Análise da ressocialização da pena à luz do projeto recomeçar

Resumo: Este artigo objetiva analisar os projetos implantados na execução penal brasileira que utilizam a laboroterapia como meio para o cumprimento da função social da pena. O trabalho começa analisando a função social da pena, seus objetivos, finalidades e desafios, em seguida passa a analisar o Projeto Recomeçar, implantado na execução penal da Comarca de Dourados/MS. Foram analisados os objetivos do Projeto, os desafios para a sua implantação e o processo utilizado para isso, bem como de que maneira ele é executado em Dourados e quais os critérios para que os reeducandos possam participar dele. Por fim, tomando o Projeto Recomeçar como modelo, o artigo analisa se projetos que se baseiam na laboroterapia são determinantes ou, pelo menos, úteis no cumprimento da função social da pena.[1]

Palavras-chave: Função social da pena. Laboroterapia. Reincidência. Ressocialização. Execução penal.

Abstract: This article aims to analyze the projects implanted in the bransilian penalty execution that uses the labor tharapy as a way to accomplish the social function of penalty. The paper work starts by analyzing the social function of penalty, its goals, purposes and challenges, then it analyzes the Recomeçar Project, implanted in the penalty execution in the region of Dourados/MS. There were analyzed the goals of the Project, the challenges to its implantation and its process, as well as how it is executed in Dourados and which are the criteria for the convict to participate in it. Lastly, using the Recomeçar Project as a model, the article analyzes if projects that are based on the labor therapy are determinant or, at least, useful for compliance of the social function of penalty.

Keywords: Social function of penalty. Labor therapy. Relapse. Resocialization, Penalty execution.

Sumário: Introdução. 1.Função social da pena. 1.1 O Princípio da dignidade humana e a função social da pena. 1.2. A finalidade da pena. 1.3. O poder do sistema penal não consiste somente na pena. 1.4 Teorias da pena e a execução penal no tempo.  1.5. Relação entre a função social da pena e a realidade dos estabelecimentos penais brasileiros. 1.5.1 Da importância dos projetos de ressocialização para o cumprimento da função social da pena. 1.6 A relação de proporcionalidade entre o delito e a pena. 2. O projeto Recomeçar. 2.1 Origem do projeto Recomeçar. 2.1.1 Objetivos do projeto Recomeçar. 2.1.2 Dificuldades para a implantação do projeto Recomeçar. 2.1.3 Processo para conscientização da sociedade civil e implantação do Projeto. 2.1.3.1 Benefícios para as empresas que dão oportunidade de trabalho àqueles que estão cumprindo pena. 2.1.4 Critérios para os condenados que desejam participar do projeto Recomeçar. 2.2 Empresas conveniadas. 3. Metodologia do projeto recomeçar para a ressocialização. 3.1 Objetivos do projeto e os preceitos da função social da pena. 3.1 Desafios quanto à laboroterapia terceirizada. 3.2.1 Exploração da mão de obra. 3.3 Informações do sistema carcerário Douradense de regimes semiaberto e aberto masculino. Conclusão.

Introdução

O Brasil está entre os países com as maiores populações carcerárias do mundo. São mais de 700.000 pessoas presas segundo os dados levantados pelo CNJ.[2] Porém, se não bastasse a população carcerária exorbitante, o país também possui níveis de reincidência altíssimos.

Se entre os dados gerais de um país de proporções continentais como este os números são tão alarmantes, nas regiões de fronteira a situação tende a ser ainda mais grave. Para se ter uma ideia, segundo o levantamento do CNJ, o Estado do Mato Grosso do Sul possui capacidade para 7.357 presos, porém, o Estado conta hoje com cerca de 14.288 presos (contando as pessoas recolhidas em regime domiciliar), ou seja, o dobro da capacidade. Isso falando de uma Unidade da Federação que conta com aproximadamente 2.651.235 de habitantes segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.[3]

Toda essa situação contribui para um sistema prisional falho, superlotado e com condições degradantes para os recolhidos, condições que atentam contra o princípio da dignidade humana e contribuem para que o sistema prisional brasileiro se afaste completamente dos objetivos da função social da pena.

A pena possui dois aspectos, o de punição e o de reflexão, porém, para que eles sejam alcançados é necessário um sistema estruturado e que ofereça condições de trabalho, estudo e convívio em grupo, tudo isso sem perder o seu caráter punitivo, de privação ou restrição de liberdade.

Uma das formas de aliar a punição à reflexão e à ressocialização é através da laboroterapia.

É essa opção que está sendo utilizada na Comarca de Dourados/MS através do Projeto Recomeçar, um projeto implantado no sistema de Execução Penal e que busca realizar convênios, através da Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário do Mato Grosso do Sul (AGEPEN/MS), com empresas para que os apenados possam trabalhar.

Esses convênios englobam tanto o sistema de regime fechado, quanto os regimes semiaberto e aberto e busca oferecer opções de emprego às pessoas que cumprem pena.

É claro que as regras para a execução do trabalho variam de acordo com o regime em que a pessoa cumpre pena, mas visa capacitar os apenados ou oferecer emprego nas atividades que eles já dominam.

Além disso, é necessário todo um trabalho acessório de conscientização da sociedade civil e das empresas de que precisam atuar na reinserção de um egresso do sistema carcerário e também um trabalho com os reeducandos, evidenciando a necessidade de comprometimento e responsabilidade deles para que o Projeto tenha sucesso.

Enfim, o Projeto Recomeçar se utiliza da laboroterapia como meio para aproximar o sistema da execução penal de Dourados da função social da pena e, assim, reduzir os níveis de reincidência penal.

Infelizmente, há desafios para pesquisar a fundo o Projeto, por exemplo, a dificuldade de contato com as empresas conveniadas a ele. Por esse motivo, não foi possível encerrar o trabalho comparando unicamente o Projeto Recomeçar à função social da pena, também foi necessário utilizar dados do Conselho Nacional de Justiça e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, tornando a análise mais ampla que o esperado.

Ainda assim, foi possível observar se a laboroterapia ajuda no cumprimento da função social da pena e de que maneira ela influencia na ressocialização do apenado, de maneira a contribuir para a redução dos índices de reincidência criminal.

1 Função social da pena

Muito se fala do problema crescente do sistema penal brasileiro. Pondera-se que ele não cumpre a função da reeducação, que não respeita a dignidade humana e que não tem o condão de reeducar e sim de privar o apenado de sua liberdade.

Porém, ainda que se fale tanto nesses aspectos, poucas são as pessoas as quais realmente compreendem a função social da pena e quais são os principais objetivos que ela visa cumprir.

É necessário ponderar que os dois principais aspectos da pena são os de punir e ressocializar. Ora, é necessário punir, não se pode criar a sensação de impunidade e a população não pode acreditar que o desrespeito às normas penais ficará impune ou o caos se instalará.

Por outro lado, simplesmente punir alguém não resolve o problema do índice de criminalidade do Brasil, também é necessário que haja uma ressocialização, a qual inclui a reflexão, reeducação e a recuperação da dignidade pelo apenado para que ele sinta que pode ser reinserido no mercado de trabalho.

 Mas principalmente, é necessário que a sociedade esteja pronta e receptiva para receber uma pessoa ressocializada, a pessoa precisará de oportunidade de emprego, de recuperar as relações sociais e sentir que será capaz de reconstruir uma família ou de recuperar a antiga.

1.1 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA E A FUNÇÃO SOCIAL DA PENA

O principal problema relacionado ao sistema penal brasileiro, e também observado na cidade de Dourados/MS, são as condições precárias dos estabelecimentos penais. Em geral as dependências não são adequadas, a alimentação é precária, mas principalmente, praticamente todos os estabelecimentos penais da país estão superlotados.

Isso ofende diretamente ao princípio da dignidade humana, pois não há situações limite que os apenados podem viver. Helena Regina Lobo da Costa afirma:

“Atuando como princípio, a dignidade humana determina o absoluto respeito ao núcleo dos direitos fundamentais vida, integridade física e psíquica, liberdade, autonomia e igualdade, devendo ser utilizada em situações limite, caracterizadas pela dominação ou subjugação da pessoa.”[4]

Além disso, o princípio da dignidade humana está diretamente relacionado à análise da culpabilidade do indivíduo. Conquanto existam várias teorias sobre o que seja culpabilidade, é pacífico que ela é essencial para a análise da pena a ser fixada. Ou seja, a natureza, gravidade e condições do delito delimitarão até que ponto a dignidade humana será ameaçada pela imposição de uma pena.

Isso porque, privar uma pessoa de sua liberdade e impor uma pena fere sim este princípio, porém, há um limite aceitável para que isso aconteça, a depender da culpabilidade.

1.2 A finalidade da pena

Está bastante sedimentado que a pena não tem função apenas punitiva, mas também de reeducação. Isso ocorreu por que muitas constituições europeias, no pós Segunda Guerra Mundial passaram a valorizar o objetivo reeducativo da pena.

Ainda que na Constituição Federal brasileira não haja previsão expressa neste sentido, infere-se através de outros dispositivos nela inseridos um respeito muito grande pela dignidade humana. Além disso, extrai-se da Constituição que a pena deverá ser regida por legislação ordinária.

Apesar de não mencionar expressamente certos dispositivos sobre a pena, a Carta Magna brasileira inovou ao vedar as penas de morte e perpétua, o que permite verificar a forte incidência da finalidade da reeducação e não somente punição.

Luiz Luisi, em seus Princípios Constitucionais Penais ensina:

“Poder-se-á, portanto, deduzir da proibição da pena de morte e da prisão perpétua que o propósito do constituinte foi o de firmar que a pena não tem somente uma função retributiva e, também, uma função de prevenção geral, mas objetiva, ainda, propósitos reeducativos.

Parece, em princípio lícito, em termos, esse entendimento. As proibições mencionadas expressam, sem dúvidas, e basicamente, o princípio da humanização da sanção penal, mas implicitamente indica que a pena não tem apenas como únicos fins, o de castigar e de intimidar, mas que pode ser instrumento de reinserção social do delinquente”.[5]

Todas essas preocupações do legislador atual ocorrem, pois, uma vez reinserido na vida em sociedade, depois de ter a oportunidade de refletir sobre o delito que cometeu e ao ver que possui expectativas de emprego e vida socialmente saudável, se torna muito mais difícil que aquela pessoa volte a delinquir e aumenta consideravelmente a probabilidade de que ele deixe de ser um indivíduo problemático para a ordem social.

Diante disso, Luisi[6] defende ainda que a pena é polifuncional, pois ela é retributiva e preventiva, mas tem como função secundária a de reeducar. Imperativo que isto somente é possível com uma estrutura adequada e desde que haja uma movimentação política para que seja incentivado o investimento neste sentido.

1.3 O poder do sistema penal não consiste somente na pena

Ao contrário do que se pensa, o poder maior do sistema penal é o de vigilância, observação e controle, sendo a pena, apenas consequência de todos esses poderes principais.

Uma vez que o sistema penal possui todas essas prerrogativas, sendo capaz até de obter dados privados e por fim impor sanções penais e cercear a liberdade de pessoas, percebe-se que a pena é somente uma forma de exteriorizar todo o poder concentrado nas mãos do Estado através do Direito Penal.

Sobre o assunto, Eugenio Raúl Zaffaroni e Nilo Batista são enfáticos:

“Se existe alguma dúvida acerca do enorme poder verticalizador do sistema penal, basta olhar para a experiência histórica: o sindicalismo, o pluralismo democrático, o reconhecimento da dignidade das minorias, a própria república, conseguiram estabelecer-se sempre em luta com esse poder.  Qualquer inovação social que se fizer em prol do desenvolvimento humano deverá enfrentar o sistema penal; todo conhecimento e todo pensamento abriu caminho confrontando-se com o poder punitivo. A história ensina que os avanços da dignidade humana sempre ocorreram em luta contra o poder punitivo”.[7]

Apesar das duras críticas de Batista e Zaffaroni, é imperioso salientar que o Estado e o Direito Penal evoluíram muito ao longo dos anos. Ainda que, em parte, essa evolução seja fruto das lutas contra o sistema repressor, certo é que o sistema penal e prisional busca cada vez mais se adequar ao princípio da dignidade humana.

Além disso, se usado de forma correta, o poder de controle e observação do sistema punitivo pode ser usado a favor da sociedade e até mesmo do apenado.

Isso porque, se houver o interesse do Estado em utilizar penas alternativas e medidas de reeducação, o poder de observação e controle permite que o Estado promova novas oportunidades de trabalhar e estudar aos condenados penalmente. Da mesma forma, o apenado em regime aberto, por exemplo, pode sair para visitar a família, trabalhar, estudar e tudo isso, além de servir para reduzir a pena dele, o incentiva a retornar ao mercado de trabalho e a ganhar a confiança do Estado e da sociedade novamente.

Consequentemente, se o Estado usar o poder de vigiar e punir a seu favor e da sociedade, é possível reinserir de maneira gradativa um reeducando na sociedade, porém sem perder o controle sobre onde ele está, afinal, ele ainda está cumprindo a pena.

1.4 Teorias da pena e a execução penal no tempo

A principal característica do direito é a sanção, porém, no direito penal ela é muito mais evidente, motivo pelo qual esse ramo jurídico se distingue dos demais.

O direito penal acaba por se destacar dos demais, não somente por ter sanções mais gravosas, mas principalmente porque na maioria dos casos, ela envolve restrição à liberdade do indivíduo.

Dentro desta análise estão as teorias de fundamentação da pena, as quais afirmam que o monopólio da coação pertence ao Estado e representa uma grande conquista da modernidade, chegando até mesmo a dizer que o Estado toma para si o monopólio da violência através da legitimidade para punir.

Por esse motivo, analisando o ponto de vista da teoria política, Salo de Carvalho avista duas conclusões possíveis sobre a representação penal.

“Nesse sentido, desde o ponto de vista da teoria política, duas conclusões são possíveis sobre a forma moderna de representação da sanção penal. A primeira é a de que o uso da força e a reivindicação de sua legitimidade instauram a ordem jurídico-política; a segunda é a de que a pena imposta pela autoridade constituída é, inevitavelmente, um ato de violência programado pelo poder político e racionalizado pelo saber jurídico.”[8]

Muito evoluiu a forma de aplicação da pena no mundo. No período medieval a punição era dirigida ao corpo do infrator, pois era tudo o que ele tinha para abrir mão. Ocorre que, com o passar do tempo, passou-se a perceber uma nova maneira de aplicação de sanções penais.

Descobriu-se que mais intensa do que a sanção corporal era aquela atingia diretamente a sua liberdade e capacidade de trabalho.

Em seguida, no século XVIII, foi difundido o modelo Kantiano, que viria a ser ainda mais importante no século XX.

Em sua obra Metafísica dos Costumes, Kant defende que a pena não possui função relativa, de reeducar e ressocializar, mas sim é aplicada para repreender.

Para Hegel, a pena seria aplicada pois é necessário reparar o direito violado.

1.5 Relação entre a função social da pena e a realidade dos estabelecimentos penais brasileiros

Além disso, salienta-se que a realidade penal da região é bastante precária, o número de agentes que trabalham na Penitenciária Estadual de Dourados, na comarca de Dourados/MS é extremamente reduzido, da mesma forma, até recentemente o regime semiaberto não era adequado do que dispõe a Lei de Execuções Penais (LEP) e o regime aberto não é devidamente fiscalizado.

Além disso, por ser precária a situação, muitas vezes a polícia é taxada como violenta, como repressora, porém isso só ocorre na vã tentativa de manter a ordem dentro e fora dos estabelecimentos penais.

Não obstante, devido à problemas como a superlotação e as condições muitas vezes sub-humanas a que são submetidos os apenados dentro dos estabelecimentos penais, as funções de reflexão e reeducação são deixadas totalmente de lado e substituídas por verdadeiras universidades do crime.

A cidade de Dourados/MS, por exemplo, tem números alarmantes. A Penitenciária Estadual de Dourados contém aproximadamente 2100 reclusos, quando sua capacidade é para 718 pessoas. Da mesma forma, cumprindo pena em regime semiaberto, aberto e livramento condicional estão cerca de 700 pessoas.

Esses dados, além de muito altos para uma cidade com menos de 200.000 (duzentos mil) habitantes, também demonstram a precariedade do sistema penal local, que nada mais é do que um espelho da realidade brasileira atual.

Infelizmente o número excessivo de pessoas dentro dos estabelecimentos torna mais difícil a realização de projetos e a manutenção da organização do lugar e dos presos.

Mas não é só, segundo um estudo conduzido pelo Instituto Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em parceria com Conselho Nacional de Justiça denominado Reincidência Criminal no Brasil, a população carcerária do Brasil aumentou 83 vezes em apenas 70 anos.[9]

1.5.1 Da importância dos projetos de ressocialização para o cumprimento da função social da pena

Apesar das condições alarmantes, é possível colocar em prática projetos que vão ao encontro dos objetivos da função social da pena. Em diversos locais do país estão em vigor modalidades de pena alternativa que, além de amenizar os problemas de superlotação e decorrentes destes, também visam cumprir finalidade de ressocializar.

Em Rio Brilhante/MS, por exemplo, as mulheres do presídio feminino fazem trabalhos manuais.

Em Paranaíba/MS, o projeto Recomeçar chegou ao ano de 2011 com todos os reeducandos dos regimes aberto, semiaberto e do livramento condicional trabalhando.

Em Dourado/MS, o projeto Recomeçar, idealizado pelo mesmo magistrado de Paranaíba, já conta com mais de 700 condenados trabalhando. Mas não é só nos regimes aberto, semiaberto e no livramento condicional, na Penitenciária Estadual de Dourados (PED), os reclusos também tem os seus projetos. A PED conta com uma  padaria, uma oficina de reforma de carteiras escolares, uma fabrica de bolas de futebol, além de a limpeza do presídio ser responsabilidade dos reclusos.

Todos estes projetos, os quais são somente alguns exemplos de todos que existem no Brasil, visam unir o caráter punitivo e ressocializador da pena. Isso porque os condenados não são soltos, mas são qualificados e passam a vislumbrar oportunidades de se reinserir no mercado de trabalho.

Um apenado do regime aberto, por exemplo, que durante o dia pode sair do estabelecimento e que tem um emprego e recebe um salário mínimo, deve criar novas expectativas para quando terminar o cumprimento de sua pena.

Além disso, o Relatório do Ipea mencionado acima pondera:

“Conforme previsto na LEP, além do caráter retributivo, a sanção penal deve ter como função “reeducar” e proporcionar condições para a “harmônica integração social do condenado ou do internado”. Nessa perspectiva, as instituições penitenciárias têm a atribuição de executar um conjunto de atividades que visem a esse fim. Essas atividades devem promover o “tratamento” penal com base nas assistências material à saúde, jurídica, educacional, social religiosa e ao trabalho. Para isso, os estabelecimentos penais devem ser dotados de estrutura física e humana”.[10]

Diante disso, projetos de penas alternativas buscam a ressocialização, a recuperação da dignidade humana e de expectativas sobre o mercado de trabalho e a sociedade, só resta analisar se eles realmente cumprem essa proposta, o que será feito no ­­­terceiro capítulo deste trabalho.

1.6 A relação de proporcionalidade entre o delito e a pena

Por fim, mas não menos importante, não basta criar penas alternativas e resolver o problema de superlotação do sistema carcerário nacional se não houver uma proporcionalidade entre o delito cometido e a pena imposta.

Em primeiro lugar, é necessária uma análise minuciosa da culpabilidade, a fim de conferir se o delinquente realmente é culpável.

Helena Regina Lobo da Costa acertadamente pondera:

“A imposição de uma pena sem observância da culpabilidade resulta na violação do cerne da autonomia e da liberdade, já que se trata de uma sanção gravíssima, que atinge frontalmente não apenas a liberdade, mas, sobretudo, a honra do condenado e que deve ser a resposta a um ato reprovável. Do contrário, subjuga-se a pessoa, violando a sua dignidade.”[11]

Dessa forma, para que cumpra a sua função, a pena deve ser proporcional, fruto de uma análise delicada sobre a culpabilidade, e buscar a verdadeira reeducação e reinserção social, tão discutidas atualmente.

Uma pena que não observa esses critérios nada mais é do que uma privação de liberdade que dificilmente servirá como um instrumento de reflexão e resultará no caos que é o sistema penal brasileiro, com índices de reincidência altíssimos e desesperadores, com penitenciárias superlotadas e índice de evasão dos regimes semiaberto e aberto altíssimo.

A única forma de buscar amenizar o problema e de forma lenta tentar visualizar uma solução definitiva é buscando sempre cumprir a função social da pena e trazer à tona a dignidade da pessoa humana de volta.

2 O projeto recomeçar

2.1 Origem do projeto recomeçar

O Projeto Recomeçar é realizado no sistema carcerário e de cumprimento de pena, teve origem na comarca de Paranaíba/MS no ano de 2009 e também está presente na comarca de Dourados/MS desde julho de 2011.

Seu idealizador foi o então juiz de direito titular da Vara de Execuções Penais de Paranaíba Francisco Vieira de Andrade Neto, o qual, ao assumir a Vara Criminal de Execuções Penais em Paranaíba no final do ano de 2007 se deparou com um presídio que mantinha uma população carcerária em número superior ao dobro de sua capacidade.[12]

Diante desta realidade o juiz passou a trabalhar para que a quantidade de internos fosse reduzida até a capacidade do presídio local, de maneira a tornar possível um processo mais adequado de ressocialização.

Outro obstáculo para o devido cumprimento da pena foi a ausência de colônia penal agrícola nas Comarcas de Paranaíba e Dourados/MS para o cumprimento de pena em regime semiaberto, bem como a má estrutura das casas do albergado para o cumprimento da pena em regime aberto, de modo que se tornou necessária a manutenção e maior fiscalização da casa do albergado como estabelecimento penal aberto e semiaberto.

Pois bem, esta realidade carcerária de superlotação, desorganização, falta de fiscalização e falta de perspectiva para os presos só contribui para a reincidência penal, a qual é fruto da desilusão dos apenados quanto a qualquer possibilidade de reinserção na sociedade e no mercado de trabalho. Como discutido no capítulo anterior, não condiz em nada com a função social da pena.

Em entrevista informal realizada com o Juiz de Direito Francisco Vieira de Andrade Neto, então titular da 3a Vara Criminal de Execução Penal e do Tribunal do Júri na Comarca de Dourados, no dia 20/02/2014, no Fórum de Dourados, ele expôs a necessidade de aproximar a humanização das penas e a Lei de Execução Penal (LEP).

Ele explicou ainda a necessidade de aliar a punição à reflexão, tendo em vista a necessidade de haver uma consciência coletiva de que o cometimento de um crime deve ser punido. Pela aplicação da lei penal se evita o caos, porém também é necessário que o infrator tenha a oportunidade de refletir sobre sua ação e vislumbre uma possibilidade de, depois de cumprida a pena, retornar para a sociedade como um indivíduo ressocializado, com possibilidade de retornar ao mercado de trabalho e voltar a exercer sua cidadania com dignidade.

Dignidade. O magistrado utilizou bastante a palavra dignidade. Para ele os estabelecimentos prisionais e o modo como é executado o cumprimento de penas no Brasil não vai ao encontro da dignidade da pessoa humana.

Estabelecimentos penais superlotados, higiene precária, ociosidade completa, falta de estabelecimentos para abrigar os apenados em regime semiaberto e, acima de tudo, um preconceito latente por parte da sociedade aos egressos do sistema penal. Tudo isso vai contra a função social da pena e para o Dr. Andrade Neto só contribui para que eles voltem a delinquir e percam de vez suas expectativas de retornar à vida em sociedade.

Foi ao observar todos estes aspectos da execução da pena que surgiu a ideia do Projeto Recomeçar.

2.1.1 Objetivos do Projeto Recomeçar

O Projeto visa “humanizar as condições de cumprimento de pena, inserir os reeducandos no mercado de trabalho, fiscalizar o cumprimento, especialmente, das regras dos regimes semiaberto e aberto”, além disso, o Projeto tem “a finalidade de torná-los [o presídio e a casa do albergado] ambientes mais humanos”.[13]

O Projeto busca, além dos motivos expostos acima, a melhoria das condições de segurança pública, tendo em vista que, quando ressocializados de maneira digna, a tendência é que os níveis de reincidência penal reduzam consideravelmente.

Também é importante destacar que para a ressocialização e humanização dos ambientes é preciso incentivar o trabalho. Por este motivo, através de parcerias com empresas, Prefeituras, Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário (AGEPEN/MS) e também da participação da sociedade, o Projeto busca dar oportunidade de trabalho aos apenados e também qualificação profissional para aqueles que precisam.

Evidente que as regras quanto ao trabalho variam de acordo com o regime de cumprimento de pena e também precisam se adequar ao ambiente, porém, segundo o Dr. Andrade Neto, o labor gera novas expectativas e a possibilidade real de reinserção no mercado de trabalho e, consequentemente, na vida em sociedade.

Além disso, a sociedade torna-se mais receptiva com os egressos do sistema carcerário quando eles possuem um ofício e já tem expectativa de exercê-lo.

Por fim, o objetivo maior do Projeto é humanizar o cumprimento da pena aproximando-o cada vez mais da função social da pena e criando expectativas reais para a reinserção dos presos na sociedade, de modo que eles não voltem a delinquir.

2.1.2 Dificuldades para a implantação do Projeto Recomeçar

Motivos para a implantação do Projeto Recomeçar não faltaram ao magistrado Francisco Vieira de Andrade Neto, porém, as dificuldades também marcaram presença quando ele começou a colocá-lo em prática.

O primeiro grande obstáculo foi a falta de estrutura do sistema penal brasileiro. Presídios superlotados, orçamentos extremamente limitados, ausência de colônia penal agrícola, falta de servidores tanto no judiciário quanto nos estabelecimentos penais, enfim, um ambiente que se aproxima do caos e só dificulta a fiscalização da execução da pena e a implantação de qualquer projeto organizado que vise dignificar o seu cumprimento.

Outro obstáculo que vale destacar é a falta de participação e interesse da iniciativa privada na ressocialização dos presos através da recusa em ofertar empregos e reinseri-los no mercado de trabalho, o que contribui para que eles já terminem de cumprir a pena sem qualquer perspectiva de se manter economicamente.

Nessa mesma linha está o próximo obstáculo, o preconceito da sociedade civil contra aqueles que sofreram uma condenação penal. O rótulo de que “bandido não deixa de ser bandido” faz com as pessoas se recusem a oferecer empregos e até a conviver com ex-condenados.

Muitas vezes até mesmo a família afasta completamente uma pessoa porque ela cumpriu pena por um delito, não permite que ele volte para casa ou conviva em sociedade, minando as possibilidades de que aquela pessoa viva dignamente outra vez.

Segundo o Dr. Andrade Neto, a própria sociedade “enxerga com repulsa todo projeto que vise dar oportunidade a preso”.[14]

2.1.3 Processo para conscientização da sociedade civil e implantação do Projeto

Em razão de tantas dificuldades encontradas, em especial a falta de engajamento da iniciativa privada e o preconceito da sociedade civil, se fez necessário criar um processo de conscientização e inserção da população e das empresas no Projeto Recomeçar, tendo em vista que sem a participação e comprometimento destes atores não seria possível alcançar os principais objetivos do Projeto.

Então, antes da implantação Projeto, o Dr. Andrade Neto realizou uma série de reuniões com diversos empresários locais para a divulgação de suas ideias e das vantagens que eles teriam em aderir ao Projeto e principalmente, em oferecer emprego aos reeducandos.

Outro passo importante neste processo foi a reunião com os representantes das empresas de comunicação, pois através deles foi possível dar ampla divulgação ao Projeto e também esclarecer, utilizando os meios de comunicação locais, quais eram os seus objetivos e também quão importante seria a participação e apoio da sociedade.

Superada esta primeira etapa de conscientização local foi necessário entrar em contato com a AGEPEN/MS para que eles estivessem presentes no lançamento do Projeto Recomeçar e se dispusessem a firmar, com a maior brevidade possível, os convênios com as empresas que concordaram em aderir ao Projeto.

Estes convênios também não poderiam demorar a sair para que os presos não desanimassem dos objetivos do Projeto e voltassem a se sentir sem perspectiva.

Outra etapa de suma importância foi a realização de uma série de reuniões com os apenados para expor o Projeto e também para conscientizá-los da importância do interesse e comprometimento deles.

Na implantação do Projeto na cidade de Paranaíba/MS, o magistrado também encontrou uma parceria extremamente útil no curso de direito da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) em Paranaíba. Segundo o convênio firmado com a UEMS, os acadêmicos se comprometeram a manter atualizados os cálculos de pena dos condenados de maneira que sempre que eles tivessem direito à um benefício ele fosse concedido.

Além disso, a atualização dos cálculos de pena incluía os dias de remissão a que os presos tinham direito em função da participação no Projeto e ajudava a evitar a superlotação dos estabelecimentos com pessoas que já tinham direito a progredir de regime.

Enfim, foi necessário todo um processo que começou com a busca do apoio e participação da sociedade, passou pela busca de apoio e participação das empresas locais, reuniões com autoridades, garantia do comprometimento dos apenados e participação da AGEPEN para que o Projeto pudesse sem implantado.

Mas não se deve esquecer que esse processo não termina aí, também é necessária uma rigorosa fiscalização das regras de cumprimento de pena, bem como reuniões periódicas com os presos para cobrar-lhes lealdade ao Projeto e à oportunidade que lhes está sendo dada.[15]

Só assim, a sociedade se sentirá cada vez mais segura em recebê-los novamente, e eles se sentirão aptos a retornar ao convívio social.

2.1.3.1   Benefícios para as empresas que dão oportunidade de trabalho àqueles que estão cumprindo pena

Além da reinserção do preso na sociedade, de sua capacitação profissional e expectativa de redução dos níveis de reincidência, as empresas que empregam os apenados também possuem benefícios que refletem no aspecto financeiro.

O primeiro deles é que o regime jurídico dos empregados que cumprem pena não é o disposto na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), mas sim o da Lei de Execução Penal (LEP).[16]

A LEP em seu art. 41, II dispõe que é direito do preso “atribuição do trabalho e sua remuneração”.[17]

Porém, ao regulamentar a remuneração, a Lei indica que o salário do preso não pode ser inferior a três quartos do salário mínimo, ou seja, pode ser inferior a um salário mínimo.

Outra vantagem é que como não se submete a regulamentação da CLT, o empresário fica isento de encargos como férias, décimo terceiro salário, recolhimento do INSS e FGTS, de maneira que dependendo do piso salarial, os custos de mão-de-obra podem ser reduzidos em até 50% com a contratação de apenados.

É claro que também há obrigações para a empresa. Ela deve cuidar dos meios de produção, capacitar os trabalhadores quando necessário, e se encarregar da venda dos bens produzidos.

Também há preferência para produção de bens de consumo que tenham utilidade comercial e limitação da quantidade de condenados para realizar trabalhos externos ao estabelecimento penal. Esta última se aplica àqueles que cumprem pena em regimes fechado e semiaberto.

Outro benefício é que, em alguns estados da federação, quando as atividades se desenvolvem dentro do presídio não são cobrados custos como água, energia e alimentação, reduzindo ainda mais os custos da empresa.

Além disso, é uma ação de grande relevância social pois possibilita que os presos terminem de cumprir suas penas e já fiquem empregados na própria empresa, ou, ainda que saiam, saiam capacitados para exercer um ofício.

Vale ressaltar que como em regra três dias de trabalho reduz um dia da pena, eles são considerados trabalhadores assíduos e muito comprometidos, tanto que as empresas se esforçam para mantê-los e até mesmo justificar eventuais atrasos para se apresentar a casa do albergado, por exemplo, quando o atraso foi em razão do trabalho.

Enfim, não se pode ignorar que a grande rotatividade de presos, a limitação de horários e a necessidade de adequação do espaço são pontos negativos, porém, ao menos na teoria, as vantagens superam, e muito, as desvantagens de empregar pessoas que cumprem pena.

2.1.4 Critérios para os condenados que desejam participar do Projeto Recomeçar

Durante a entrevista realizada com o Dr. Andrade Neto, ele informou que não há uma regulamentação com critérios fixos para a participação no Projeto. Para ele o propósito é exatamente este, não excluir ninguém da possibilidade de trabalho.

Porém, o magistrado ponderou que as vagas de trabalho são limitadas, e infelizmente, não é possível beneficiar todos os condenados das Comarcas em que o Projeto está vigente. Por esta razão, costuma-se dar prioridade aos condenados com as maiores penas e àqueles que possuem bom comportamento.

A questão do bom comportamento é fundamental especialmente para os apenados que realizam trabalho externo ao estabelecimento prisional e também aos que lidam com objetos cortantes ou que possam ser utilizados como armas, por exemplo, os que atuam em padarias, marcenarias, confecções, entre outras atividades.

Também foi preciso estabelecer uma sanção para os que cometem falta disciplinar na execução do trabalho relacionado ao Projeto.

Para o Dr. Andrade Neto, a melhor opção encontrada foi a exclusão temporária da lista de empregados. Essa sanção se torna adequada quando se analisa a limitação de vagas de emprego, pois deve-se beneficiar os mais comprometidos e interessados na manutenção do Projeto,

Porém, para ele, ninguém deve ser excluído permanentemente das atividades do Projeto Recomeçar. O Projeto visa dar aos apenados a oportunidade de exercer um ofício, se qualificar profissionalmente e se reinserir na sociedade, logo não seria aceitável a exclusão permanente de nenhum condenado.

Também vale ressaltar que as regras para execução do trabalho e convênio com as empresas é diferente para a penitenciária, regime fechado, e para os regimes semiaberto e aberto.

2.2 Empresas conveniadas

Segundo pesquisa realizada na Junta Comercial do Mato Grosso do Sul, atualmente existem cerca de 16.716 empresas ativas no município de Dourados/MS.[18]

Dessas 16.716 empresas, no mês de novembro de 2015, 58 (cinquenta e oito) delas estavam conveniadas ao Projeto Recomeçar no regime aberto, porém apenas 21 (vinte e uma) estavam efetivamente empregando os reeducandos e usufruindo do Projeto.[19]

Em sua maioria, estas empresas atuam na área da construção civil, marcenaria e assistência mecânica para carros, ofícios comuns entre muitos dos apenados no município de Dourados, porém, também há vagas para trabalhar como garçom, prestar assistência técnica em eletrônicos e assessoria em Cartórios e também como auxiliar de serviços gerais, por exemplo.

Em novembro de 2015, haviam 175 apenados em regime aberto, entre homens e mulheres que trabalhavam para estas empresas no município de Dourados.[20]

Porém, também existem as empresas que atuam dentro dos estabelecimentos penais de regime fechado e semiaberto neste município. Dentro da colônia penal agrícola de Dourados, por exemplo, funciona uma fábrica da Donana, empresa de alimentos tradicional no Estado do Mato Grosso do Sul, que emprega grande quantidade de pessoas.

Além disso, dentro da Penitenciária Estadual de Dourados, há um fábrica de bolas de futebol, uma marcenaria que recupera carteiras escolares no período de férias e uma padaria, todas elas empregando uma grande quantidade de reclusos.

A padaria da Penitenciária abastece não só ela como também a Colônia Penal Agrícola e o Semiaberto feminino.

É claro que estas atividades dentro da Penitenciária e da Colônia Penal Agrícola demandam mais atenção do empregador e também da fiscalização do estabelecimento penal, tendo em vista que os presos se mantêm em contato com objetos cortantes e que podem ser utilizados como armas. Por essa razão, é exigida uma rigorosa fiscalização por parte das empresas do trabalho desenvolvido dentro do estabelecimento.

Por fim, como na maioria das questões envolvendo o sistema carcerário brasileiro, implantar um projeto como este e contar com apoio da sociedade e da iniciativa privada ainda é um grande desafio e também muito rara nos estabelecimentos penais do Brasil.

3 Metodologia do projeto recomeçar para ressocialização

Em primeiro lugar, é necessário ponderar que apesar do objetivo inicial do trabalho ser voltado para a análise do Projeto Recomeçar sob a luz da função social da pena, esbarrei em obstáculos no caminho, como a difícil comunicação com as empresas parceiras do Projeto.

Por essa razão, não analisaremos o Projeto Recomeçar sob a luz da função social da pena, mas sim, a execução de projetos como este que utilizam a laboroterapia como meio para alcançar a ressocialização, a reconquista da dignidade e, consequentemente, cumprir a função social da pena.

3.1 Objetivos do projeto e os preceitos da função social da pena

Os objetivos do Projeto Recomeçar, apresentados no Capítulo 2 deste trabalho são condizentes com os preceitos da função social da pena, punição, reflexão, ressocialização, criação de novas expectativas e incentivo ao engajamento dos presos em um projeto que possa lhes incentivar a desenvolver um ofício.

Além disso, os projetos que utilizam a laboroterapia tendem a despertar mais interesse dos apenados, que podem desenvolver um ofício que já dominam ou, ainda, aprender um ofício novo.

Mas não é só, o convívio em equipe tende a ter mais qualidade e a possibilidade de um emprego digno ao terminar de cumprir a pena costuma tornas os reeducandos mais engajados na manutenção do projeto.

Outro ponto importante é que aqueles que recebem salário pelo trabalho que desempenham durante o cumprimento de pena tendem a ser ainda mais responsáveis e preocupados em manter esta realidade quando terminam de cumprir a pena, ainda mais quando são responsáveis pelo sustento da família.

3.2 Desafios quanto à laboroterapia terceirizada

Porém, iniciativas como o Projeto Recomeçar ainda esbarram no preconceito e encontram nele um grande dificultador para a sua execução plena.

Como mencionado no segundo capítulo, a sociedade civil ainda sente grande aversão às pessoas que sofreram condenação penal e as isolam como se elas não fossem dignas de um emprego e do convívio em sociedade depois de cumprir pena por um crime.

As próprias famílias muitas vezes abandonam os apenados e não aceita recebe-los de volta em casa depois do cumprimento da pena, o que só influencia negativamente a tentativa de se reinserir no convívio social. O relatório do Ipea – Reincidência Criminal no Brasil indica com maestria que:

“A importância da participação da família na reintegração social do preso não era considerada apenas no contexto prisional. Segundo os entrevistados, a acolhida do egresso em sua família era essencial para a prevenção da reincidência.”[21]

Além disso, a atitude das empresas e da iniciativa privada como um todo não é muito diferente. O setor empresarial também tende a excluir pessoa com histórico criminal, ou então acabam por emprega-las apenas em razão dos benefícios financeiros.

3.2.1 Exploração da mão de obra

Como indicado no tópico 2.1.3.1 – Benefícios para as empresas que dão oportunidade de trabalho àqueles que estão cumprindo pena, o regime jurídico dos empregados que cumprem pena não é o disposto na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), mas sim o da Lei de Execução Penal (LEP),[22] a qual, em seu art. 41, II, dispõe que é direito do preso “atribuição do trabalho e sua remuneração. ”[23]

Ainda assim, mesmo atribuindo o direito à remuneração ao preso, LEP permite que o salário pago a ele seja inferior a um salário mínimo, pelo menos três quartos de um salário. Além disso, como não se submete a regulamentação da CLT, o empresário fica isento de encargos trabalhistas de maneira que os custos de mão-de-obra podem ser reduzidos em até 50% com a contratação de apenados.

O Relatório do Ipea mencionado no primeiro capítulo, ao analisar a possibilidade da intervenção privada nos estabelecimentos prisionais ponderou

“No complexo penitenciário existiam galpões para alocar atividades laborais oferecidas por parceiros. A empresa parceira recebia por cada vaga disponibilizada R$ 92,00 por dia e estava ciente de que deveria pagar ao preso 1 SM. A captação de novos parceiros vinha sendo objeto de ações por parte dos gestores da unidade público-privada. Uma dificuldade para isso era o fato de várias empresas parceiras do estado já atuarem em outras unidades do complexo: “A maioria dos parceiros são novos, não são os mesmos da secretaria, pois é um novo modelo de parceria. A vantagem é nítida quanto à produção. Os presos são muito mais interessados no trabalho que o colaborador lá fora” (Diretor privado da unidade de gestão público-privada). Segundo os diretores-gerais privado e público, captar parcerias esbarrava também no problema do preconceito em relação ao preso e ao sistema prisional: “Vai trabalhar com presos, o maquinário vai estar exposto, vai ter rebelião e vai quebrar meu maquinário”. Existiriam ainda outras dificuldades, como horários determinados para a entrada de caminhão para descarregar, bem como para sair com a produção. Mas como se tratava de um novo método de trabalho, os diretores acreditavam que o empresariado iria se interessar.”[24]

Enfim, as empresas acabam, muitas vezes, por empregar apenados apenas pelos benefícios econômicos, ignorando completamente seu potencial de trabalho, ânsia de se reinserir na sociedade e garantir o exercício da cidadania com dignidade através do trabalho, deixando a laboroterapia em si de lado para apenas aferir lucro.

3.3 Informações do sistema carcerário douradense de regimes semiaberto e aberto masculino

Segundo informações fornecidas pela direção do Estabelecimento Penal Masculino de Regime Semiaberto de Dourados (EPMRSAD), hoje o Semiaberto masculino possui 509 internos, destes 341 estão cumprindo pena regime semiaberto, 154 estão cumprindo pena em regime aberto e só pernoitam no estabelecimento penal e 14 estão em regime fechado devido à prisão por não pagamento de pensão alimentícia.

Com exceção dos presos recolhidos em regime fechado por não pagamento de pensão, todos os demais possuem emprego e carteira de trabalho assinada.

A direção do EPMRSAD informou ainda que 225 internos estão realizando trabalhos externos, ou seja, podem sair para trabalhar em empresas conveniadas ao Projeto Recomeçar e recebem salário pelas atividades que desempenham.

Além disso, 48 internos trabalham intramuros, dentro do estabelecimento penal e desempenham atividades na cozinha, na limpeza do local e na horta. Destes, 5 são remunerados e 43 são voluntários.

Foi informado ainda que a fiscalização dos apenados que possuem empregos fora das dependências do estabelecimento penal é de responsabilidade da AGEPEN, a qual mantem vigilância constante sobre o cumprimento das regras do projeto e da jornada de trabalho a que os reeducandos se propuseram.

Conclusão

Por fim, pode-se observar a importância da laboroterapia para a ressocialização do preso e sua reinserção na sociedade civil.

Além disso, é possível concluir que projetos como o Projeto Recomeçar são raros e, mesmo quando implantados, enfrentam grandes dificuldades para se manter em execução e esbarram em um forte preconceito tanto da sociedade como da iniciativa privada.

Os estudos demonstraram que a laboroterapia dignifica o cumprimento da pena e gera perspectivas positivas de emprego e retorno ao convívio social, além de permitir que o preso seja remunerado enquanto cumpre a pena.

Apesar disso, muitas vezes, a iniciativa privada utiliza a mão de obra dos apenados apenas por ter menor custo e requerer menos obrigações e encargos trabalhistas e não por engajamento social e preocupação com a qualidade do trabalho e a reinserção destes indivíduos na sociedade.

O estudo do Ipea sobre a Reincidência Criminal no Brasil concluiu, em seu tópico Geração de Empregos e Capacitação Profissional para Presos e Egressos que:

“Por meio das experiências de campo, de um modo geral, pode-se depreender que o trabalho era entendido como elemento fundamental para a ressocialização. Em todas as experiências, havia o fomento de algum tipo de trabalho dentro das unidades prisionais. Em alguns casos, dava-se ênfase à consolidação de parcerias com o empresariado local a fim de possibilitar vagas de trabalho para o regime fechado e semiaberto. Este modelo de parceria pode ser problematizado, já que a forma com que se dava favorecia muito mais os interesses empresariais que de fato a reintegração social dos presos’.[25]

Enfim, apesar de todos os obstáculos enfrentados para a execução do Projeto Recomeçar e outros projetos que visem o melhor cumprimento da função social da pena através da laboroterapia, certo é que eles são sim de suma importância para o alcance do binômio punir e ressocializar.

Projetos como esse buscam ainda quebrar tabus e vencer uma série de preconceitos da sociedade e da iniciativa privada e ajudam a mudar a forma como egressos do sistema carcerário são vistos pela comunidade.

Em um país com uma situação carcerária tão grande como o Brasil, é muito difícil manter um sistema penitenciário de qualidade e oferecer condições dignas aos apenados, porém, apesar da dificuldade, é possível sim se aproximar mais dos objetivos da função social da pena e a laboroterapia é um caminho para isso.

Referências
CARVALHO, Salo. Penas e medidas de segurança no Direito Penal brasileiro: fundamentos e aplicação judicial. São Paulo: Saraiva, 2013.
COSTA, Helena Regina Lobo. A dignidade humana: teorias da prevenção geral positiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003.
REINCIDÊNCIA Criminal no Brasil. Relatório de Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada em parceria com o Conselho Nacional de Justiça. Rio de Janeiro, 2015.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro. 4. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2013. v. 1.
CONSULTA À INTERNET
BRASIL. Lei de Execução Penal – Lei 7.210/84. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7210.htm>. Acesso em: 15 mar. 2016.
CONSELHO Nacional de Justiça. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/diagnostico_de_pessoas_presas_correcao.pdf>.  Acesso em: 18 mar. 2016.
INSTITUTO Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/estadosat/perfil.php?lang=&sigla=ms>. Acesso em: 18 mar. 2016.
JUNTA Comercial. Disponível em: <http://www.jucems.ms.gov.br/templates/apresentacao/componentefixo/gerador/gerador.php?pag=1937&template=21>. Acesso em: 18 mar. 2016.
PRÊMIO Innovare. Disponível em: <http://www.premioinnovare.com.br/praticas/projeto-recomeçar. Acesso em: 08 fev. 2016.
OUTRAS
ENTREVISTA presencial com o Juiz de Direito Francisco Vieira de Andrade Neto, então titular da Terceira Vara de Execuções Penais e do Tribunal do Júri da Comarca de Dourados/MS.
INFORMAÇÕES fornecidas pela Direção do Estabelecimento Penal Masculino de Regime Semiaberto de Dourados.
TABELA de empresas conveniadas ao Projeto Recomeçar fornecida pelo Patronato Penitenciário de Dourados da Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública do Governo do Estado de Mato Grosso do Sul.
Notas:
[1] Artigo apresentado ao Curso de Direito, da Faculdade de Direito e Relações Internacionais, como pré-requisito para obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Dr. Gustavo de Souza Preussler. Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Turma 2011/2013 e Docente do Curso de Direito da Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD.
[2] CONSELHO Nacional de Justiça. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/diagnostico_ de_pessoas_presas_correcao.pdf> Acesso em 18 mar. 2016.
[3] INSTITUTO Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/estadosat/perfil.php?lang=&sigla=ms>. Acesso em: 18 mar. 2016.
[4] COSTA, Helena Regina Lobo. A dignidade humana: teorias da prevenção geral positiva. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2008. p. 122.
[5] LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003. p. 185.
[6] Ibidem.
[7] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro. 4. ed.. Rio de Janeiro: Revan, 2013. v. 1. p. 98-99.
[8] CARVALHO, Salo. Penas e medidas de segurança no Direito Penal brasileiro: fundamentos e aplicação judicial. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 41.
[9]     REINCIDÊNCIA Criminal no Brasil. Relatório de Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada em parceria com o Conselho Nacional de Justiça. Rio de Janeiro, 2015.
[10] REINCIDÊNCIA Criminal no Brasil. op. cit., p. 33.
[11] COSTA, op. cit., p. 123
[12]    PRÊMIO Innovare. Disponível em: <http://www.premioinnovare.com.br/praticas/projeto-recomeçar. Acesso em: 08 fev. 2016.
[13]    Descrição resumida do Projeto Recomeçar no Município de Paranaíba/MS no sítio eletrônico do Prêmio Innovare: <http://www.premioinnovare.com.br/praticas/projeto-recomeçar>. Acesso em: 08 fev. 2016.
[14]    Tópico “Quais as dificuldades encontradas?” da descrição do Projeto Recomeçar no Município de Paranaíba/MS no sítio eletrônico do Prêmio Innovare: <http://www.premioinnovare.com.br/praticas/projeto-recomeçar>. Acesso em: 08 fev. 2016.
[15] Todas as informações foram retiradas da descrição Projeto Recomeçar no sítio eletrônico do Prêmio Innovare: <http://www.premioinnovare.com.br/praticas/projeto-recomeçar>. Acesso em: 8 fev. 2016.
[16] BRASIL. Lei de Execução Penal – Lei 7.210/84. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7210.htm>. Acesso em: 15 mar. 2016.
[17] Art. 41, inciso II, da Lei 7.210/84.
[18] Segundo pesquisa realizada no site da Junta Comercial. Disponível em: <http://www.jucems.ms.gov.br/templates/apresentacao/componentefixo/gerador/gerador.php?pag=1937&template=21>. Acesso em: 18 mar. 2016. Tabela em anexo.
[19] Tabela em anexo.
[20] Tabela em anexo.
[21] REINCIDÊNCIA Criminal no Brasil. op. cit., p. 96.
[22]    BRASIL. Lei de Execução Penal – Lei 7.210/84. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7210.htm>. Acesso em: 15 mar. 2016.
[23]  Art. 41, inciso II, da Lei 7.210/84.
[24]    REINCIDÊNCIA Criminal no Brasil. op. cit., p. 64-65.
[25] REINCIDÊNCIA Criminal no Brasil. op. cit., p. 117.

Informações Sobre o Autor

Juliana Borges de Souza

Acadêmica de Direito na Fundação Universidade Federal da Grande Dourados


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