Resumo: Trata-se a jurisdição de um conceito histórico, portanto variável em diferentes épocas. Analisando os meios de solução de conflitos desde as sociedades primitivas até os dias de hoje, busca-se compreender o que se entende por jurisdição e suas tendências contemporâneas, e, em especial, dar destaque aos meios extrajudiciais de solução de conflitos. A análise histórica ainda culminará no questionamento sobre a prescindibilidade do Estado para a solução de conflitos intersubjetivos, utilizando-se do exemplo da Somália para alcançar uma resposta. Não serão deixados de lado, ainda, uma forte base teórica e questionamentos sociológicos.[1]
Palavras-chave: Jurisdição. História. Mediação. Conciliação. Arbitragem.
Abstract: Jurisdiction is a historical concept, therefore variable on different ages. Analyzing the dispute resolution forms since the primitive societies until nowadays, it's looked to realize what is understandable as jurisdiction and it's contemporary tendencies, and, specially, emphasize the alternative dispute resolution forms. Furthermore, the historical analysis will follow on the questioning about the State dispensability on the dispute resolution, using the Somalia example to seek for an answer. Moreover, won't be left out a strong theoretical basis and sociological questions.
Keywords: Jurisdiction. History. Mediation. Conciliation. Arbitration.
Sumário: Introdução. 1. Sociedades primitivas: o predomínio da autotutela. 1.1. A autotutela atualmente. 2. A jurisdição no direito romano. 2.1. A monarquia romana. 2.2. A república romana. 2.3. O império romano. 3. A jurisdição na "Idade das Trevas". 4. Retomando conceitos: a atuação dos glosadores. 5. Idade moderna e concepções absolutistas. 6. As revoluções liberais e a teoria de Montesquieu. 7. O conceito contemporâneo de jurisdição. 8. Tendências contemporâneas. 8.1. Tutela coletiva. 8.2. Equivalentes jurisdicionais. 9. Jurisdição e Princípios. 10. Meios extrajudiciais de solução de conflitos: Breve resumo. 11. Estado e Direito. Conclusão. Referências.
Introdução
Hodiernamente, são conhecidos os três poderes mencionados na teoria da tripartição dos poderes elaborada por Montesquieu, na qual "pelo primeiro, o príncipe ou o magistrado faz as leis para certo tempo, para sempre, e corrige ou ab-roga as que são feitas. Pelo segundo, declara a paz e a guerra, envia ou recebe embaixadas, estabelece segurança, previne as invasões. Pelo terceiro, pune os crimes ou julga os litígios dos particulares" (MONTESQUIEU, 2010), sendo que este terceiro poder claramente se refere ao Poder Judiciário, o qual tem a atribuição e competência para julgar os litígios que lhe forem apresentados. Não obstante a necessidade de um órgão imparcial para resolver os conflitos interpessoais estar arraigada no pensamento comum e técnico-jurídico contemporâneo, a idealização desse órgão se trata de uma construção relativamente recente, fazendo-se necessária, para entender de maneira mais profunda a jurisdição estatal, uma análise dos institutos que precederam o Estado moderno e o Poder Judiciário.
O famoso brocardo latino Ubi societas, ibi ius (onde há sociedade, há direito) consagra o pensamento de Aristóteles de caracterizar o homem como um ser político. Convivendo em sociedade, especialmente quando as sociedades são pluralistas, é inevitável que litígios aconteçam. Estes, não podendo simplesmente ser ignorados, requerem uma solução, e os instrumentos para buscá-la se desenvolvem e progridem impulsionados pela demanda da sociedade.
Como destaca (WAMBIER, TALAMINI, 2011):
“Há casos, no multifacetado conjunto de interesses que coexistem na vida da sociedade, em que o simples comando legal (isto é, a existência de regra jurídica expressa, no ordenamento positivo) não é suficiente para eliminar a presença do conflito, isto é, da incidência de interesses simultâneos e excludentes, sobre o mesmo bem. Esse estado de conflituosidade promove a ruptura da paz social e requer uma solução que seja capaz de solucionar, de modo eficaz, o conflito surgido em razão da disputa que se tenha estabelecido e, em consequência, restabelecer o desejável estado de harmonia nas relações sociais”.
Os ordenamentos jurídicos contemporâneos depositaram sua confiança no Poder Judiciário para solucionar tal estado de conflituosidade.
Não obstante, muito se tem difundido nas doutrinas nacional e estrangeira quanto à necessidade de serem pensados meios alternativos de solução de conflitos intersubjetivos que não envolvam, em maior ou menor grau, a participação do Poder Judiciário, e, consequentemente, o exercício da função jurisdicional. Embora esses meios não sejam classicamente abrangidos pelo Poder Judiciário, isso não os exclui do âmbito de estudo do direito processual civil. (BUENO, 2011, p. 46) Assim, não se pode criar a falsa noção de que é somente pelo Estado que os conflitos devem, obrigatoriamente, ser solucionados.
Além dos meios de desistências ou submissões de direitos das próprias partes, existem os institutos da conciliação, mediação e arbitragem, onde há a participação de um terceiro imparcial e não se utiliza do processo; e são esses institutos, eventualmente chamados de "equivalentes jurisdicionais" (WAMBIER; TALAMINI, 2011, p. 98), que o presente trabalho procura analisar. Esses meios, resumidamente, se justificam garantindo o acesso à justiça, a celeridade, a economia processual, e até a pacificidade da solução, prevista no preâmbulo constitucional, princípios que no sistema processual vigente muitas vezes não se concretizam. Visam, portanto, esses institutos, concretizar a efetividade processual.
A preocupação do mundo jurídico com o número excessivo de demandas soma-se ao período de mudança, notadamente de dogmática processual, em que vivemos. Tentando efetivar mudanças, o Senado Federal instituiu, em 2010, o Projeto de Lei n. 166, o Novo Código de Processo Civil, que introduz a mediação, instituto ainda não regulamentado no direito pátrio.
A partir disso, o presente artigo busca, tendo como base o método histórico-dedutivo, elaborar uma perspectiva da transformação do conceito de jurisdição partindo da análise as sociedades primitivas, passando pelo direito romano, idade média e idade moderna, até alcançar as perspectivas contemporâneas sobre o assunto relativamente à tendência de utilização dos meios extrajudiciais de solução de conflitos. Ademais, não é deixada de lado a discussão sobre acesso à justiça e princípios processuais constitucionais modernos, tendo-se sempre em vista argumentos de ordem sociológica para auxiliar na compreensão das mutações sociais e jurídicas que vêm a ser propostas.
1. Sociedades primitivas: o predomínio da autotutela
Nas sociedades denominadas primitivas inexistia qualquer instrumento ao qual os envolvidos num conflito poderiam reclamar soluções. A ideia da necessidade de um ente responsável por essa função ainda não havia surgido.
Nesse período, portanto, a resolução dos conflitos se dava por meio da autocomposição, ou seja, pelo acordo entre as partes, pela desistência, submissão ou transição de direitos e interesses, bem como pela autotutela, que consiste no meio pelo qual quem se julgar lesado num conflito qualquer, tem como fundamento para uma “decisão” o que ele próprio entender como certo e, ainda, o próprio lesado utilizará dos meios que tiver disponíveis para a execução dessa decisão, consagrando-se vencedor aquele que for mais forte, tiver mais bens disponíveis ou estiver melhor preparado ou adaptado à situação.
(WAMBIER; TALAMINI, 2011) traz um exemplo moderno de situação de autotutela: "diante do inadimplemento de obrigação consistente em pagar um débito, assumida por uma parte diante da outra, o credor poder-se-ia apropriar de bens do devedor, em valor equivalente ao de seu crédito, como forma de receber aquilo a que tenha direito, sem que estivesse incidindo na prática de qualquer delito".
Como consequência da utilização da autotutela, tem-se a grande possibilidade dos envolvidos serem tratados desigualmente na busca de uma solução para qualquer conflito. Frente à isso, proporcionar isonomia de condições às partes é função do Estado moderno, como se pode depreender do inciso I do artigo 125 do Código de Processo Civil que estabelece como dever do juiz "assegurar às partes igualdade de tratamento".
1.1. A autotutela atualmente
A autotutela, como explicado, consiste num meio de resolução de conflitos no qual o próprio interessado busca a reparação do dano. O Código Penal brasileiro vigente estabelece no artigo 345 que “fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite” é uma conduta criminosa, cominando uma pena de detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente à violência cometida. Embora a conduta seja tida como criminosa e o instituto da autotutela não seja mais utilizado como nas sociedades primitivas, pode-se depreender do próprio texto legal que ela é permitida em situações excepcionais.
A título exemplificativo, algumas hipóteses de cabimento da autotutela no ordenamento jurídico brasileiro atual consistem no direito de greve (Constituição Federal, artigo 9º), legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento de dever legal (Código Penal, artigo 23), direito de retenção (Código Civil, artigos 319, 527 e outros), defesa da posse (Código Civil, artigo 1210, §1º), dentre outros.
Com o desenvolvimento e evolução das sociedades, surgiu a preocupação de encontrar-se uma maneira de solução de conflitos interpessoais que não fosse a autotutela, uma vez que tornou-se indesejável que as decisões sempre pendam para o lado do mais forte, e não seja necessariamente fundamentada em critérios tidos como justos ou legítimos.
Cabe menção ao fato de que a autotutela ressurgiu recentemente à memória do brasileiro por meio da divulgação midiática de situações nas quais a própria sociedade vem atuando em sua defesa não havendo eficácia estatal, sob o domínio da vingança privada e o discurso da "justiça pelas próprias mãos".
Como se verá posteriormente em conceito mais detalhado, a tutela jurisdicional moderna consiste na atuação do Estado nos casos em que ele próprio proibiu a autotutela, e, em contrapartida, tem este o dever de tutelar os indivíduos sob orientação de suas normas.
2. A jurisdição no direito romano
Como leciona (GILISSEN, 2003):
“A história do direito romano é uma história de 22 séculos, do século VII a.C. até ao século VI d.C., no tempo de Justiniano, depois prolongada até o século XV no império bizântico. No Ocidente, a ciência jurídica romana conheceu um renascimento a partir do século XII, a sua influência permanece considerável sobre todos os sistemas romanistas de direito, mesmo nos nossos dias.”
É notável e de conhecimento geral a grande influência exercida pela civilização romana quanto ao estudo do direito. No entanto, devido à tamanha extensão e profundidade da história romana, faz-se mister ater-se aos principais pontos no que diz respeito à relação dessa civilização com seu correspondente poder detentor da jurisdição. Desde o início da civilização romana houve intervenção estatal, em maior ou menor grau, limitando ou excluindo a aplicação da autotutela como meio de solução de conflitos.
2.1. A monarquia romana
Após a fundação de Roma, enquanto perdurou o período monárquico (até 510 a.C.), o rei deteve com exclusividade a potestas publica (conceito esmiuçado adiante), que o legitimava a decidir sobre todos os conflitos a ele apresentados. Desse modo, “o rei era magistrado único, vitalício e irresponsável […]. O rei, como chefe de Estado, tinha o comando supremo do exército, o poder de polícia, as funções de juiz e sacerdote, e amplos poderes administrativos” (ALVES, 1998) Frise-se, ainda, que, por não haver a moderna separação de poderes, o rei era investido não somente dos poderes judiciários, mas também legislativos e executivos. Essa acumulação de poderes remete ao termo latino imperium, que significa autoridade, no sentido de personificação da supremacia do Estado, da qual o rei era investido.
Como leciona (ALVIM, 1979), "o direito romano era de formação eminentemente processual, ou seja, era da atividade jurisdicional do Estado que se ia constituindo o direito substantivo romano". Nesse período, não havia distinção entre direito e ação, entre ius e actio, um era produto do outro.
José Carvalho da Silva Filho ainda frisa que o período romano das legis actiones (754 a.C. até 149 a.C.) era regulado primordialmente pela famosa Lei das XII Tábuas.
2.2. A república romana
Com o fim da monarquia e consequente início da república romana (que, por sua vez, durou de 510 a 27 a.C.), o rei foi substituído por magistrados. Surgem, nesse contexto, as figuras do pretor, do iudex, e do cônsul. (ALVES, 1998) explica que "Ao rei sucedem dois magistrados eleitos anualmente, e que se denominam, a principio, iudices (juízes), em tempo de paz, e praetores (os que vão à frente), quando em guerra.
A princípio, os dois cônsules são os magistrados únicos, porém, com o desenvolvimento do Estado romano, surgiu a figura dos quaestores, responsáveis pela gestão das finanças, e, com a luta da plebe romana por direito à participação na magistratura, é criada a figura dos tribunos, que "podiam vetar qualquer ato dos magistrados patrícios, embora esse veto pudesse ser neutralizado pela ação de outro tribuno mais dócil ao patriciado" (ALVES, 1998).
Como características da magistratura republicana romana deve-se citar, dentre outras existentes, a temporariedade (pois eram eleitos anualmente), a gratuidade (pois o magistrado não era remunerado pelo exercício da atividade) e a sua inviolabilidade do exercício do cargo enquanto este durar.
São necessários para a compreensão da atividade da magistratura na república romana os conceitos de potestas e de imperium. (ALVES, 1998) cita Arangio Ruiz para determinar que a potestas
“é a competência de o magistrado expressar com sua própria vontade a do Estado, gerando para este direitos e obrigações. Já o imperium é a personificação, no magistrado, da supremacia do Estado, supremacia que exige a obediência de todo cidadão ou súdito, mas que está limita pelos direitos essenciais do cidadão ou pelas garantias individuais concedidas por Lex publica. O imperium compreende o poder de levantar tropas e comandá-las, o direito de apresentar propostas aos comícios, a faculdade de deter e punir os cidadãos culpados e a administração da justiça nos assuntos privados.”
Na República, todos os magistrados possuem a potestas, mas nem todos possuem o imperium. Os magistrados são divididos, portanto, em cum imperio e sine imperio. Na monarquia, uma vez que o poder era concentrado na mão do rei e ele era magistrado único, concentrando a potestas e o imperium.
Portanto, pode-se notar, no período, o surgimento de uma autoridade estatal incumbida especificamente na função de decidir a lei aplicável aos casos que surgissem.
2.3. O império romano
O período do império romano, que deu-se entre 27 a.C. a 565 d.C., pode ser divido em dois períodos: o principado e o dominato, mas esta classificação não será utilizada no presente artigo a fim de simplificar o entendimento da história romana.
O importante a salientar-se sobre o exercício do poder jurisdicional é que ele volta a ser concentrado na figura de uma pessoa, assim como ocorria na monarquia. No entanto, neste período a concentração se dá na figura do imperador. A partir do momento em que o procedimento, até então bipartido, passa a desenrolar-se, desde sua instauração, até o final, diante de uma única autoridade estatal, que é o magistrado, a decisão desse não corresponde mais apenas à um parecer jurídico de um cidadão autorizado pelas leis, mas se torna um comando vinculante de um órgão estatal.
(TUCCI; AZEVEDO, 1996) defende avançar o fenômeno da “judicialização da jurisdição”, que corresponde ao monopólio da atividade jurisdicional pelo Estado e, que, no Império Romano, ocorreu no período chamado de cognição extraordinária ou cognitio extra ordinem[2]
Com a unificação das instâncias, e consequente atuação de apenas um órgão judicial estatal presente durante todo o desenrolar da solução do litígio, a ideia de monopólio da jurisdição pelo Estado se concretiza e ganha força no processo de formação do pensamento jurídico. O período da cognição extraordinária pautou-se pela ingerência estatal no processo e agigantamento da figura do Estado-juiz (ALVIM, 2000).
3. A jurisdição na “Idade das Trevas”
Houve, então, um período de retrocesso. Na Idade Média, sob o regime feudal, possuía-se como características, dentre outras, o poder descentralizado e o pluralismo jurídico. O Estado era entendido na figura do rei, mas este não detinha o poder centralizado em suas mãos.
O poder jurisdicional ficou sob o controle dos senhores feudais, bem como da Igreja, sendo que esta estava associada com o Estado e, em certa medida, também concorria com ele.
Quanto à jurisdição na Idade Média, faz-se mister mencionar o Tribunal da Inquisição. A Inquisição, incentivada e controlada pela Igreja Católica, estabeleceu “leis” morais, que, quando descumpridas, levariam à severas punições. Demonstrando a arbitrariedade desse sistema jurisdicional, cabe menção à doutrina processualista penal, na qual ocorre uma divisão entre os tipos de sistemas processuais. Com o próprio nome remetendo à origem medieval, o sistema inquisitivo “é o que concentra em uma figura única (juiz) as funções de acusar, defender e julgar. Não há contraditório ou ampla defesa […]. O réu, mero figurante, submete-se ao processo numa condição de absoluta sujeição, sendo em verdade mais um objeto da persecução que sujeito de direitos” (TÁVORA; ALENCAR, 2009)
Um processo conduzido pelo sistema processual penal da época seria, pelo prisma dos ideais atuais – que serão vistos adiante -, considerado não menos que espantoso, teratológico e arbitrário.
Em contrapartida, e como evolução do sistema processual penal inquisitório desenvolvido na Idade Média, atualmente, no Brasil, está vigente o sistema acusatório, o qual “tem por características fundamentais: separação entre as funções de acusar, defender e julgar, conferidas a personagens distintos. Os princípios do contraditório, da ampla defesa e da publicidade regem todo o processo; o órgão julgador é dotado de imparcialidade; o sistema de apreciação das provas é o do livre convencimento motivado” (TÁVORA; ALENCAR, 2009)
É interessante saber que as origens do sistema inquisitivo remontam ao período imperial romano, mas é somente na Idade Média que as arbitrariedades atingem seu ápice. Por outro lado, o momento de melhor visualização da forma acusatória do sistema foi a República Romana, com a separação da figura que apresenta a acusação da que julga, distinção que corresponde ao princípio acusatório.
4. Retomando conceitos: a atuação dos glosadores
A retomada do pensamento romano é de grande importância, como bem dissertou Max Weber: “quanto à importância para a revolução do pensamento jurídico e também do direito material vigente, nenhuma delas pôde comparar-se à recepção do direito romano” (WEBER, 1999).
Ainda subsistindo grande influência da religião sobre a criação intelectual nos momentos finais da Idade Média, ocorreu nesse período a fundação da primeira universidade, a Universidade de Bolonha, e, nesse movimento intelectual, o fundamento para o início da visão do direito como um sistema se deu a partir do estudo da Littera Boloniensis, uma resenha crítica de textos de Justiniano. Retomando a já exposta influência religiosa, (MASSAÚ, 2006) defende que “A escola dos glosadores fundamenta-se na crença de um texto sagrado que não a Bíblia. A littera impôs, pelo aporte da fé, o seu sentido à contingência da vida”.
A atuação dos glosadores (indivíduos estudiosos que realizam anotações à margem dos livros, anotações essas que consistiam de explicações, teses e conclusões sobre textos legais) foi essencial para a retomada do processo como meio de resolução de conflitos como era utilizado antes do início da Idade Média. Com os conceitos do processo civil romano recuperados, foi possível a reestruturação do processo civil, de modo que até hoje o processo civil é indissociável da criação romana. Essa retomada se deu pelo estudo empenhado pelo glosadores à compilação dos texto romanos, o Corpus Juris Civillis.
Importante salientar que a reestruturação do processo civil corresponde à apenas uma parte do conjunto de conceitos que contribuíram para o nascimento de uma ciência jurídica.
A análise histórica é, obviamente, mais extensa do que se pode discorrer. Tendo em vista o objetivo do presente artigo, que é análise histórico-evolutiva da jurisdição, cabe menção à lição de Max Weber, que, observando também as modificações que o sistema capitalista ocasionou, defende que “o direito racional do Estado ocidental moderno, segundo o qual decide o funcionalismo especializado, origina-se em seus aspectos formais, mas não no conteúdo, no direito romano” (WEBER, 1999).
5. Idade moderna e concepções absolutistas
Na Era Moderna, paralelamente à crise do modelo feudal e da idealização dos Estados absolutistas com Maquiavel, Jean Bodin e Thomas Hobbes e outros teóricos, o humanismo renascentista vai superando o direito romano, a ciência jurídica se volta à buscar novas técnicas de convivência em sociedade e o surgimento de novas concepções jurídico-filosóficas foram permeadas de um sentido mais tecnicista, ocorrendo uma supervalorização do direito positivo.
Esses processos convergiram e culminaram na construção de um Estado absoluto, personificado na pessoa do rei, sob o argumento de legitimidade divina, o qual concentrava todos os poderes estatais em suas mãos, inclusive o jurisdicional. Vale lembrar que na Idade Média a personificação do Estado também se dava na pessoa do rei, mas este não possuía o poder concentrado em suas mãos. Pelo contrário, o poder era fragmentado em toda a sociedade feudal.
Para um exemplo histórico notável de uma representação deve-se citar o famoso rei Louis XIV, da França, chamado também de rei-sol, a quem é atribuída a frase "L'état c'est moi" (do francês, “O Estado sou eu”), que exterioriza o pensamento absolutista e a concentração de poder dos monarcas.
Em outras palavras, o poder era uno e concentrado na mão do monarca, inexistindo à época uma divisão de funções como ocorre atualmente. Como se verá adiante, foram necessários movimentos sociais tido como revolucionários para mudar esse paradigma. Esses movimentos foram motivados pela insatisfação da sociedade com o abuso de poder que era possibilitado no modelo de governo da época, somado à novos ideais.
6. As revoluções liberais e a teoria de Montesquieu
Sob a influência de ideais iluministas, durante o século XVIII e XIX ocorreram diversas revoluções de caráter liberal, como a revolução americana de 1776 e a revolução francesa de 1789, as quais repudiavam o poder concentrado e ilimitado na mão de um rei. Defende-se, a partir dessa época, a limitação e a divisão do poder pela Constituição.
A criação da teoria da tripartição dos poderes estatais, como conhecemos hoje, é atribuída à Montesquieu, no entanto, é importante salientar que há tempos uma divisão de poderes foi defendida, como o fizeram Aristóteles e John Locke. Montesquieu a aperfeiçoou e a sistematizou, e, devido ao momento histórico em que viveu, sua obra “O Espírito das Leis” tornou-se de extrema importância na concretização dos ideais das revoluções liberais.
Como já citado, na teoria de Montesquieu existe um poder encarregado de punir os crimes e julgar os litígios dos particulares, e a esse poder foi atribuído o nome de Poder Judiciário. A partir dessas revoluções, deu-se a extração do poder da mão do monarca absolutista e surgiu da divisão de poderes estatais, sendo que uma parcela do poder estatal foi atribuída à figura do Estado-juiz, o qual possui monopólio sobre a jurisdição do Estado.
Para demonstrar a força com que se espalharam os ideais gerados a partir desses movimentos, cabe menção à estudos realizados pela doutrina internacionalista e de direitos humanos. É tido como o fenômeno de “constitucionalização e internacionalização dos direitos humanos” o alinhamento ideológico dos Estados, principalmente ocidentais, adotando Constituições com princípios e estruturas semelhantes, tendo como marcos essenciais para esse fenômeno o ano de 1776, com a independência das 13 colônias britânicas, a declaração de direitos da Virginia do mesmo ano e a declaração francesa dos direitos do homem e do cidadão de 1789 (PIOVESAN, 2008). Esse processo de internacionalização e constitucionalização tem grande relevância no tema do presente artigo uma vez que um dos ideais pregados e espalhados por esse processo foi a necessidade de se impor limites à atuação dos poderes estatais.
É interessante destacar que na teoria da tripartição dos poderes, também difundida como teoria de freios e contrapesos ou checks and balances, foram atribuídas funções atípicas a cada poder com a finalidade de lhes garantir maior independência, harmonia e limitações entre si. Ao portador do monopólio jurisdicional, ou seja, ao Poder Judiciário, no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro, foi atribuída a função de controle de constitucionalidade de leis e demais atos normativos como estabelece o artigo 102 da Constituição da República de 1988.
7. O conceito contemporâneo de jurisdição
O entendimento de que é necessária a existência do Poder Judiciário é consagrado em todo o mundo moderno de base ocidental, e podemos verificá-lo presente no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição da República de 1988 ao estabelecer-se que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Nas sociedades modernas, o Estado assumiu para si, em caráter de exclusividade, o poder-dever de solucionar os conflitos. Desde então, compete-lhe a elaboração das regras gerais de conduta e sua aplicação aos casos concretos. A solução é dada pelo Estado, mesmo quando ele próprio está envolvido, sem perder, entretanto, sua característica de imparcialidade (GONÇALVES, 2010).
Utilizando de um conceito que contempla menção ao processo histórico de formação do paradigma jurisdicional moderno, Cassio Scarpinella Bueno defende que “Tutela jurisdicional é a proteção, a salvaguarda, que o Estado deve prestar naqueles casos em que ele, o próprio Estado, proibiu a autotutela, a justiça pelas próprias mãos. A tutela jurisdicional neste sentido, deve ser entendida como a contrapartida garantida pelo Estado de atribuir os direitos a seus titulares na exata medida em que uma tal atribuição faça-se necessária por alguma razão" (BUENO, 2002).
A redação original do artigo 463 do Código de Processo Civil de 1973 estabelecia que “Ao publicar a sentença de mérito, o juiz cumpre e acaba o ofício jurisdicional […]”, exteriorizando o entendimento de tutela jurisdicional como sinônimo de sentença. Em 2005, por meio da lei 11.232, o referido artigo foi alterado, e atualmente prevalece o entendimento de que a tutela jurisdicional não se restringe à declaração de uma sentença, correspondendo, ainda, à efetiva concretização dos direitos tutelados.
Ademais, é necessário explicar que a jurisdição comporta diversas faces, dimensões, desdobramentos. Essa classificação é extensa e variável, mas destacamos, a titulo exemplificativo, alguns desses desdobramentos. A jurisdição pode, dentre outras possíveis classificações, ser penal, civil, voluntária, contenciosa, internacional, constitucional.
A jurisdição pode tutelar interesses referentes à direitos pertencentes ao direito civil (em sentido amplo), bem como ao direito penal, tanto que no desenvolvimento do trabalho foram mencionados inclusive modelos processuais penais de jurisdição.
No âmbito do processo civil, ocorre ainda uma divisão entre jurisdição contenciosa e voluntária: Segundo (JÚNIOR, 2005), "Jurisdição contenciosa é a jurisdição propriamente dita, isto é, aquela função que o Estado desempenha na pacificação ou composição dos litígios. Pressupõe controvérsia entre as partes (lide), a ser solucionada pelo juiz", ao passo que na jurisdição voluntária, "o juiz apenas realiza a gestão pública em torno de interesses privados, como se dá na nomeação de tutores, nas alienações de bens de incapazes, na extinção do usufruto ou do fideicomisso etc".
A jurisdição ainda pode ser internacional, quando ultrapassa as soberanias nacionais. Quanto à esse tipo de jurisdição, o Brasil a aderiu em 2004, com a Emenda Constitucional nº 45, que acrescentou o parágrafo 4º ao artigo 5º da Constituição da República, estabelecendo que “O Brasil se submete à jurisdição do Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão”. Pode ser mencionada ainda a chamada jurisdição constitucional, entendida como “um elemento do sistema de medidas técnicas que têm por fim garantir o exercício regular das funções estatais” (KELSEN, 2007).
Em suma, destaca-se o conceito de jurisdição elaborado por Luiz Rodrigues Wambier e Eduardo Talamini, no qual "jurisdição é, portanto, no âmbito do processo civil, a função que consiste primordialmente em resolver os conflitos que a ela sejam apresentados pelas pessoas, naturais ou jurídicas […], em lugar dos interessados, por meio da aplicação de uma solução prevista pelo sistema jurídico" (WAMBIER, TALAMINI, 2011).
8. Tendências contemporâneas
8.1. Tutela coletiva
(THEODORO JÚNIOR, 2005) expõe que:
“Historicamente, a jurisdição foi concebida no pressuposto da ocorrência de litígio, isto é, de conflito entre interessados que disputam o mesmo bem da vida. Sem tal disputa, necessariamente individual, não se admitia a atividade jurisdicional. No século XX, todavia, a ideia de jurisdição assumiu dimensões muito mais amplas e a tarefa que lhe foi confiada, de manter a paz social sob o império da ordem jurídica, passou a compreender, também, os fenômenos coletivos, onde os interesses transcendem a esfera do indivíduo e, de maneira difusa, alcançam toda a comunidade ou grande porções dela.”
Confirmando essa lição, é possível notar-se no histórico desenvolvido no presente artigo que a jurisdição era reclamada perante os interesses e conflitos individuais. Somente quando um indivíduo tinha um conflito com outro, esse conflito deveria ser solucionado por meio do poder jurisdicional, variando este conforme a época em que se encontre.
No entanto, como tendência contemporânea da jurisdição, há de se destacar a tutela de interesses coletivos.
Em livro intitulado "Acesso à Justiça", Mauro Cappelletti expõe que existem barreiras para a efetivação do acesso à justiça, e surgem "ondas" em reação à isso. Para o autor, a segunda onda de reação às barreiras da efetivação do acesso à justiça consiste na representação dos interesses difusos. A partir desse momento do século XX (da chamada segunda onda) a atividade jurisdicional começa a tutelar também interesses difusos e coletivos, como o meio ambiente, a saúde pública e as relações de consumo. No ordenamento jurídico pátrio, foi atribuído, ao mesmo tempo, legitimidade e dever para o Ministério Público tutelar os referidos direitos por meios de instrumentos próprios criados também para essa finalidade.
8.2. Equivalentes jurisdicionais
No âmbito processual civil, matéria à qual o presente artigo confere maior expressão, a abordagem do histórico do poder jurisdicional assume maior relevância tendo-se em vista que, na história recente, no âmbito internacional vivenciamos um período onde os meios extrajudiciais de solução de conflitos, chamados também de equivalentes jurisdicionais, assumem posição de relevância como meios alternativos de solução de conflitos. Os meios extrajudiciais, que consistem nos institutos da conciliação, mediação e arbitragem, desempenham papel cada vez mais importante, uma vez que o Poder Judiciário, como foi desenvolvido na concepção do Estado moderno, vivencia uma relativa crise por não conseguir tutelar ou dirimir, de maneira eficaz, todos os conflitos a ele confiados.
Esse entendimento é corroborado por (WAMBIER, TALAMINI, 2011):
“Se a jurisdição estatal é preferida pelas diversas sociedades, coexistem com ela outros mecanismo, como de arbitragem, da mediação, etc., quer nos conflitos internacionais, quer nos conflitos entre blocos econômicos, quer no âmbito interno, nos conflitos a ela submetidos por deliberação dos interessados, em que se realiza aquilo que se poderia denominar de equivalente jurisdicional […]”
A tendência internacional de utilização desses mecanismos traz reflexos ao direito brasileiro, o que pode ser constatado por diversos fatores. No atual Código de Processo Civil, de 1973, percebe-se a presença da conciliação no decorrer do processo, como, por exemplo, na audiência de conciliação mencionada no artigo 277. Igualmente, a lei 9.307/96 regulamenta o instituto da arbitragem, podendo esta ser utilizada para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis, como se depreende do seu artigo 1º.
Ademais, demonstrando com maior força a atualidade do tema, o projeto de lei n. 166, instituído pelo Senado Federal em 2010, que corresponde ao Projeto do Novo Código de Processo Civil, inova implementando o instituto da mediação no ordenamento jurídico brasileiro e, ainda, tornando-o obrigatório em determinadas hipóteses.
Esses institutos contribuem para o aprimoramento da jurisdição e, como consequência, para a maior efetividade na concretização de princípios que permeiam o ordenamento e pensamento jurídico nacional, como o acesso à justiça e a razoável duração do processo.
9. Jurisdição e Princípios
Em certo grau, a jurisdição é um termo que pode ser compreendido como uma individualidade histórica, no sentido atribuído por Max Weber à essa expressão, uma vez que se trata de um conceito variável para cada mentalidade de época que o observa. Tendo o presente artigo percorrido por diversos períodos históricos e os analisado em linhas gerais – já que para a exaustão do tema, um livro complexo seria necessário -, compreende-se que apenas recentemente se deu o entendimento moderno de jurisdição como monopólio estatal, tendo Montesquieu e os formuladores do Estado moderno contribuído para a construção dessa ideia, ao mesmo tempo que ainda subsistem instrumentos do direito romano, uma vez que este era eminentemente processual.
Sob o prisma contemporâneo da necessidade de se melhor efetivar direitos e princípios constitucionais e processuais, a discussão acerca da atividade jurisdicional ressurge uma vez que novos institutos aumentam sua relevância tanto no âmbito do ordenamento jurídico interno, quanto internacional, bem como a jurisdição ganha novas faces, como a tutela coletiva de interesses.
É necessário, pois, levar o tema à comunidade acadêmica para que o mesmo não careça de estudiosos e, assim, a doutrina não se torne obsoleta e seja possível aprimorar-se constantemente a atividade jurisdicional.
Para (WAMBIER, TALAMINI, v. 1, 2011) existem princípios fundamentais, bem como existem princípios informativos. Estes são mais gerais e abstratos, aplicando-se a todas as regras de direito processual, tanto as de cunho constitucional ou processual, independentemente de lugar ou tempo. Os princípios informativos são o lógico, o jurídico, o político e o econômico.
Destaca-se, no presente artigo, dois deles: o político e o econômico.
“Quanto ao princípio político, pode dizer-se que a estrutura do processo, isso é, das regras disciplinadoras da atividade desenvolvida no processo, deve ser conformada à estrutura política que tenha sido adotada no país. Assim, a normatização processual num Estado de Direito, deve ser coerente com a concepção democrática com que se moldam as estruturas públicas”.
Tomando-se essa explicação como premissa, pode-se chegar à conclusão de que a extensiva monopolização jurisdicional pelo Estado não é uma demanda consistente da sociedade, mas sim um modelo constituído a partir de leis que assim o estabeleceram. Uma mudança no sistema político, pode, consequentemente, ocasionar mudanças no sistema de solução de conflitos.
“O princípio econômico, por seu turno, deve inspirar tanto o legislador processual quanto o operador do Direito (juiz, advogado, promotor) a obter o máximo rendimento com o mínimo de dispêndio. Deve também o processo, segundo o princípio econômico, ser acessível a todos quantos dele necessitem, inclusive no que diz respeito ao seu custo.”
Verificado isto, deve-se destacar que a escolha de critérios para a resolução de conflitos deve ser pautada pelo critério econômico, uma vez que as atividades estatais trazem grandes custos ao Estado, e, consequentemente, aos contribuintes.
10. Meios extrajudiciais de solução de conflitos: Breve resumo
Devido à extensão do tema, as justificativas e vantagens dos meios extrajudiciais de conflitos já foram tratados em outro artigo[3]. Deve-se mencionar, no entanto, um resumo de suas justificativas, para que o presente artigo não se torne incompleto.
Resume-se as principais vantagens dos meios extrajudiciais de solução de conflitos: Diminuição dos custos processuais para as partes e para o Estado; Diminuição da morosidade dos processos judiciais; Maior efetividade ao direito de acesso à justiça; Tutela de interesses sociais não observados na aplicação "fria" da lei; Empoderamento das partes e; Expectativa de mudança cultural quanto à litigância.
Não é suficiente reclamar e esperar que a morosidade do Poder Judiciário se resolva, a sociedade precisa tomar parte no processo de mudança de solução de conflitos. Não devemos olhar somente o número de processos, mas também o custo que cada um deles causa – que para as partes é de 1.800 a 6.000 reais para as partes, além do custo ao orçamento do Estado, que é responsável pela manutenção de todo o funcionamento do Judiciário.
Vivemos em uma cultura do litígio. Exemplo disso e que pode parecer absurdo à primeira vista é o fato de ser recorrente o empregador esperar o empregado ingressar com ação para pagar o que sabe que deve, causando custos desnecessários. Assim, é necessário uma mudança cultural.
Diz-se ainda que a sanção/sentença nem sempre é benéfica para as partes, pois o que acontece é a aplicação fria da lei, o que vai efetivamente fazer valer os direitos de cada parte, mas não observa os interesses pessoais das mesmas.
11. Estado e Direito
Boaventura de Sousa Santos é doutor em sociologia do direito e sua tese presente em seu livro "A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência" consagra ideias que devem ser mencionadas quando se trata de um paradigma social, que, no presente estudo, é o monopólio jurisdicional do Estado. Diz Boaventura que a cientifização do direito reduziu o direito ao direito estatal, tomando o Estado força e legitimidade de exercer a regulação da sociedade.
Igualmente, traz o autor concepções que visam realizar uma transição paradigmática na sociedade: Um novo paradigma deveria ter suas bases fundadas na transformação do poder em autoridade partilhada, na transformação do direito despótico em direito democrático e na transformação do conhecimento-regulação em conhecimento-emancipação.
Predomina no mundo contemporâneo, sociedades que são reguladas pela cientifica monopolização do direito estatal. Nesse contexto questiona-se se como e se é possível uma sociedade sem Estado (stateless society) organizar-se e garantir os direitos dos cidadãos.
A resposta encontra-se em um estudo de um caso concreto: O da Somália. Esta parte do artigo é guiada por estudo conduzido, em 2005, pelo Dr. Andre Le Sage, chamado "Stateless Justice in Somalia: Formal and Informal Rule of Law Iniciatives", o qual culminou num relatório de mais de 50 páginas sobre o assunto. A Somália tem sido o melhor exemplo mundial de um colapso estatal, isso é comprovado pelo fato de o país não possuir um governo central desde 1991. Apesar das décadas de ausência de centralização estatal e governamental, ao país não faltou administração nesses anos.
Destaca-se no estudo que um aspecto essencial no processo de desenvolvimento da Somália, enquanto sociedade sem Estado, tem sido exercido pela reemergência de sistemas de justiça ao longo do país. Uma mistura de sistemas modernos, tradicionais e religiosos fornecem um mínimo de ordem social. Esses sistemas regulam uma ampla variedade de casos, desde crises constitucionais em administrações políticas administrativas regionais à aplicação de contratos negociais e resolução de disputas conjugais e divórcios. Menos frequente, o setor de "justiça informal" é envolvido com a conciliação de disputas entre clãs e na resolução de disputas políticas. Embora esta tendência não tenha ainda estabelecido todo um "Estado de Direito", com toda sua complexidade, sem dúvidas facilitou e continua facilitando o desenvolvimento da Somália, do setor privado de sua economia, de uma sociedade civil dinâmica e a reconstrução do tecido social do país, além de esforços para promover a paz.
Quatro estruturas principais se destacam como "sistemas de justiça" no país:
Em certas localidades, existem verdadeiras estruturas judiciárias formais: São instituídas pela administração regional, uma vez que algumas regiões da Somália, como a República de Somalilândia e o Puntland State of Somalia estão sob o controle de estruturas formais de Administração Pública.
Os tribunais Xeer, que são sistemas tradicionais, de aplicação do direito consuetudinário das tribos somalis. A aplicação das leis pelo Xeer tem importância maior, mas não exclusiva, nas áreas rurais e é aplicada por anciões tradicionais. É um meio comum de resolução de disputas.
Os tribunais da Shari'a, que são tribunais de lei islâmica, que são entidades que se separaram dos tribunais Xeer após a década de 90, sendo aplicáveis a partir de um fundamentalismo religioso, e principalmente nos grandes centros urbanos da Somália.
Por fim, existem as iniciativas da sociedade civil e mecanismos ad hoc estabelecidos por facções de milícias somalis. Se constituem de mecanismos estabelecidos por facções de certas milícias estabelecidas para resolver disputas locais.
O que se conclui é que prescinde do Estado a ideia de resolução de conflitos. Mesmo na Somália, país sem governo central, e subdesenvolvido economicamente, foi possível para a sociedade estabelecer mecanismos para regular as suas ações no campo da (i)licitude. Profissionais jurídicos somalis têm o seu espaço no mercado e estimulam a arbitragem privada para empresas.
Além disso, o policiamento, atividade tipicamente estatal, muitas vezes é realizado pela própria sociedade. Comunidades locais somalis têm estabelecido entre si "equipes de vigilantes" para tomar conta da segurança pública, uma vez que o Estado inexiste ou se omite.
Conclusão
Conclui-se no presente artigo que é necessária a propagação no meio acadêmico das vantagens dos meios extrajudiciais de solução de conflitos, por diversas razões, sejam elas econômicas, sociais ou de eficácia axiológica.
Ademais, vem sendo percebida a prescindibilidade do Estado para a resolução dos conflitos interpessoais. Do ponto de vista sociológico, a partir da análise de Boaventura de Sousa Santos, isso pode chegar a corresponder à uma transformação paradigmática no que diz respeito à cientifização e monopolização do direito estatal. Para o autor, viver em fronteira significa, basicamente, possuir hierarquias fracas, e consequente maior fluidez da sociabilidade, pluralidade de ordens jurídicas, fluidez das relações sociais, misturas de heranças e invenções. Viver em fronteira é uma transição, sendo necessário decidir quais características sociais dos laços anteriores deve-se eliminar, e o que precisa ser implementado numa sociedade. É necessário, para alcançar as fronteiras, caminhar e descobrir os limites dos paradigmas da sociedade, o que é possível a partir de uma reinvenção da tutela nos conflitos intersubjetivos.
Desse modo, é preciso se desgarrar da confiança cega nos poderes estatais, cultuando-o como o soberano de todo e qualquer poder, uma vez que ele não é o detentor de todos os meios de solução de conflitos e é constituído a partir da contribuição econômica daqueles que nele habitam. Esse desprendimento do Estado, não deve, no entanto, ser radical, sob pena de se afetar sólidas instituições jurídicas que só vem a estabelecer o bem estar da sociedade.
Informações Sobre o Autor
João Pedro Ruppert Krubniki
Acadêmico de Direito na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC)