Resumo: A alienação fiduciária de bens imóveis, introduzida pela Lei 9.514 de 20.11.1997 e alterada pela Lei n 10.931/04, estabelece uma propriedade resolúvel, instituindo uma modalidade de direito real sobre imóvel com o objetivo de garantia. Trata-se de instituto jurídico de importante repercussão econômica e social, eis que se constitui na forma de garantia hodiernamente mais utilizada nos negócios imobiliários, mormente os de grande vulto, porquanto seja mais eficaz em garantir o crédito do credor fiduciário, e, por conseguinte, acarreta uma maior oferta de imóveis para aquisição por prestações em sistema de financiamento. Procurar-se-á analisar o panorama jurídico no qual está inserido esse importante instituto, de modo a traçar seu conceito, natureza e características, bem como a incidência ou não das diretrizes do Código de Defesa do Consumidor. Ademais, serão expostos seus desdobramentos no âmbito do sistema registral brasileiro, bem como o procedimento que envolve a execução extrajudicial no caso de inadimplemento, apontando a necessidade da possibilidade de se ter o seu controle no âmbito jurisdicional.
Palavras-chave: Alienação fiduciária. Propriedade. Sistema Registral. Execução. Consumidor.
Sumário: Introdução. 1. Conceito e características. 2. Repercussão no sistema registral de imóveis e execução extrajudicial. 3. Alienação fiduciária imobiliário e o Código de Defesa do Consumidor. Conclusão. Bibliografia.
Introdução
No presente artigo analisar-se-á o conceito e características da alienação fiduciária de bens imóveis, demonstrando o panorama legislativo no qual se encontra o referido institudo, de modo a traçar-lhe as particularidades e inovações produzidas.
Ademais, procuar-se-á dimensionar a alienação fiduciária imobiliária à luz das garantias constitucionais, delimitando de forma crítica os principais entendimentos doutrinários e jurisprudenciais a respeito do tema.
1 – Conceito e características
A alienação fiduciária de coisa imóvel tem o seu conceito previsto no artigo 22 da Lei 9.514/97, sendo o negócio jurídico por meio do qual o devedor, ou fiduciante, com o objetivo de garantia, pactua a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel.
Portanto, a propriedade fiduciária é modalidade de direito real sobre imóvel, sendo constituída mediante registro, no Cartório de Registro de Imóveis da circunscrição territorial a que corresponde o contrato que lhe serve de título (artigo 23, caput, da Lei 9.514/97).
A alienação fiduciária apresenta-se como a transferência da propriedade de um bem móvel ou imóvel do devedor ao credor para garantir o cumprimento de uma determinada obrigação. Trata-se de uma garantia para o crédito obtido para a aquisição de um bem. No caso, o credor toma o próprio bem em garantia, de sorte que o comprador, conquanto não possa transferi-lo a terceiros antes da quitação da dívida, dele pode usufruir. Destarte, trata-se de negócio jurídico com nítida finalidade assecuratória.
Deve-se entender a propriedade imóvel, objeto da alienação fiduciária, como a urbana ou rural edificada, ou simplesmente o lote ou gleba, naquilo que dispõe as legislações correspondentes, com existência negocial válida; ou seja, toda coisa que contenha possibilidade física, jurídica e econômica de ser alienada de forma integral ou parcial[1].
A alienação fiduciária é pactuada por meio de negócio jurídico de disposição condicional, ou seja, que se subordina a uma condição resolutiva, eis que a propriedade fiduciária cessa em favor do alienante (credor fiduciário), quando verificada a implementação da condição, não se exigindo, para tanto, nova declaração de vontade do adquirente ou do alienante[2]
No que se refere à alienação fiduciária de bens imóveis, comumente o adquirente do bem transfere a sua propriedade a um agente financeiro, pelo período que durar o financiamento. O artigo 38 da Lei 9.514/97 prevê que a forma de celebração contrato (negócio jurídico) pode se dar por instrumento público ou particular com efeitos de escritura pública.
Exige-se que o contrato, que serve de título ao negócio jurídico fiduciário de coisa imóvel, contenha: o valor do principal da dívida; o prazo e as condições de reposição do empréstimo ou do crédito do fiduciário; a taxa de juros e os encargos incidentes; a cláusula de constituição da propriedade fiduciária, com a descrição do imóvel objeto da alienação fiduciária e a indicação do título e modo de aquisição; a cláusula assegurando ao fiduciante, enquanto adimplente, a livre utilização, por sua conta e risco, do imóvel objeto da alienação fiduciária; a indicação para efeito de venda em público leilão, do valor do imóvel e dos critérios para a respectiva revisão e cláusula dispondo sobre lances do leilão para alienação do imóvel (artigos 24, I a VII, e 27 da Lei 9.514/97).
Para constituição da propriedade fiduciária de bens imóveis, faz-se necessário que o contrato seja levado a registro perante o cartório de registro de imóveis da respectiva circunscrição territorial (artigo 23, da Lei 9.514/97); desde que o contrato por meio do qual se instituiu a alienação fiduciária preencha os requisitos elencados acima (art. 24, da Lei 9.514/97), “omitido esse requisito ter-se-á apenas um direito de crédito, sem oponibilidade erga omnes e sem execução direta”[3]
Com a constituição da propriedade fiduciária, opera-se o desdobramento da posse, de modo que o devedor (fiduciante) torna-se possuidor direto e o credor (fiduciário) indireto da coisa imóvel.
Como asseverado acima, não se exige nova declaração de vontade para que a propriedade, uma vez verificada a condição resolutiva, seja consolidada na pessoa do adquirente. Isto é, o termo de quitação da dívida, conforme previsto de modo expresso no artigo 25, § 2º, da Lei 9.514/97, poderá ser levado diretamente ao registro imobiliário, a fim de cancelar a alienação fiduciária e consolidar, de forma plena, a propriedade do bem nas mãos do fiduciante (adquirente).
A Lei 9.514/97 consubstancia o que a jurisprudência já vinha admitindo: a possibilidade de alienação fiduciária de coisa imóvel (artigos 22 a 23), incidindo sobre imóvel concluído ou em construção, nos termos do artigo 51 da Lei 10.931/2004.
O artigo 22, § 1º, incisos I a IV, da Lei 9.514/97, com a redação da Lei 11.481/2007, estabelece que a alienação fiduciária poderá ter como objeto, além da propriedade plena: bens enfitêuticos, hipótese em que será exigido o pagamento do laudêmio, se houver consolidação do domínio útil do fiduciário; direito de uso especial para fins de moradia (artigo 1.225, XI, do Código Civil); direito real de uso (artigo 1.225, XII, do Código Civil), desde que suscetível de alienação e a propriedade fiduciária. Impende destacar que o artigo 22, § 2º, da Lei 9.514/97, com a alteração da Lei 11.481/2007, prevê que os direitos de garantias instituídos nas hipóteses de direito real de uso e de propriedade fiduciária ficarão limitados à duração da concessão ou direito de superfície, caso tenham sido transferidos por período determinado.
Pode alienar fiduciariamente bem imóvel em garantia qualquer pessoa natural ou jurídica (de direito público ou privado), não sendo, portanto, privativa das entidades que operem no Sistema Financeiro Imobiliário. Trata-se de constatação que se infere do § 1º do art. 22 da Lei 9.514/97 (com a redação da Lei n. 11.481/2007).
A popularidade da alienação fiduciária deve-se, também, pela consolidação, na jurisprudência brasileira, do entendimento acerca da ineficácia da hipoteca firmada entre incorporador e agente financeiro, especificamente em relação aos adquirentes do bem. O enunciado 308 da súmula do Superior Tribunal de Justiça protege os adquirentes de bens imóveis, ante a falta de repasse dos pagamentos aos financiadores da incorporação. Na alienação fiduciária, ao contrário, o vínculo jurídico, em regra, é celebrado diretamente pelos compradores, o que os impede de arguir a ineficácia do contrato[4].
Diante do exposto, demonstra-se que a Lei n. 4.728/65, com a modificação do Decreto-Lei n. 911/69 e da Lei n. 6.071/74, bem como a Lei n. 9514/97 (arts. 22 23) introduziram no sistema jurídico brasileiro a alienação fiduciária em garantia, com o mister de atender aos reclamo da política de crédito e do emprego de capitais em títulos e valores imobiliários, de modo a racionalizar as sociedades de investimentos, mobilizando recursos de capital disponível, aplicando-os de forma segura, com vistas a melhorar as operações de crédito e de financiar a aquisição de certos bens de consumo.
2 – Repercussão no sistema de Registro de Imóveis e Execução Extrajudicial
Como já assentado no item acima, os atos concernentes à alienação fiduciária de bens imóveis, desde a celebração do contrato até o cancelamento da propriedade fiduciária ou sua consolidação na pessoa do fiduciário, somente terão eficácia perante terceiros após o assentamento no Registro de Imóveis cuja circunscrição abranger a localidade do imóvel objeto do negócio, de modo a concretizar os princípios norteadores do sistema registral: publicidade, por meio da qual e assegura a validade e eficácia dos direitos perante terceiros estranhos ao negócio; continuidade, que impõe que haja uma cadeia de continuidade na titularidade do imóvel; prioridade, segundo o qual deve haver uma relação de preferência cronológica entre os assentamentos constantes no Registro, de modo que prevalecerá aquele que for primeiramente apresentado a registro[5].
Portanto, é pelo registro que se constitui a propriedade fiduciária (artigo 23 da Lei 9.514/97), de modo que os princípios do sistema registral traçam características essenciais para essa nova modalidade de direito real.
A partir desse panorama e princípios, tem-se que, primeiramente, à vista do contrato de alienação fiduciária, o Oficial do Registro efetivará o registro da transmissão fiduciária na matrícula do imóvel objeto da garantia (artigo 167, I, da Lei 6.015/73 – Lei de Registros Públicos); decorrido o prazo contratual, e tendo o devedor fiduciante pago a dívida, resolve-se a propriedade fiduciária, de modo que o Oficial averbará o seu cancelamento, desde que lhe seja apresentado o termo de quitação fornecido pelo credor fiduciário, com firma reconhecida (Lei 9.514/97, artigo. 25, § 2º e Lei 6.015/73, artigo 221, II), consolidando-se a propriedade – sob a forma plena – nas mãos do devedor fiduciante.
O §2º, do artigo 25, da Lei 9.514/97 estabelece prazo de 30 (trinta) dias, contados da data da liquidação, para que a autorização de cancelamento seja apresentada ao devedor fiduciante. Decorrido o prazo sem que o credor fiduciário tenha efetuado a entrega da autorização, estará este em mora creditoris, de sorte que responderá por multa penitencial no valor de meio por cento sobre o valor do contrato, por mês, ou pro die.
Acima se delimitou os desdobramentos que ocorrem no Registro de Imóveis com o adimplemento da obrigação principal que é garantida pela alienação fiduciária. Urge destacar os desdobramentos que ocorrem com o inadimplemento e mora.
Quando o devedor fiduciante deixa de cumprir a obrigação principal, no todo ou em parte, há o inadimplemento obrigacional, podendo levar a sua constituição em mora. Diante da impontualidade do devedor fiduciante em cumprir sua obrigação, emerge para o credor fiduciário a possibilidade de satisfazer seu crédito.
Infere-se do exposto no artigo 1.428 do Código Civil que é vedada a cláusula que permita que o credor fiduciário, uma vez caracterizado o inadimplemento, satisfaça seu crédito com a incorporação ao seu patrimônio do objeto da garantia.
A regra geral para constituição em mora, contida no artigo 397 do Código Civil, segunda a qual o inadimplemento constitui de pleno direito em mora o devedor, não é suficiente para fazer surgir o direito do credor fiduciário em ver a propriedade fiduciária consolidada em seu favor[6]. Isso se deve ao fato de que o artigo 26 da Lei 9.514/97 impõe a obrigatoriedade de o devedor fiduciante ser constituído em mora, incidindo a regra do parágrafo único, artigo 397, do Código Civil.
Impende destacar que no contrato de alienação fiduciária em garantia imobiliária deve conter a previsão do prazo necessário para a intimação do devedor fiduciante, nos termos do § 2º do artigo 26 da Lei 9.514/97. Com a intimação, o devedor fiduciante tem a faculdade de purgar a mora, convalidando-se o contrato. Do contrário, pode o credor fiduciário consolidar em seu favor a propriedade fiduciária, devendo proceder com a venda desta, de modo a aplicar o valor auferido na satisfação de seu crédito.
Consoante a regra do § 3º, do artigo 26, da Lei 9.514/97, a intimação deve ser feita de forma pessoal, ou seja, a sua ciência deve ser ao próprio devedor fiduciante. Trata-se de ato praticado pelo Oficial do Registro de Imóveis, mediante requerimento expresso do credor fiduciário, não podendo ser praticado de ofício.
Exige-se a intimação pessoal em razão da natureza da mora do devedor em questão, porquanto é ex persona, ou seja, exige o recebimento pessoal do devedor para que se caracterize, diferentemente do que ocorre com a mora ex re, que decorre do simples atraso do pagamento, nos termos da lei.
A intimação deve conter os elementos definidos no §1º, do art. 26, da Lei 9.514/97: i) valor das prestações vencidas e as que vencerem nos quinze dias subsequentes à data da intimação, dentro dos quais é possível a purgação da mora pelo devedor fiduciante; ii) juros convencionais, penalidades e outros encargos contratualmente estabelecidas, encargos legais; iii) despesas de cobrança e para a intimação do devedor fiduciante.
Caso haja a frustração da intimação pessoal, estabelece o § 4º, do artigo 26, da Lei 9.514/97 a previsão da intimação por edital, na hipótese de o devedor fiduciante, ou quem o represente, residir em lugar incerto e não sabido. Trata-se de circunstância que deve ser certificada pelo Oficial de Registro de Imóveis, de sorte que à vista desta certificação, pode o credor fiduciário requerer que haja a intimação por edital. Não se trata de ato que possa ser praticado de ofício pelo Registrador Imobiliário[7].
Ao devedor fiduciante constituído em mora abre-se a oportunidade de purga-la, convalidando-se, por conseguinte, o contrato de alienação fiduciária em garantia imobiliária, de modo que este siga seu curso normal, nos termos do §5º, do artigo 26, da Lei 9.514/97.
Tal purgação deverá, para produzir o efeito acima assentado, ser realizada no prazo de quinze dias, contados da data em que recebe a intimação. No caso, deverá o devedor fiduciante comparecer ao Registro de Imóveis competente e solicitar o depósito da importância que lhe é cobrada, nos termos do cálculo apresentado pelo próprio credor fiduciário. A importância paga será entregue ao credor pelo Oficial do Registro de Imóveis no prazo de três dias.
Na hipótese de não haver a purgação da mora pelo devedor fiduciante no prazo de quinze dias, o Oficial do Registro de Imóveis certificará o ocorrido ao credor fiduciário, para que este possa adotar as medidas necessárias para a consolidação da propriedade fiduciária em seu favor.
Urge destacar que todo o procedimento de intimação do devedor fiduciante, desde o requerimento para a intimação, a hipótese desta se dar por edital, a purgação ou não da mora e o encerramento do procedimento de intimação deverão ser lançados no protocolo, para a fixação dos prazos legais envolvidos no procedimento, que devem ser observados, sob pena de comprometer a consolidação e execução do contrato, por inobservância da forma legal. Obviamente, tais providências somente poderão ser efetivadas após o prévio registro da alienação fiduciária[8].
Decorrido o prazo da notificação sem a purgação da mora, o oficial registrador certificará o fato, surgindo para o credor fiduciário a possibilidade de exercer o direito na consolidação, para si, da propriedade fiduciária, sendo que tal consolidação não se efetiva de modo automático.
O credor fiduciário, decorridos três dias após o prazo de quinze dias para a purgação da mora, deverá requerer ao Oficial do Registro de Imóveis que realize a consolidação da propriedade; requerimento este que será protocolado, e instruído com prova do pagamento do imposto de transmissão inter vivos, bem como o comprovante de que a intimação não foi atendida pelo devedor fiduciante.
O Oficial de Registro de Imóveis irá averbar a consolidação da propriedade, certificando a não purgação da mora e a apresentação do recolhimento do imposto de transmissão.
Não obstante a consolidação da propriedade fiduciária torne o credor fiduciário o novo titular, desaparecendo a propriedade fiduciária resolúvel com escopo de garantia, este não a exercerá de forma plena e irrestrita. Não poderá, por exemplo, ficar com o bem em pagamento pela dívida, pois se encontra vinculado ao dever legal de promover a alienação do bem em leilão público para a satisfação de seu crédito, e, havendo acréscimo no valor da alienação para esta satisfação, terá obrigação de repassá-lo ao devedor, outrora fiduciante. O prazo para proceder com a alienação é de trinta dias, contados da data de registro da consolidação.
Diante do exposto, percebe-se a existência de um modelo de execução extrajudicial no âmbito da alienação fiduciária de bem imóvel, que se caracteriza como sendo forçada, já que se realizada por meio executivo sub-rogatório e independentemente da vontade do devedor, levando à expropriação do bem sobre o qual recai a responsabilidade executiva.
Trata-se de modelo que se diferencia da tutela jurisdicional executiva, cuja implementação se dá judicialmente, porquanto, na execução extrajudicial, os atos executivos (satisfativos) são praticados por agentes que não integram o Poder Judiciário, de sorte ser possível alcançar a satisfação do credor sem a participação do juiz, a quem se poderá recorrer em caso de titígio, sobretudo nos casos de apresentação defesas pelo devedor, e quando necessária o emprego de força física (imperium).[9]
A constitucionalidade da possibilidade da execução extrajudicial é tema controverso na doutrina brasileira. Aqui, não nos debruçaremos sobre todas as posições, pois não entendemos ser o escopo do presente artigo.
Parece-nos importante destacar que a constitucionalidade da referida execução somente poderá ser defendida na medida em que se reconheça a necessidade de que os atos nela praticados possam ter o condão de serem controlados pelo Poder Judiciário, como já assentado por Cândido Rangel Dinamarco[10].
A possibilidade de controle judicial posterior mostra-se indispensável para assegurar a garantia constitucional da inafastabilidade da jurisdição, que se dá à luz do acesso à justiça (art. 5, inciso XXV, da Constituição Federal). Portanto, tal controle, quando presente, deverá ser realizado de forma absoluta, fazendo avaliações, examinando requisitos de mora do devedor, levando em considerações as defesas apresentadas pelo devedor (executado), como as objeções de não executividade e as destinadas a evitar constrições judiciais, já que as atividades executivas (judiciais e extrajudiciais) somente podem prosseguir quando legítimas. “Restringir o âmbito das defesas do executado contra as execuções extrajudiciais é negar o fundamento pelo qual os tribunais afirmam sua legitimidade constitucional”[11].
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo já se posicionou a respeito da constitucionalidade da Lei n. 9.514/97, entendendo-a em consonância com o texto constitucional[12].
Pode-se recorrer ao controle jurisdicional no curso da execução extrajudicial da alienação fiduciária de bem imóveis sobretudo em dois momentos. Quando ocorrer a notificação para purgar a mora ou durante o procedimento perante o registro imobiliário destinado a tal notificação (artigo 26 da Lei 9.514/97), sendo lícito ao devedor fiduciante impugnar em juízo as exigências apresentadas pelo credor ou a higidez do procededimento. Posteriormente, sem olvidar da possibilidade de se discutir o próprio registro que haja sido feito na matrícula imobiliária (§ 7º do artigo 26 da Lei 9.514/97), poder-se-á discutir em juízo o valor da venda efetuada em leilão[13]. Ocorre que a defesa do devedor fiduciante em juízo contra os atos praticados por meio da execução extrajudicial deverá ser realizada por demanda cognitiva autônoma, que não será incidental, posto que a execução tramita fora do âmbito judicial.
Urge destacar que a simples propositura da ação não tem o condão de obstar o prosseguimento da execução extrajudicial, devendo ser tal suspensão buscada por meio de pedido de tutela provisória (urgência ou evidência). Aqui, impende aplicar, por identidade de razões, o estabelecido no § 1º do artigo 784 do Código de Processo Civil[14].
Unberto Bara Bresolin[15] destaca tendência jurisprudencial no sentido de exigir do devedor fiduciante que pretenter suspender a procedimento da execução extrajudicial que efetue, ainda que em consignação, o pagamento da quantia incontroversa[16]. Entretanto, em caráter excepcional, permite-se a suspensão do procedimento independentemente de pagamento ou depósito[17].
Malgrado a posição jurisprudencial acima pareça-nos razoável, na medida em que não se mostra em consonância com a boa-fé que deve nortear os negócios jurídicos que o devedor fiduciante utilize-se da relação processual para suspender o pagamento das parcelas incontroersas, não é possível que tal exigência se faça de ofício, ou seja, sem requerimento da parte contrária. Não há disposição legal que condicione a suspensividade da execução extrajudicial ao pagamento ou depósito das parcelas incontroversas.
Pelo princício da congruência (adstrição), que é derivado do princípio dispositivo, o juiz deverá ficar limitado ou adstrito ao pedido da parte, de modo que apreciará e julgará a lide nos termos em que foi proposta, sendo-lhe vedado conhecer de questões não suscitadas pelos litigantes (artigos 2º e 141 do Código de Processo Civil)[18].
3 – Alienação fiduciária imobiliária e o Código de Defesa do Consumidor
O caput do artigo 53 do Código de Defesa do Consumidor considera nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações no caso de inadimplemento, tanto nos contratos de compra e venda de imóveis, quanto nas alienações fiduciáris em garantia.
Mostra-se controvertida na doutrina a possibilidade de se aplicar a referida disposição do Código de Defesa do Comsumidor aos contratos de financiamento imobiliário garantidos por alienação fiduciária, os quais se encontram regulados pela Lei n. 9.514/97.
Os preceitos e valores contidos no Código de Defesa do Consumidor constituem-se como de ordem pública e de patente relevância social, sendo, também, consubstanciadores das diretrizes constitucionais acerca da defesa do consumidor na ordem econômica (artigo 170, inciso V, da Constituição Federal).
Outrossim, inobstante a Lei n. 9.514/97 seja posterior ao Código de Defesa do Consumidor, não houve a criação de instituto jurídico novo, eis que a alienação fiduciária de bens imóveis era figura conhecida e admitida mesmo antes da promulgação da referida lei.
Portanto, não nos parece haver dúvidas acerca da possibilidade de se aplicar a legislação consumeirista no âmbito na alienação fiduciária de bens imóveis, mormente para que se evite desequilíbrio entre as partes em tais negócios. Assim, eventual cláusula que institua a perda de todo o valor pago em favor do credor, em contrato de alienação fiduciária, é nula de pleno direito nos termos do artigo 53 do Código de Defesa do Consumidor.
Ademais, o enunciado 297 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça estabelece que o Código de Defesa do Consumidor é aplicado às instituições financeiras, de sorte que se aplica à alienação fiduciária na sua feição mais comum: garantia de contratos bancários. O contrato de alienação fiduciária é acessório de um contrato principal, usualmente de mútuo, em que o valor das parcelas pagas são voltadas a saldar um empréstimo.
Impende destacar que o principal proplema referente à aplicação do Còdigo de Defesa do Consumidor à alienação fiduciária reside quando, no procedimento de satisfação do crédito estabelecido nos atigos 26 e 27 da Lei 9.517/97, ocorra a consolidação da propriedade plena em nome do credor fiduciário. Isso se deve ao fato de que, quando o imóvel é levado a leilão, se deve considerar o valor da dívida, abatendo-se o valor já pago pelo fiduciante. Sendo o bem arrematado por valor maior, obrigado estará o credor fiduciário de entregar a quantia ao devedor fiduciante.
Parace-nos que a inserção, a priori, no contrato de alienação fiduciária de cláusula que estabeleça a perda total do valor das parcelas pagas pelo devedor fiduciante, é nula de pleno direito, eis que afronta o artigo 53 da legislação protetiva do consumidor. Por outro lado, não se mostra razoável que o fiduciante faça uso do bem por certo tempo, e, após se tornar inadimplente, seja lhe restituído todo o valor referente às parcelas anteriormente pagas.
Por iguais razões, não está em consonância com o equilíbrio que se espera dos negócios jurídicos, que o credor fiduciário tenha, uma vez frustrado os leilões, consolidada a propriedade plena do bem em sua esfera jurídica, e, ainda, embolsar todo o valor já pago pelo devedor fiduciante.
Faz-se necessária que a solução do empasse se dê casuisticamente, levando-se em conta o princípio do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, que visa, em última análise, garantir o equilíbrio inicialmente presente no momento da pactuação, bem como a cláusula geral presente no Código Civil, segunda a qual é vedado que alguém aufira enriquecimento às expensas de outrem, sem casua jurídica para tanto (artigo 884 do Código Civil). Trata-se medida que se espera para viabilizar a justiça contratual.
CONCLUSÃO
O presente artigo procurou traçar o panorama jurídico do instituto da alienação fiduciária de bens imóveis, apontando-lhe o conceito, características, peculiaridades no âmbito registral e de satisfação, bem como a sua ressonância no Código de Defesa do Consumidor.
Trata-se de instituto que se mostra de grande repercussão social e econômica, de modo que sua interpretação e aplicação devem estar, ainda mais, dimensionadas à luz da principiologia constitucional, mormente na possibilidade do exercício do contraditório e da ampla defesa pelo fiduciante, bem como a consubstancição da defesa do consumidor como princípio norteador da ordem econômica.
Ademais, dedende-se que o contrato de alienação fiduciária, conquanto acessório, deve estar pautado no equílibrio econômico-financeiro que decorre da justiça que se espera das disposições e efeitos da relação contratual, que não mais se baseia meramente na ideologia de cunho individualista, bem como que seus efeitos não contrariem a cláusula geral que veda o enriquecimento ilícito.
Portanto, a alienação fiduciária em garantia de bem imóvel vem se mostranto cada vez importante nos negócios imobiliários, sobretudo os de grande vulto, substituindo a garatia hipotecária, cada vez mais em desuso. Trata-se de importante instituto para o desenvolvimento do setor imobiliário, que deve estar constantemente dimensionada pelas diretrizes constitucionais.
Informações Sobre o Autor
Rubens Sampaio Carnelós
Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo FDSBC. Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUCSP. Advogado