Resumo: O presente trabalho tem por escopo analisar o instituto da desapropriação de bens públicos, através da aplicação da norma jurídica prevista no artigo 2º, §2º, do Decreto-Lei n. 3.365/41. O artigo irá abordar a existência do critério hierárquico entre os entes da federação, levando-se em consideração a preponderância do interesse, em face do modelo federativo adotado na Constituição da República. Busca-se apontar o entendimento da doutrina e jurisprudência sobre o tema, propondo alternativas que possibilitem extrair da norma o sentido que mais se coadune com o sistema jurídico brasileiro.
Palavras-chave: Desapropriação; Bens públicos; Decreto-Lei n. 3.365/41; Preponderância do Interesse; Modelo Federativo; Hermenêutica Constitucional.
Sumário: 1. Introdução – 2. Instituto da Desapropriação – 3. Desapropriação de Bens Públicos – 4. Conclusão.
1) Introdução
O ponto nevrálgico do presente artigo é a análise do instituto da desapropriação dos bens públicos previsto no artigo 2º, § 2º, do Decreto-Lei n. 3.365/41, e a interpretação do dispositivo em face das regras e princípios insculpidos na Constituição de República de 1988.
A doutrina e jurisprudência majoritária entendem que o dispositivo previsto na Lei Geral das Desapropriações foi recepcionado pela CRFB/88, e que os bens públicos podem ser desapropriados levando em conta a preponderância do interesse público.
Ou seja, somente a União pode desapropriar bens dos Estados-membros, dos Municípios e do Distrito Federal, e os Estados podem desapropriar bens dos respectivos Municípios.
Contudo, a doutrina minoritária defende que no federalismo brasileiro não há preponderância entre os entes federados, inexistindo, por conseguinte, prevalência de uma unidade da federação sobre outra.
Nesse sentido, afirmam que a regra esculpida no §2º do artigo 2º do Decreto-Lei nº. 3.365/41, não foi recepcionada pela CRFB/88.
2) Instituto da desapropriação
Pois bem. Desapropriação é o procedimento administrativo através do qual a Administração Pública transfere, adquire para si a propriedade e o domínio de terceiro (seja ele ente público ou privado), mediante o pagamento de indenização prévia, justa e em dinheiro, por motivos de necessidade, utilidade pública ou interesse social, conforme preceitua o artigo 5º, XXIV, da CRFB/1988.
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […]
XXIV – a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;”
Marçal Justen Filho define a desapropriação como “[…] um ato estatal unilateral que produz a extinção da propriedade sobre um bem ou direito e a aquisição do domínio sobre ele pela entidade expropriante, mediante indenização justa.” (JUSTEN FILHO, 2015, p. 620).
Veja-se o ensinamento de Carvalho Filho: “Desapropriação é o procedimento de direito público pelo qual o Poder Público transfere para si propriedade de terceiro, por razões de utilidade pública ou interesse social, normalmente mediante o pagamento de indenização” (CARVALHO FILHO, 2011, p. 754).
Por oportuno, importante salientar que a Constituição Federal de 1988 prevê exceções para a desapropriação mediante indenização prévia, justa e em dinheiro. São modalidades de desapropriação de caráter sancionatório.
De acordo com o artigo 182, § 4º, a Administração Pública poderá desapropriar o proprietário de imóvel urbano, com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, em caso de descumprimento da função social.
“Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes. […]
§ 4º É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
I – parcelamento ou edificação compulsórios;
II – imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.”
No artigo 184, a Carta Magna prevê a desapropriação, por interesse social, para fins de reforma agrária, da propriedade rural que também não esteja cumprindo sua função social.
“Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.”
Por fim, o artigo 243 trata da hipótese de expropriação de glebas de terras utilizadas para o cultivo de plantas psicotrópicas. Neste caso, o proprietário não terá direito ao percebimento de indenização.
“Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º.”
Celso Antônio Bandeira de Mello explica a questão nos seguintes termos:
“À luz do Direito Positivo brasileiro, desapropriação se define como o procedimento através do qual o Poder Público, fundado em necessidade publica, utilidade pública ou interesse social, compulsoriamente despoja alguém de um bem certo, normalmente adquirindo-o para sim em caráter originário, mediante indenização prévia, justa e pagável em dinheiro, salvo no caso de certos imóveis urbanos ou rurais, em que, por estarem em desacordo com a função social legalmente caracterizada para eles, a indenização far-se-á em títulos da divida pública, resgatáveis em parcelas anuais e sucessivas, preservado o seu valor real” (MELLO, 2013, p. 883/884).
Maria Sylvia Zanella di Pietro ao tratar das modalidades de desapropriação sancionatória, conclui que
“A Constituição de 1988 prevê três modalidades de desapropriação com caráter sancionatório. Duas delas são previstas para os casos de descumprimento da função social da propriedade urbana (art. 182, § 4º) e da propriedade rural (art. 186), hipóteses em que o pagamento da indenização é feito em títulos da divida pública e não em dinheiro. A terceira é prevista no artigo 243, que trata da expropriação de glebas e em que sejam cultivadas plantas psicotrópicas, hipótese em que o expropriado não faz jus a qualquer tipo de indenização, além de ficar sujeito as sanções previstas em lei” (DI PIETRO, 2011, p. 161-162).
O instituto da desapropriação é o mais agressivo e gravoso instrumento de intervenção do Estado na propriedade, afetando o caráter perpetuo e irrevogável do direito de propriedade.
Ademais, a desapropriação é considerada como forma originaria de aquisição da propriedade, ou seja, não há a incidência de quaisquer ônus que porventura gravem o bem.
Pois bem. Feitas as considerações iniciais, passemos agora ao estudo dos bens desapropriáveis.
3) Desapropriação de bens públicos
Como regra, a desapropriação pode ter por objeto qualquer bem móvel e imóvel, corpóreo ou incorpóreo, susceptível de valoração patrimonial. Ademais, admite-se que a desapropriação recaia sobre o espaço aéreo, o subsolo, as ações, cotas ou direitos de qualquer sociedade, conforme a leitura do artigo 2º do Decreto-Lei n. 3.365/41.
“Art. 2º Mediante declaração de utilidade pública, todos os bens poderão ser desapropriados pela União, pelos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios.”
Portanto, dentre os bens desapropriáveis, verificamos a possibilidade de desapropriação dos bens públicos, porém, a Lei Geral de Desapropriações estabelece limites e condições à luz do disposto no art. 2º, § 2º, do Decreto-Lei n. 3365/41.
“§ 2° Os bens do domínio dos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios poderão ser desapropriados pela União, e os dos Municípios pelos Estados, mas, em qualquer caso, ao ato deverá preceder autorização legislativa”.
Através da leitura do dispositivo supracitado, verifica-se que a União pode desapropriar bens dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e dos Territórios e os Estados somente podem desapropriar os bens dos Municípios.
Por outro lado, a interpretação inversa não é viável, ou seja, a recíproca não é verdadeira.
O fundamento que embasa esse posicionamento é a prevalência e a preponderância do interesse, estando no grau mais elevado o interesse nacional, protegido pela União, seguido do regional, representado pelo Estado e Distrito Federal e, por fim, o interesse local, próprio dos Municípios.
Além disso, a possibilidade de desapropriação de bens públicos está vinculada a outro pressuposto, qual seja a entidade expropriante deverá ter autorização expressa em lei.
Destarte, de acordo com a interpretação literal do artigo 2º, § 2º da Lei Geral de Desapropriações, somente por meio de previsão legal, a União pode desapropriar bens dos Estados e estes dos Municípios. Por conseguinte, os bens da União não seriam objeto de desapropriação.
Nesse sentido o ensinamento de José dos Santos Carvalho Filho.
“A despeito de não ser reconhecido qualquer nível de hierarquia entre os entes federativos, dotados todos de competências próprias alinhadas no texto constitucional, a doutrina admite a possibilidade de desapropriação pelos entes maiores ante o fundamento da preponderância do interesse, no qual está no grau mais elevado o interesse nacional, protegido pela União, depois o regional, atribuído aos Estados e Distrito Federal, e por fim o interesse local, próprio dos Municípios” (CARVALHO FILHO, 2011, p. 755)
O Supremo Tribunal Federal, inclusive já decidiu pela impossibilidade de desapropriação de bem de Sociedade de Economia Mista Federal pelo Estado-membro, com base no fundamento da preponderância de interesse:
“DESAPROPRIAÇÃO, POR ESTADO, DE BEM DE SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA FEDERAL QUE EXPLORA SERVIÇO PÚBLICO PRIVATIVO DA UNIÃO. 1. A União pode desapropriar bens dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e dos territórios e os Estados, dos Municípios, sempre com autorização legislativa especifica. A lei estabeleceu uma gradação de poder entre os sujeitos ativos da desapropriação, de modo a prevalecer o ato da pessoa jurídica de mais alta categoria, segundo o interesse de que cuida: o interesse nacional, representado pela União, prevalece sobre o regional, interpretado pelo Estado, e este sobre o local, ligado ao Município, não havendo reversão ascendente; os Estados e o Distrito Federal não podem desapropriar bens da União, nem os Municípios, bens dos Estados ou da União, Decreto-lei n. 3.365/41, art. 2., par.2.. 2. Pelo mesmo princípio, em relação a bens particulares, a desapropriação pelo Estado prevalece sobre a do Município, e da União sobre a deste e daquele, em se tratando do mesmo bem. 3. Doutrina e jurisprudência antigas e coerentes. Precedentes do STF: RE 20.149, MS 11.075, RE 115.665, RE 111.079. 4. Competindo a União, e só a ela, explorar diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os portos marítimos, fluviais e lacustres, art. 21, XII, f, da CF, esta caracterizada a natureza pública do serviço de docas. 5. A Companhia Docas do Rio de Janeiro, sociedade de economia mista federal, incumbida de explorar o serviço portuário em regime de exclusividade, não pode ter bem desapropriado pelo Estado. 6. Inexistência, no caso, de autorização legislativa. 7. A norma do art. 173, par.1., da Constituição aplica-se as entidades publicas que exercem atividade econômica em regime de concorrência, não tendo aplicação as sociedades de economia mista ou empresas publicas que, embora exercendo atividade econômica, gozam de exclusividade. 8. O dispositivo constitucional não alcança, com maior razão, sociedade de economia mista federal que explora serviço público, reservado a União. 9. O artigo 173, par.1., nada tem a ver com a desapropriabilidade ou indesapropriabilidade de bens de empresas publicas ou sociedades de economia mista; seu endereço e outro; visa a assegurar a livre concorrência, de modo que as entidades publicas que exercem ou venham a exercer atividade econômica não se beneficiem de tratamento privilegiado em relação a entidades privadas que se dediquem a atividade econômica na mesma área ou em área semelhante. 10. O disposto no par.2., do mesmo art. 173, completa o disposto no par.1., ao prescrever que “as empresas publicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos as do setor privado”. 11. Se o serviço de docas fosse confiado, por concessão, a uma empresa privada, seus bens não poderiam ser desapropriados por Estado sem autorização do Presidente da Republica, Súmula 157 e Decreto-lei n. 856/69; não seria razoável que imóvel de sociedade de economia mista federal, incumbida de executar serviço público da União, em regime de exclusividade, não merecesse tratamento legal semelhante. 12. Não se questiona se o Estado pode desapropriar bem de sociedade de economia mista federal que não esteja afeto ao serviço. Imóvel situado no cais do Rio de Janeiro se presume integrado no serviço portuário que, de resto, não e estático, e a serviço da sociedade, cuja duração e indeterminada, como o próprio serviço de que esta investida. 13. RE não conhecido. Voto vencido”. (STF – RE: 172816 RJ, Relator: PAULO BROSSARD, Data de Julgamento: 09/02/1994, TRIBUNAL PLENO, Data de Publicação: DJ 13-05-1994 PP-11365 EMENT VOL-01744-07 PP-01374).
O mesmo entendimento foi utilizado pelo Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da AC n. 1225-MC/RR, de relatoria do Ministro Celso de Mello, conforme se verifica no informativo de jurisprudência n. 432 de 2006.
“EMENTA: DIREITO AMBIENTAL. CRIAÇÃO DE RESERVA EXTRATIVISTA. PROCEDIMENTO DE INSTITUIÇÃO DESSA UNIDADE DE USO SUSTENTÁVEL. NECESSIDADE DE REALIZAÇÃO DE CONSULTA PÚBLICA (LEI Nº 9.985/2000, ART. 22, §§ 2º E 3º, C/C O DECRETO Nº 4.340/2002, ART. 5º, “CAPUT”). PRECEDENTE DO STF. INSTITUIÇÃO, PELA UNIÃO FEDERAL, DE RESERVA EXTRATIVISTA EM ÁREA QUE COMPREENDE TERRAS PÚBLICAS PERTENCENTES A UM ESTADO-MEMBRO DA FEDERAÇÃO. EXISTÊNCIA DE POTENCIAL CONFLITO FEDERATIVO. INSTAURAÇÃO DA COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, COMO TRIBUNAL DA FEDERAÇÃO. PRECEDENTES. A QUESTÃO DA DESAPROPRIAÇÃO, PELA UNIÃO FEDERAL, DE BENS INTEGRANTES DO DOMÍNIO PÚBLICO ESTADUAL. POSSIBILIDADE DO ATO EXPROPRIATÓRIO, SUJEITO, NO ENTANTO, QUANTO À SUA EFETIVAÇÃO, À PRÉVIA AUTORIZAÇÃO LEGISLATIVA DO CONGRESSO NACIONAL (DL Nº 3.365/41, ART. 2º, § 2º). CONTROLE POLÍTICO, PELO PODER LEGISLATIVO DA UNIÃO, DO ATO EXCEPCIONAL DE EXPROPRIAÇÃO FEDERAL DE BENS INTEGRANTES DO PATRIMÔNIO IMOBILIÁRIO ESTADUAL. DOUTRINA. NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DO REGULAR PROCEDIMENTO EXPROPRIATÓRIO, INCLUSIVE COM O RECONHECIMENTO DO DEVER DA UNIÃO FEDERAL DE INDENIZAR O ESTADO-MEMBRO. PRECEDENTES DO STF. CONFLITO ENTRE A UNIÃO FEDERAL E AS DEMAIS UNIDADES FEDERADAS, QUANDO NO EXERCÍCIO, EM TEMA AMBIENTAL, DE SUA COMPETÊNCIA MATERIAL COMUM. CRITÉRIOS DE SUPERAÇÃO DESSE CONFLITO: CRITÉRIO DA PREPONDERÂNCIA DO INTERESSE E CRITÉRIO DA COLABORAÇÃO ENTRE AS PESSOAS POLÍTICAS. RECONHECIMENTO, NA ESPÉCIE, EM JUÍZO DE DELIBAÇÃO, DO CARÁTER MAIS ABRANGENTE DO INTERESSE DA UNIÃO FEDERAL. INOCORRÊNCIA, AINDA, DE SITUAÇÃO DE IRREVERSIBILIDADE DECORRENTE DA CONSULTA PÚBLICA CONVOCADA PELO IBAMA. MEDIDA LIMINAR INDEFERIDA”.
Contudo, indo de encontro a posição adotada pela doutrina majoritária e pelo Supremo Tribunal Federal, há juristas que defendem a possibilidade de desapropriação na ordem inversa daquela prevista no artigo 2º, § 2º, do Decreto-Lei n. 3.365/41.
O fundamento utilizado por essa corrente é que não há hierarquia entre os entes federados, ou seja, União, Estados, Distrito Federal e Municípios estão no mesmo patamar, uma vez que a CRFB/88 estabelece a igualdade entre os entes federativos, conforme leitura dos artigos 1º c/c 18, ambos da Constituição da República, in verbis
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I – a soberania;
II – a cidadania
III – a dignidade da pessoa humana;
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V – o pluralismo político.
Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.”
Vejamos as lições de Marçal Justen Filho.
“A legislação antiga contemplou a possibilidade de a União expropriar bens dos demais entes federativos e de os Estados-membros produzirem desapropriação de bens municipais.
Essa diferenciação não é compatível com a Constituição de 1988, que determina que a federação importa igualdade entre todos os entes federativos (art. 19, III).
Isso não significa a impossibilidade de entes federativos desapropriarem bens públicos alheios, mas tal possibilidade deverá ser reconhecida em igualdade de condições para todos os membros da Federação. Trata-se de hipótese excepcional, que exigirá a edição de leis autorizadoras de todos os entes envolvidos. Não é compatível com a Constituição afirmar que a União é superior ao Estado-membro e ao Município, do que se extrairia o cabimento de expropriar os bens deles. Cada ente federativo tem sua autonomia consagrada, e lhe é assegurado valer-se de seu patrimônio para cumprir seus fins.
Logo, não tem cabimento afirmar que a União pode desapropriar terrenos municipais para construir uma rodovia federal, mas que o Município não tem competência para desapropriar bens federais para construir uma rodovia municipal. Ambos são dotados de competência similar, assujeitada a severos requisitos destinados a evitar o comprometimento da autonomia federativa” (JUSTEN FILHO 2015, p. 626-627).
Raquel Melo Urbano de Carvalho defende que a desapropriação de bens públicos também é possível na ordem inversa daquela estabelecida na Lei Geral de Desapropriações (CARVALHO, 2008, p. 1066).
“Com a máxima vênia das citadas posições, entende-se não coadunar com a federação delineada na Constituição de 1988 permitir que a União desaproprie bens dos Estados, dos Municípios e do DF e que o Estado desaproprie bens dos Municípios, proibindo a desapropriação na ordem inversa. Afinal, não se vislumbra qualquer “hierarquia” entre União, Estados, DF e Municípios. O que a Constituição realizou foi a distribuição de competências entre as diversas pessoas políticas, sem evidenciar qualquer prevalência hierárquica a ser observada de um ente federativa perante outro. A ausência de hierarquia e o equilíbrio constitucional imposto nas relações entre os entes da federal evidenciam, venia permisa, a inconstitucionalidade de regras como a do artigo 2º, § 2º, do Decreto-Lei nº 3.365/41”.
Portanto, de acordo com o principio federativo, não há lugar no atual sistema jurídico-constitucional para a supremacia de entidades federativas inexistindo, por conseguinte, prevalência da competência de um ente sobre os demais.
4) Conclusão
A Lei Geral de Desapropriação no seu artigo 2º, § 2º, prevê a possibilidade de desapropriação de bens públicos, determinando a observância do critério hierárquico existente entre os entes da federação, ou seja, a União pode desapropriar bens dos Estados e dos Municípios e os Estados podem desapropriar bens dos Municípios.
A doutrina majoritária e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmaram entendimento de o dispositivo legal supracitado continua vigente e aplicável mesmo após a promulgação da Constituição Federal de 1988, ao argumento de que a desapropriação dos bens públicos leva em consideração a preponderância do interesse.
Contudo, o entendimento que deve prevalecer é da corrente minoritária, pois, não existe hierarquia entre os entes políticos, vale dizer, União, Estados, Distrito Federal e Municípios são entidades juridicamente isonômicas entre si.
Ademais, o modelo de federação no Brasil não estabelece a preponderância de interesses entre os entes políticos, assim sendo, cada um possui sua esfera de competência, sendo perfeitamente possível a desapropriação em ordem inversa.
Importante esclarecer que o artigo 2º, § 2º, do Decreto-Lei n. 3.365/41, não foi recepcionado pela Constituição.
Neste espeque, o operador do direito deverá utilizar a técnica hermenêutica da interpretação conforme, para valer-se da exegese que mais se aproxime da Constituição, tornando a norma compatível com a Carta Maior.
A aplicação desta técnica hermenêutica permite encontrar a solução que se coaduna com o sistema jurídico constitucional brasileiro, no qual inexiste hierarquia entre os entes federados.
Informações Sobre o Autor
Matheus Prates de Oliveira
Advogado. Pós Graduando em Direito Administrativo e Tributário pela Universidade Cndido Mendes UCAM RJ. Membro da Associação Brasileira de Direito Tributário – ABRADT. Membro da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas – ABRACRIM