É verdade que o binômio “processo e constituição” está presente há muito em diversas constituições brasileiras e no mundo. A observância de regras e princípios constitucionais processuais remonta à doutrina de Hans Kelsen que em sua Teoria Pura do Direito segundo a qual as regras materiais e processuais ostentam a gênese de sua validade na Constituição Federal.
O Brasil seguindo o modelo kelseniano contemplou em todas as suas constituições, regras processuais como, por exemplo, a Carta Imperial que previu vários dispositivos de cunho processual, como o cabimento de ação popular[1] e considerada como forma de equivalente jurisdicional.
Já a constituição brasileira republicana de 1891 trazia em seu bojo a garantia processual penal do Tribunal de Júri a de 1934, consagrou o mandado de segurança.
A Carta de 1946 é considerada o documento estrutural mais democrático de todos os tempos e consubstanciou todas as garantias inerentes ao devido processo legal e, todas as demais constituições fizeram minudenciar a estrutura do Poder Judiciário e exacerbaram as denominadas garantias processuais, como por exemplo, o mandado de segurança individual e coletivo, o habeas corpus, as garantias do juiz natural do devido processo, da ampla defesa do contraditório e da motivação das decisões judiciais.
Atualmente a nossa constituição de 1988 é rica em regras e princípios processuais tanto assim que se cogita de novo ramo jurídico qual seja o Direito Processual Constitucional.
Não é diferente no panorama mundial ex vi a quinta Emenda Constitucional americana de 1791, que consagrou o due process of law[2]; a Constituição mexicana de 1917 que instituiu o juicio amparo que representa a fonte imediata do mandado de segurança[3]; a Constituição italiana prevê dever de motivar as decisões judiciais; na Lei Fundamental Alemã inspirada em Friedrich Müller[4], também ostenta a máxima de que “todo poder emana do povo e em seu nome é exercido”; a constituição portuguesa alinhou como garantia ao acesso à justiça e o denominado acesso à informação na justa percepção de que quem não sabe os direitos que ostenta não pode exercê-los em juízo; a Carta da Costa Rica que proclama como garantia do jurisdicionada uma justiça pronta e plena, assim como a atual constituição brasileira que alude à duração razoável do processo e, por fim, a Constituição espanhola que preconiza um processo oral.
Outro fenômeno contemporâneo é a constitucionalização do direito que insere na Constituição como centro gravitacional de toda ordem jurídica, estabelecendo as premissas metodológicas inafastáveis para a aplicação da legislação infraconstitucional.
A supremacia da Constituição Federal na atividade hermenêutica é a tônica da atual constitucionalização do processo[5] que tanto incentiva a criação do Novo Código de Processo Civil[6] que estruturou em sua parte geral na qual se inserem os princípios que devem nortear a atividade judicante.
De fato, considerando os processos objetivos cuja finalidade imediata é a confrontação de leis e sua exegese em face da Constituição conforme ocorre com as ações de declaração de inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade e a ação de descumprimento de preceito fundamental.
O processo é um instrumento a serviço da prestação da justiça e por influência do código austríaco inspirado em Franz Klein[7] aduzia que a jurisdição era função voltada para o povo, sendo instrumento de realização da justiça material, sublinhando o processo deveria ser acessível a partir de normas dotadas de simplicidade.
O processo como substituto da vingança privada otimiza o relacionamento social e contribui enfaticamente para se galgar os fins da democracia.
A democracia[8] procura trazer soluções constitucionais para as questões previstas no documento representativo da vox populi, ou seja, a Constituição.
As garantias processuais constitucionais seja sob forma de princípios ou de regras tendem a confirmar os anseios populares, como por exemplo, a que estabelece que ninguém será privado de sua liberdade ou devido processo legal. Trata-se de cláusula pétrea mui vinculada aos institutos do processo e da democracia.
O processo não é mais visto como mera fórmula mágica ou fruto de sacrifícios e oferendas às divindades, onde a justiça era concebida como dádivas dos mortais. Enfim, o processo é fruto da vida humana em sociedade, portanto como criação social, resta totalmente aberto e suscetível às influências da sociedade que o originou, adotando as que forem positivas para todos (ou numa democracia, aquelas influências que foram eleitas como boas para a maioria, sem nunca desconsiderar a opinião da minoria). (In: SANTOS, Guilherme Luís Quaresma Batista. Algumas notas sobre o contraditório no processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 73).
A Constituição Cidadã de 1988[9] versa sobre democracia e assegura a liberdade no exercício dos direitos individuais e sociais, sobrelevando-se como valores supremos tais como a justiça, a soberania, a dignidade da pessoa humana, que representam cânones para cumprir o fim de se construir uma sociedade solidária e fraterna.
A igualdade formal[10] gravada no papel ganhou versão autêntica e aristotélica no processo propiciando que o juiz trate desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades. E, o juiz tem o dever de manter a igualdade das partes no processo.
Desmistifica-se, portanto a neutralidade judicial e procura-se conceder a assistência jurídica integral aos necessitados. Cappelletti defendeu que o “o juiz não pode, mais se ocultar, tão facilmente, detrás da frágil defesa da concepção do direito como norma preestabelecida clara e objetiva, na qual pode basear sua decisão de forma neutra.” É envolvida sua responsabilidade pessoal, moral e política tanto quanto jurídica, sempre que haja no direito abertura para escolha. E a experiência ensina que tal abertura sempre ou quase sempre está presente. (In CAPELLETTI, Mario. Juízes legisladores? Porto Alegre: Fabris, 1993, p.33).
O cânone da isonomia se fundamenta crescentemente na existência das ações afirmativas[11] que se voltam especialmente para a proteção das minorias.·.
A igualdade como valor da democracia juntamente com a liberdade representam os principais pilares desse regime político. A liberdade consta num rol de direitos inatos e absolutos que a caracterizam e se fazem presentes em todos os ramos da ciência jurídica.
As garantias constitucionais[12] sob a forma de acesso à justiça encerram as hipóteses que compõem o novo binômio: liberdade e processo.
É cediço que no embate entre o forte e o fraco é afinal, a justiça que liberta. É a resposta judicial que gera a liberdade sob o pálio da autoridade da justiça.
O habeas corpus e o mandado de segurança, acompanhados da possibilidade de concessão de liminares, que por fim representam imprescindível meio para efetivação da garantia da liberdade.
A contemporânea simbiose entre o processo e a democracia influencia diretamente a prestação jurisdicional em si. É a aguçada consciência cívica que conduz o povo a aferir a legitimação democrática da própria essência da resposta jurisdicional.
À luz da democracia duas soluções possíveis podem ser adotadas e ambas com fulcro jurídico razoável, deve o magistrado, decidir de forma atender às expectativas populares sem que com isso abdique da missão jurisdicional que lhe foi confiada.
Do ângulo processual, a democracia requer uma participação popular por meio do processo.
È nos processos objetivos que os valores sociais são submetidos ao crivo do Judiciário o que orienta os julgadores e tribunais para um determinado sentido de pré-compreensão da Constituição. Pela ação civil pública é onde os interesses de toda ou parte da sociedade são submetidos à apreciação do Judiciário, notadamente os interesses difusos e os individuais homogêneos[13].
O processo participativo também possui seu clímax democrático quando ocorre a participação do amicus curiae que é figura extraprocessual que sai do povo, e conforme bem etimologicamente informa a palavra, como amigo da corte, vem auxiliar o Judiciário na solução de temas específicos de nítida repercussão social[14].
A sociedade interfere no processo como também no Judiciário principalmente pelo controle social externo da magistratura, por intermédio do Conselho Nacional de Justiça.
A Constituição é a ordem jurídica fundamental da coletividade, determina os princípios diretivos capazes de formar a unidade política e orientar adequadamente as tarefas estatais a serem exercidas. Regula também os procedimentos de pacificação de conflitos no interior da sociedade e para tanto cria bases e normatiza os traços fundamentais da ordem jurídica como um todo.
É imprescindível que a Constituição realize efetivamente três tarefas fundamentais, a saber: a integração estabelecendo a unidade do Estado, regulando e pacificando o conflito de diversos grupos que o formam. Portanto, é a missão principal da Constituição a integração e formação da unidade política e do Estado, porque lhe assegura um ordenamento para a solução de conflitos que surgirem na sociedade.
A segunda missão é a de organização posto que procure organizar a ação e incidência e atuação dos órgãos estatais bem como traçar-lhes suas competências correspondentes.
A terceira missão consiste na direção jurídica, procurando dotar os direitos fundamentais[15] de força vinculante para todo o ordenamento jurídico.
Realizando essas três funções a Constituição deixa de ser apenas a ordem fundamental do Estado e passa então a ser também a ordem jurídica fundamental da sociedade.
Enfim, como J.J. Canotilho[16] explicou a carta política se revela como Constituição dirigente no sentido de impor um dirigismo normativo capaz de promover as transformações emancipatórias e promover a abertura do direito constitucional para o direito internacional e supranacional.
O dirigismo constitucional estabelece as premissas materiais fundantes das políticas púbicas num Estado democrático de direito. A Constituição dirigente prima pela aplicação direta dos direitos fundamentais e mesmo ante as omissões legislativas a nossa Constituição Federal prescreveu instrumentos de reparação e colmatação, como o mandado de injunção[17], e também a ação declaratória de inconstitucionalidade por omissão.
O mandado de injunção pode ser utilizado quando ocorrer omissão violadora de direitos fundamentais, que ocorre quando um direito for constitucionalmente garantido e sua efetivação for prescrita através de uma imposição constitucional concreta.
Dessa forma, todos os ramos jurídicos e especialmente o direito processual vinculam-se a constituição posto que fixa os princípios, os contornos e as bases sobre as quais deve erguer-se o edifício normativo brasileiro.
Informações Sobre os Autores
Gisele Leite
Professora universitária, Mestre em Direito, Mestre em Filosofia, pedagoga, advogada, conselheira do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas.
Denise Heuseler
Professora assistente, bacharel em Direito pela UNESA, Pós-Graduada Lato Sensu em Direito Civil, Advogada, Tutora da FGV On-line. Membro do Conselho do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas (INPJ)