Algumas faces da justiça dentro do ordenamento jurídico brasileiro. Rawls e Boaventura Santos na Constituição Brasileira de 1998

logo Âmbito Jurídico

Resumo: O presente artigo trata da abordagem do conceito de justiça para os filósofos John Rawls e Boaventura de Sousa Santos. Pretende-se inserir suas ideias ao contexto contemporâneo, introduzindo como suas ideias podem ser vistas a partir do marco teórico da Constituição Federal de 1988. Assim, tem-se como objetivo demonstrar como as diferentes abordagens do conceito de “justiça” podem ser vistos e compreendidos no contexto social e jurídico atuais.[1]

Palavras-chave: Filosofia. Política. Contemporânea. Conceito. Justiça.

Abstract: The following article deals with the approach of the concept of “justice” to the philosophers John Rawls and Boaventura de Sousa Santos. It is intended to insert their ideas into the contemporary context, introducing how their ideas can be seen from the theoretical framework of the Federal Constitution of 1988. Thus, the objective is to demonstrate how the different approaches to the concept of "justice" can be seen and understood in the current social and legal contexts.

Key words: Philosophy. Politics. Contemporary. Concept. Justice.

Sumário: 1. Introdução. 2. Desenvolvimento.

Introdução

O artigo pretende, de forma didática, abordar o tema referente à conceituação de “justiça”, sob os vieses de dois filósofos, quais sejam John Rawls, estudioso da filosofia política contemporânea, autor da famosa obra “Teoria da Justiça”, e Boaventura de Sousa Santos, Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, cujos estudos e investigações abrangeram a compreensão da organização da sociedade brasileira, observando como a “justiça” encontra-se inserida no contexto democrático do Brasil.

Destarte, partindo-se do pensamento de como os filósofos enxergam a “justiça”, busca-se elaborar um ponto de convergência entre o sentido atribuído à palavra a partir do viés filosófico moderno e contemporâneo e como se encontra inserido na ótica constitucional do atual ordenamento jurídico, inaugurado com a promulgação da Constituição de 1988.

Texto

A Constituição de 1988, também chamada de Carta Cidadã, veio, no contexto da redemocratização, a inserir um vasto rol de novos direitos e princípios ao ordenamento jurídico brasileiro, em clara demonstração da importância dada à preservação dos direitos e liberdades individuais, em detrimento da censura, perseguição e limitação às liberdades antes perpetradas pelo regime ditatorial.

Nesse sentir, tem-se que “a redemocratização e o novo marco constitucional deram maior credibilidade ao uso da via judicial como alternativa para alcançar direitos”[2], de forma que o rol previsto no artigo 5º fosse protegido e, ao mesmo tempo, elevado a um patamar insuscetível de alteração ou supressão arbitrária pelo legislador. Assim, tem-se que o Judiciário brasileiro, como bem pontua Boaventura Santos, desde a década de 1980, vem adquirindo maior proeminência e protagonismo no cenário da “constitucionalização do direito ordinário como estratégia hermenêutica de um garantismo mais ousado dos direitos dos cidadãos”[3]. Nesse sentido, o autor consigna que o protagonismo do Judiciário vem se manifestando dentro de três campos, quais sejam: no garantismo de direitos, no controle da legalidade e dos abusos do poder, bem como na judicialização da política.

Dessa forma, pretende-se, brevemente, traçar uma linha entre o conteúdo garantista da Constituição Federal de 1988 no Brasil com a concepção de justiça criada por John Rawls no âmbito da Teoria da Justiça como Equidade

O filósofo norte-americano defende que existirá justiça quando se enxergar os cidadãos de forma igualitária, conferindo-lhes os mesmos direitos e liberdades básicas, tutelando-os a partir de um regime constitucional prévia e hipoteticamente estabelecido: ora, não é exatamente esse o caso do Brasil nos meados da última década do século passado?

Dessa perspectiva, tem-se que Rawls busca elaborar sua concepção de justiça dentro de um regime constitucional, de forma que os cidadãos adotem igualmente concepções sobre o sentido do justo. O autor defende, ademais, que a justiça, dentro da teoria da equidade deve ser complementada pelo “bem”, traduzido em cinco acepções, quais sejam: i) racionalidade; ii) bens primários; iii) concepções abrangentes; d) virtudes políticas, e v) sociedade política bem organizada[4]. Importante anotar que as ideias de “bem”, para o autor, devem ser políticas, ou seja, obedecer às restrições impostas pela “justiça”; assim como, as ideias de justiça devem respeitar os diferentes modos de vida[5].

O filósofo norte-americano adota a justiça aritmética[6] (igualitarismo levado ao extremo), defendendo que só há como se falar em justo ou injusto quando o regime constitucional enxergar seus cidadãos como iguais. No Brasil, é possível observar em julgamentos da Suprema Corte a adoção da concepção rawlsiana quando se analisa, v. g., a intervenção do Judiciário na proteção dada à união homoafetiva[7], partindo-se da igualdade conferida pela Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, cujo caput, dispõe:


“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…).”

Outro exemplo que se faz possível relacionar aos ensinamentos de Rawls, encontra-se na neutralidade processual defendida pelo autor[8] e que pode ser apontada no ordenamento jurídico brasileiro no artigo 93, inciso IX, da CF/88, porquanto se refere à neutralidade a que o magistrado está obrigado a observar durante a condução processual. Veja-se o teor do referido dispositivo:

“Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:(…)

IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;”

Citando-se, ainda, outros exemplos da busca pela neutralidade dentro da ordem jurídica brasileira, é possível apontar para a paridade de armas dentro do processo. Como anota o Prof. Vallisney, trata-se da “igualdade no processo difundindo a expressão paridade de armas ou igualdade de armas necessárias para o bom combate ou litigância processual entre adversários” de forma que “as partes, do início ao fim, tenham as mesmas condições, possibilidades e oportunidades para que possam obter uma decisão justa do órgão judicial[9]”. Nas palavras do Professor, uma decisão justa somente é possível quando se tratar os litigantes de forma igualitária, conferindo-lhes as mesmas armas processuais.

Ademais, é bom lembrar algumas novidades trazidas pelo Novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015) que, pretendendo conferir maior neutralidade ao processo, inovou ao introduzir de forma explícita ao processo brasileiro o sistema de precedentes, pilar dos sistemas jurídicos da common law. Ora, nada mais justo do que conferir, de forma vinculada, a casos análogos, decisões semelhantes. E, na mesma linha, consigna Boaventura Santos que “a tarefa fundamental do sistema judicial é garantir a certeza e a previsibilidade das relações jurídicas, clarificar e proteger os direitos de propriedade, exigir o cumprimento das obrigações contratuais etc.”. Por fim, aduz que “o sistema judicial é responsável por prestar um serviço equitativo, ágil e transparente[10]”.

Boaventura defende uma revolução democrática da justiça que hoje vigora no Brasil, sugerindo, dentre outras, a criação de novos mecanismos e novos protagonismos no acesso ao direito e à justiça; novas concepções de independência judicial e, por fim, uma relação de poder judicial mais transparente com o poder político e a mídia, e mais densa com os movimentos e organizações sociais[11]. Veja-se se não é plenamente possível dizer que há perfeita aderência entre o que sustenta Santos e o que defende Rawls a respeito da igualdade de direitos e liberdades aos cidadãos, bem como no que tange à neutralidade processual.

O filósofo brasileiro argumenta, todavia, que o acesso ao Poder Judiciário brasileiro ainda assusta aos mais desavisados, seja por sua estrutura pomposa, pelo vocabulário dissonante, pelo vestuário formal ou pela imponência de seus edifícios. Todavia, acredita-se que a tendência é que essa situação desapareça. Isso porque a Constituição de 1988, ao conferir, ao longo de todo seu texto, a mesma igualdade e liberdade aos cidadãos, abre espaço para sua inserção justa no âmbito da Justiça Brasileira. A propósito, veja-se o que dispõe o inciso LXXIV, do artigo 5º, in verbis:

“LXXIV – o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;”

Cumpre salientar que, a partir da edição do referido inciso, o Poder Constituinte Originário pretendeu conferir àqueles cujas condições não permitam o acesso pleno à Justiça, o benefício da assistência jurídica gratuita. Parte-se do pressuposto de que os cidadãos, sendo todos iguais e livres, podem e devem buscar a Justiça. Nesse caso, não poderíamos aplicar a lógica ralwsiana de que são todos absolutamente iguais (justiça aritmética), pois aí o Estado não poderia tratar alguns de forma diferenciada, como pretendeu com o benefício. Com efeito, é mais correto dizer que o Estado brasileiro, nesse ponto específico, adotou a teoria da justiça geométrica, que leva em consideração a proporcionalidade (distribuição de direitos e deveres, permitindo a existência de desigualdades)[12], de forma a conferir aos cidadãos uma igualdade material (igualdades na medida das desigualdades).

Por fim, não seria por demais ressaltar a dificuldade de, em se tratando de justiça, conferir-lhe uma só conceituação. Trata-se de uma ideia que traduz uma complexidade de expectativas que dificultam sua conceituação. Tem-se, portanto, que, independentemente da escolha que o leitor adotar a respeito do que é “justiça”, a meta precípua da atividade jurisdicional deve ser a busca pelo justo e, para isso, o magistrado deve formar seu convencimento pautando-se na doutrina e na teoria do direito, cujos objetivos devem ser a orientação do juiz nesse empreendimento.

 

Referências
BITTAR, Eduardo Carlos Bianca e ALMEIDA, Guilherme de Assis. Curso de Filosofia do Direito. 10. ed.. São Paulo: Atlas, 2012.
OLIVEIRA, Vallisney de Souza. Paridade de armas é necessária para um bom combate processual. Disponível em < http://www.conjur.com.br/2014-mai-15/vallisney-oliveira-paridade-armas-necessaria-bom-combate> . Acesso em 10.02.2017.
RAWLS, John. Justiça e democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2011.
 
Notas
[1] Trabalho orientado pela Profa. Lívia Gimenes Dias da Fonseca. Mestre e Doutora pela Universidade de Brasília. Professora Substituta da Universidade de Brasília. Leciona a disciplina de Filosofia do Direito

[2] Santos, 2011, p. 25

[3] Santos, 2011, p. 22

[4] Rawls, 2002, p. 294

[5] Rawls, 2002, p. 294

[6] Bittar e Almeida, 2012, p. 538

[7] Santos, 2011, p. 27

[8] Rawls, 2002, p. 307 – 309

[9] Vallisney, 2014, disponível em <http://www.conjur.com.br/2014-mai-15/vallisney-oliveira-paridade-armas-necessaria-bom-combate>

[10] Santos, 2011, p. 31

[11] Santos, 2011, p. 39

[12] Bittar e Almeida, 2012, p. 538


Informações Sobre o Autor

Daniela Pina Von Adamek

Servidora pública federal do Supremo Tribunal Federal – STF, lotada em Gabinete de Ministro desde 2014. Acadêmica de Direito na Universidade de Brasília- UnB