Resumo: Perfaz-se um caminho de compreensão do conceito de advocacia em saúde que procura situar o contexto de sua análise no âmbito dos processos de construção e desconstrução do espaço público. Considera-se que a noção de poder disseminado, em contraposição a de poder institucionalizado, é fundamental para que se compreenda que há um tipo específico e indesejável de dispersão social do poder, a comprometer valores fundamentais para democracia, como a ideia de legitimidade política mediante o estabelecimento de diálogos sociais fundados na pluralidade, e que a advocacia em saúde, por definição, propõe-se a concentrar esse feixe disperso de poderes e encaminhá-los ao espaço público, propiciando o diálogo político necessário à legitimação das políticas públicas de saúde.
Palavras-chave: Direito à saúde, direitos do paciente, participação comunitária, políticas públicas, formulação de políticas.
Abstract: The path of health advocacy understanding is presented from a framework of analysis which is situated under the ambit of construction and deconstruction of public space. The widespread notion of power, as opposed to institutionalized power, is considered crucial to understand that there is a undesirable specific type of social dispersal of power, undermining core values for democracy as the idea of political legitimacy through the establishment of social dialogues based on plurality and the health advocacy, by definition, proposes to concentrate the scattered powers factors and direct them to public space, providing the necessary political dialogue to the legitimation of public health policies.
Keywords: Right to health, patient rights, community participation, public policies, policymaking.
Penso que o conceito de advocacia em saúde deva ser apreendido na ambiência do debate sobre a construção do espaço público[1], precisamente, nos capítulos em que se discutem os processos de degenerescência e de resgate dessa dimensão.
Como o domínio que envolve esse debate é o das relações de poder, o cálculo dessa pertinencialidade com o tema da construção da dimensão pública implica também o reconhecimento de que relações de força e situações de poder[2] permeiam, igualmente, o itinerário de compreensão do conceito de advocacia em saúde.
Por conta disso, o sentido da expressão resiste às abordagens que abstraiam o amplo contexto em que ela se insere. Fora do contexto das situações de poder e das relações de força não considero apreensível o conceito de advocacia em saúde.
Por assim reputar indispensável essa contextualização, imagino que seja de bom alvitre esclarecer que pretendo utilizar o termo “poder”, com sentido próximo ao que lhe confere Michel Foulcault: ocorre-me que a ideia de poder mais ajustada à análise a que nos propomos é a que faz possível pensar a advocacia em saúde, a partir das relações entre as suas práticas e os fatores de poder[3].
A predileção pelas ideias de Foulcault de que o poder político capilariza-se e dissemina-se pela sociedade contraria ou, ao menos, relativiza a noção de “poder institucionalizado”; e explica por que expressões utilizadas por ele, como “relações de força” e “situações de poder”, aparecerão repetidas vezes no texto, substituindo o termo “Poder”.
Parece-me que essa maneira de conduzir o pensamento constitui pressuposto de compreensão do problema que proponho, quando mais não fosse, pela circunstância de que essa noção de poder disperso e disseminado atende bem ao propósito de enlaçar a prática jurídica às práticas e aos instrumentos da advocacia em saúde. É que o momento desse enlace é, justamente, aquele em que se reconhece que a prática jurídica pode pretender e a advocacia em saúde, por definição, pretende articular focos de poder dispersos e desorganizados, realocando-os no espaço público, no palco de exercício da cidadania ativa, a elidir o sentido devastador do esvaziamento do espaço público e do recolhimento à esfera privada.
Na obra intitulada “Em defesa da sociedade” Michel Foulcault fala sobre cinco “precauções de método”, quando se põe sob análise a questão do poder. De acordo com o autor: (i) o estudo do poder não deve se prender às suas “formas regulamentadas e legítimas” (a análise deve privilegiar as “extremidades”, as manifestações capilarizadas[4], em detrimento dos centros de poder); (ii) a questão que pergunta por “quem tem o poder afinal[5]?” não deve servir de guia de interpretação do objeto sob análise (importa verificar, isto sim, como ocorrem os “procedimentos de sujeição”, “os processos contínuos e ininterruptos que sujeitam os corpos, dirigem os gestos, regem os comportamentos”; (iii) o estudo não deve estar focado na interpretação do poder como um “fenômeno de dominação em massa”[6], de indivíduos, grupos ou classes, uns sobre os outros, mas como algo “que circula”, como algo que funciona em rede”; (iv) o poder precisa ser visto de baixo para cima, da periferia para o centro, examinando-se, de forma “ascendente”, “como, nos níveis mais baixos, os fenômenos, as técnicas, os procedimentos de poder atuam” [7]; (v) o exame desse problema, para Foulcault, prescinde da noção de ideologia – a produção, a circulação, a disseminação de saberes é que explica o exercício ascendente do poder, não a ideologia.
Sobre situar essa compreensão do poder, na base dos argumentos que pretendo desenvolver, devo alertar para um aparente desvio de minha parte. Embora a dispersão seja, em Foulcault, essencial à própria definição de poder, isto é, embora a ideia de descentralização, a rigor, seja imanente ao conceito de poder, considero que haja espécies e graus de dispersão indesejáveis e inconciliáveis com o processo de amadurecimento democrático.
Evidente que a adesão ao pensamento de Foulcault e o estabelecimento de uma ressalva desse tipo tende a despertar certa perplexidade, que se justifica: se a dispersão e a disseminação são, para ele, inerentes ao conceito de poder, isso parece significar que, quaisquer que sejam as formas institucionais do poder, haverá sempre pontos de irradiação localizados, tanto nos centros, como nas zonas periféricas. É dizer, as contingências econômico sociais e a variabilidade de regimes políticos não interfeririam no dado fundamental sobre o poder, qual seja, a circunstância de que a sua exteriorização se dá, a partir de vários níveis, a partir de várias instâncias. Se concordo com isso, que sentido há em estabelecer uma tal reserva que pareça desnaturar o próprio conceito? Dito de outro modo, se afirmo que há graus indesejáveis de dispersão e, se digo que debelá-los pode abrir um iter para o fortalecimento da democracia, não estaria me contradizendo? Penso que essa questão esteja de fato a refletir uma aparente aporia e que, por isso, mereça certos cuidados.
Preocupam-me certos tipos e graus de dispersão de poder, num aspecto específico, que irei esclarecer. Primeiramente, devo dizer que a advocacia em saúde precisa ser vista como um importante fator de poder. Para além disso, ela deve ser enxergada como fator e como movimento de reordenação de forças, como processo intencional de reordenar, de recombinar e de remodelar estruturas de poder ineptas, para que novas formas de poder, revigoradas, assumam sua função sistêmica, exteriorizando as parcelas de poder que lhes são inerentes.
Vistas as coisas desse modo, o fato de que determinados tipos e graus de dispersão de poder pareçam-me indesejáveis não implica uma contradição com as “precauções de método” de Foulcault. Não há contradição porque não afirmo que seja possível erradicar a capilarização do poder, embora considere factível e conveniente remodelar certos tipos de dispersão. Em que pese o fato de que a natureza reordenadora da advocacia em saúde possa erradicar certas dispersões indesejáveis, processos bem sucedidos de advocacia em saúde tendem a criar novas estruturas de poder, ainda caracterizadas pela descentralização e distanciamento dos centros (no mais das vezes), todavia, com um qualificativo da máxima importância, a aptidão para vocalizar anseios sociais em prol do aprimoramento democrático.
Da capitulação da discussão sobre a constituição do espaço público, sua emergência e degenerescência, assomam algumas condições de compreensão do conceito de advocacia em saúde. A primeira corresponde à ideia de que a república é o marco jurídico e temporal que (re) estabelece a retórica política pautada na divisão entre a dimensão pública e a privada. A segunda corresponde à consideração de que há um clamor social, pela reocupação do espaço público. Igualmente, da noção de que o debate sobre a divisão entre o público e o privado se insere no contexto do embate entre os fatores de poder assoma uma terceira e essencial condição de compreensão do conceito, qual seja, a admissão de que a advocacia em saúde ostenta a natureza de fonte do direito.
Entretanto, é preciso que se enxergue a constituição do espaço público e o anseio social pela sua ocupação, enquanto produto da trajetória política do nosso país e não como algo imune às nossas idiossincrasias ou como algo divorciado das nossas origens e da nossa história. Em que pese a identidade de instrumentos e a assimilação do modus operandi da health advocacy – de origem norte-americana, – a transposição dessa realidade limita-se a isso, precisamente, aos instrumentos e às ferramentas, não sendo o caso de se considerar a possibilidade de uma transposição de essência, que aceda ao núcleo do conceito, impregnado pelas singularidades históricas da nossa organização política.
A forte coloração política do conceito de advocacia em saúde enfraquece toda tentativa de compreensão que abstraia a extravagância de elementos que singularizam o processo de apropriação da esfera pública pela sociedade brasileira, ainda que esse processo seja incipiente, tanto quanto a consciência da nossa capacidade de enfrentamento e de autodeterminação. É necessário que se perceba um processo em curso, uma dialética de construção do interesse público e de inserção do cidadão nesse processo constitutivo.
A proclamação de 15 de novembro de 1889 compromete o Estado, mais com a mera retórica, condicionada pela divisão entre aquilo que é público e aquilo que é privado, do que com a efetiva prática republicana; mais com o discurso do interesse público, do que com o resgate do consenso e da liberdade política. Sobre não fazer parte do nosso projeto republicano, o exercício da cidadania ativa antes se associa ao contínuo movimento da sociedade na direção do espaço público, do que a pretensos efeitos da vitória republicana e da deposição do monarca.
E esse movimento, que também é um tomar de consciência, acerca da nossa capacidade de autodeterminação, aproveita-se do discurso oficial, condicionado pela retórica do interesse público, para protagonizar episódios cada vez mais significativos de vocalização de anseios sociais. Evidência de que, a duras penas, algum amadurecimento já nos confere certa capacidade de enfrentamento e de articulação política.
Ainda sobre a necessidade de se considerar a trajetória histórica e política do país, há que se estabelecer o elo entre a exigência republicana de se preservar a retórica do interesse público e a gradual assimilação do princípio democrático, desde o fim da ditadura militar e, notadamente, a partir da promulgação da Constituição de 1988.
A democracia – com corte deliberado de significado -, é o regime político no qual os direitos deixam de ser a benesse do governante, em favor dos governados, e passam a ser uma criação da própria sociedade, em seu favor. Só é possível instalar o aparato do regime democrático sobre uma estrutura republicana madura, que tenha condições de recepcionar a sociedade, no espaço de deliberação e exercício do poder. Nesse aspecto, a constituição de uma dimensão pública pede a deposição de toda espécie de autoritarismo. Não é suficiente que se derrote o despotismo político. A criação e a manutenção do espaço público requerem esforços permanentes de erradicação da tirania cultural e dos processos de hierarquização social, elementos não conciliáveis com a ideia de Estado Democrático.
Apesar da ascendente preocupação com a dimensão pública, ainda encontramos fortes barreiras sociais e culturais, para a realização da democracia e, por conseguinte, para o exercício da cidadania ativa. Portanto, como produto da trajetória da nossa sociedade, a advocacia em saúde deve ser considerada e compreendida, como um esforço crescente de alocação de fatores de poder e de organização de forças políticas de vocalização da vontade social.
Se o contexto que define os contornos do conceito de advocacia em saúde é o das relações entre a esfera pública e a privada, tanto mais acertado é dizer que discrepantes processos de institucionalização do regime republicano e de assimilação do princípio democrático e, portanto, discrepantes maneiras de se estabelecerem relações entre as dimensões pública e privada exerçam influência significativa no desenho do conceito ou, mais que isso, determinem a própria existência da advocacia em saúde.
Não é por outro motivo que os Estados Unidos da América maturam o conceito de advocacy, desde que as treze colônias declararam-se independentes. Lá, onde a república é contemporânea do Estado, a separação entre o público e o privado não esperou por proclamações. Não é por outro motivo também que os esboços do que viria a ser a advocacia em saúde no Brasil aparecem apenas na passagem do século XIX para o século XX, com o então incipiente movimento da reforma sanitária.
Já disse que uma terceira condição de compreensão do conceito é o reconhecimento de que a advocacia em saúde constitui uma das fontes do direito. A assertiva poderia escandalizar os discursos cientificistas, profundamente vinculados a um modelo de teorização do direito que privilegia a produção técnica do saber, o esquadrinhamento de conceitos, a racionalidade formal do fazer jurídico, o isolamento de toda historicidade, a revelação do direito posto.
Uma breve digressão no terreno da epistemologia sublinharia o tipo de respaldo que a teoria do conhecimento oferece à tese do direito construído pela ação política dos atores sociais. Na oportunidade, entretanto, creio que essa incursão não seria suficientemente rigorosa e comprometeria a objetividade do artigo, motivo pelo qual relego a explanação a uma nota de rodapé[8].
O essencial é que firmo a opção pela ideia de um direito cujo sentido não se esconde entre as palavras da lei, nem espera que se lhe revelem o sentido e o alcance. Tenho por acertada essa predileção ou, corrigindo-me, afirmo essa ideia não como uma preferência, senão como o ponto de partida para a compreensão de todo o Direito.
A advocacia em saúde, como fonte do direito positivo, expressa a constatação de que o processo legislativo e a interpretação da Lei podem ser conformados pela intervenção de atores sociais. É dizer, o sentido da Lei é mais o significado construído pelo embate de fatores de poder e menos um pretenso sentido necessário e universal, afugentado entre as palavras.
Considerando esclarecidos os pressupostos e as condições que julgo necessários para a compreensão da advocacia em saúde, num esforço que não quer, evidentemente, anunciar uma definição acabada, livre de críticas e interpolações, parece-me que seu conceito deva ser enunciado desta forma:
Advocacia em saúde é a prática democrática que consiste em agregar fatores de poder, historicamente ou, circunstancialmente, dispersos na sociedade, para conduzi-los ao espaço público, estimulando a vocalização de um discurso político fundado no consenso, com o objetivo de intervir na condução de políticas sanitárias e na construção legislativa e judicial de direitos sociais concernentes à saúde.
Num primeiro plano, a definição proposta deixa transparecer que a advocacia em saúde integra a âmbito da vida prática, como uma agir intencionado, endereçado a um finalidade preconcebida, a um objetivo. É uma praxis, portanto. Devemos perceber que a prática a que a definição se refere não se qualifica pela tecnicidade, pela cientificidade, nem pelo profissionalismo. Daí o interesse em se insistir na completa ausência de identificação entre advocacia, enquanto atividade própria e reservada do advogado e a advocacia em saúde, enquanto prática de cidadania ativa. Não quero dizer com isso que a advocacia em saúde prescinda da ciência, da teorização e da técnica, pelo contrário, uma multiplicidade de saberes e de tecnologias conformam suas ferramentas, sem contudo comporem sua essência.
A circunstância de que essa prática se estabeleça e, apenas se estabeleça, sob a égide de regimes democráticos, denota que a liberdade de ação na esfera pública é nota essencial do conceito, intrinsecamente relacionada com a capacidade de autodeterminação dos cidadãos e com a erradicação da violência e da apropriação do espaço público pelo privado. A ideia de que a advocacia em saúde intervenha na realidade para conformá-la pressupõe a existência de um espaço público pluralista de acolhimento, a que corresponde a efetivação dos princípios republicano e democrático, e a instalação de foros públicos de diálogo, a exemplo das audiências públicas que vêm antecedendo o julgamento das causas de maior repercussão pelo Supremo Tribunal Federal e da admissão da assistência de atores sociais, juridicamente interessados, como intervenientes na condição de amicus curiae[9].
É precisamente a exigência democrática desta presença plúrima, nos espaços políticos de deliberação, que associam o conceito de advocacia em saúde à ideia de congregação de fatores de poder dispersos e condução deles ao espaço público. Chamo a atenção para o fato de que essa agregação de fatores de poder nada tem de inconciliável com a noção foulcaltiana de poder, pois que, como já assinalado, os processos de ajuntamento incidem sobre dispersões indesejadas, determinadas por circunstâncias históricas adversas. No caso brasileiro, emblematicamente, podemos mencionar como processo indesejável de desagregação aquele que se instalou durante a ditadura militar, período intensamente marcado pelo recolhimento ao espaço privado e pela impossibilidade de expressão pública de anseios sociais.
Esta mutilação, que a história recente do Brasil viu esfacelar a dimensão pública, operou-se a partir de um aparato de alienação fundado no medo, a que correspondeu um enorme déficit de politização, de cujos efeitos nefastos a sociedade brasileira ainda se ressente. Reconstruir esse espaço público demanda esforços significativos de agregação e de recondução de forças políticas, o que apenas se mostra viável, a partir da instauração de um compromisso público com a educação para a cidadania e com a retomada da consciência política.
Há que se aspirar também pela possibilidade de que a multiplicidade de interesses possa superar o risco do dissenso[10] e construir discursos políticos coesos, aptos a impactar a condução das políticas de saúde e a produção legislativa e judicial de direitos concernentes à saúde. Há um déficit democrático nesses domínios e isso é um problema do qual, por definição, advocacia em saúde tem de dar conta.
Advogado sanitarista. Especialista em Direito Sanitário pela Universidade de São Paulo. Diretor Jurídico da Rede Feminina de Combate ao Câncer do Estado de São Paulo. Diretor da Rede Feminina de Combate ao Câncer de São Caetano do Sul. Presidente da Comissão de Desenvolvimento de Políticas Públicas para o Combate ao Câncer da 39 subseção da OAB/SP
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