Alterações do Projeto de Código Penal previstas para o crime de furto: uma abordagem crítica

1-INTRODUÇÃO


Versa recente notícia divulgada pelo site do Superior Tribunal de Justiça [1] sobre alterações recentes projetadas para novo tratamento a ser dado ao crime de furto. Há mudanças previstas para a ação penal, que passaria ser pública condicionada; redução da pena “in abstrato”, a fim de possibilitar a suspensão condicional do processo; manutenção do furto de energia elétrica e previsão do furto de água tarifada, gás, sinal de TV a Cabo e internet, além de quaisquer outros que tenham relevância econômica. Também passa a haver previsão do furto de documentos pessoais. Vislumbra-se ainda a previsão de majoração do furto quando este for perpetrado com uso de explosivos.  Finalmente é prevista a extinção de punibilidade se o agente repara o dano ou devolve a coisa até a sentença de primeiro grau, desde que não se trate de bem público.


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Tem o presente trabalho o intento de tecer alguns breves comentários acerca dessas mudanças projetadas com uma visão crítica a fomentar o debate sobre o tema.


2-AS ALTERAÇÕES PROJETADAS SOB UMA ANÁLISE CRÍTICA


A legislação projetava exsurge com várias novidades, as quais se procurará comentar separadamente:


a)A alteração da ação penal, hoje pública incondicionada, para pública condicionada à representação do ofendido é um passo relevante de racionalização do Direito Penal Brasileiro. Na verdade, não somente no caso do furto, mas em se tratando de qualquer crime patrimonial não violento, a ação penal deveria ser mesmo pública condicionada e não incondicionada. É claro que nos crimes patrimoniais praticados mediante violência ou grave ameaça não se pode abrir mão da ação penal pública incondicionada, considerando que se tratam de crimes complexos, onde não somente o patrimônio é tutelado, mas também bens jurídicos tais como a liberdade individual, a integridade física e até a vida das pessoas (v.g. roubo, extorsão, extorsão mediante sequestro). No entanto, nos crimes patrimoniais não violentos, que são crimes simples, onde somente um bem jurídico é tutelado, no caso o patrimônio, a melhor opção de política criminal é mesmo a adoção da ação penal pública condicionada, como já vem sendo indicado pela doutrina há tempos.


Na realidade no Brasil a discussão remonta ao tempo do Império quando no episódio do famoso “Furto das Jóias da Coroa”, em que um funcionário de confiança e especial amizade do Imperador Dom Pedro II, furtou jóias da coroa brasileira. Na época, com a descoberta da autoria pelas Autoridades Policiais, o Imperador resolveu abrir mão do patrimônio, dando seu consentimento à subtração, sendo o caso encerrado sem punição. Isso gerou grande burburinho e fomentou a discussão sobre a relevância ou não do consentimento do ofendido para a subtração no crime de furto. [2]


 É sabido que há crimes onde o consentimento do ofendido afasta a tipicidade, sendo sua oposição descrita no tipo penal como claramente relevante para a configuração delitiva. São exemplos a violação de domicílio (artigo 150, CP), o estupro (artigo 213, CP), o constrangimento ilegal (artigo 146, CP), dentre outros. No caso do furto e outros crimes patrimoniais não violentos esse consentimento não vem expresso nos tipos penais, mas deve ser objeto de consideração. Isso porque o patrimônio é um bem jurídico disponível, de modo que se seu titular dele abre mão espontaneamente, não há que se considerar a existência de lesão.


 Contudo, há sérias controvérsias a respeito da relevância do consentimento do ofendido para a descaracterização do furto e outros crimes patrimoniais não violentos. E certamente um dos motivos para isso é a natureza incondicionada da ação penal. Ora, mesmo que a vítima consinta na subtração, sendo a ação incondicionada, deverá a Autoridade Policial agir de ofício, assim como o Promotor e o Juiz. Portanto, para alguns, tendo em vista a natureza incondicionada da ação penal, o consentimento do ofendido na subtração seria irrelevante. Esse pensamento não parece ser o mais correto, pois que, malgrado a providencial vinda do Emérito Professor Enrico Túlio Liebman (1903 – 1986) para o Brasil, fixando residência em São Paulo em 1939 e desenvolvendo uma importantíssima Escola de Direito Processual, que superou a visão “imanentista” do processo e direito material, desenvolvendo e aperfeiçoando a teoria “autonômica” do processo e da ação, [3] parece que até hoje há muitos que insistem em confundir direito material com processo ou direito de ação.


 É bom lembrar neste ponto que a teoria imanentista confundia o direito de ação com o direito material. Nesse pensamento somente teria direito de ação aquele que tivesse o direito material. Isso é facilmente constatável como falso, pois se realmente assim fosse, toda ação (penal, civil, trabalhista) intentada seria julgada procedente, o que obviamente não ocorre. Daí surge a crítica formulada pela teoria autonômica, em que direito de ação e direito material são claramente distinguidos e indicados como independentes. Por isso é que é possível que alguém ingresse com uma ação de cobrança ou uma ação penal e o suposto devedor não tenha que pagar nada, bem como que o réu da ação penal seja absolvido. Isso porque o direito de ação independe do direito material. Muitas vezes há direito de ação, embora o direito material não esteja presente.


 Dessa forma, afirmar que o consentimento do ofendido não desfigura o furto porque a ação penal é pública incondicionada é um retrocesso atávico ao imanentismo, voltando-se a confundir direito material com processo ou ação. Não é na análise da modalidade de ação penal que se vai verificar a existência ou não do crime e sim no estudo do caso concreto e da subsunção objetiva e subjetiva necessária à configuração do tipo penal. Se o patrimônio é bem jurídico disponível e a suposta vítima consente na subtração, na verdade não há propriamente subtração, de modo que não há crime de furto.


 E neste ponto exato deve-se notar um contato entre a ação penal e o direito material. Aliás, foi um dos méritos do já mencionado Liebman, a promoção do equilíbrio entre uma “autonomia desenfreada” e os “excessos de vinculação” advogados respectivamente por autonomistas e imanentistas. [4] O direito de ação não se confunde com o direito material, mas eles têm realmente pontos de contato que não podem ser negados. Neste caso, por exemplo, se não há fato criminoso (direito material) devido ao consentimento da suposta vítima, não há se falar em direito de ação ou que se considerar a questão da ação penal pública incondicionada, pois que desaparecerão consequentemente condições gerais desta, tais como o interesse de agir e a justa causa.


 Mas, note-se, toda essa balburdia sobre a relevância ou não do consentimento do ofendido em crimes patrimoniais não violentos é possibilitada, ao menos em parte, pela famigerada ação penal pública incondicionada prevista indevidamente nesses casos. A verdade é que infelizmente nosso Código Penal é erigido (a exemplo de outros países) [5] sobre uma matriz caracteristicamente patrimonialista. Dessa forma as lesões patrimoniais são tratadas muitas vezes com mais rigor do que quando se versa sobre atentados a outros bens jurídicos mais relevantes, tais como integridade física, honra e até mesmo a vida!


 Nesse passo é que mesmo crimes patrimoniais não violentos vêm com previsão de ação penal pública incondicionada, recebendo o mesmo tratamento de bens jurídicos indisponíveis, quando não o são. Os crimes contra a honra são, em regra, de ação privada ou, quando muito de ação pública condicionada e somente muito excepcionalmente incondicionada. Ora, o que deve valer mais para um homem? Sua honra ou seu patrimônio? A resposta não é difícil, mas a honra, que é sim um bem jurídico disponível, pois qualquer um pode chafurdar-se na imoralidade o quanto quiser, além de ter previsões de penas bem menores do que os crimes patrimoniais, também é raramente de ação pública incondicionada, enquanto que crimes como o furto são de ação penal pública incondicionada, como se fossem relativos a bens indisponíveis.


 Em suma, já não é sem tempo que o legislador promove essa virtuosa alteração. Ela deixará inclusive bem mais clara a questão do consentimento da vítima como descaracterizador do crime de furto ou outros delitos patrimoniais não violentos. Dará à defesa desse bem jurídico um viés adequado à sua característica de disponibilidade e propiciará uma racionalização do Código Penal Brasileiro no que tange ao tratamento adequado do bem jurídico patrimônio, que não pode ser sobreposto a outros de maior relevância.


b)Redução da pena de reclusão, de 1 a 4 anos para 6 meses a 3 anos a fim de possibilitar a suspensão condicional do processo. Essa alteração projetada é inadequada e desnecessária.  Explico: se a intenção da redução foi viabilizar a suspensão condicional do processo, prevista no artigo 89 da Lei 9099/95, então é totalmente desnecessária a redução da pena mínima de 1 ano para 6 meses. Isso porque estabelece referido dispositivo que cabe a suspensão condicional do processo para todo crime cuja pena mínima não supere 1 ano. Assim sendo, o furto simples já permite a suspensão condicional, não havendo justificativa plausível para a alteração. Além de inútil a redução é inadequada, pois que certamente não há no seio social qualquer intento para a diminuição da reprimenda imposta ao crime de furto. Além disso, se a mudança tem em vista a aplicação da suspensão condicional do processo, mesmo em havendo aumento de pena, por exemplo, no caso do furto noturno, em que hoje não seria cabível o benefício, pois que com o aumento seria ultrapassado o patamar máximo de um ano, isso também é altamente inadequado. Se o legislador entende que em certos furtos deve haver aumento da reprimenda, é porque essa conduta deve ser punida com maior rigor, sendo contraditório proceder a uma reforma para possibilitar um benefício em casos nos quais se pretende dar um tratamento mais rigoroso ao infrator. A descarcerização pode ser um objetivo nobre, mas tal qual a punição, não deve ser levada a efeito a qualquer preço e sem a devida proporcionalidade e razoabilidade. Da mesma forma que o rigor exagerado é contraproducente, também é deletério o laxismo penal.


c)Manutenção do furto de energia elétrica e previsão do furto de água tarifada, gás, sinal de TV a Cabo e internet, além de quaisquer outros que tenham relevância econômica. A manutenção da previsão do furto de energia elétrica é salutar. Embora possa até parecer desnecessária atualmente, com a alteração promovida no Código Civil de 2002, em seu artigo 83, I, da equiparação das energias de valor econômico a “coisas móveis”, é interessante deixar bem clara a opção do legislador penal a fim de evitar eventuais controvérsias doutrinário – jurisprudenciais. Afinal, sabe-se que mesmo os físicos têm dificuldades para definir o que seja “energia”. Se ela é passível de furto é porque há a previsão expressa no Código Penal. Fora isso restaria a dúvida. Seria a energia uma coisa móvel? O Código Civil de 2002 diz agora que sim, mas será que o ditame civil poderia ser estendido à ordem penal? Tudo isso fica superado pela manutenção da opção explícita do legislador pelo furto de energia elétrica.


 Também passa a ser previsto o furto de água tarifada, ou seja, aquela fornecida pelas empresas prestadoras de serviço de água e esgoto (v.g. SABESP). Entende-se que a água, diversamente da energia é claramente e induvidosamente uma “coisa móvel” e, portanto, passível de subtração. A previsão parece desnecessária, mas em nada prejudica. O mesmo se pode dizer do gás, seja aquele armazenado em botijões ou tubos, seja o encanado e tarifado. Sem dúvida o gás é uma coisa móvel. Quanto aos sinais de TV a Cabo, TV por assinatura, Internet, pulsos telefônicos, pode-se dizer que realmente jamais poderiam ser considerados como “coisas móveis”. Na verdade, sequer como “coisas”. Então, se o legislador pretende que as condutas de obtenção desses sinais e uso desses pulsos fraudulentamente sejam configuradas como furto, realmente só pode levar isso a efeito mediante uma equiparação legal, criando uma espécie de ficção. Quanto a isso se entende também totalmente desnecessária essa atuação, vez que tais condutas configuram hoje certamente e continuariam configurando se não houvesse a alteração legal, o crime de Estelionato (artigo 171, CP).


 Fez bem também a legislação projetada em manter a fórmula final que faz referência a outras energias de valor econômico, possibilitando com isso aquela chamada “interpretação progressiva, adaptativa ou evolutiva” em que a lei consegue autoatualizar-se com o tempo e as mudanças sociais. O desenvolvimento de novas fontes de energia e sua exploração econômica não impedirá a tipificação penal daqueles que atuarem de forma fraudulenta e lesiva ao patrimônio alheio.


d)Furto de documentos pessoais – Os documentos pessoais (RG, CPF, CNH, Certidão de Casamento, Certidão de Nascimento etc.) não são hoje objeto material de furto, pois que, apesar de constituírem coisas móveis, não têm valor econômico, o que é imprescindível para configuração de qualquer ilícito de natureza patrimonial. Sua inclusão na letra da lei tornaria a conduta equiparada ao furto. No entanto, novamente vislumbra-se uma mudança absolutamente prescindível, já que a subtração de documentos pode perfeitamente ser tipificada no crime de “Supressão de documentos”, previsto no artigo 305, CP. A situação atual é bem mais desejável, vez que evita desvirtuar os crimes patrimoniais ali introduzindo objetos que, na verdade, não representam valores patrimoniais ou financeiros.


e)Aumento de pena para o furto com emprego de explosivo – tendo em vista a reiteração de condutas de furtos, especialmente de Caixas Eletrônicos, com uso de explosivos e consequente perigo à incolumidade pública aliado à lesão patrimonial, essa majorante é bastante bem vinda e deveria ser o mais rigorosa possível. A nosso ver deveria determinar a aplicação da pena em dobro e não somente um aumento de menor relevância. Os danos e o perigo às pessoas ensejados por essa espécie de conduta estão a merecer uma reação à altura por parte da legislação penal.


f)A extinção de punibilidade se o agente repara o dano ou devolve a coisa até a sentença de primeiro grau, desde que não se trate de bem público. Essa é realmente uma alteração bem vinda porque tornará isonômico o tratamento dado a dois crimes patrimoniais não violentos, o que não ocorre atualmente. A referência é ao crime de furto em comparação com o crime de estelionato. Ocorre que no estelionato, se o agente repara o dano, especialmente no caso do estelionato por meio de cheque sem fundos, se ele paga o valor até antes do recebimento da denúncia, é beneficiado com a extinção de punibilidade, considerando-se inexistência de justa causa para a ação penal. Isso está consignado na Súmula 554, STF. Já no furto, se o agente repara o dano ou devolve a coisa antes do recebimento da denúncia somente é beneficiado pelo chamado “Arrependimento Posterior” que implica só em uma diminuição de pena (artigo 16, CP). Não há motivo plausível para esse tratamento diferenciado, de modo que a previsão legal de extinção de punibilidade pela reparação do dano ou devolução da coisa até a sentença para o furto promove, ainda que tardiamente, um necessário ajuste. Atente-se que a reforma deve estender também ao Estelionato a possibilidade de extinção de punibilidade pela reparação do dano ou devolução da coisa até a sentença e não até somente o recebimento da denúncia conforme consta da Súmula 554, STF. Caso contrário, o estelionatário que até hoje era privilegiado em relação ao furtador, passará a ser prejudicado, o que também não se justifica. A reforma precisa ser inspirada por uma visão global e sistemática.


3-CONCLUSÃO


Como exposto há boas iniciativas de reforma na legislação projetada para o crime de furto, mas também há alterações inócuas e até mesmo indesejáveis sobre as quais é necessária uma melhor reflexão. Espera-se que o legislador atue com o imprescindível equilíbrio e sabedoria a fim de que realmente se possa formular um novo Código Penal que satisfaça os anseios da população e obedeça aos critérios da dogmática jurídico penal com racionalidade e razoabilidade.


 


Referências:

BRASIL – Superior Tribunal de Justiça – Novo Código Penal: processo por furto dependerá de representação da vítima, 20 de abril de 2012 – Disponível em: http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=105449&utm_source=agencia&utm_medium=email&utm_campaign=pushsco Acesso em: 23 de abril 2012.

LOPES, Mauricio Antonio Ribeiro. O furto das jóias da coroa ou impunidade X irrelevância. Boletim IBCCrim.  n. 76, p. 10 – 11,  mar., 1999.

MAIA FILHO, Napoleão Nunes. Cabeça de Juiz. Fortaleza: Imprece, 2012.

 

Notas:

[1] BRASIL – Superior Tribunal de Justiça – Novo Código Penal: processo por furto dependerá de representação da vítima, 20 de abril de 2012 – Disponível em: http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=105449&utm_source=agencia&utm_medium=email&utm_campaign=pushsco Acesso em: 23 de abril 2012. 

[2] Cf. LOPES, Mauricio Antonio Ribeiro. O furto das jóias da coroa ou impunidade X irrelevância. Boletim IBCCrim.  n. 76, mar., 1999, p. 10 – 11.

[3] MAIA FILHO, Napoleão Nunes. Cabeça de Juiz. Fortaleza: Imprece, 2012, p. 79.

[4] Op. Cit., p. 79.

[5] Tenho verdadeiro asco por aqueles que costumam fazer críticas a mazelas brasileiras como se fossem males que somente aqui existem (v.g. corrupção, leis ruins, justiça lenta etc.). A característica patrimonialista da legislação em geral, não somente penal, está presente em quase todo o mundo capitalista, não sendo apanágio brasileiro.


Informações Sobre o Autor

Eduardo Luiz Santos Cabette

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Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.


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