Resumo: Não há dúvidas de que as mulheres conquistaram seu espaço na sociedade. Porém, a violência doméstica e familiar não desapareceu com o crescente progresso social do sexo feminino. Ao contrário, a ocorrência desse tipo de agressão continua alcançando patamares inimagináveis. Tal fato culminou com a sanção, em 7 de agosto de 2006, da Lei 11.340, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha. Seu principal objetivo é a concretização do princípio da isonomia, suprindo as desigualdades experimentadas por mulheres vítimas dos mais diversos tipos de constrangimentos, dentro de seu próprio lar. Embora alguns doutrinadores classifiquem a referida Lei como inconstitucional, é evidente que as mudanças por ela efetivadas representam um avanço no combate à violência. O presente artigo tem como base a análise jurisprudencial do tema.
Palavras-chave: Violência doméstica; Princípio da Isonomia; Lei 11.340/2006
Abstract: There is no doubt that women have earned their place in society. However, domestic violence did not disappear with increasing female social progress. Instead, the occurrence of this type of aggression continues to reach unimaginable heights. This fact led to the creation, at 7 August 2006, Law 11.340, popularly known as the Maria da Penha Law. Its main objective is the implementation of the principle of equality, meeting the inequalities experienced by women victims of various types of constraints, within their own home. Although some scholars classify this law as unconstitutional, it is clear that the changes effected by it represent an advance in the fight against violence. This article is based on the analysis of the jurisprudential issue.
Keywords: Domestic violence; principle of equality; Law 11340/2006
Sumário: 1. Introdução ; 2. Aspectos práticos da Lei; 2.1. Contornos do âmbito familiar; 2.2. Configuração da violência doméstica 2.3. Medidas gerais de proteção 2.4. Reais propósitos da norma 4.Constitucionalidade da Norma; 5. Posicionamento dos Tribunais; 6. Considerações finais. Referências bibliográficas.
1. Introdução
As mulheres, com o passar dos anos, têm alcançado seu espaço e se destacado em atividades outrora consideradas eminentemente masculinas. Não raras aquelas que ocupam cargos máximos em suas áreas de atuação, o que destoa de um passado não muito distante.
Todavia, tal realidade não impede que um grande número delas continue a ser subjugadas por seus companheiros e familiares. Muitas são vítimas de constantes atos de violência, seja ela física, psicológica ou sexual. Esse fato que não pode passar despercebido pelos estudiosos do Direito, enquanto ciência que busca a equidade e a harmonia na convivência social.
A violência doméstica e familiar contra a mulher consiste, inegavelmente, em violação de direitos humanos.
Por muito tempo, tais atos violentos não tinham um tratamento específico por parte da legislação nacional. Eram enquadrados dentre as normas já existentes, incapazes de garantir a efetiva incolumidade da vítima que, então, via-se coagida a não denunciar os fatos ocorridos.
Pautada nesses acontecimentos, surgiu a Lei 11.340, conhecida popularmente como Lei Maria da Penha. O impulso dado à norma ora em voga decorreu dos fatos ocorridos com aquela que deu nome a essa lei.
No ano de 2002, o Brasil se comprometeu com o combate à violência contra a mulher, no cenário internacional, através da ratificação da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Violência contra a Mulher e Discriminação contra a Pessoa. Tal convenção foi originalmente aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, por meio da Resolução nº. 34/108, na data de 18 de dezembro de 1979.
Todavia, somente no ano de 2006 a presente lei devidamente sancionada pelo então Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva.
Há que se destacar que, conforme o artigo 5º, caput, da Constituição Federal, todos são iguais perante a lei. Essa igualdade deve ser tomada em sentido material, cenário este que justifica a adoção de medidas diferenciadas no que tange à proteção da mulher, inegavelmente fragilizada na relação com o homem.
Embora a Lei 11.340 faça referência à violência doméstica e familiar, a sua incidência não exige qualquer relação de parentesco entre as partes, bastando, para tanto, que exista entre elas laços de afinidade ou decorrentes da vontade expressa. Aplica-se, ainda, às relações íntimas de afeto, desde que o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, sem a obrigatoriedade de coabitação.
Nota-se, portanto, que houve uma ampliação do conceito de família previsto na Constituição Federal e no Código Civil. Essa ampliação tem como justificativa o efetivo amparo da mulher vítima de agressões.
Grande discussão, doutrinária e jurisprudencial, reside na questão da constitucionalidade da lei. Alguns sustentam ser a norma inconstitucional, por ferir a igualdade entre os sexos, enunciada de forma expressa pela Carta Magna Brasileira. Outros apontam a necessidade de tratamento desigual, na medida das desigualdades existentes entre homens e mulheres, como argumento para justificar a necessidade de vigência da norma ora em estudo.
2. Aspectos Práticos da Lei
A violência doméstica contra a mulher está configurada em qualquer ação ou omissão capaz de causar a morte, lesão, sofrimento físico, psicológico ou sexual, bem como nos atos que gerem qualquer tipo de dano moral ou material. O escopo da lei é tentar resguardar aquela que, durante décadas e ainda hoje, é vítima de uma condição física mais frágil quando comparada ao sexo masculino.
A prática violenta, geralmente, ocorre no âmbito da unidade doméstica, a qual se caracteriza pelo convívio permanente entre pessoas, mesmo que não familiar e entre indivíduos esporadicamente agregados. São delineados, nesse contexto, os espaços em que o agir configura violência doméstica.
2.1. Contornos do âmbito familiar
Importante delinear, no presente contexto, o significado de âmbito familiar. Este, em si, é a chamada unidade doméstica. Em outras palavras, é o local onde ocorre a convivência permanente e habitual de pessoas, ainda que não sejam da mesma família.
Também é considerado como âmbito da família aquele em que convivem pessoas que são ou se consideram parentes, unidos por laços naturais, de afinidade ou por vontade expressa. Nota-se, portanto, que os laços de sangue ou os advindos do casamento e união estável não são os únicos capazes de legitimar a aplicação da lei.
2.2. Configuração da violência doméstica
A violência em questão pode ocorrer em qualquer relação íntima de afeto, bastando, para isso, que o agressor conviva ou tenha convivido com a vítima. Erro freqüente é o de impor como pressuposto para a aplicação da lei a coabitação entre as partes. Esta não se faz necessária, bastando, para a sua incidência, que haja ou tenha havido o convívio.
Destaca Maria Berenice Dias:
“Diante desta nova realidade não há como restringir o alcance legal. Vínculos afetivos que fogem ao conceito de família e de entidade familiar nem por isso deixam de ser marcados pela violência. Assim, namorados, noivos, mesmo que não vivam sob o mesmo teto, mas resultando a situação de violência do relacionamento, faz com que a mulher mereça o abrigo da Lei Maria da Penha. Para a configuração de violência doméstica é necessário um nexo entre a agressão e a situação que a gerou, ou seja, a relação íntima de afeto deve ser a causa da agressão”.[1]
As condutas capazes de configurar o crime são descritas de maneira minuciosa. São reconhecidos como violência contra a mulher os mais diversos tipos de constrangimentos, dentre os quais é possível destacar: o constrangimento físico como conduta que ofende sua saúde ou integridade corporal; bem como o psicológico, revelado em qualquer atitude que cause dano emocional, afete a auto-estima, perturbe o pleno desenvolvimento, vise degradar ou controlar as suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, humilhação, perseguição, etc. Também enquadram-se nesse tipo de constrangimento qualquer tipo de ato capaz de ceifar a autodeterminação da mulher.
Cabe citar, também, a violência sexual, como a conduta que constranja a mulher a participar, assistir ou manter relação sexual não desejada, mediante coação, ameaça, uso da força; induza a comercializar ou utilizar a sua sexualidade; que impeça ou force o uso de método contraceptivo ou force ao matrimônio, gravidez, aborto ou à prostituição. Ainda, a violência moral, deflagrada em qualquer ato que induza a injúria, calúnia ou difamação.
A variedade de focos atribuídos à violência pela Lei em contento foi demonstrada por Maria Berenice Dias:
“Da mesma forma, quanto à subjetividade (psicológica, moral), a Lei avança, mais que em qualquer outro momento das tentativas de preservar a integridade da mulher no âmbito doméstico, palco das maiores e mais volumosas agressões. Já não se restringe tão somente às ofensas físicas, comprováveis, investe contra o dano psicológico, a lesão afetiva e suas conseqüências, capazes de provocar seqüelas importantes, e sob o disfarce da impalpabilidade, banalizar a violência, a partir daí quase sempre crescente. Mais relevante ainda, propõe obstáculos aos atentados à auto-estima da agredida, que por serem difíceis de combater, são fatores de perturbação junto à criança e ao adolescente em sua percepção da imagem feminina, como um paradigma desvalorizado ou passivo. Esta forma de vinculação afetiva, muito comumente redunda em aceitação de modelos de convivência familiar, assinalados por agressões, exclusão e abuso”. [2]
Necessário frisar que a aplicação da norma não está adstrita à violência praticada pelo marido/companheiro contra a esposa/companheira. Conforme ensina Sérgio Ricardo de Souza, a lei tem como objetivo combater a violência cometida no ambiente doméstico, familiar e intrafamiliar. Todavia, em um contexto subjetivo, o escopo maior é proteger a mulher contra atos de violência praticados por homens ou mulheres, independentemente da orientação sexual, com os quais ela tenha ou haja tido relação marital ou de afetividade, ou mesmo com qualquer pessoa que tenha convivido no ambiente familiar (pai, irmão, cunhado, filho, filha, neto, neta, etc.). Em relação a tais pessoas, a violência não precisa ter ocorrido, necessariamente, no âmbito físico-espacial de convivência. [3]
Existe, conforme se nota, uma ausência de conteúdo exclusivamente criminal por parte do autor. Isso porque nem todas as ações que constituem violência doméstica constituem delito e, ainda, tais atos devem ser praticados no seio da unidade doméstica ou em uma relação íntima de afeto. [4]
A norma em questão não se limita a indicar tipos de violência e conseqüentes punições. Destaca medidas de prevenção e de assistência à vítima, bem como providências a serem tomadas pela autoridade policial quando detectar uma possível paciente das citadas agressões.
2.3. Medidas gerais de proteção
Dentre as medidas de proteção, destacam-se as que visam propagar informações acerca dos direitos da pessoa e as conseqüências advindas da sua transgressão, como a inclusão dos Direitos Humanos nos currículos escolares, bem como a promoção de campanhas e programas educacionais, que devem atingir a população como um todo.
É prevista como medida preventiva a integração operacional do Judiciário, do Ministério Público e Defensoria Pública com as áreas de segurança, saúde pública e assistência pública. O claro intento é tornar possível o atendimento a contento das vítimas e, com isso, diminuir o número de casos desse tipo de violência.
Tão importante quanto as já citadas medidas é a especialização do trabalho policial, com a criação de Delegacias de Atendimento à Mulher. Tais delegacias especializadas podem fazer com que o número de ocorrências contabilizadas seja mais condizente com a realidade das agressões, vez que muitas mulheres deixam de denunciar seus agressores em virtude do constrangimento de ter que fazê-lo em uma delegacia comum.
A assistência à vítima de violência doméstica e familiar é realizada através da inclusão desta, por determinado prazo, em um cadastro de programas assistenciais governamentais, de âmbito federal, estadual e municipal. Se a ofendida for servidora pública, terá prioridade de remoção; caso seja empregada na área privada, poderá ser afastada de sua atividade por um período de até seis meses, com o objetivo de preservar sua saúde física e psicológica.
No que tange ao atendimento realizado pela autoridade policial, quando procurada pela vítima da violência, a lei enumera as providências a serem tomadas. Primeiramente, é de suma importância que se faça cessar a agressão, mesmo que para tanto tenha que se garantir proteção policial, o que será, posteriormente, devidamente comunicado ao Judiciário e ao Ministério Público.
Caso necessário, a ofendida deverá ser encaminhada para um hospital e, juntamente com seus dependentes, acolhida em um abrigo, com acompanhamento na retirada de seus pertences do local da ocorrência. Posteriormente, poderão os mesmos ser novamente conduzidos ao domicílio, quando o agressor encontrar-se afastado do local.
Feito o registro da ocorrência e colhidas as provas, dentro do prazo de quarenta e oito horas, o expediente deverá ser enviado ao juiz competente, para que tome as medidas assecuratórias cabíveis ao caso concreto.
Deve ser feito o exame de corpo de delito e demais perícias necessárias, bem como realizada a oitiva do agressor e testemunhas. A separação de corpos é cabível para evitar a iminência de novas agressões. A prisão preventiva do agressor pode ser determinada tanto na fase de Inquérito Policial, quanto na instrução criminal.
O juiz não está adstrito a tomar as providências requeridas pela vítima ou pelo representante do Ministério Público. Pode agir de ofício, com vistas a garantir a integridade física, moral e psicológica da mulher. Essas medidas poderão ser concedidas independentemente da audiência das partes; aplicadas isolada ou cumulativamente; substituídas e revistas sempre que necessário por outras de maior eficácia. Ainda, para a segurança da ofendida, ela será informada sempre que o agressor entrar ou sair da prisão.
Pode o agressor ter suspensa a posse ou restringido porte de armas. Além do afastamento do lar ou local de convivência, este pode também ser proibido de aproximar-se ou comunicar-se com a vítima, seus parentes e testemunhas. As visitas aos dependentes menores podem ser suspensas ou restringidas, bem como poderá ser imposta a obrigação de prestação de alimentos.
Em caso de necessidade, o patrimônio da ofendida ou da sociedade conjugal também deve ser resguardado. Tem o juiz discricionariedade para determinar a restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor; suspender as procurações que a vítima atribuiu ao mesmo e impor a prestação de caução provisória por perdas e danos decorrentes da violência. Pode ainda o magistrado proibir, temporariamente, a celebração de atos e contratos envolvendo tais bens, salvo autorização.
Vale destacar que, não sendo as medidas de proteção aplicadas no caso concreto caracterizadas como constrangimento ilegal, não serão passíveis de correção por meio de hábeas corpus, conforme prevê acórdão exarado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.[5]
2.4. Reais propósitos da norma
O verdadeiro alcance da lei reside no fato de que o conceito de violência está dissociado do conceito de delito.[6] Dessa forma, mesmo que a prática não constitua um delito em si, as autoridades policial e judiciária não são inibidas de tomar as medidas cabíveis, de acordo com as exigências do caso concreto.
A vítima somente poderá renunciar à representação em audiência especialmente designada para tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o representante do Ministério Público. Assim, evita-se que a desistência seja resultado de pressão realizada pelo próprio agressor, com vistas a intensificar a proteção oferecida. Note-se que o objetivo de tal proposição é majorar o amparo à vítima.
Os tribunais, em seus julgados, insistem em demonstrar que a ação penal contra o agressor é condicionada à representação. Dessa forma, havendo retratação da representação da vítima, a ação não pode prosseguir. Há, nesses casos, a extinção da punibilidade do agente. Vide o Recurso em Sentido Estrito nº. 2011.027402-5/0000-00, do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul.[7]
Recente julgado do Superior Tribunal de Justiça ressalta que a audiência prevista no artigo 16 da Lei 11.340/2006 é obrigatória quando houver prévia manifestação da vítima no sentido de retratação da denúncia feita. Essa manifestação não necessariamente deve ser expressa, bastando, para tanto, que ela seja feita de maneira tácita.[8]
Destaca o Tribunal de Justiça do Mato Grasso do Sul, em julgamento de apelação criminal, que a audiência prevista pelo citado artigo 16 não é condicionada à vontade da vítima, não sendo obrigatório ao magistrado realizá-la. A necessidade desta deve ser analisada de acordo com a situação, para que a vítima possa exercer o seu direito de retratação. A não realização não implica, necessariamente, em nulidade do feito.[9]
Tal situação tem ocasionado grandes discussões doutrinárias e jurisprudenciais. Destaque para as palavras de Maria Berenice Dias:
“O propósito da Lei Maria da Penha é dar um basta à violência doméstica, o que nem sempre é alcançado ao perpetuar-se a situação de conflito mediante a instauração de processo criminal, quando já solvidas todas as questões que lhe serviam de causa. Ao depois, subtrair a possibilidade da desistência da representação vai inibir a denúncia por parte da vítima que, ao registrar a ocorrência, não deseja nem se separar do agressor e nem que ele acabe na cadeia. Ela vai em busca de ajuda para que a violência cesse. Obtido este resultado no incidente de aplicação de medida protetiva, nada justifica o prosseguimento da ação penal que se desencadeou quando do registro da ocorrência”.[10]
Após recebida a denúncia, a renúncia não mais surtirá os efeitos. O processo terá normal prosseguimento, assim como já afirmado pelo Superior Tribunal de Justiça.[11]
Importante ressaltar, conforme já citado anteriormente, que a violência doméstica não está contemplada no âmbito de atuação dos Juizados Especiais; alteração de competência dada de forma expressa pela Lei. Dessa forma, afasta-se a aplicação da Lei 9.099/1995. Não se pode aplicar ao agressor pena de distribuição de cestas básicas ou prestação pecuniária. Também fica vedada o pagamento isolado de multa.
A União, os Estados e o Distrito Federal podem criar Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com competência civil e criminal. Os Juizados poderão contar com equipe multidisciplinar, nas áreas psicossocial, jurídica e da saúde, a qual será responsável por oferecer subsídios escritos ao Juiz, Ministério Público ou Defensoria, além de desenvolver trabalhos voltados à ofendida, familiares e agressor.
Entretanto, não há dúvidas de que o Estado não dispõe de aparato jurídico e financeiro para tanto. A criação dos supracitados Juizados de proteção à mulher deve ser viabilizada através de bem elaborado planejamento. Enquanto isso não ocorre, as varas criminais acumularão a competência cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes de violência familiar e doméstica contra a mulher.
A jurisprudência do Tribunal de Justiça do Paraná assevera que, em virtude da não estruturação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher, a competência para instrução e julgamento é da Justiça Comum. Não há competência dos Juizados Especiais nesses casos.[12]
Nos casos de violência doméstica contra a mulher, o juiz poderá determinar o comparecimento compulsório do agressor a programas de recuperação e reeducação, além da pena imposta. Esse preceito visa que o agressor receba o devido tratamento, com o intuito de que não mais volte a cometer atos de violência em virtude de um possível desvio psicológico.
4. Da Constitucionalidade da Norma
Assunto de grande polêmica, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, versa acerca da constitucionalidade da Lei 11.340/2006.
A Constituição Federal de 1988, também conhecida como constituição cidadã, em virtude dos direitos e garantias que traz em seu bojo, consagrou o direito de igualdade. Ela inicia o capítulo dos direitos individuais com um princípio, em seu artigo 5°, caput, o qual reza que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.
De acordo com o artigo 3°, IV, da Constituição, um dos objetivos da República Federativa do Brasil é “promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Ocorre que a isonomia, a qual assegura a igualdade de todos perante a lei, não pode ser tomada em um sentido meramente formal. Posições extremadas, que sustentam a desigualdade como característica do universo, ou o igualitarismo puro entre os indivíduos, não podem prevalecer.
José Afonso da Silva ressalta que “a Constituição visa aproximar os dois tipos de isonomia (formal e material), na medida em que não se limitara ao simples enunciado da igualdade perante a lei”.[13]
Não há dúvidas de que os seres humanos são desiguais sob múltiplos aspectos. É justamente tal fato que torna necessária uma análise da igualdade baseada em uma visão material, e não puramente formal. A Carta Magna busca aproximar os dois âmbitos da isonomia, na medida em que não se limita a, simplesmente, enunciar a igualdade perante a lei.
Aqueles que afirmam a inconstitucionalidade da Lei Maria da Penha o fazem baseados no argumento de que a Lei Maior de nosso país estabeleceu a igualdade entre homens e mulheres, de forma expressa, conforme artigo 5º, I, CF. Qualquer tipo de tratamento diferenciado somente poderia ser preconizado pela própria Constituição, vez que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos dessa Constituição”.
Maria Berenice Dias, acerca da constitucionalidade da norma em voga, afirma que:
“Aliás, é exatamente para por em prática o princípio constitucional da igualdade substancial, que se impõe sejam tratados desigualmente os desiguais. Para as diferenciações normativas serem consideradas não discriminatórias, é indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável. E justificativas não faltam para que as mulheres recebam atenção diferenciada. O modelo conservador da sociedade coloca a mulher em situação de inferioridade e submissão., tornando-a vítima da violência masculina. Ainda que os homens também possam ser vítimas de violência doméstica, tais fatos não decorrem de razões de ordem social e cultural. Por isso se fazem necessárias equalizações por meio de discriminações positivas, medidas compensatórias que visam remediar as desvantagens históricas, conseqüências de um passado discriminatório”. [14]
Nesse norte, insta salientar a posição dos tribunais de nosso país, visto que a jurisprudência, muitas vezes, vem ao socorro das divergências doutrinárias.
Posicionamento dos Tribunais
Os Tribunais Superiores (Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça) por vezes já afirmaram a constitucionalidade da Lei Maria da Penha, sob o argumento principal de defesa do princípio da isonomia enquanto igualdade não apenas formal. Quando questionados sobre o assunto, até o momento, o posicionamento prevalente não sofreu alterações.
Defende o Supremo Tribunal Federal que, mesmo quando consubstanciada a contravenção penal, não há a aplicação da Lei 9.099/95, vez que afastada pela Lei 11.340/2006. Tal afastamento está em consonância com a Constituição Federal, de acordo com o artigo 98, I e com o artigo 226, § 8º. Assim, toda e qualquer prática violenta contra a mulher será julgada conforme os ditames da Lei Maria da Penha. É o que nota através do julgamento do Hábeas Corpus 106212 do Mato Grosso do Sul. [15]
O supracitado julgamento enseja a afirmação de que o STF tem se posicionado pela aplicação da lei ora em debate, ainda que esta seja confrontada com outras legislações.
Posição análoga defende o Superior Tribunal de Justiça. Este afirma que não há qualquer inconstitucionalidade no artigo 41 da Lei 11.340/2006, o qual prevê a não aplicação da Lei 9.099/1995 quando configurada a violência doméstica e familiar. Isso tendo em vista que a Carta Magna não definiu a abrangência da expressão “crimes de menor potencial ofensivo”, deixando que o legislador ordinário o fizesse. Com base na maior gravidade dos crimes relacionados à mulher no âmbito familiar, instituiu, de forma constitucional, a Lei Maria da Penha. Tal pode ser conferido no Hábeas Corpus 203374 de Minas Gerais.[16]
Cumpre analisar, ainda, a tese defendida por alguns Tribunais de Justiça.
Destaca o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que a Lei Maria da Penha em nada transgride o princípio da Isonomia, uma vez que este pressupõe a existência de situações equivalentes. Não existindo tal realidade, deve-se atenuar os desníveis com o tratamento normativo diferenciado, sempre que isso for compatível com a Lei Maior. Não há dúvidas de que a própria Constituição atribuiu ao legislador o poder de realizar juízos de valor, e assim tratar desigualmente aqueles que se encontrarem em situações desiguais. É o que se nota através do acórdão proferido na apelação nº. 990.10.327787-2.[17]
No mesmo norte a posição defendida pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Segundo acórdão proferido no julgamento da apelação nº. 2459940-34.2007.8.13.0672 [18], apesar da polêmica que permeia a Lei 11.340/2006, não há que se falar em desrespeito ao princípio da isonomia, vez que o termo não pode ser limitado ao seu conteúdo semântico.
Assim também a posição do Tribunal de Justiça do Paraná, o qual afirma a constitucionalidade da Lei em estudo por meio do acórdão que julgou o Hábeas Corpus n°. 10.576860-1.[19]
Considerações finais
Após o estudo dos aspectos práticos da norma, algumas considerações se fazem cogentes para o seu perfeito entendimento.
A aplicação da Lei Maria da Penha independe de laços de sangue, casamento ou união estável entre as partes. Igualdade, não é necessário que exista ou tenha existido a coabitação. Ao contrário, o convívio reiterado é suficiente para que a agressão de um homem contra uma mulher possa ser classificada como doméstica e familiar.
Para tornar possível o acima exposto, necessário se fez a ampliação do conceito de família, originalmente exposto pelo Código Civil. Dessa forma, estão abarcadas pelo âmbito familiar pessoas que são ou se consideram parentes, unidos por laços naturais, de afinidade ou por vontade expressa, através de uma relação íntima de afeto.
Primeiramente, é importante salientar que a formalização da representação da ofendida contra o agressor é indispensável para a instalação do Inquérito Policial e da posterior ação penal..
O artigo 16 prevê uma providência especial, segundo a qual poderá haver retratação da representação. Essa medida não é automática. Somente será tomada pelo juiz quando devidamente solicitada, em audiência designada especialmente para esse fim, com a oitiva do Ministério Público e antes do recebimento da denúncia.
O rol de medidas protetivas não é exaustivo, mas sim exemplificativo. Isso significa que o magistrado, através do seu poder geral de cautela, poderá determinar outras providências que não aquelas expressamente previstas, desde que atenda a sua finalidade, qual seja, amparar a mulher vítima de agressão. Nesse sentido dispõe o artigo 4º, o qual prevê a interpretação da lei segundo os fins sociais a que ela se destina.
Em regra, a decretação de medidas protetivas depende da solicitação da ofendida, o que ocorre, geralmente, durante a investigação policial. Nesse caso, o delegado deverá formar autos em separado e submete-los à apreciação judicial em até quarenta e oito horas.
Conforme previsão literal do artigo 41 da lei em foco, aos casos de violência contra a mulher não se aplicam os institutos 9.099/1995.
Por se tratar de evidente desrespeito aos Direitos Humanos, a violência familiar e doméstica contra a mulher mereceu especial atenção por parte do legislador, o que culminou em uma lei própria, ora estudada. Muitos sustentam a inconstitucionalidade da norma, sob o argumento de que a mulher foi tratada de forma diferenciada quando comparada aos homens vítimas do mesmo tipo de violência, desrespeitando o consagrado princípio da isonomia.
Todavia, a norma jurídica deve ser analisada de forma efetiva, em todos os seus aspectos. Deve-se evitar o olhar restrito à letra da lei, sem a necessária contextualização social. A isonomia somente se faz presente quando as desigualdades existentes no caso concreto são sanadas no âmbito formal da lei. Essa é a intenção da Lei Maria da Penha.
Graduada em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia. Especialização em curso, em Direito Público, pela Universidade Gama Filho-RJ
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