou que “não posso deixar de reconhecer que a ação constitucional em referência, considerado o contexto em exame, qualifica-se como instrumento idôneo e apto a viabilizar a concretização de políticas públicas, quando, previstas no texto da Carta Política …”. É a dimensão política da jurisdição constitucional conferida ao Excelso Pretório e reconhecida no aresto, “que não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e culturais – que se identificam, enquanto direitos de segunda geração, com as liberdades positivas, reais ou concretas (RTJ 164/158-161, Rel. Min. CELSO DE MELLO) -, sob pena de o Poder Público, por violação positiva ou negativa da Constituição, comprometer, de modo inaceitável, a integridade da própria odem constitucional”.     

[57] ORTIZ DIAS, José. El horizonte de las administraciones públicas en el cambio de siglo: algunas consideraciones de cara al año 2000. In: SOSA WAGNER, Francisco (Coord.) El derecho administrativo en el umbral del siglo XXI: homenage al Profesor Dr. D. Ramón Martín Mateo, Valencia: Tirant lo Blanch, 2000. t. 1, p. 63-117. p. 70-71.

[58] Ibid., p. 70.

[59] Id.

[60] VILLORIA MENDIETA, Manuel. La modernización  de la administración como instrumento al servicio de la democracia. Madrid: Inap, 1996.  p. 381.

[61] O significado da expressão função administrativa, bem como sua diferenciação com procedimento e processo administrativos, encontra-se em artigo clássico de autoria de Feliciano BENVENUTI. A partir de seu sentido técnico e tendo por base, inicialmente, a atividade legislativa e a jurisdicional, o autor conceitua função (sob o aspecto objetivo) como o momento da concretização do poder em um ato. Sustenta que nem sempre esta transformação do poder (entidade abstrata, objetiva) em ato é dotada de instantaneidade. Quando falta esse caráter, existe algo que não pode ser qualificado como poder, mas também ainda não é um ato. Este momento de diferenciação do poder, o “fazer-se o ato” é denominado pelo autor de função; é o fazer-se das leis, é o fazer-se das sentenças. Por outro lado, agora sob o seu aspecto subjetivo, ou seja, tendo em vista o sujeito que realiza a função, o autor do ato (a quem o ato é imputado),  função não é mais o modo de fazer o ato, mas o fazer o ato; não mais o modo de diferenciação do poder, mas  a diferenciação do poder. Entretanto, observa que o significado de função administrativa ou executiva está mais ligado ao sentido empírico do termo, qual seja série de atos emanados de um sujeito (agente) ou órgão administrativo, em relação a seus fins ou a seus resultados (BENVENUTI, Feliciano. Funzione amministrativa, procedimento, processo. Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico, Milão, p. 118-145. jan./mar. 1952.).

[62] JUSTEN FILHO, Marçal. Conceito de interesse público e a “personalização” do direito administrativo. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 26, p. 115-136, 1999. p. 127.

[63] Ibid., p. 129.

[64] Por dinâmica administrativa entende-se o conjunto de atividades que é desenvolvido pela Administração pública.

[65] Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 5. ed. 2. reimp., 1992. p. 594 e ss.

[66] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed., 2003. p. 347. José Carlos Vieira de ANDRADE analisa a problemática da vinculação das entidades privadas não estatais aos direitos fundamentais. Cf.  ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1998. p. 270-300.

[67] VILLORIA MENDIETA, Manuel. La modernización  de la administración como instrumento al servicio de la democracia, 1996. p. 97.

[68] MEDAUAR. Odete. O direito administrativo em evolução. 2. ed., 2003. p. 143.

[69] Id.

[70] MACHADO, João Baptista. Participação e descentralização, 1982. p. 38.


Informações Sobre o Autor

Gustavo Justino de Oliveira

Pós-Doutor em Direito Administrativo – Universidade de Coimbra. Doutor em Direito Administrativo pela USP. Professor de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da USP. Advogado. Autor dos livros Terceiro Setor, Empresas e Estado (Ed. Forum, 2007); Consórcios públicos (Ed. Revista dos Tribunais); Direito do Terceiro Setor (Ed. Forum, 2008) e Contrato de gestão (Ed. Revista dos Tribunais, 2008).


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