Resumo: Trata-se da polêmica existente no Direito Tributário sobre qual imposto deve incindir sobre a atividade das farmácias de manipulação. Apesar da grande maioria entender ser cabível o ISS, mostraremos o posicionamento oposto, da incidência do ICMS
Sumário: 1. Introdução. 2. Análise da polêmica. 3. Da competência para regular serviços farmacêuticos. 4. Da incidência de ICMS na atividade de farmácia de manipulação. 5. Conclusão. Referências bibliográficas.
1. Introdução
Uma das maiores polêmicas no Direito Tributário atualmente, é a questão da tributação nas farmácias de manipulação. Existem posicionamentos a favor do ISS e do ICMS, alimentados pela complexidade desta atividade.
A questão é das mais relevantes, haja vista que muitas farmácias tem sido vítimas de verdadeira extorsão praticada pelo ente incompetente para trituta-las (ao nosso ver, Municípios), que lança o tributo, executa, penhora e vai até as últimas consequencias para saciar o seu afã arrecadatório.
Tal instabilidade tem gerado tantos transtornos ao ponto de, felizmente o STF já ter reconhecido a sua Repercussão Geral no RE 605.552/RS, aprovado por unanimidade pelo plenário virtual da Corte.
Enquanto o Supremo não decidir o mérito da questão, o cenário de insegurança jurídica e da guerra entre Estados e Municípios só terá uma vítima: o contribuinte.
2. Análise da polêmica
O terreno de extrema instabilidade gerado pelos Fiscos Estadual e Municipal está gerando um verdadeiro caos jurídico para as empresas atuantes nesta atividade.
O art. 156, III, a Constituição traz a seguinte regra: “Compete aos Municípios instituir impostos sobre serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar” (grifamos).
A alegação dos Municípios se deve ao argumento de que os consumidores, ao procurarem uma farmácia de manipulação buscam serviços de produção personalizada de medicamento ou cosmético, levando uma determinada fórmula e obtendo o resultado do serviço, sendo portanto uma obrigação de fazer, uma vez que o farmacêutico vai dedicar a sua atividade intelectual para produzir algo que até então não existia estado configurado o fato gerador do ISS.
Outro argumento é a previsão “expressa” no lista anexa da Lei Complementar 116/2003, no subitem 4.07, que tem em sua redação “serviços farmacêuticos”, estando os serviços de farmácia de manipulação inseridos como serviços farmacêuticos.
Quando trata do ICMS, a Constituição traz a seguinte regra no art. 155, II: “compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre operações relatiavas à circulação de mercadorias e sobre prestação de serviços de transportes interestadual, e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior” (grifamos).
Os Estados, obviamente, tem um posicionamento diverso, alegando que, o que o consumidor busca, na verdade não é um serviço, pois para ele pouco importa como será fabricado o produto, tampouco se este já existia previamente ou não, sendo por isso mera circulação de mercadoria, configurando o fato gerador de ICMS.
Diante deste “carnaval tributário”[1] ambos os entes cobram seus respectivos impostos da forma como bem entendem, e o contribuinte (sobretudo o microempresário) se vê diante inúmeras cobranças, é coagido pelas inúmeras multas que, sendo devidas ou não, são cobradas tendo este apenas duas opões a adotar:
a) Trabalhar somente para pagar impostos, sob pena de sofrer toda a sorte de sanções, inclusive de por em risco a continuidade da própria empresa; ou
b) “Escolher” o imposto que vai pagar, sendo devido ou não, e, consequentemente o imposto que vai deixar de pagar e “contar com a sorte”, literalmente.
O STJ já teve a oportunidade de se manifestar sobre o tema, e assim o fez no Resp 881038/RS e assim decidiu:
“CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. DELIMITAÇÃO DA COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA ENTRE ESTADOS E MUNICÍPIOS. ICMS E ISSQN. CRITÉRIOS. SERVIÇOS FARMACÊUTICOS. MANIPULAÇÃO DE MEDICAMENTOS. SERVIÇOS INCLUÍDOS NA LISTA ANEXA À LC 116/03. INCIDÊNCIA DE ISSQN. 1. Segundo decorre do sistema normativo específico (art. 155, II, § 2º, IX, b e 156, III da CF, art. 2º, IV da LC 87/96 e art. 1º, § 2º da LC 116/03), a delimitação dos campos de competência tributária entre Estados e Municípios, relativamente a incidência de ICMS e de ISSQN, está submetida aos seguintes critérios: (a) sobre operações de circulação de mercadoria e sobre serviços de transporte interestadual e internacional e de comunicações incide ICMS; (b) sobre operações de prestação de serviços compreendidos na lista de que trata a LC 116/03, incide ISSQN; e (c) sobre operações mistas, assim entendidas as que agregam mercadorias e serviços, incide o ISSQN sempre que o serviço agregado estiver compreendido na lista de que trata a LC 116/03 e incide ICMS sempre que o serviço agregado não estiver previsto na referida lista. Precedentes de ambas aTurmas do STF. 2. Os serviços farmacêuticos constam do item 4.07 da lista anexa à LC 116/03 como serviços sujeitos à incidência do ISSQN. Assim, a partir da vigência dessa Lei, o fornecimento de medicamentos manipulados por farmácias, por constituir operação mista que agrega necessária e substancialmente a prestação de um típico serviço farmacêutico, não está sujeita a ICMS, mas a ISSQN. 3. Recurso provido” (grifamos).
Como pudemos observar, o STJ se posicionou pela incidência de ISS, com o argumento da “previsão” da lista anexa da LC 116/03.
Data máxia vênia, o argumento de que há previsão de tributação de ISS sobre farmácia de manipulação é superficial, e de fato induz a erro, mas não resiste (com o máximo respeito a opiniões contrárias) a uma análise mais profunda e histórica da controvérsia.
Felizmente, como adiantado anteriormente, o STF no RE 605.552/RS reconheceu a Repercussão Geral com o seguinte argumento para o reconhecimento:
“Tributário. ISS. ICMS. Farmácias de manipulação. Fornecimento de medicamentos manipulados. Hipótese de incidência. Repercussão geral. 1. Os fatos geradores do ISS e do ICMS nas operações mistas de manipulação e fornecimento de medicamentos por farmácias de manipulação dão margem a inúmeros conflitos por sobreposição de âmbitos de incidência. Trata-se, portanto, de matéria de grande densidade constitucional. 2. Repercussão geral reconhecida (grifamos).
Enquando o STF não julgar o mérito da questão, os empresários deste tipo de atividade permanecerão sob esta “neblina jurídica”, já que a comunidade jurídica em geral não dá sinais de proximidade de um consenso.
3. Da competência para regular serviços farmacêuticos
Em 1960, foi editada a Lei 3820/60, que criou o Conselho Federal de Farmácia “destinados a zelar pela fiel observância dos princípios da ética e da disciplina da classe dos que exercem atividades profissionais farmacêuticas no País” (art. 1º) e com a atribuição de “expedir as resoluções que se tornarem necessárias para a fiel interpretação e execução da presente lei” (art. 6º, g).
Posteriormente, com a EC 19/98, que incluiu no art. 37 caput da Constituição Federal de 1988 o Princípio da Eficiência, a administração pública de modo geral foi descentralizando diversas atividades e criando autarquias (na figura das Agências Reguladoras) para prover um serviço especializado de cada atividade.
No âmbito das farmácias, é notório que estas estão sob a regulamentação, subordinação e supervisão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, autarquia criada sob regime especial, criada pela Lei 9782/99, vinculado ao Ministério da Saúde (art. 3º), e é através da ANVISA e do próprio Ministério da Saúde que a União exerce sua competência (art. 2º, §1º, incisos I e II) e seu Poder Regulamentar[2].
Tendo a prerrogativa de ser autarquia sob regime especial, José Maria Pinheiro Madeira explica que esta possui as seguintes prerrogativas: “1º) poder normativo técnico; 2º) autonomia decisória; 3º) independência administrativa; e 4º)autonomia político-financeira[i] (grifamos).
Sobre a primeira característica do regime especial, José dos Santos Carvalho Filho define como que o “poder normativo técnico indica que essas autarquias[3] recebem das respectivas leis delegação para editar normas técnicas (não as normas básicas de política legislativa) complementares de caráter geral, retratando poder regulamentar mais amplo, porquanto tais normas se introduzem no ordenamento jurídico como direito novo” (grifamos).
A prerrogativa de poder normativo técnico está confirmada na própria Lei 9782/99, no art. 7º, incisos III, XVIII e XIX, sendo estes dois últimos na atuação das farmácias.
Por isso, não há ninguém na Administração Pública mais habilitada legalmente que o Conselho Federal de Farmácia e a ANVISA para, como diz o próprio art. 7º, III, “estabelecer normas, propor, acompanhar e executar as políticas, as diretrizes e as ações de vigilância sanitária” (grifamos).
O Conselho Federal de Farmácia, dispôs sobre os serviços farmacêuticos na Resolução nº 499, de 17 de dezembro de 2008.
Na citada resolução, no art. 1º, § 1º, incisos I a X, o Conselho Federal de Farmácia – CFF estabelece o rol de atividades que são serviços farmacêuticos, estando fora deste rol, a atividade de farmácia de manipulação, não sendo esta, portando um serviço farmacêutico, e por isso mesmo fora da abrangência da LC 116/03, no item 4.07 da Lista de Serviços Anexa, como será melhor demonstrado a seguir.
Conclui-se então que, se a competência para regular os serviços farmacêuticos é da ANVISA e do CFF, logo o ato adminsitrativo de lançamento de ISS por parte dos Municípios está contaminado com o vício de competência. Se quisesse o legislador tributar a manipulação de medicamentos, pelo respeito ao Princípio da Legalidade Estrita do Direito Tributário, deveria ter colocado expressamente no rol dos serviços presentes na Lista Anexa, e ainda assim seria passível de questionamento, já que tais atividades não são denominadas serviços, exposto a seguir.
4. Da incidência de ICMS na atividade de farmácia de manipulação
Ainda na fase de discussão e votação do processo legislativo do projeto que, posteriormente veio a ser a Lei Complementar 116, de 31 de julho de 2003, quando este foi remetido para o Senado Federal, o item 4.07 da lista anexa ao Projeto estava com a seguinte redação[ii], in verbis:
“4.07 – Serviços farmacêuticos, inclusive de manipulação” (grifamos).
Entretanto, os Excelentíssimos Senadores, como representantes dos Estados que são (art. 46, caput da CF/88), entenderam que seria melhor REJEITAR expressão “inclusive de manipulação” do subitem 4.07, proposta esta aprovada no parecer do Relator, o Sr. Senador Romero Jucá, na Comissão de Assuntos Econômicos – CAE, em 03.06.2003, e assim deixar a atividade de farmácia de manipulação como fonte de receita dos Estados, portanto sendo tributada pelo ICMS, in verbis[iii]:
“A Comissão aprovou, com abstenção do Senador Jonas Pinheiro, o parecer do relator, Senador Romero Jucá, favorável à aprovação parcial do Substitutivo da Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei do Senado nº 161, de 1989 – Complementar, e pela rejeição dos seguintes dispositivos e trechos:(…)
17- expressão “inclusive de manipulação” do subitem 4.07 da lista anexa de serviços”(grifamos).
Tal conduta dos Senadores parece bastante coerente, haja vista que conforme mandamento constitucional, 25% (vinte e cinco por cento) do produto da arrecadação do ICMS pertencem aos Municípios (art. 157, IV), não deixando assim, os Municípios desemparados.
Como se sabe, o texto da lei foi aprovado e até hoje a redação do subitem 4.07 da lista anexa está com a redação apenas “serviços farmacêuticos”, sendo, portanto a solução encontrada pelos nossos Parlamentares, repita-se foi a de REJEITAR, e não ESQUECER de incluir esta expressão na referida norma, como alegam os Municípios, pretendendo estes assim, incluir os serviços de manipulação como abrangidos pelos serviços farmacêuticos, o que, como visto, não é verdade.
Tal postura dos Municípios, como se sabe, tem gerado uma enorme insegurança jurídica, fazendo que com o setor seja “bombardeado” pelos impostos de ICMS e ISS concomitantemente, obrigando os proprietários deste seguimento empresarial, sendo excluídos do SIMPLES Nacional em muitos casos, fecharem as portas.
O caos instalado pelos Municípios chegou à tamanha proporção que a Receita Federal se viu obrigada a publicar o Ato Declaratório interpretativo SRF nº 7, de 23 de junho de 2006, com a seguinte redação, in verbis:
“Artigo único. O exercício da atividade de farmácia de manipulação não constitui impedimento a que a pessoa jurídica faça opção pelo Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte (Simples), uma vez que não se trata de prestação de serviços, mas sim de atividade comercial” (grifamos).
O presente Ato Declaratório parece não ter gerado o efeito esperado, e, observando esta situação, o nosso Parlamento está discutindo o Projeto de Lei Complementar 592/10[iv] que isente do ISS as farmácias de manipulação, do Deputado Rodrigo Maia.
Infelizmente, tem surgido algumas decisões judiciais, inclusive do STJ, no REsp 881035/RS defendendo exatamente o contrário. Com certeza, o abarrotamento de processos não tem permitido os Magistrados a analisar melhor o caso, até porque, ao analisarmos superficialmente a questão, de fato, chega-se a uma primeira conclusão, equivocada, de que o imposto devido é o ISS.
Todavia, como sabemos, a função legislativa compete ao Congresso Nacional, e este decidiu deixar esta atividade sob a incidência de ICMS, conforme publicação do Diário do Senado Federal[v], in verbis:
“Com base no exposto, certos de que a nova lei viabilizará o fortalecimento das finanças públicas municipais, votamos pela aprovação parcial do Substitutivo da Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei do Senado nº 161, de 1989 – Complementar, e pela rejeição dos seguintes dispositivos e trechos: (…)
– expressão “inclusive de manipulação” do subitem 4.07 da lista anexa de serviços, pelo fato de poder tratar-se de operação mista, isto é que envolve o fornecimento conjunto de mercadorias e serviços, circunstância em que criar-se-ia um espaço para a elisão fiscal das mercadorias aí envolvidas de sua sujeição ao ICMS” (grifamos).
Podemos concluir que se os Senadores afirmaram que criar-se-ia um espaço para a elisão fiscal das mercadorias (letra ‘M’ da sigla ICMS) envolvidas, de sua sujeição ao ICMS, logo os Parlamentares criaram a regra para ser devido o ICMS.
Cabe ressalvar que o art. 110 do CTN proíbe a lei tributária de alterar a definição, o conteúdo ou alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, ou seja, a lei tributária não pode chamar de serviço o que é (e sempre foi) mercadoria.
Quando o consumidor chega a prateleira de uma farmácia de manipulação, pouco importa para ele como é feito o medicamento, o que o consumidor necessida é do produto final. Em outras palavras, o consumidor não contrata um serviço e suposta personalização de determinado produto, por si só, não caracterizaria um serviço. Se assim fosse, (a) um bolo de aniversário com a foto de uma criança, (b) uma aliança com as iniciais de um casal, (c) uma camiseta com os nomes de uma turma de formandos, todos estes seriam serviços, e estariam fora da incidência do ICMS.
Outra questão é a diferença entre produto e serviço, é o criério de avaliação da qualidade que, enquanto o primeiro apresente defeito/problemas, o segundo é mal prestado. Quando o consumidor toma um medicamento manipulado e este não surte o efeito esperado, dizemos que o produto apresentou defeito, já que é impossível avaliar o serviço da fabricação do mesmo.
Noutro sentido, quando alguém contrata um professor de inglês e não aprende o idioma, quando alguém contrata uma empresa de detetização, e no dia seguinta encontra baratas em casa, o serviço foi mal prestado, ou seja, não há qualquer tranferência da propriedade de uma mercadoria.
5. Conclusão
Sendo assim, podemos afirmar categoricamente que o imposto devido para as operações de farmácia de manipulação são contribuintes do ICMS, pelos fatos de:
a) Pela competência do Conselho Federal de Farmácia e da ANVISA regularem a matéria, sendo portando o ato de lançamento dos Municípios eivados do vício de competência;
b) Não haver previsão na LC 116/2006;
c) Ter sido REJEITADA a sua incidência no Processo Legislativo da LC 116/2006, que é a formalidade correta para a construção do ordenamento jurídico;
d) Pela proibição expressa do CTN de que a lei tributária não pode alterar a definição, conteúdo ou alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, não podendo então, chamar de serviço o que é mercadoria.
Conforme dissemos anteriormente, espera-se que o Supremo se dedique com afinco à matéria para que os empresários do setor possam recolher seus tributos corretamente, sem o receito de serem coegidos pelo fisco e assim produzirem com tranquilidade.
Informações Sobre o Autor
Daniel Lins Lobo
Advogado, Pós Graduando em Direito Público