Resumo: O presente artigo visa investigar o processo de intervenção estatal na economia a partir dos anos 90, examinando as origens das agências reguladoras no Brasil. O enfoque será dado às críticas referentes à implantação desses órgãos e à criação da Agência Nacional do Cinema – Ancine, mediante a Medida Provisória n. 2.228-1, de 2001. Após um período marcado pela ausência de um órgão específico, capaz de apoiar, promover e fiscalizar nossa indústria cinematográfica, a Ancine emerge em um contexto de contínuas reivindicações de profissionais da área – expressas, sobretudo, no III Congresso Brasileiro de Cinema –, de um governo federal marcado pela reprodução do modelo de agências reguladoras provenientes do direito alienígena, sobretudo do direito norte-americano, e de domínio das leis de incentivo fiscal no fomento à produção fílmica.
Palavras-chave: Estado regulador; Ancine; intervenção estatal na economia.
Abstract: This work aims to investigate the background of the process of state intervention in the economy since the early 90’s, examining the origins of regulatory agencies in Brazil. The focus will be given to the critics that concerns to the implementation of these bodies and the creation of the National Cinema Agency – Ancine, by Provisional Measure n. 2.228-01, 2001. After a period marked by the absence of an specific organ, able to encourage, promote and oversee our film industry, Ancine emerges in a context of ongoing demands of professionals – expressed mainly in the III Brazilian Congress of Cinema –, a federal government marked by a reproduction of regulatory agencies’ model from the alien law, especially the U.S. law, and the domain of tax incentive laws in the support for film production.
Keywords: State governor; Ancine; state intervention in the economy.
Sumário: Introdução. 1 Declínio do Estado prestador e a implantação de um novo Estado regulador. 1.1 As origens das agências reguladoras. 2 O caso da Agência Nacional do Cinema. 4.1 Objetivos, fundamentos e composição. Considerações Finais
Introdução
Em termos de políticas econômicas podemos perceber em nosso país, sobretudo desde o início dos anos 90, o aporte de ações como: abertura econômica, liberalização comercial, privatizações, retirada do Estado de antigos monopólios, interdependência financeira, negociação de acordos comerciais, enfim, todo um complexo de fatores que alguns estudiosos julgam fazer parte da caracterização do regime neoliberal que passa a predominar no Brasil. Para David Harvey, o neoliberalismo pode ser sintetizado da maneira que se segue:
“O neoliberalismo é em primeiro lugar uma teoria das práticas político-econômicas que propõe que o bem-estar humano pode ser melhor promovido liberando-se as liberdades e capacidades empreendedoras individuais no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos direitos a propriedade privada, livres mercados e livre comércio. O papel do Estado é criar e preservar uma estrutura institucional apropriada a essas práticas; o Estado tem de garantir, por exemplo, a qualidade e integridade do dinheiro. Deve também estabelecer as estruturas e funções militares, de defesa, da polícia e legais requeridas para garantir direitos de propriedade individuais e para assegurar, se necessário pela força, o funcionamento apropriado dos mercados. Além disso, se não existirem mercados (em áreas como a terra, a água, a instrução, o cuidado de saúde, a segurança social ou a poluição ambiental), estes deverão ser criados, se necessário pela ação do Estado. Mas o Estado não deve aventurar-se para além dessas tarefas. As intervenções do Estado nos mercados (uma vez criados) devem ser mantidas num nível mínimo, porque, de acordo com a teoria, o Estado possivelmente não possui informações suficientes para entender devidamente os sinais do mercado (preços) e porque poderosos grupos de interesse vão inevitavelmente distorcer e viciar as intervenções do Estado (particularmente nas democracias) em seu próprio benefício.” (HARVEY, 2008, p. 12)
O fato é que a reestruturação de cunho neoliberal interferiu também nas políticas culturais brasileiras, estabelecendo-se, inclusive, uma nova institucionalidade para o cinema, “coroando a política de mecenato oficial gerenciado pelo mercado” (MARSON, 2006, p. 172), e é nesse cenário que percebemos o ambiente propício à instituição das agências reguladoras, com a finalidade de regulamentar, controlar e fiscalizar a abertura de um mercado econômico que antes era monopolizado pelo Estado.
O presente trabalho visa investigar o processo de intervenção estatal na economia mediante o modelo regulador, examinando as origens das agências reguladoras no país. Dar-se-á enfoque às críticas referentes à implantação desses órgãos e à criação da Agência Nacional do Cinema – Ancine, a qual passa a vigorar em um contexto de contínuas reivindicações de profissionais da área, expressas, sobretudo, no III Congresso Brasileiro de Cinema, de um governo federal marcado pela reprodução do modelo de agências reguladoras provenientes dos Estados Unidos da América, e do domínio das leis de incentivo fiscal no fomento à produção fílmica.
1 Declínio do Estado prestador e a implantação de um novo Estado regulador
O breve século XX, marcado em sua primeira metade por duas grandes guerras, pela queda da Bolsa de Valores de Nova York, dentre outros acontecimentos motivadores de conspícuos prejuízos enfrentados pela economia mundial, deve ser levado em consideração quando da edificação de um modelo de Estado intervencionista na economia.
Após o aparecimento das crises decorrentes dos eventos ora citados, surgem estados legitimados a atuar sobre a atividade privada[1], também conhecidos sob a forma de Estados de Bem-Estar Social (Welfare States). Segundo Esping-Andersen (1991), uma definição comum para o Welfare State é a de que ele envolve responsabilidade estatal no sentido de garantir o bem-estar básico dos cidadãos. Até aí tudo certo. Mas, até que ponto esse Estado seria capaz de aumentar a cidadania social, ou ainda, transformar a sociedade capitalista? (ESPING-ANDERSEN, 1991, p. 85) Pois bem, até hoje não se sabe ao certo, as respostas para tais indagações. O que se pode afirmar com alguma convicção é que o Estado prestador, produtor, interventor e protecionista entra em declínio quando começam a surgir as consequências do enorme crescimento da máquina estatal nos mais distintos ramos da atividade econômica. No Brasil, o crescimento desenfreado do Estado trouxe graves sequelas, sendo uma das principais, o déficit estatal fiscal:
“Como forma de arrecadação para suprir este déficit, o Estado conta com duas alternativas possíveis: a tributação ou venda de ativos. Em contraposição a este gigantismo estatizante brasileiro que, de certa forma, coibiu o crescimento econômico da iniciativa privada, aparece a necessidade de uma redefinição do real papel, ou seja, a identificação de quais atividades ele realmente deveria estar presente.” (TORRES, 2006, p. 1)
Uma solução admissível passa a ser a privatização – uma das modalidades de desestatização propostas pelo Programa Nacional de Desestatização, instituído pela Lei nº 8.031/90 (alterada pela Lei nº 9.491/97) –, que surge como mecanismo eficiente para: a) reduzir a participação do Estado, que passaria a apenas zelar pela busca do bem estar social; b) reduzir o perfil da dívida pública; c) ampliar os investimentos da iniciativa privada com a atração do capital estrangeiro; d) fortalecer o mercado de capitais com a venda de ações de estatais em bolsa, e; e) liberar recursos do Estado para serem investidos em setores que sua presença seja essencial na busca do bem estar social. (TORRES, 2006, p. 1)
É nesse contexto que “(…) a Administração Pública passa a ter um diferente papel na economia, migrando de um Estado fortemente intervencionista para um Estado regulador” (TORRES, 2006, p. 1). E para dar procedimento ao bom funcionamento desse Estado é que despontam as primeiras Agências Reguladoras, as quais buscam, entre outras finalidades específicas, “(…) regulamentar, controlar e fiscalizar a abertura de um mercado econômico, que antes era monopolizado pelo Estado empreendedor” (TORRES, 2006, p. 1).
Apesar da visível alteração e consequente redução do papel estatal, compete ressaltar que “o Estado perde soberania, mas não capacidade de ação” (CASTELLS, 1999, p. 156), afinal, passa a regular e fiscalizar as atividades que outrora, foram de sua responsabilidade. Pode-se inclusive dizer que o Estado transferiu seus esforços centrados no campo empresarial – mediante as empresas públicas –, para o campo jurídico, assumindo as funções de regular e fiscalizar os serviços públicos e as atividades econômicas. (TORRES, 2006, p. 1) Nessa seara,
“o que se tornou redundante, ou ineficiente, foi o Estado produtor. E o que se tornou inviável foi o Estado plenamente soberano, tomando decisões inapeláveis no marco de seu território. Daí que a privatização não é senão a constatação do fato de que subsidiar certos produtos, certos dirigentes de empresas ou certos grupos de trabalhadores é uma fonte de privilégio social, não um mecanismo de criação de riquezas. A incapacidade do Estado para decidir por si só, em um mundo em que as economias nacionais são globalmente interdependentes, obriga a adaptação de regulações inaplicáveis, porque a pior forma de descontrole é manter vigente o que não se pode aplicar.” (CASTELLS, 1999, p. 156)
Segundo Paulo Todescan Lessa Mattos,
“o novo Estado regulador – caracterizado pela criação de agências reguladoras independentes, pelas privatizações de empresas estatais, por terceirizações de funções administrativas do Estado e pela regulação da economia segundo técnicas administrativas de defesa da concorrência e correção de “falhas de mercado”, em substituição a políticas de planejamento industrial – representou uma clara descentralização do poder do Presidente da República e de seus ministros, ao mesmo tempo em que se tentaram criar novos mecanismos jurídico-institucionais de participação de diferentes setores da sociedade civil no controle democrático do processo de formulação do conteúdo da regulação de setores na economia brasileira.” (MATTOS, 2006, p. 151)
Enfim, as concepções dominantes quanto ao papel do Estado mudaram e continuam em curso nesse século XXI, adotando-se a descentralização como estratégia primordial. Através de privatizações e terceirizações, busca-se continuamente a redução das dimensões estatais, primando sempre pela necessidade de fortalecimento das funções reguladora, fiscalizadora e fomentadora.
1.1 As origens das agências reguladoras
Quando levamos em consideração a historicidade do processo de surgimento das primeiras agências reguladoras, nos remetemos à um estudo dos idos de 1834, na Inglaterra, “quando floresceram entes autônomos, criados pelo Parlamento para concretizar medidas previstas em lei e para decidir controvérsias resultantes desses textos” (GROTTI, 2006, p. 1). Os ingleses exerceram forte influência nos Estados Unidos, que logo em 1887, viram “a proliferação de agencies para regulação de atividades, imposição de deveres na matéria e aplicação de sanções” (GROTTI, 2006, p. 1)
Conrad Hübner Mendes, citado por Dinorá Adelaide Musetti Grotti, atesta a existência de quatro fases principais na história das agências reguladoras norte-americanas: o nascimento, em 1887 (quando foram criadas a ICC – Interestate Commerce Comission e a FTC – Federal Trade Comission, destinadas a controlar condutas anticompetitivas de empresas e corporações monopolistas); uma segunda fase, localizada entre 1930 e 1945 (marcada pela invasão súbita de diversas agências administrativas resultantes da política do New Deal de Roosevelt); uma terceira, entre 1945 e 1965 (que se distingue pela edição de uma lei geral de procedimento administrativo); e uma quarta e última fase, ocorrida entre os anos de 1965 e 1985, quando o sistema regulatório americano se deparou com o desvirtuamento das finalidades de regulação desvinculadas do poder político mediante a captura das agências reguladoras pelos agentes econômicos – os quais acabaram por praticamente determinar o conteúdo da regulação que iriam sofrer. (MENDES apud GROTTI, 2006, p. 3-4)
Apesar do aparecimento de entidades independentes também não constituir algo completamente desconhecido no Direito brasileiro – temos como exemplo a criação do Instituto do Café, em São Paulo, em meados da década de 20 – abordaremos agora os mecanismos adotados no país a partir do processo de desestatização vivenciado nos anos 90.
Desse modo, sofrendo forte influência do direito alienígena, sobretudo do direito norte-americano, no Brasil, em decorrência das transformações econômicas e políticas pelas quais o país passou na década de noventa – com o governo Collor e o Plano Nacional de Desestatização –, e a consolidação alcançada no governo de Fernando Henrique Cardoso – com a reforma administrativa e a forte tendência à desestatização que se efetiva na prática através do programa governamental de privatizações[2] –, e em consonância com o que determina os Artigos 173 e 174 da Constituição Federal de 1988, o Estado deixa de atuar como interventor direto na órbita econômica. (AGULLAR, 2006, p. 214) Assim,
“a partir da segunda metade da década de noventa são criadas as agências setoriais de regulação, dotadas de autonomia e especialização, com a natureza jurídica de autarquias com regime especial, vinculadas a uma particular concepção político-ideológica, que visa impedir influências políticas sobre a regulação e disciplina de certas atividades administrativas”. (GROTTI, 2006, p. 5)
Nossa Constituição de 1988 já determinava expressamente a obrigatoriedade de criação de órgãos reguladores para as telecomunicações em seu Artigo 21, XI e para o Petróleo em seu Artigo 177, § 2º, III, que assim dispõem:
“Art. 21. Compete à União: XI – explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais;
Art. 177. Constituem monopólio da União: § 2º A lei a que se refere o § 1º disporá sobre: III – a estrutura e atribuições do órgão regulador do monopólio da União.”
Sendo assim, as duas únicas agências reguladoras que possuem base constitucional são, pois, a ANATEL (instituída pela Lei Geral de Telecomunicações – Lei n° 9.472/1997) e a ANP (Instituída pela Lei n° 9.478/97 – a qual estabeleceu as regras para a prestação de serviços de gás canalizado e para o funcionamento da indústria do petróleo e criou a Agência Nacional do Petróleo).
A Agência Nacional do Cinema, enfoque deste trabalho, só foi criada em 2001, mediante a edição da Medida Provisória n° 2.228-1.
2 O caso da Agência Nacional do Cinema
Seguindo as motivações que prepararam o espaço para edificação das demais agências reguladoras – privatizações, terceirizações, retirada do Estado de antigos monopólios, entre outras –, a Ancine estabelece-se devido à reiteradas reivindicações de profissionais da área, cientes das lacunas deixadas em nossa atividade cinematográfica pela eliminação da Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes) e do Concine (Conselho Nacional de Cinema). Conforme Caroline Gomes Leme,
“em março de 1990, logo após assumir a Presidência da República, Fernando Collor de Melo lançou as bases da reestruturação neoliberal para o Brasil. No setor de políticas culturais, a retirada do Estado como agente regulador foi marcante. Através da Medida Provisória n. 151, de 15 de março de 1990 e da subseqüente Lei n. 8.029 (12/04/1990) e Decreto 99.226 (27/04/1990) foram extintas e dissolvidas autarquias, fundações e empresas públicas federais, entre as quais, a Fundação Nacional das Artes (Funarte), a Fundação Nacional de Artes Cênicas (Fundacen), a Fundação Nacional Pró-Memória (Pró-Memória), a Fundação Nacional Pró-Leitura (Pró-Leitura), a Fundação do Cinema Brasileiro (FCB) e a Empresa Brasileira de Filmes.” (LEME, 2008, p. 13)
Até mesmo o MinC – Ministério da Cultura, foi extinto, tendo sido transformado em uma secretaria de governo. O Concine (Conselho Nacional de Cinema) acaba sendo indiretamente suprimido, assim como a Lei Sarney[3] (Lei n. 7.505/86), “lei de incentivo fiscal com a qual o cinema brasileiro contava naquele momento” (LEME, 2008, p. 13). Com a abolição de instrumentos de tamanha importância para o setor cultural, pode-se dizer que “esta postura do governo atingiu particularmente o setor cinematográfico que viu desmantelar-se toda a estrutura que envolvia o cinema nacional sem que se colocassem novas políticas culturais para sua manutenção e desenvolvimento” (LEME, 2008, p. 13):
“A concepção política adotada por Collor tratou a cultura como um “problema de mercado”, eximindo o Estado de qualquer responsabilidade nesta área. Isto significa dizer que a produção cultural passou a ser vista como qualquer outra área produtiva, que deve se sustentar sozinha através de sua inserção no mercado. A partir das medidas adotadas por esta nova postura política – ou melhor dizendo, a partir da ausência de medidas adotadas – toda a produção cultural foi afetada. No caso específico do cinema, que tinha um vínculo muito forte com o Estado desde a criação da Embrafilme, a saída de cena do governo federal foi um abalo muito forte, considerada por cineastas e pesquisadores a morte do cinema brasileiro”. (MARSON, 2006, p. 17-18)
Diante do desmonte das estruturais federais, surgem leis municipais e estaduais que contribuem sobremaneira para viabilizar a continuidade da existência do nosso cinema, como por exemplo, podemos citar a Lei Mendonça (Lei n. 10.923/90), a Lei n. 1554/92 no estado do Rio de Janeiro, a Lei Jereissati (Lei n. 12.464/95), bem como diversos outros mecanismos de incentivo à cultura. Mas é com a saída do cineasta Ipojuca Pontes, considerado o principal responsável pelo desmantelamento das instituições federais de apoio à produção cinematográfica, e sua conseqüente substituição pelo embaixador Sérgio Paulo Rouanet, que as reações da sociedade civil e do setor cinematográfica parecem ser atendidas em nível federal: eis que é promulgada, em dezembro de 1991, a Lei n. 8.313/91, popularmente conhecida como Lei Rouanet. (IKEDA, 2011, p. 14-15) A Lei Rouanet tornou-se a “salvação” da cultura nacional em tempos muito complicados e ajudou a desenvolver inúmeros empreendedores culturais. Em 1992, temos a atenção do governo voltada especificamente ao setor audiovisual, quando é criada a Secretaria para o Desenvolvimento do Audiovisual (SDAv) no restabelecido Ministério da Cultura e logo em seguida, em 1993, publicada a Lei do Audiovisual (Lei n. 8.685/93). (IKEDA, 2011, p. 15)
O Estado passa a deixar de lado o modelo de produção cinematográfica adotado pela Embrafilme, baseado em um patrocínio direto, criando uma nova forma de apoio aos projetos através da criação dos mecanismos de incentivo, que se utilizam da renúncia fiscal em que pessoas físicas ou jurídicas realizam o aporte de capital num determinado projeto, e o valor é abatido – parcial ou integralmente – no imposto de renda devido (CESNIK apud IKEDA, 2011, p. 15) Nos termos de Marcelo Ikeda, “o Estado passava a agir no processo de desenvolvimento do audiovisual brasileiro de forma apenas indireta, estimulando a ação de terceiros, e não mais intervinha diretamente no processo econômico, produzindo ou distribuindo filmes” (IKEDA, 2011, p. 15). O problema que envolve essa nova forma de fomento consiste no fato de que apesar dos recursos continuarem sendo públicos, a escolha dos projetos que merecem os investimentos coloca-se nas mãos da iniciativa privada. Toda essa mudança de postura do Estado faz parte de um contexto mais amplo do que as próprias transformações do papel do Estado brasileiro, introduzidas desde o Governo Collor, afinal:
“a resposta mais intensa à crise do Estado intervencionista foi a chamada reação neoliberal, que se consistiu essencialmente no retorno aos princípios liberais de redução da participação do Estado na condução dos rumos da economia, com o ressurgimento da ideia de que o mercado é o agente mais eficaz para a busca de um nível ótimo de produção na economia”. (IKEDA, 2011, p. 19)
Mas, o “neoliberalismo” – se é que podemos chamar assim – que irrompe sobre o nosso audiovisual durou quase tão pouco quanto o próprio Governo Collor: em 1991, com a edição da Lei Rouanet, podemos notar “um recuo na total supressão do Estado ao apoio às produções culturais” (IKEDA, 2011, p. 21).
Quando o modelo de renúncia fiscal da produção cinematográfica entra em crise – em meados de 1999[4] – há um estreitamento do diálogo entre cineastas e o Estado. Críticas passam a ser feitas, sobretudo quanto a transferência da “decisão do financiamento das obras cinematográficas da esfera governamental para as empresas que usariam parte de seus impostos para isso” (ALVARENGA, 2010, p. 26), e existência da grande dificuldade “de um modelo de renúncia fiscal ser capaz de estruturar a cadeia econômica cinematográfica, envolvendo produção, distribuição e exibição” (ALVARENGA, 2010, p. 29-30).
Para os profissionais envolvidos nos embates que ocorriam no momento, entre eles Gustavo Dahl, o Estado deveria apoiar o produto brasileiro para que passasse a ter condições mercadológicas em seu próprio país. Além do mais,
“o filme brasileiro é um patrimônio nacional e, com base nisto, o Estado deve estimular e agir para que se mantenha o processo produtivo cinematográfico independente brasileiro, considerando-o como parte de um projeto nacional, pois envolve a formação da identidade brasileira”. (ALVARENGA, 2010, p. 43)
Em entrevista concedida por Gustavo Dahl à Marcos Alvarenga, o cineasta, crítico e gestor público do cinema brasileiro, afirma que
“não bastava uma simples lei de estímulo financeiro indireto para produzir filmes no Brasil, havia a necessidade de mais, o Estado precisaria ser o regulador e assim dar condições de isonomia de mercado no país, estimulando não só o produto nacional, mas sua distribuição, sua exibição e o desenvolvimento de parcerias com a televisão.” (DAHL apud. ALVARENGA, 2010, p. 44)
Todas as discussões e movimentações caminhavam para a essencialidade da emergência de um órgão estatal dedicado ao planejamento e estruturação da atividade cinematográfica. E nesse contexto, assinalado ainda pela crise do modelo de leis de incentivo e pela falta de políticas que direcionassem estímulos econômicos para a produção-distribuição-exibição de filmes, foi articulado o III Congresso Brasileiro de Cinema. O Congresso ocorreu de 28 de junho de 2000 até o dia 1° de julho de 2000,
“quase meio século após o II Congresso e se tornou marco da união de esforços do meio cinematográfico para a estruturação de uma política pública que estimulasse o setor tanto no tripé produção-distribuição-exibição quanto na capacidade de criar uma infraestrutura econômica que permitisse uma dinâmica na cadeia audiovisual.” (ALVARENGA, 2010, p. 52)
Como uma das críticas mais recorrentes por parte dos profissionais envolvidos na cinematografia direcionava-se à inércia do Estado, “a criação de uma agência para cuidar dos assuntos específicos do cinema, tornando-se, ao mesmo tempo, um organismo gestor, fomentador e regulador do mercado foi uma das demandas do Relatório Final do Congresso” (ALVARENGA, 2010, p. 54). Essa agência acabou se tornando um consenso entre os membros do governo e da corporação cinematográfica, cientes da urgência de estruturação de um órgão que estimulasse a indústria audiovisual brasileira.
Assim, a Agência Nacional do Cinema foi instituída em 2001, através da Medida Provisória n° 2.228-1, de 06 de setembro, com redação dada pela Lei n° 10.470/02, Decreto 4.121/02, alterado posteriormente pelo Decreto n° 4.330/02.
Dotada de autonomia administrativa e financeira, essa autarquia especial está vinculada, desde 2003, ao Ministério da Cultura, tendo sede e foro no Distrito Federal, escritório central no Rio de Janeiro e escritório regional em São Paulo.
2.1 Objetivos, fundamentos e composição
O quadro efetivo da ANCINE é formado por 150 cargos de Especialista em Regulação das Atividades Cinematográficas e Audiovisuais (nível superior), 70 cargos de Analista Administrativo (nível superior), 20 cargos de Técnico em Regulação (nível intermediário) e 20 cargos de Técnico Administrativo (nível intermediário), todos criados pela Lei 10.871/2004, com intuito de dotar a agência de um quadro estável de pessoal.
A ANCINE realizou concursos em 2005, para 20 vagas de Técnico em Regulação e 75 para Especialista em Regulação, e em 2006, para 14 vagas de Analista Administrativo e 20 para Técnico Administrativo.
Além do quadro efetivo, estão lotados na ANCINE servidores federais originários principalmente do Ministério da Cultura (denominado quadro específico), além de colaboradores comissionados oriundos do mercado audiovisual.
A Ancine é administrada por uma diretoria colegiada aprovada pelo Senado e composta por um diretor-presidente e três diretores, todos com mandatos fixos, aos quais se subordinam cinco Superintendências: Acompanhamento de Mercado, Desenvolvimento Econômico, Fiscalização, Fomento e Registro, além da Secretaria de Gestão Interna e da Superintendência Executiva. Além do seu Escritório Central, localizado no Centro do Rio de Janeiro, a Ancine conta com mais dois escritórios regionais, sendo um em Brasília e outro em São Paulo.
Na composição atual da diretoria colegiada da Ancine, temos Glauber Piva (nomeado diretor em 19 de maio de 2009, com mandato até maio de 2013),Vera Zaverucha (nomeada diretora em 24 de junho de 2011, com mandato até junho de 2015), e Manoel Rangel, cineasta, formado pela Universidade de São Paulo em 1999, o qual obteve sua nomeação para o cargo de diretor-presidente em dezembro de 2006, tendo sido reconduzido em 19 de maio de 2009 para um mandato que perdurará até maio de 2013. Enquanto Assessor Especial do Ministro da Cultura Gilberto Gil (2004/2005) e Secretário do Audiovisual substituto (2004/2005), Rangel coordenou o grupo de trabalho sobre regulação e reorganização institucional da atividade cinematográfica e audiovisual no Brasil, segundo informações disponibilizadas pela própria Ancine.
O art. 2° da Resolução de Diretoria Colegiada n° 22, que dispõe sobre o Regimento Interno, enumera os objetivos da Agência seguinte forma:
“Art. 2º A ANCINE terá por objetivos: I. promover a cultura nacional e a língua portuguesa mediante o estímulo ao desenvolvimento da indústria cinematográfica e videofonográfica nacional em sua área de atuação; II. promover a integração programática, econômica e financeira de atividades governamentais relacionadas à indústria cinematográfica e videofonográfica; III. aumentar a competitividade da indústria cinematográfica e videofonográfica nacional por meio do fomento à produção, à distribuição e à exibição nos diversos segmentos de mercado; IV. promover a autosustentabilidade da indústria cinematográfica nacional visando o aumento da produção e da exibição das obras cinematográficas brasileiras; V. promover a articulação dos vários elos da cadeia produtiva da indústria cinematográfica nacional; VI. estimular a diversificação da produção cinematográfica e videofonográfica nacional e o fortalecimento da produção independente e das produções regionais com vistas ao incremento de sua oferta e à melhoria permanente de seus padrões de qualidade; VII. estimular a universalização do acesso às obras cinematográficas e videofonográficas, em especial as nacionais; VIII. garantir a participação diversificada de obras cinematográficas e videofonográficas estrangeiras no mercado brasileiro; IX. garantir a participação das obras cinematográficas e videofonográficas de produção nacional em todos os segmentos do mercado interno e estimulá-la no mercado externo; X. estimular a capacitação dos recursos humanos e o desenvolvimento tecnológico da indústria cinematográfica e videofonográfica nacional; e XI. zelar pelo respeito ao direito autoral sobre obras audiovisuais nacionais e estrangeiras”.
A estrutura organizacional compõe-se de uma diretoria – como previamente informado –, de uma Procuradoria-Geral (PGE), de uma Auditoria Interna (AUD), de uma Ouvidoria Geral (OUV), de uma Secretaria de Gestão Interna (SGI), e de Superintendências de Processos Operacionais.
Interessante ressaltar que a Ouvidoria Geral tem o dever de receber eventuais pedidos de informações, esclarecimentos, reclamações e denúncias dos cidadãos, cobrando a solução das demandas dentro de prazos previamente estipulados. No próprio site oficial da Agência pode-se efetuar possíveis indagações mediante o preenchimento de um Cadastro de Manifestação[5].
Considerações Finais
A armadilha que a poderosa globalização nos prega, conforme nos ensina Castells, vem no sentido de se colocar como o modelo, a estrutura, o fluxo, o caminho. Tudo aquilo que lhe escapa é exclusão. Para nos inserirmos nesse mundo intensamente integrado, precisamos recriar, de acordo com nossas condições e necessidades, os modelos difundidos nos outros países, tentando, da melhor maneira possível, nos adaptar em meio a esse turbilhão constante de informações.
Com a impossibilidade material de se cumprir todos os programas propostos pela Constituição Cidadã de 1988, na década de 90 o Estado passou a se reestruturar, dando início a um processo de desestatização. Tendo saído de alguns setores, o Estado não podia, contudo, deixar de impor uma certa regulação setorial com a finalidade de que Estado e particulares, em conjunto, buscassem a melhor maneira de se adequar aos dispositivos constitucionais. Assim, iniciou-se um processo de criação de agências reguladoras. A Agência Nacional do Cinema surge em um momento oportuno, preenchendo lacunas deixadas por medidas que retiraram completamente o Estado do incentivo e do cuidado à cultura brasileira.
A participação popular, tal qual ocorre nos procedimentos das agências reguladoras brasileiras, não é suficiente para legitimar sua atuação, sendo esta mais legitimada pela eficiência do que propriamente por um procedimento democrático participativo. E como a cultura deve ser compreendida dentro de um ambiente que a tome como parte indispensável da vida, referente não só ao grupo populacional que a legitima, mas de toda a coletividade, é necessário uma integração plena dos representantes da comunidade nos Conselhos das Agências. Só assim o nacional será valorizado. Só assim o nacional renascerá sempre que tentarem dizimá-lo.
AGUILLAR, Fernando Herren. Direito econômico: do direito nacional ao supranacional. São Paulo: Editora Atlas, 2006.
ALVARENGA, Marcus Vinícius Tavares de. Cineastas e a formação da ANCINE (1999-2003). 2010. 141 p. Dissertação (Mestrado em Imagem e Som) – UFSCar, São Carlos, 2010.
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Notas:
Informações Sobre o Autor
Talita Vanessa Penariol Natarelli
Bacharel em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP. Mestranda em Sociologia pela mesma Universidade.