Análise crítica sobre o instrumento da recomendação do ministério público ao Poder Executivo Federal

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Resumo: O presente trabalho faz análise crítica ao mecanismo da recomendação como instrumento de atuação extrajudicial utilizado pelo Ministério Público, o qual, não obstante a ausência de força coercitiva ao Poder Público, tem o objetivo de conformar a conduta do agente com os direitos constitucionalmente assegurados.


Palavras-chave: Recomendação. Ministério Público. Poder Executivo Federal. Direitos fundamentais. Ponderação.


Sumário. 1. Introdução. 2. Legitimação do Ministério Público na defesa do patrimônio público. 3. Da atuação extrajudicial do Ministério Público por meio de recomendações. 3.1. Recomendação. Significado e quadro normativo. 3.2. Recomendação ministerial e ponderação de princípios constitucionais – caso concreto em que o destinatário da recomendação foi o Incra como órgão executor da Política Nacional de Reforma Agrária. 3.3) Recomendação ministerial e ausência de conhecimento técnico sobre a execução da política pública de distribuição de cestas básicas a acampados. 4. Considerações finais. 5. Referências Bibliográficas.


1. Introdução


No presente trabalho trataremos da atuação judicial e extrajudicial do Ministério Público na defesa do patrimônio público, com enfoque para sua atuação extrajudicial por meio do mecanismo da recomendação, que, não obstante a ausência de força coercitiva ao Poder Público, tem o objetivo de conformar a conduta do agente público com os direitos constitucionalmente assegurados.


Ocorre que é comum na prática vivenciada pela Administração Pública a destinação de recomendações ministeriais que não sopesam a existência concomitante de diversos direitos fundamentais, de forma que o seu atendimento pelo Poder Público terminaria por aniquilar determinados direitos fundamentais em detrimento de outros, atraindo ofensa a diversos princípios de hermenêutica constitucional, como o da unidade da Constituição, o da concordância prática ou da harmonização e o da proporcionalidade ou razoabilidade.


De outro ângulo, a falta de conhecimento por parte do Ministério Público da técnica escolhida pela Administração para execução de determinada política pública torna muitas vezes inexeqüível o conteúdo da recomendação por seu destinatário.


O artigo tem o objetivo de trazer reflexão e crítica sobre alguns efeitos para a Administração Pública de recomendações ministeriais que não observam o conteúdo acima brevemente relatado.


2. Legitimação do Ministério Público na defesa do patrimônio público


Prescreve o art. 127 da Constituição Federal que “O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.”


No tocante à proteção do patrimônio público, dispõe o art. 129, III, da CF/88 que, dentre as funções institucionais do Ministério Público, está a de “promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.”


A Lei Orgânica Nacional do Ministério Público – Lei nº 8.625, de 12/2/1993, que regula a organização da instituição nos Estados, também previu a função, regulamentando o normativo constitucional. Assim, estabelece o art. 25, inciso IV, que a ação civil pública será ajuizada:


a) para a proteção, prevenção e reparação dos danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, e a outros interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis e homogêneos;


b) para a anulação ou declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio público ou à moralidade administrativa do Estado ou de Município, de suas administrações indiretas ou fundacionais ou de entidades privadas de que participem;”


A Lei Complementar nº 75, de 20/5/1993, que dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União, também contemplou a ação civil pública. O art. 6º, inc. VII, confere à instituição a legitimidade de propositura de ação civil pública para:


a) a proteção dos direitos constitucionais;


b) a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente, dos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;


c) a proteção dos interesses individuais indisponíveis, difusos e coletivos, relativos às comunidades indígenas, à família, à criança, ao adolescente, ao idoso, às minorias étnicas e ao consumidor;


d) outros interesses individuais indisponíveis, homogêneos, sociais, difusos e coletivos;”


Pode-se afirmar que os interesses coletivos e difusos são interesses sociais e, portanto, naturalmente indisponíveis. Sociais, porque atingem parcelas da sociedade, e indisponíveis porque não podem ser renunciados pelo grupo social ou por seus integrantes. Com efeito, é impossível que algum dos integrantes do grupo possa dispor de parcela do direito geral que lhe é atribuída. Se o direito geral é indivisível, não haverá como admitir a disponibilidade do que não se conhece. Por outro lado, quando for deferida a tutela de tais interesses, serão atingidos todos os componentes do grupo, ainda que eventualmente alguns deles possam discordar da tutela ou desinteressar-se dela.


Por outro lado, no tocante aos interesses individuais, percebe-se que a Constituição é muito clara ao limitar a tutela do Ministério Público apenas aos individuais indisponíveis (art. 127). Emana daí que não está dentro das atribuições da instituição a defesa de interesses individuais disponíveis, vale dizer, daqueles interesses cuja tutela cada indivíduo tem aptidão de dispensar. O mandamento constitucional, em conseqüência, veda que o Ministério Público substitua a intenção volitiva do indivíduo no que toca a direitos dos quais tenha a total disponibilidade. Isso porque a Instituição somente pode predispor-se à defesa do que é social ou do que é individual fora da disposição do titular; o que é exclusivamente do titular, e de seu único interesse, está dentro apenas da sua própria esfera de vontade, não cabendo a nenhuma outra pessoa ou órgão substituí-la.[1]


3. Da atuação extrajudicial do Ministério Público por meio de recomendações


Além da esfera judicial, o Ministério Público atua extrajudicialmente, sobretudo na defesa de direitos difusos, como meio ambiente e segurança pública, por meio de instrumentos como inquéritos civis públicos,recomendações, termos de ajustamento de conduta e audiências públicas.


É sobre a sua atuação extrajudicial, mais precisamente no tocante às recomendações ao Poder Público, que iremos tratar nesse trabalho, elencando caso concreto no qual a recomendação referia-se a ajustes na execução da Política Nacional de Reforma Agrária.


A análise do ato de recomendação será feita sob o prisma da ponderação de princípios e sob o conhecimento da técnica da execução da política pública, haja vista que, deficiente qualquer um desses aspectos, tornar-se-á inexeqüível pelos órgãos do Poder Executivo.


3.1. Recomendação – significado e quadro normativo


Um dos fortes mecanismos de atuação extrajudicial do Ministério Público, que decorre da Constituição e está previsto expressamente no plano infraconstitucional, é o mecanismo da recomendação, o qual poderá ser dirigido ao Poder Público em geral, a fim de que sejam respeitados os direitos assegurados constitucionalmente.


Nesse sentido, o art. 6º, inciso XX, da LC nº 75/93 estabelece que:


Art. 6º Compete ao Ministério Público da União:


 XX – expedir recomendações, visando à melhoria dos serviços públicos e de relevância pública, bem como ao respeito, aos interesses, direitos e bens cuja defesa lhe cabe promover, fixando prazo razoável para a adoção das providências cabíveis.”


O membro do Ministério Público, quando entender cabível, poderá emitir uma recomendação, que, no entanto, não tem caráter obrigatório para o agente público[2]. Contudo, se não for cumprida, o representante do Ministério Público poderá tomar as medidas administrativas e judiciais que entender pertinentes para adequação da conduta do agente (ação civil pública, ação de improbidade administrativa, etc).


A recomendação também está prevista na Lei Orgânica do Ministério Público (Lei nº 8.629/95), que dispõe em seu artigo 27, inc. I e parágrafo único, inciso IV:


Art. 27 — Cabe ao Ministério Público exercer a defesa dos direitos assegurados nas Constituições Federal e Estadual, sempre que se cuidar de garantir-lhe o respeito:


I — pelos poderes estaduais e municipais; (…)


Parágrafo único. No exercício das atribuições a que se refere este artigo, cabe ao Ministério Público, entre outras providências: (…)


IV — promover audiências públicas e emitir relatórios, anual ou especiais, e recomendações dirigidas aos órgãos e entidades mencionadas no “caput” deste artigo, requisitando ao destinatário sua divulgação adequada e imediata, assim como resposta por escrito. (Sublinhou-se).


O objeto da recomendação pode ser desde a adoção de medidas que estão sob o juízo discricionário da Administração Pública até medidas que só podem ser determinadas por força de executoriedade do Poder Judiciário. Caberá ao recomendado, a seu critério, acatar ou ignorar a medida, não incorrendo em ilegalidade caso opte por se manter inerte, devendo, entretanto, providenciar a imediata e adequada divulgação da recomendação, bem como emitir uma resposta por escrito ao Ministério Público, caso tenha havido alguma requisição nesse sentido por parte do membro do parquet[3]


Entende Hugo Nigro Mazzilli que:


“Embora as recomendações, em sentido estrito, não tenham caráter vinculante, isto é, a autoridade destinatária não esteja juridicamente obrigada a seguir as propostas a ela encaminhadas, na verdade têm grande força moral, e até mesmo implicações práticas. Com efeito, embora as recomendações não vinculem a autoridade destinatária, passa esta a ter o dever de: a) dar divulgação às recomendações; b) dar resposta escrita ao membro do Ministério Público, devendo fundamentar sua decisão.[4] 


A recomendação, apesar de não ter o condão de vincular a atuação do Poder Público, pode servir para a reflexão do administrador, do legislador, dos agentes públicos a quem ela se dirige e, com isso, contribuir para a proteção em abstrato e a efetivação em concreto de direitos constitucionais, especialmente os de dimensão coletiva[5].


3.2. Recomendação ministerial e ponderação de princípios constitucionais – caso concreto em que o destinatário da recomendação foi o Incra como órgão executor da Política Nacional de Reforma Agrária


Será analisada nesse artigo recomendação do Ministério Público em caso concreto na qual figura como destinatário o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra, e que conclui (i) pela necessidade de imediata suspensão dos procedimentos administrativos iniciados e a abertura de novos procedimentos administrativos para aquisição de propriedades rurais no Estado de Goiás, bem como eventuais imissões de posse e pagamentos, até que se realize o cadastro real de parcelas irregularmente ocupadas no Estado, (ii) bem como pela imediata suspensão da distribuição de cestas básicas e lonas plásticas no Estado de Goiás, diretamente ou por intermédio da CONAB, até que se obtenha o cadastro prévio real e efetivo dos assentáveis, segundo a Norma de Execução Incra nº 45/2005.


O Incra tem incrementado nos últimos anos política no sentido de executar a supervisão da situação ocupacional em projetos de assentamento de reforma agrária, a retomada de parcelas irregularmente ocupadas e a sua destinação para assentamento de trabalhadores rurais que preencherem os requisitos para serem beneficiários do Plano Nacional de Reforma Agrária – PNRA, o que pode ser constatado por meio de análise à Instrução Normativa nº 22/2005, revogada pela atual IN nº 47/2008, Norma de Execução nº 45/2005 e Norma de Execução nº 70/2008.


É dever do Incra conferir a máxima efetividade à Norma de Execução/Incra nº 45/2005, a qual preconiza em seu art. 4º que “O processo seletivo tem caráter nacional e realizar-se –á na área de atuação de cada Superintendência Regional, no município ou microrregião, objetivando o assentamento das famílias de trabalhadores rurais, em áreas desapropriadas ou obtidas por meio de compra e venda, nas vagas em Projeto de Reforma Agrária já existentes, em áreas decorrentes de processos de discriminação e arrecadação, doação ou outra forma de obtenção.” (grifamos)


Assim, a Norma elenca as áreas que serão objeto de assentamento de famílias de trabalhadores rurais previamente cadastradas, incluindo aí as vagas em projeto de reforma agrária já existentes, e que resultam dos procedimentos de supervisão ocupacional seguido de retomada dos lotes irregularmente ocupados, bem como da emancipação dos beneficiários que já preencherem as condições. Vê-se que a Norma elenca as várias formas de promover o assentamento de famílias, por meio da compra e venda de imóveis rurais, por meio da desapropriação por interesse social, em vagas já existentes e em áreas decorrentes de outros processos de aquisição.


É razoável que se o Estado possui terras adequadas para a promoção da reforma agrária, deve prioritariamente dar destinação às mesmas, para que a partir de seu patrimônio já existente incremente a justa distribuição de terras. É, com efeito, via economicamente menos onerosa para a execução da política pública.


De fato, é responsabilidade da Autarquia implementar os atos de cadastramento das famílias previamente, a fim de conhecer a verdadeira demanda de possíveis assentados da reforma agrária, contemplando as diretrizes previstas no art. 2º, parágrafo único, da Norma de Execução nº 45/2005, de forma a priorizar a seleção de famílias identificadas em  condições precárias de habitação ou moradia, saúde, insuficiência de renda, falta de acesso à educação, ou através de outro indicador social, tais como, aspectos demográficos, trabalho e rendimento, educação e condições de vida, obedecendo rigorosamente às etapas do processo seletivo a que se refere a Norma de Execução.


Portanto, não se olvida ser esta a política objetivada pelo Incra desde a edição dos atos normativos internos citados anteriormente, corroborada pela assertiva da área técnica de adoção de medidas que visem a melhorar a execução do processo de seleção das famílias na forma estabelecida pela legislação interna.


Ocorre que as recomendações do Ministério Público pela imediata suspensão de todos os procedimentos administrativos iniciados e proibição da abertura de novos procedimentos administrativos de aquisição de propriedades rurais no Estado de Goiás, bem como a suspensão imediata de distribuição de cestas básicas e lonas plásticas são medidas de difícil implementação, uma vez que envolvem aspectos relacionados à ponderação dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana, conforme adiante se explanará.


Assim, é imprescindível que o atendimento das recomendações pelos destinatários da Administração Pública ocorra de forma a não haver aniquilação de um direito fundamental por outro. Entende-se adequada a aplicação do princípio da concordância prática ou harmonização, o qual preconiza que os bens jurídicos constitucionalizados deverão coexistir de forma harmônica na hipótese de eventual conflito ou concorrência entre eles, buscando, assim, evitar o sacrifício (total) de um princípio em relação a outro em choque.


Nas palavras de Canotilho, “o campo de eleição do princípio da concordância prática tem sido até agora o dos direitos fundamentais (colisão entre direitos fundamentais ou entre direitos fundamentais e bens jurídicos constitucionalmente protegidos). Subjacente a este princípio está a ideia do igual valor dos bens constitucionais (e não uma diferença de hierarquia) que impede, como solução, o sacrifício de uns em relação aos outros, e impõe o estabelecimento de limites e condicionamentos recíprocos de forma a conseguir uma harmonização ou concordância prática entre estes bens”.[6]


Como já dito, é reconhecido pelo Incra que o processo de cadastramento de famílias e de supervisão ocupacional em lotes de assentamento para reforma agrária ainda não alcançou a sua excelência. Contudo, não se pode afastar a existência de milhares de famílias de reais necessitados, que dependem da política pública para a sobrevivência, sob pena de se tornarem relegadas ao total estado de miséria e abandono.


Com efeito, a reforma agrária exterioriza-se pela intervenção do Estado, no sentido de redimensionar a estrutura agrária do país, visando à melhor distribuição de terras a todos os que dela necessitam, e o aumento da produtividade, promovendo a efetivação da justiça social, e colaborando com a erradicação da pobreza e demais objetivos previstos no art. 3º da Constituição Federal de 1988, tidos como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.


Portanto, a suspensão dos processos administrativos de aquisição e impedimento da abertura de novos processos é medida desnecessária, haja vista que as políticas de aquisição de novas propriedades rurais e de regularização fundiária, a qual inclui a retomada de lotes com ocupação irregular, dispõem de dotações orçamentárias específicas e são executadas concomitantemente. Assim está previsto na Lei nº 12.381, de 9/2/2011, volume IV, a Lei Orçamentária Anual – LOA, a Ação 0138 – Gerenciamento da Estrutura Fundiária e Destinação de Terras Públicas – Programa 8380 – Retomada de Terras Públicas – cujo orçamento é voltado para a regularização fundiária de imóveis rurais e urbanos, incluindo a retomada de terras públicas e parcelas públicas ocupadas irregularmente. De outra feita, tem-se a Ação 0135 – Assentamento para Trabalhadores Rurais – Programa 4460 – Obtenção de Imóveis Rurais para Reforma Agrária.


Nessa perspectiva, vê-se que são políticas executadas de forma concomitante, afigurando-se, desarrazoada a recomendação para que se paralisem os processos de obtenção, posto que prejudicial à plena execução do Programa Nacional de Reforma Agrária.


Assim, a imediata suspensão de todos os processos administrativos de obtenção de terras rurais é medida que fere a razoabilidade e proporcionalidade, uma vez que constitui intervenção drástica capaz de prejudicar a subsistência de centenas de famílias que necessitam do campo para sobreviver, considerando que o PNRA somente tem a sua execução ampla por meio do andamento conjunto de ambas as políticas citadas acima. Tanto é assim que possuem dotações orçamentárias diferenciadas e específicas.


Na esteira desse entendimento, é sabido que a redistribuição de terras para fins de reforma agrária faz-se por no mínimo três caminhos diferentes, um complementar ao outro, a saber: a) destinando as terras devolutas da União e dos Estados membros e dos Municípios, respeitada a competência de cada ente federativo; b) compra e venda de imóveis rurais, para esta destinação específica; e c) através da desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, além de outros instrumentos que o Estado pode se utilizar para esse fim. [7]


A suspensão dos processos administrativos de aquisição de terras, bem como de cestas básicas e lonas plásticas a famílias acampadas configuraria ato administrativo por demais severo para aqueles que se encontram em estado de vulnerabilidade social, atraindo ofensa ao princípio da proporcionalidade, sob os prismas da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito.


Com efeito, para fins didáticos, esclarecemos que o princípio da proporcionalidade ou razoabilidade deve ter como parâmetro a necessidade de preenchimento de três importantes elementos:


Necessidade: por alguns denominada exigibilidade, a adoção da medida que possa restringir direitos só se legitima se indispensável para o caso concreto e não se puder substituí-la por outra menos gravosa;


– Adequação: também chamado de pertinência ou idoneidade, quer significar que o meio escolhido deve atingir o objetivo perquirido;


– Proporcionalidade em sentido estrito: sendo a medida necessária e adequada, deve-se investigar se o ato praticado, em termos de realização do objetivo pretendido, supera a restrição a outros valores constitucionalizados. Podemos falar em máxima efetividade e mínima restrição.[8]


Nessa toada, há adequação se o meio escolhido pelo Estado realiza minimamente o fim público que se deve concretizar. Constata-se que o meio recomendado pelo Ministério Público compromete a fiel execução do Plano Nacional de Reforma Agrária – PNRA e o direito à moradia, que depende, ao lado dos procedimentos de regularização fundiária e retomada de lotes, dos procedimentos de aquisição de novas terras rurais, razão pela qual julgamos ser medida inadequada.


Sob o segundo prisma, o da necessidade, o que se persegue é o meio menos desvantajoso para o administrado atingido pelo ato administrativo ou normativo. Não basta que o Estado escolha um meio que conduza à finalidade, é essencial que opte por mecanismo que imponha a menor restrição aos direitos fundamentais e às prerrogativas dos cidadãos. Portanto, sob esse viés, ainda que o meio recomendado pelo Parquet federal fosse adequado, entendemos não ser necessário, posto que implica alta restrição ao direito fundamental à vida, atentando contra o princípio da dignidade da pessoa humana daquela maioria que de fato necessita de um mínimo existencial, o qual pode ser atendido por meio da distribuição das cestas básicas e lonas às famílias que aguardam o efetivo assentamento de forma legítima.


Por fim, no tocante à proporcionalidade em sentido estrito, segundo Humberto Ávila, para que se evidencie é necessária a comparação entre a importância da realização do fim e a intensidade da restrição aos direitos fundamentais. Define o autor: “Um meio é proporcional quando o valor da promoção do fim não for proporcional ao desvalor da restrição dos direitos fundamentais. Para analisá-lo é preciso comparar o grau de intensidade da promoção do fim com o grau de intensidade da restrição aos direitos fundamentais. O meio será desproporcional se a importância do fim não justificar a intensidade da restrição dos direitos fundamentais.”[9]


Feitas essas considerações, é possível constatar que a suspensão total dos procedimentos na forma proposta pelo Ministério Público apresenta severa restrição a direitos fundamentais, uma vez que prejudica a plena execução do Programa Nacional de Reforma Agrária e o direito à moradia, priva a grande maioria de famílias que apresentam legitimamente perfil para serem contemplados pelo Programa, em razão de uma minoria de não legitimados. À luz do art. 2º da Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006, “A alimentação adequada é direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o poder público adotar as políticas e ações que se façam necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população.”


3.3) Recomendação ministerial e ausência de conhecimento técnico sobre a execução da política pública de distribuição de cestas básicas a acampados


Vê-se que algumas recomendações proferidas pelo Ministério Público carecem de maior conhecimento técnico sobre a execução da política pública, o que termina por tornar em muitos casos inexeqüível a adequação da conduta do agente público à forma recomendada.


No caso paradigma do presente trabalho a política de distribuição de cestas básicas a acampados é capitaneada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), que promove ações em conjunto com governos estaduais, universidades e entidades públicas e privadas para promover a segurança alimentar dessas famílias.


Acrescente-se que o art. 19 da Lei nº 10.696/2003 instituiu o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que é uma das ações do Fome Zero para promover o acesso a alimentos às populações em situação de insegurança alimentar e a inclusão social e econômica no campo por meio do fortalecimento da agricultura familiar. É desenvolvido com recursos do MDS e do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). As diretrizes do PAA são definidas por um Grupo Gestor coordenado pelo MDS e composto por mais cinco ministérios.


Quer-se com isso dizer que a recomendação de suspender a entrega de cestas básicas e lonas a pré-assentados é inexeqüível pelo Incra, uma vez que, por lei, e por constituir política pública do Governo Federal, é ato complexo que envolve uma série de órgãos públicos na sua execução, restando evidenciada a falta de conhecimento técnico por parte do órgão ministerial da sistemática adotada na condução da política pública.[10]


4. Considerações finais


A recomendação do Ministério Público é instrumento de atuação extrajudicial, dirigida ao Poder Público em geral, “visando à melhoria dos serviços públicos e de relevância pública, bem como ao respeito, aos interesses, direitos e bens cuja defesa lhe cabe promover, fixando prazo razoável para a adoção das providências cabíveis” (art. 6º, XX, da LC nº 75/93).


Não tem força coercitiva perante o Poder Público, todavia, em caso de não atendimento ou de justificativa insatisfatória pelo Poder respectivo, poderá dar ensejo a que o Parquet adote outras medidas, inclusive judiciais, com vistas à execução de seu conteúdo (ação civil pública, ação de improbidade administrativa, etc).


Caberá ao recomendado, a seu critério, acatar ou ignorar a medida, não incorrendo em ilegalidade caso opte por se manter inerte, devendo, entretanto, providenciar a imediata e adequada divulgação da recomendação, bem como emitir uma resposta por escrito ao Ministério Público, caso tenha havido alguma requisição nesse sentido por parte do membro do parquet.


Assim, é imprescindível que o seu atendimento pelos destinatários da Administração Pública ocorra de forma a não haver aniquilação de um direito fundamental por outro.


A suspensão dos processos administrativos de aquisição de terras, bem como de cestas básicas e lonas plásticas a famílias acampadas configuraria ato administrativo por demais severo para famílias que se encontram em estado de vulnerabilidade social, atraindo ofensa ao princípio da proporcionalidade, sob os prismas da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito, posto que implica severa restrição a direitos fundamentais inerentes à dignidade da pessoa humana, a exemplo do direito à vida, à alimentação adequada e à moradia.


Por outro lado, as recomendações do Ministério Público devem guardar coerência com a técnica escolhida para a execução das políticas públicas, sob pena de tornar-se inexeqüível para o seu destinatário.


Nessa perspectiva, a recomendação de suspender a entrega de cestas básicas e lonas a pré-assentados é inexeqüível pelo Incra, uma vez que, por lei, e por constituir política pública do Governo Federal, é ato complexo que envolve uma série de órgãos públicos na sua execução, dentre eles o Ministério do Desenvolvimento Social e o Ministério do Desenvolvimento Agrário.


Ao Incra é devido o reconhecimento e cadastramento de trabalhadores rurais que de fato fazem jus ao assentamento, excluindo aqueles que não preenchem os requisitos, execução que já tem sido incrementada. Contudo, pelas razões expostas linhas acima, é desproporcional a medida de suspensão total dos procedimentos, por causar prejuízo irreversível a centenas de famílias que possuem legitimidade para serem destinatárias das políticas públicas de reforma agrária e de combate à fome.


 


Referências Bibliográficas

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação Civil Pública. 3ª Ed., São Paulo: Lúmen Júris, 2001.

CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Curso de Direito Administrativo. Salvador: Ed. Jus Podium, 2008, p. 132.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 15ª Ed. ver., atual. e ampl. São Paulo, Saraiva, 2011, p. 151.

MAZZILLI, Hugo Nigro. Regime Jurídico do Ministério PúblicoSão Paulo: Saraiva, 1996.


ROCHA, Ibraim et. al. Reforma Agrária. In Manual de direito agrário constitucional: lições de direito agroambiental. Belo Horizonte: Fórum, 2010.

 

Notas:

[1] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação Civil Pública. 3ª Ed., São Paulo: Lúmen Júris, 2001, p. 113.

[2] “Não há como combater uma simples recomendação; caso haja discordância quanto ao seu conteúdo, cabe ao autor meramente a desconsiderar”, (Sentença confirmada pela 2ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de Santa Catarina na Apelação Cível 2008.056.582-3)


[4] MAZZILLI, Hugo Nigro. Regime Jurídico do Ministério Público. São Paulo: Saraiva, 1996.


[6] J.J.G. Canotilho. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 6ª Ed., p. 228. Apud LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 15ª Ed. ver., atual. e ampl. São Paulo, Saraiva, 2011, p. 149.

[7].ROCHA, Ibraim et. al. Reforma Agrária. In Manual de direito agrário constitucional: lições de direito agroambiental. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 316.

[8] LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 15ª Ed. ver., atual. e ampl. São Paulo, Saraiva, 2011, p. 151.

[9] Apud CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Curso de Direito Administrativo. Salvador: Ed. Jus Podium, 2008, p. 132.

[10] No mesmo sentido ocorreu falta conhecimento técnico pelo órgão ministerial ao proferir recomendação o Presidente da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, conforme elucidado no Parecer nº 05/04-FACB: Ementa: – Recomendação expedida pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro para que o Presidente da Câmara Municipal suste o trâmite de processo legislativo de Projeto de Lei Complementar que versa sobre Plano Diretor, por conta da exigência do Estatuto da Cidade de prévia realização de audiência pública da parte do Poder Executivo. 

– Os Presidentes de Casas Legislativas não detêm, em regra, competência para  sustar o processo legislativo, sem o crivo da maioria do Plenário. 

– Edição da Lei Complementar nº 56/2002 que, assim como a recomendação expedida, obriga o Poder Executivo a compatibilizar o Plano Diretor com o Estatuto da Cidade.

– Parecer pela expedição de ofício ao Ministério Público ponderando que a limitada competência do Presidente desta Câmara Municipal não lhe permite atender ao que consta da Recomendação. (http://www.camara.rj.gov.br/setores/proc/revistaproc/revproc2004/pare_0504FACB.pdf)


Informações Sobre o Autor

Juliana Fernandes Chacpe

Procuradora Federal. Especialista em Direito Processual Civil.