Introdução
A passagem do tempo deixa marcas em toda parte. Passados 19 anos da edição da Carta de 1988, muitas foram as mudanças. Alguns processos gerais merecem nota. De mera proclamação política, repositório de exortações sem força normativa, a Constituição passou a norma jurídica, vinculante para os três Poderes. Mais que isso, reconheceu-se a sua supremacia formal, material e axiológica, impondo a invalidade de toda e qualquer disposição que a contrarie, bem como a sua centralidade, de que resulta a irradiação das suas disposições por todo o ordenamento jurídico. Em conseqüência, a Constituição não apenas condiciona a interpretação dos enunciados que lhe são inferiores como chega a produzir efeitos nas relações privadas, independentemente de mediação legislativa.
Ao lado desses processos gerais, no entanto, transformações pontuais têm igualmente marcado a construção do Direito Constitucional. O presente estudo procurou selecionar algumas dessas transformações que, por sua especial relevância para a realidade brasileira, merecem uma reflexão específica, a saber: (i) o início da reação à banalização dos princípios constitucionais; (ii) a ascensão da jurisprudência constitucional e de sua força vinculante; e (iii) o impacto sobre a segurança jurídica provocado pela alteração da jurisprudência e o debate acerca dos efeitos temporais das decisões judiciais.
I. Princípios: o retorno do pêndulo e a busca de equilíbrio
As últimas décadas assistiram, no Brasil e em outras partes do mundo, à ascensão dos princípios – e em particular dos princípios constitucionais – à categoria de normas jurídicas, ao lado das regras[1]. As Constituições contemporâneas, e a Carta brasileira é um exemplo, empregam amplamente enunciados normativos estruturados sob a forma de princípios, em geral com o objetivo de juridicizar opções valorativas, políticas e mesmo ideológicas. De fato, tornou-se comum encontrar na Constituição disposições como as que prevêem, e.g., a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República (art. 1º, III) e a construção de uma sociedade solidária, como um dos objetivos da República (art. 3º, I). Afora outros enunciados, menos abrangentes, mas igualmente gerais, como os que tratam da proteção do consumidor, do meio ambiente, da criança, do adolescente e do idoso, ou mesmo os que veiculam vários direitos fundamentais.
Durante muito tempo, disposições como essas eram consideradas meras proclamações políticas, sem maiores conseqüências para a ordem jurídica. Elas veiculavam um discurso de intenções, mas delas não se podia extrair conseqüências concretas ou exigíveis perante o Judiciário, por exemplo. Embora inseridos em um diploma supostamente jurídico – a Constituição –, os princípios não eram considerados nem operavam como disposições realmente jurídicas. Aos poucos, porém, esse quadro se alterou substancialmente.
Ao longo de menos de 20 anos, no Brasil, o discurso acerca da normatividade dos princípios, sobretudo dos constitucionais, tornou-se dominante. Não é o caso de percorrer aqui o caminho que nos conduziu a esse ponto, nem as amplas discussões acerca da distinção entre princípios e regras, bastando lembrar com que freqüência, e relativa tranqüilidade, passou-se a afirmar que também os princípios são normas jurídicas. E como não poderia deixar de ser, a partir do discurso teve início a prática. Sem necessidade de maiores perquirições, é um fato que a referência aos princípios constitucionais tornou-se cada vez mais comum na fundamentação de sentenças e acórdãos, ainda que sob variadas formas e para efeitos diversos.
A transição do debate teórico para a prática, porém, não tem sido feita sem percalços. A tradição no Direito brasileiro era o manejo de regras, e não de princípios, de modo que as dificuldades eram, a rigor, previsíveis. Realmente, a vagueza de muitos dos princípios contidos na Carta de 1988 – cujo sentido se abre para compreensões diversas, variáveis em função das concepções pessoais do intérprete –, associada ao pouco cuidado metodológico de alguns aplicadores, tem desencadeado um fenômeno descrito pela doutrina por meio de expressões como “euforia principiológica”, “carnavalização dos princípios”, “embriaguez principiológica”, dentre outras similares. Em muitos momentos, a menção a um princípio constitucional passou a ser empregada como a palavra mágica que autoriza o intérprete a proferir qualquer decisão.
Até porque, do ponto de vista puramente retórico, a verdade é que praticamente qualquer solução pode ser reconduzida a princípios como, e.g., os da dignidade, da justiça social, da solidariedade e outros tantos. Qualquer pretensão de que alguém cogite pode ser descrita como algo relevante para sua dignidade humana. A justiça social e a solidariedade, dependendo da compreensão que se tenha delas, podem justificar a imposição de inúmeras obrigações a terceiros; uma série infinda de providências hipotéticas podem contribuir de algum modo para a proteção do consumidor, do meio ambiente, do idoso e da criança e dos adolescentes, até porque tais metas nunca estarão inteiramente satisfeitas, e assim por diante.
Nessa linha, e com fundamento genérico em alguns princípios, passou-se a afastar a aplicação de regras validamente editadas pelo legislador sem muita cerimônia ou cuidado. Em muitas ocasiões o intérprete tem se sentido livre para simplesmente deixar de aplicar um dispositivo legal[2], não porque ele seja inconstitucional ou por se tratar de uma incidência inconstitucional do comando[3], mas simplesmente por assim “parecer bem” ao aplicador, à luz de sua compreensão pessoal acerca do sentido do princípio. Nesse mesmo ambiente, outra prática, que já não pode ser descrita como isolada, é a criação de deveres particulares não previstos de forma razoavelmente clara na Constituição ou em lei. Isto é: o juiz, com fundamento, e.g., na solidariedade social, impõe a um particular obrigações que não decorrem de forma óbvia do princípio e nem de lei específica.
Pois bem. De algum tempo para cá, já se começa a perceber as primeiras reações organizadas da doutrina a esse uso indiscriminado – quase “festivo” – e pouco criterioso dos princípios constitucionais, sobretudo pela jurisprudência[4]. É o início do retorno do pêndulo e a busca por uma posição de maior equilíbrio. Veja-se que o reconhecimento da juridicidade dos princípios é um dado incorporado em caráter definitivo ao acervo jurídico nacional: esse ponto não é objeto de discussão. A questão que se coloca é posterior, mais complexa, e surge quando a afirmação abstrata acerca da juridicidade dos princípios deve interagir com situações concretas, no âmbito das quais convivem fatos, princípios diversos e regras variadas. Nesse contexto, como exatamente os princípios devem operar? O que se pode exigir judicialmente com fundamento neles?
Embora o debate permaneça em ebulição, o retorno do pêndulo no que diz respeito aos princípios – que haverá de conduzir o tema, de uma euforia inicial, a um estágio de maior maturidade dogmática e operacional – tem sido impulsionado por três considerações principais formuladas pela doutrina.
Em primeiro lugar, os princípios constitucionais são o locus no qual a necessidade de convivência respeitosa entre os espaços do jurídico-constitucional e da deliberação majoritária e democrática talvez se mostre de forma mais visível. Se é certo que o princípio é um comando jurídico, que pretende a realização de determinados efeitos no mundo dos fatos e, nesse passo, admite o manejo da tutela jurisdicional tradicional para exigi-los, também é certo que há um espaço de desenvolvimento dos princípios que compete com exclusividade ao legislador e ao administrador eleitos, na esfera de suas competências. Sequer há necessidade de exemplificar. Não há dúvida de que o respeito à dignidade humana, por sua mera enunciação, impõe determinadas condutas básicas aos particulares e ao Estado, mas também é verdade que esse mesmo princípio admite diferentes desenvolvimentos legislativos, diferentes políticas públicas, diferentes escolhas.
Assim, ao lidar com princípios constitucionais, o intérprete haverá de ter em mente que em algum ponto há uma linha que divide as possibilidades de solução em dois campos: o campo do jurídico-constitucional, delineado por consensos mínimos oponíveis a qualquer grupo político, e por isso mesmo sindicáveis independentemente de novas manifestações majoritárias (ou mesmo em oposição a essas novas manifestações), e o campo das opções político-majoritárias legítimas. O aplicador, nessa qualidade, apenas pode “jogar” no primeiro campo, e não no segundo. Ainda que ele pessoalmente discorde de alguma “jogada” levada a cabo no segundo campo, não lhe é permitido interferir, salvo na qualidade de cidadão.
As razões para essa primeira observação – que funciona como um vetor impulsionando o pêndulo de volta – são várias e se relacionam, basicamente, com a própria natureza do Estado democrático e com a legitimidade da atividade jurisdicional. Não cabe aqui discorrer sobre elas, embora elas conduzam a uma segunda observação, autônoma.
A doutrina tem destacado a repercussão negativa que, indiretamente, a “banalização dos princípios” acaba por desencadear sobre outros bens constitucionais. Há diversas possibilidades aqui, dependendo do ambiente no qual a discussão se trave e se vai apenas destacar alguns exemplos. Em matéria de direitos, é freqüente que a sua concessão ampla com fundamento em princípios constitucionais gerais acabe gerando problemas de isonomia e de distribuição desigual de recursos públicos[5]. Isso porque freqüentemente não será possível generalizar a decisão concessiva do direito para todos os indivíduos que se encontram em situação equiparável à do autor da demanda, que receberá, desse modo, uma porção substancialmente maior de benefícios públicos que os demais. Tais reflexos, essa é a idéia, não podem ser ingenuamente ignorados pelo aplicador.
Em sentido similar, a criação, a partir de princípios, de obrigações específicas não previstas de forma clara e em caráter geral para todos em determinado universo pode autorizar distorções variadas. No caso de agentes econômicos, e.g., a higidez da concorrência nos mercados pode ser afetada, uma vez que apenas os agentes econômicos que eventualmente sejam réus na demanda em que o tema é discutido estarão obrigados a adotar tal ou qual comportamento[6].
Sob outra perspectiva, esse uso desenfreado dos princípios contribui, não há dúvida, para o esvaziamento ainda maior do debate político democrático. Parece tentadoramente mais fácil e rápido ir ao Judiciário solicitar tudo o que se deseja com fundamento na dignidade da pessoa humana do que engajar-se no debate público a fim de influenciar as escolhas políticas. É desnecessário ocupar espaço para demonstrar que essas não são duas vias fungíveis.
Em terceiro lugar, talvez a crítica mais imediata à euforia principiológica, e nem por isso menos relevante, envolva o prejuízo que o fenômeno causa ao Estado de Direito e à segurança jurídica. Há no país milhares de juízes, dezenas de tribunais e inexiste a vinculação geral dos precedentes, própria dos sistemas de common law. Ora, nesse cenário, se cada magistrado puder, com fundamento em suas concepções particulares acerca de princípios gerais, impor obrigações e afastar a aplicação de regras válidas, quais serão as regras vigentes afinal? O que esperar do sistema jurídico? Como se comportar de acordo com o Direito que não se sabe ainda qual é? A insegurança, tanto para o passado, quanto para o futuro, é evidente.
Repita-se que o debate sobre o “retorno do pêndulo” em matéria de princípios constitucionais encontra-se em andamento. Não se trata, como já destacado, de uma negação da normatividade ou da importância dos princípios, mas da busca de um equilíbrio entre os diferentes aspectos do sistema jurídico-constitucional e político que, queira-se ou não, estão interligados. O ativismo judicial no Brasil, de forma geral, sempre foi identificado com o avanço, com uma postura progressista, “do bem” e politicamente correta. Essa espécie de avaliação, pouco crítica e maniqueísta, caracteriza com freqüência os adolescentes ou os apaixonados. Com as críticas que começaram a surgir, talvez tenhamos dado início a nossa maturidade nesse particular.
II. Jurisprudência constitucional: força cada vez mais vinculante
Nos últimos anos, as decisões proferidas pelos Tribunais Superiores passaram a desempenhar um papel central na vida jurídica do país por duas razões principais. Em primeiro lugar, a abertura do sistema jurídico acaba por transferir ao magistrado um poder decisório bastante amplo, de modo que é ele quem definirá, afinal, qual o direito vigente sobre determinada matéria. Ademais, além da evidente persuasão pragmática e lógica associada às decisões de tais Cortes, opções legislativas específicas, sobretudo no âmbito do processo civil, têm procurado prestigiar a jurisprudência dos Tribunais Superiores.
Há mais que isso, porém. É possível observar uma tendência bastante clara de conferir à jurisprudência constitucional do STF não apenas importância decisiva, mas também efeitos vinculantes, em maior ou menor extensão. E não se trata propriamente da figura da súmula vinculante, criada pela Emenda Constitucional nº 45/04 e regulamentada apenas no final de 2006, pela Lei nº 11.417, de 19.12.2006. Esse movimento tem sido impulsionado por vários expedientes de que tem se valido o próprio Supremo Tribunal Federal (ou ao menos alguns de seus membros). Aprofunde-se a questão.
Ao longo dos últimos anos, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ampliou de forma importante as hipóteses de emprego da reclamação, sobretudo para o fim de garantir a autoridade de suas decisões[7]. Em um primeiro momento, ampliou-se a legitimação ativa para manejar a reclamação, que passou a incluir todos os que comprovem prejuízo oriundo de decisões judiciais ou da Administração contrárias a julgado do STF proferido em sede de controle abstrato de constitucionalidade, e não apenas o autor da ação original na qual proferida a decisão[8].
Na seqüência, vários Ministros da Corte passaram a admitir o manejo da reclamação tendo em conta não apenas o dispositivo do julgado, como também as razões que o determinaram. O fenômeno foi identificado como o da transcendência dos motivos, ou ainda o da atribuição de efeitos transcendentes aos motivos determinantes das decisões[9], e decorre de uma compreensão mais abrangente acerca do efeito vinculante das decisões proferidas pelo STF em sede de controle abstrato de constitucionalidade.
É certo que a questão não é tranqüila no âmbito do próprio STF, devendo em breve ser examinada de forma específica por seu Plenário. Aparentemente por essa razão, em decisões mais recentes, alguns Ministros passaram a justificar a mesma solução, que antes decorria da transcendência dos motivos, com fundamento no “poder ínsito à própria competência do Tribunal de fiscalizar incidentalmente a constitucionalidade das leis e dos atos normativos. E esse poder é realçado quando a Corte se depara com leis de teor idêntico àquelas já submetidas ao seu crivo no âmbito do controle abstrato de constitucionalidade. Assim, em relação à lei de teor idêntico àquela que já foi objeto do controle de constitucionalidade no STF, poder-se-á, por meio da reclamação, impugnar a sua aplicação ou rejeição por parte da Administração ou do Judiciário, requerendo-se a declaração incidental de sua inconstitucionalidade, ou de sua constitucionalidade, conforme o caso. Na hipótese em exame, como já acentuado, não estamos a falar em ‘transcendência dos motivos determinantes’”[10].
Seja como for, o fato é que a tendência de atribuir efeitos vinculantes às decisões do STF em geral prossegue. Recentemente, o Ministro Gilmar Mendes admitiu o uso da reclamação por terceiros para a preservação da autoridade de decisão proferida pelo STF no âmbito de controle difuso e incidental de constitucionalidade[11]. A decisão, até o momento não examinada em caráter definitivo pelo Plenário, tem suscitado alguma perplexidade. A adotar-se esse mecanismo, o papel da súmula vinculante seria substancialmente reduzido. Mais que isso, efeitos similares aos da súmula vinculante seriam produzidos sem a observância dos requisitos previstos constitucional e legalmente para sua edição. Alguns detalhes do caso ajudam a esclarecer a hipótese.
A reclamação foi manejada para preservar a autoridade da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no HC 82.959-SP (DJU 1º set. 2006, Rel. Min. Marco Aurélio), que declarou a inconstitucionalidade do dispositivo da Lei dos Crimes Hediondos que vedava a progressão de regime (Lei nº 8.072/90, art. 2º, § 1º). O reclamado foi um magistrado da Comarca de Rio Branco, no Acre, que fez divulgar comunicado informando que a decisão proferida pelo STF no habeas corpus referido apenas teria eficácia a favor de outros condenados após eventual resolução do Senado Federal que suspendesse a norma em caráter geral, nos termos do art. 52, X da Constituição.
O Ministro Gilmar Mendes, em longo voto, no qual descreve o movimento da doutrina e da jurisprudência no sentido de prestigiar as decisões do STF, seja no âmbito do controle abstrato e concentrado de constitucionalidade, seja no incidental e difuso, deferiu a liminar solicitada na reclamação. Registrou, ademais, seu entendimento no sentido de que à resolução do Senado Federal de que trata a Constituição caberia apenas dar publicidade à decisão proferida pelo STF. Do ponto de vista prático, a liminar proferida pelo Ministro cassou as decisões do Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco que negaram a possibilidade de progressão de regime relativamente aos interessados na reclamação e determinou ao magistrado que proferisse novas decisões, nas quais deveria avaliar, em concreto, se os interessados faziam ao não jus ao benefício.
Como se vê, independentemente dos novos instrumentos criados pela EC nº 45/04 – a súmula vinculante e a repercussão geral de que trata o § 3º do art. 102 da CF (esta última também disciplinada no último mês de 2006, pela Lei nº 11.418, de 19.12.06) –, verifica-se o avanço de uma tendência que aos poucos vai se incorporando ao sistema jurídico brasileiro, a saber: a progressiva vinculatividade, erga omnes, das decisões proferidas pelo STF, não apenas em sede de controle abstrato de constitucionalidade.
III. Segurança jurídica: alteração da jurisprudência e discussão sobre os efeitos temporais
Um terceiro tema que gera perplexidade nos jurisdicionados e suscita debates teóricos específicos é a alteração relativamente freqüente de entendimentos consolidados por parte do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Na realidade, a perplexidade decorre de três elementos conjugados, dois dos quais já foram referidos.
Em primeiro lugar, um sistema aberto como o brasileiro confere ao julgador, e sobretudo aos Tribunais Superiores, um poder bastante amplo de definir o que é o Direito. O jurisdicionado diligente, portanto, procura informar-se do entendimento dessas Cortes para pautar sua conduta. Em segundo lugar, e na linha do que já se registrou, é certo que a jurisprudência desses Tribunais tem se tornado cada vez mais central e decisiva – e por vezes vinculante – para o sistema jurídico nacional. Por fim, e em terceiro lugar, é natural que a eficácia da decisão judicial retroaja justamente para atingir os efeitos pretéritos do ato sob exame[12].
Ora, o impacto da alteração de um entendimento jurisprudencial consolidado sobre a segurança jurídica (previsibilidade e confiança) poderá ser bastante intenso. Imagine-se que o indivíduo A se comporta na forma prevista pela jurisprudência dominante, que lhe é contemporânea. Surge uma demanda sobre o ponto. Ocorre que, anos depois, quando a demanda vem a ser julgada pelos Tribunais Superiores, o entendimento dessas Cortes sobre a matéria sofreu alteração. A pergunta é simples: que parâmetro jurídico se haverá de aplicar a A? O direito vigente à época em que o ato foi praticado ou aquele posterior, resultado da alteração jurisprudencial?
Por conta desse quadro, e no âmbito da discussão mais geral acerca da modulação temporal dos efeitos de decisões judiciais e administrativas[13], é que um dos temas cuja discussão ganhou especial impulso nos últimos tempos foi o dos efeitos prospectivos das decisões dos Tribunais Superiores que modifiquem sua jurisprudência consolidada anterior. De forma bastante resumida, a idéia central que move os debates é a seguinte: a alteração de uma jurisprudência dominante – embora possível e eventualmente desejável – deve ser equiparada a uma alteração legislativa, na medida em que um novo direito vigente se estabelece. E se é assim, a regra geral da irretroatividade deve igualmente incidir, de modo a preservar-se a confiança e a segurança dos jurisdicionados. A relevância do debate pode ser medida pela quantidade de temas acerca dos quais a jurisprudência dominante das Cortes se alterou, ou deu claras indicações de que poderá se alterar, ao longo do ano passado[14].
Nesse sentido, podem ser lembrados o caso da verticalização[15] e o já citado HC 82.959-SP (DJU 1º set. 2006, Rel. Min. Marco Aurélio), no qual o STF, modificando entendimento anterior[16], declarou a inconstitucionalidade do dispositivo da Lei dos Crimes Hediondos que vedava a progressão de regime (Lei nº 8.072/90, art. 2º, § 1º). É certo que, na ocasião, a Corte declarou expressamente que a decisão que proferia não geraria conseqüências jurídicas relativamente às penas já extintas. Outros temas têm sido alvo de reapreciação nos últimos tempos.
O STF, como se sabe, havia consolidado o entendimento de que era válida a exigência legal de depósito prévio para a interposição de recurso administrativo, sobretudo em matéria tributária[17]. Nada obstante, como comprovam recentes acórdãos, a Corte alterou a sua orientação, passando a entender pela invalidade da exigência[18]. Também o tema da validade da prisão civil do depositário infiel nos casos de alienação fiduciária em garantia, antes admitida pelo Supremo Tribunal Federal, foi revisitado e sete Ministros já se manifestaram pela inconstitucionalidade da prisão no caso[19]. Talvez as questões mais controvertidas envolvam realmente os temas tributários, por conta de suas repercussões patrimoniais imediatas, e muitas têm sido as alterações nesse particular.
O Plenário do Supremo Tribunal Federal havia consolidado o entendimento de que, por força da regra constitucional da não-cumulatividade (CF/88, art. 153, § 3º, II), o contribuinte de IPI tinha direito a creditamento nos casos em que a operação anterior era isenta[20] ou tributada à alíquota zero[21]. A questão, porém, voltou ao Plenário do Tribunal que, por maioria, consolidou entendimento diverso[22].
O tema da restituição do ICMS que vem a ser pago a menor do que o valor presumido nas hipóteses de substituição tributária, que já contava com jurisprudência consolidada do STF, encontra-se novamente em discussão, ainda não concluída[23]. É interessante que, no início desse julgamento, ainda em 2003, a Corte discutiu expressamente acerca da possibilidade de alterar seu entendimento já consolidado, admitindo-se, como não poderia deixar de ser, a viabilidade da modificação[24].
Apenas mais um exemplo, ligeiramente diverso dos demais, por envolver a modificação, pelo STF, de jurisprudência consolidada do STJ. O Superior Tribunal de Justiça havia pacificado o entendimento de que o art. 56 da Lei nº 9.430/96, que revogara isenção prevista pelo art. 6º, II, da Lei Complementar nº 70/91, era inválido, mantendo assim a desoneração de COFINS para as sociedades prestadoras de serviço instituída pela lei complementar. Embora se houvesse consolidado a jurisprudência no sentido de que o tema seria decidido em última instância pelo STJ, a questão acabou por chegar ao STF[25]. O julgamento ainda não foi concluído no âmbito do Supremo Tribunal Federal, mas a maioria de seus Ministros já se manifestou em sentido diverso do pacificado pelo STJ, para considerar revogada, pela Lei nº 9.430/96, a isenção referida[26].
Como se vê, este último tema, assim como outros, vem assumindo uma importância cada vez maior. E nem poderia ser diferente; os Tribunais Superiores, conscientes da relevância de suas decisões, têm dado maior atenção à grave repercussão que as mudanças na sua jurisprudência causam na vida dos jurisdicionados. Assim, a questão não apenas inaugura um novo capítulo na história da segurança jurídica, como também demonstra o papel destacado dos Tribunais no Estado contemporâneo, recolocando a jurisprudência entre as principais fontes do Direito.
Conclusão
Afora os três temas resumidos acima, outros poderiam figurar na listagem que se acaba de apresentar. A importância recentemente assumida pelo Direito Constitucional alia-se ao generoso conjunto de direitos fundamentais e programas incorporados pela Carta e ao seu notório caráter compromissário para formar um enorme grupo de questões quase sempre riquíssimas, que hoje permeiam o trabalho de qualquer jurista. A verdade é que a Constituição – que já conquistou os tribunais – se expande para fora do mundo jurídico e alcança o debate público mais amplo, ganhando espaço no dia-a-dia das pessoas que não trabalham com o Direito.
Professora Adjunta de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Mestre e Doutora em Direito Público pela UERJ. Advogada no Rio de Janeiro
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