Advocacia, técnica, lei e direito


A Advocacia


O advogado não pode fazer de sua banca, do escritório, do Fórum, das causas patrocinadas e da profissão, o seu projeto de vida, o seu universo, a este circunscrevendo sua atividade. Cumpre-lhe demonstrar na teoria e com o exemplo pessoal que a advocacia tem uma função social e múnus público, inseparável do cidadão, integrada à comunidade, na qual vive e dela depende. Em seu ministério privado o profissional do Direito atende a uma exigência da justiça e da sociedade. O advogado que só pensa em seus interesses e só estuda e somente sabe Direito, é um alienado, meio advogado e cidadão pela metade.


Está com um problema jurídico e precisa de uma solução rápida? Clique aqui e fale agora mesmo conosco pelo WhatsApp!

O verdadeiro profissional da advocacia não pode deixar de ver o Direito como ciência inseparável da sociologia, da economia, do social e do político, por serem disciplinas indissociáveis, que se interligam, interagem. Ao profissional do Direito cumpre atuar como ser humano, cidadão por inteiro, com consciência da missão social e política da advocacia e da cidadania.


O causidico que, por conservadorismo, apega-se ao passado, mostra-se refratário às inovações, resiste a mudanças legislativas, fecha os olhos à nova realidade, não tem consciência do papel social da advocacia, não pode ser considerado um autêntico advogado. Seu dever, ao contrário, é conhecer as novas teorias, é manter-se vigilante, atento à evolução da jurisprudência e receptivo às reformas das leis processuais e materiais, a fim de utilizá-las de imediato em favor do cliente, das causas sob seu patrocínio, enfim, acompanhar o evolver do Direito, conservar-se sempre atualizado.           


 O advogado deve manter sempre a marca do espírito público, do idealismo, a mesma motivação social e política que inspiram os que abraçam tão elevada, árdua, atribulada, quão grandiosa e dignificante profissão: lutar pela justiça, defender as liberdades públicas, concorrer para uma sociedade menos desigual, contribuir para o aprimoramento das instituições e do estado de direito democrático.


A utilização da técnica


A tecnicalidade – a escravização à técnica – é uma deformação do operador jurídico. Escravos, sim, juízes e advogados, não da técnica e da lei, mas sim do Direito, cujo conceito é sabidamente diverso desta, como se explicitará adiante. A técnica é um instrumento nocivo quando empregado para coonestar causas ilícitas, indefensáveis, anti-sociais, injustas. Só cumpre sua destinação social quando posta a serviço da justiça, das garantias individuais, contra abusos, injustiça, arbítrio. Não pode, pois, servir de manto à impunidade, à ilicitude, ao acobertamento da fraude, do crime.


O cultor, o burilador da técnica só enxerga a superfície das coisas, não vai à sua raíz. É incapaz de extrair a potencialidade da norma, de ir ao seu âmago.


O tecnicista, aquele que prioriza, supervaloriza a técnica, que a esta se atrela, fazendo dela um fim em si mesmo, é um cultor do formalismo, um fetichista da forma, adstrito e manietado pela letra da norma. Seu perfil é o de um positivista, tradicionalista, aplicador da lei fria, indiferente à realidade social, alheio ao contexto em que ela é aplicada. Daí a judiciosa observação do Prof. Evaristo de Moraes Filho, ao afirmar que “Pretender separar a técnica da política, sustentar que a técnica é neutra é puro devaneio”.


O tecnicista costuma preocupa-se unicamente em acumular conhecimentos jurídicos, usa estilo erudito, abusa de citações em idiomas estrangeiros, esmera-se no emprego do jargão jurídico, da terminologia forense, em linguagem científica, inacessível aos leigos, estudantes e jovens advogados. Colocando-se a si mesmo num nível intelectual e técnico superior, não lhe interessa transmitir seu saber, seus conhecimentos, como se os tivesse adquirido apenas para si mesmo. Fala e escreve para seus pares e não com vistas aos seus jurisdicionados, aos leigos. Mais do que um conhecedor dos códigos, do Direito, subjugado à jurisprudência, acha-se um jurisperito, um jurisconsulto. Obsedado pela, nega o Direito, ao reduzí-lo à estreiteza da norma escrita , da qual tem uma visão apoucada, isolada e unilateral. Tende ao elitismo intelectual e jurídico, e à prolixidade. Satisfaz-se com o aplicar a lei ao caso, julga sem emoção, com a consciência do dever cumprido, não lhe importando as consequências sociais e pessoais da decisão.


O intérprete e sua função


No exercício de sua atividade intelectiva, o intérprete, mesmo que disso não se aperceba, vê, sente e pensa o texto, não da forma por que está frio e literalmente escrito, mas sob a influência de seu sentimento, educação e formação moral, social, política, cultural ou religiosa, de sua situação de classe e ideologia.


Todo ato ou omissão, em nossa vida, tem no fundo, subjacente, mesmo que não queiramos ou saibamos, conscientemente ou inconscientemente, um significado, uma consequência, um efeito político ainda que não desejado ou percebido.


 Que resulta da omissão, senão a aquiescência tácita, pelo silêncio, com a manutenção do status quo, a conservação das condições sociais, políticas e econômicas vigentes? Quem cala diante da arbitrariedade, da violência, da injustiça, condescende com a manutenção destas.


Lei, Direito e neutralidade


Supor que o Direito é neutro é uma ilusão. Ao interpretar e buscar imprimir vida e eficácia à norma, seja advogado ou magistrado, ninguém o faz como um autômato, mero reprodutor do texto.


É o intérprete, o julgador que plasma, modela o Direito, para ajustá-lo às mutações da vida. É inequívoco que ninguém pode ignorar a lei. Mas esta há de ser tomada apenas como ponto de largada, como base para a compreensão e a aplicação do Direito, direcionada aos fins sociais a que se destina. A lei é indispensável, porém não basta, dada a sua inércia, abstração, generalidade. Nela não se contém toda amplitude e grandeza do direito, cuja finalidade derradeira é a justiça. Ela é apenas uma parte do Direito, talvez sua menor porção. O Direito há de ser utilizado como instrumento de transformação da sociedade; é mais abrangente que a norma, e, diversamente desta, traz em si o sentido do legítimo e do equânime, a idéia de justiça. Não pode, por essa razão, haver conflito entre esta e o Direito. São conceitos que se completam, se confundem. Não se dissocia o Direito do justo, do ético, da moral. A lei está para o Direito como o embrião para a vida, o tronco para a arvore, o alfabeto para a escrita, a escrita para a literatura, o envoltório para o conteúdo. Outro não é o substrato do pensamento de Von Ihering, quando afirma “que o direito não é uma simples idéia, é uma força viva”. Não por outra razão, ponderou Pontes de Miranda que ”O direito, e não a lei, é o que se teme seja ofendido”.


Os princípios com constitucionais


Da mesma forma, pode-se dizer que desrespeitar princípios constitucionais constitui ofensa maior do que a desobediência à qualquer disposição literal da própria Constituição, já que rompe o equilibrio, a estrutura, a unidade de todo o sistema jurídico que lhe servem de alicerce. Não é possível garantir a segurança de uma edificação sem assegurar a estabilidade de suas linhas mestras, de seus pilares fundamentais. Na lição de Celso Bandeira de Mello, “Violar um principio é muito mais grave que transgredir um norma qualquer. A desatenção ao principio implica ofensa não apenas a um especifico mandamento obrigatório mas a todo o sistema de comandos. È a mais grave forma de inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissivel a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda a estrutura nelas esforçadas.”


Infringir princípios equivale a solapar o sistema. E essa percepção, essa subsunção é tanto mais evidente quando se trata do Direito do Trabalho, o Direito mais próximo da realidade, aquele que caminha mais rente à vida. que mais de perto segue o dinamismo da sociedade.


No Brasil, a validade e a legalidade das normas infraconstitucionais passam necessariamente pelo processo compatibilizador e legitimador dos princípios fundamentais da Constituição da República, particularmente os explicitados nos artigos 1º ao 4º, norteadores do intérprete, do julgador, de todos os agentes públicos e cidadãos. Daí afirmar Luiz Roberto Barroso que “antes de aplicar a norma, o intérprete deverá verificar se ela é compatível com a Constituição, porque se não for, não deverá fazê-la incidir. Esta operação está sempre presente no raciocínio do operador do Direito, ainda que não seja explicitada”.E acrescenta: “Este fenômeno , identificado por alguns autores como “filtragem constitucional”, consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados.”


Os direitos e garantias nesta elencados devem ser usados como vias apropriadas, adequadas e legais, meios para luta contra as “desigualdades sociais”, em prol da “erradicação da pobreza”, pela efetivação dos “valores sociais do trabalho” e da dignidade da pessoa humana”, com vistas à “construção de uma sociedade livre, justa e solidária”.



Informações Sobre o Autor

Benedito Calheiros Bomfim

Ex-Presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros
Membro da Academia Nacional de Direito do Trabalho


Está com um problema jurídico e precisa de uma solução rápida? Clique aqui e fale agora mesmo conosco pelo WhatsApp!
logo Âmbito Jurídico