Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar a possibilidade da aplicação da teoria de Cláudio Souto no Direito Internacional dos Refugiados. Para tanto serão utilizados dois conceitos apresentados pela teoria do referido autor: o conceito de direito como a ideia de preservação da espécie humana será utilizado como pano de fundo para a discussão de um caso concreto de solicitação de refúgio que representa, de um lado uma tradição cultural, e do outro uma violação de direitos humanos; e o conceito de distância social será utilizado para explicar as dificuldades enfrentadas pelos refugiados após a concessão do refúgio e a importância da readaptação dessas pessoas no país de acolhida. O instituto do refúgio é de extrema relevância, pois visa garantir proteção de forma ampla a pessoas que se encontram em situação bastante vulnerável.
Palavras-chave: Refúgio; multiculturalismo; relativismo cultural; dignidade da pessoa humana; distância social; readaptação.
Abstract: This article aims to analyze the possibility of applying the theory of Claudio Souto in international refugee law. For this purpose we will use two concepts presented by the author of that theory: the concept of law as the idea of preserving the human species will be used as background for the discussion of a case of applying for refuge which represents one side of a tradition cultural and the other a human rights violation; and the concept of social distance will be used to explain the difficulties faced by refugees after the granting of refuge and the importance of rehabilitation of such persons in the host country. The institute of the refuge is extremely relevance therefore aims to ensure protection broadly to people who are in a very vulnerable situation.
Keywords: Refuge; multiculturalism; cultural relativism; human dignity; social distance; readapt.
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Multiculturalismo e Relativismo Cultural; 2.1 O conceito de direito segundo Cláudio Souto: direito como sentimento de preservação da espécie humana; 2.2 A aplicação do conceito de direito de Cláudio Souto no caso concreto: solicitação de refúgio pelos camaroneses PM e HT; 3. A necessidade de readaptação a uma cultura diferente: os problemas sociais que surgem após a concessão do refúgio; 3.1 O conceito de distância social; 3.2 Os problemas sociais que surgem após a concessão do refúgio; 3.3 A importância da readaptação dos refugiados para a manutenção do equilíbrio do sistema social dos países de acolhida; 4. Conclusão; 5. Referências
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objetivo realizar um estudo do Direito Internacional dos Refugiados utilizando como fundamento alguns conceitos apresentados pela teoria de Cláudio Souto.
O refugiado é definido pela Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiado como a pessoa que, em razão de fundados temores de perseguição devido à sua raça, religião, nacionalidade, associação a determinado grupo social ou opinião política, encontra-se fora de seu país de origem e que, por causa dos ditos temores, não pode ou não quer regressar ao seu Estado.
O Brasil é um país que tem tradição na concessão de abrigo e proteção a pessoas perseguidas por motivos políticos, raciais e sociais. O instituto jurídico do refúgio no Brasil é regulado pela Lei 9.474/1997 que define os mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados no Brasil. A lei nacional ampliou as cláusulas de concessão de refúgio apresentadas pela Convenção das Nações Unidas para incluir também a questão da violação de direitos humanos como caracterizadora da condição de refugiado.
O primeiro cápitulo traz como discussão o conceito de direito apresentado por Cláudio Souto como o sentimento de preservação da espécie humana. Segundo Cláudio Souto não será direito justo tudo aquilo que for contrário à ideia de preservação da espécie humana, ainda que expresse valores e costumes de um povo ou de sua comunidade, ou ainda que expresse a vontade do legislador no âmbito estatal.
Esse conceito de direito apresentado por Cláudio Souto afasta-se da ideia de relativismo cultural que defende a aceitação de uma multiplicidade de culturas em um contexto global e o dever de reconhecimento dessa diversidade cultural, ainda que esteja baseada em ideias distintas dignidade humana.
Utilizando essas duas concepções antagônicas, o primeiro capítulo apresentará um caso concreto de solicitação de refúgio no Brasil no qual os solicitantes alegam violação de direitos humanos diante da obrigação da mulher se submeter a uma mutilação genital feminina por ser uma tradição cultural da sua região.
A discussão que se pretende levantar é quando, em um caso concreto, o solicitante de refúgio apresenta como motivo de perseguição um dado cultural ou legal do seu país de origem que, por outro lado, no Brasil, representa uma violação de direitos humanos.
O pano de fundo utilizado para o estudo do caso concreto será a definição de direito apresentada por Cláudio Souto colocada em discussão frente a posições relativistas.
Os problemas enfrentados pelos refugiados não cessam após serem reconhecidos como tais e acolhidos em um país que se comprometa a garantir a sua proteção. Após a concessão do refúgio essas pessoas se vêem obrigadas a se adaptarem a um país diferente, sob pena de viverem isoladas e não alcançarem os meios adequados para a sua subsistência. Por outro lado, é interesse também do próprio Estado, não só por uma questão humanitária, mas também como forma da garantir a manutenção do equilíbrio do seu sistema social, promover a adaptação dessas pessoas em seu território.
Utilizando o conceito de distância social apresentado por Cláudio Souto, o segundo capítulo terá como objetivo demonstrar os problemas que surgem após a concessão do refúgio e as dificuldades enfrentadas pelos refugiados para se adaptarem a uma cultura diferente.
2. MULTICULTURALISMO E RELATIVISMO CULTURAL
Na modernidade é possível afirmar que as sociedades são compostas, em sua grande maioria, por uma pluralidade de grupos que costumam apresentar linguagens, costumes e formas de pensar diversos.
A sociedade contemporânea é, portanto, marcada pelo pluralismo: multiplicidade de valores culturais, visões religiosa de mundo, compromissos morais, concepções sobre a vida digna (CITADINO, Gisele, 2009: p.78).
Dentro de uma sociedade plural o choque entre culturas é, portanto, inevitável. É a partir deste choque cultural que surge a consciência da existência da diferença; tal consciência é, ao mesmo tempo, vista como ameaçadora da identidade cultural do grupo (ROCHA, Everardo P. Guimarães,1998: p.5).
Os estudos relacionados ao multiculturalismo voltam o olhar para esses problemas originados pela diversidade cultural e procuraram dar soluções adequadas aos desafios que enfrentam as sociedades contemporâneas plurais.
Originalmente, a expressão multiculturalismo significava a coexistência de formas culturais ou de grupos caracterizados por culturas diferentes na sociedade. Com o passar do tempo – e com o fenômeno da globalização e a evolução das relações sociais – o termo passou a designar um modo de descrever as diferenças culturais no contexto global (SOUSA SANTOS, Boaventura de; ARRISCADO, João Nunes 2003: p.26).
O conceito de multiculturalismo generalizou-se, segundo Boaventura de Sousa Santos (2003, p. 33), como existência de uma multiplicidade de culturas em um contexto transnacional e global.
Boaventura de Sousa Santos defende um multiculturalismo emancipatório e contra-hegemônico, isto é, um multiculturalismo que, para além da cultura ocidental, reconheça as culturas excluídas e marginalizadas nas sociedades modernas (SOUSA SANTOS, Boaventura de, 1997: p.102).
O multiculturalismo emancipatório trabalha com novas concepções de cidadania que se baseiam no reconhecimento da diferença e no desenvolvimento de políticas públicas que tenham como objetivo a redução das desigualdades, a redistribuição de recursos e a inclusão.
Para alcançar esse multiculturalismo emancipatório Boaventura propõe a existência de diálogos interculturais sobre preocupações convergentes, ainda que expressas em linguagens distintas e a partir de universos culturais diferentes (SOUSA SANTOS, Boaventura de, 1997: p.441).
No relativismo cultural cada povo, com seus próprios costumes e moralidades, devem ser aceitos com tais, independentemente de respeito a valores universais como os direitos humanos.
Conforme o posicionamento relativista todos os sistemas culturais são iguais em valor e as características de cada sistema devem ser avaliadas e explicadas dentro do contexto em que aparecem, ou seja, no relativismo o bem coincide com aquilo que é socialmente aprovado dentro de uma dada cultura.
Sendo assim, uma postura relativista certamente seria contra as intervenções humanitárias e contra o discurso em defesa dos direitos humanos, tendo em vista que tais direitos seriam pertencentes a certos paradigmas incomensuráveis e, portanto, impassíveis de tradução para outras formas de vida (CATÃO, Adrualdo de Lima, 2006: p. 40/41).
Faz-se necessário ressaltar a necessidade de se tomar as precauções necessárias para que o multiculturalismo não redunde em um relativismo cultural, pois tal situação inviabilizaria o entendimento entre os grupos conflitantes e os discursos sobre ética e tolerância (CATÃO, Adrualdo de Lima, 2006: p. 40/41).
2.1 O CONCEITO DE DIREITO SEGUNDO CLÁUDIO SOUTO: DIREITO COMO SENTIMENTO DE PRESERVAÇÃO DA ESPÉCIE HUMANA
O ponto de partida da teoria de Cláudio Souto são as questões inatas do ser humano: os seus sentimentos, ideias e vontades.
Os traços típicos básicos do processo mental humano são essencialmente afetivo, ideativo e volitivo, formando o que Cláudio Souto denomina de composto SIV (sendo S= sentimento; I = ideia; V= vontade) (SOUTO, Cláudio, 1974: p. 153).
Os elementos SIV têm a seguinte variação fundamental: o elemento S do composto SIV é sentimento – sentimento do que deve ser (agradável) e daquilo que não deve ser (desagradável). O elemento S designa, portanto, a afetividade em geral que pode variar do agradável (S+) para o desagradável (S -) (SOUTO, Cláudio; SOUTO, Solange Souto, 1985: p. 69).
A vontade pode ser positiva (V+) no sentido de querer ou negativa (V-) no sentido de não querer. A ideia, representada pelo elemento I, pode apresentar diversos conteúdos (I = n), mas nunca se dissocia, salvo por abstração, dos elementos S e V (SOUTO, Cláudio; SOUTO, Solange Souto, 1985: p. 69).
Segundo Cláudio Souto a atividade biopsíquica SIV representa um movimento contínuo de conhecer ideias (I) e, em função das ideias conhecidas, sentir que algo deve ou não deve ser (S+ ou S-) e atuar externamente (vontade positiva ou vontade negativa), em função dos sentimentos de agradabilidade ou desagradabilidade gerados pela ideias (SI(V)) (SOUTO, Cláudio Souto, 2003: p.170).
Nesse sentido, Cláudio Souto (1997, p. 41):
“Idear, sentir, decidir em função do idear-sentir: ai estará a essência do homem e de tudo que é produto humano. Mesmo as coisas materiais produzidas pelo trabalho humano são resultados de decisões da vontade em função de ideias-sentimentos.”
O direito, como produto humano, será, como tudo que é humano, essencialmente ideia e sentimento (SOUTO, Cláudio Souto, 1997: p.41).
Para Cláudio Souto o sentimento do “direito” – direito entendido como retidão, correção, justeza – é o sentimento de “justiça”; o autor reduz a ambigüidade da palavra “justiça”, que pode ser compreendida de modos diversos e até antagônicos, para conceituá-la como “o sentimento de agradabilidade correspondente ao que se acha que deve ser (e se acha que dever ser o que for mais semelhante ao que se aceita)” (SOUTO, Cláudio Souto, 1997: p.42). Ou seja, “justiça” nada mais é do que o sentimento de agradabilidade do homem normal: agradabilidade diante do que se considera justiça e desagradabilidade diante do que se considera injustiça (SOUTO, Cláudio Souto, 1997: p.42-43).
Para o conceito de direito só importará as ideias de justiça que sejam informadas por conhecimento científico-empírico isto é, baseadas na observação tecnicamente controlada dos fatos. O direito é, portanto, “ideia de acordo com a ciência empírica em conjunção com o sentimento de agradabilidade” (SOUTO, Cláudio Souto, 1997: p.42). A ideia, como dito anteriormente, nunca de dissocia, salvo por abstração, do sentimento.
Nesse sentido esclarece Cláudio Souto (1997, p.43):
“Transculturalmente direito seria então a ideia de acordo com conhecimento geral empiricamente testável em conjunção com o sentimento de agradabilidade. Ao invés do referencial “ciência empírica”, que implica uma sofisticação metodológica que as sociedades primitivas não possuem, é só falar de “conhecimento geral empiricamente testável” (o que todas as sociedades humanas apresentam).”
Importante destacar que não basta apenas a segurança conferida pelo conhecimento científico para compor o direito “porque a ciência pode ser instrumento do que se considere ideologicamente como “bem”, ou “mal”” (SOUTO, Cláudio Souto, 1997: p.82).
Como também não basta para informar o direto apenas o sentimento de agradabilidade diante do que se acha que deve ser (sentimento de justiça). Nesse sentido o homem médio da favela que possuindo um conhecimento deficiente entenda que deve ser que a mulher infiel seja espancada pelo marido achará tal atitude justa e, por isso, experimentará diante do fato, um sentimento de agradabilidade. Esse homem tem um sentimento de justiça baseado em um conhecimento vulgar e preconcebido contra a mulher; diante da deficiência de seu saber não possui uma ideia adequada da justiça informada por dados psicológicos e sociológicos (SOUTO, Cláudio Souto, 1997: p.103-104).
O direito é o sentimento de agradabilidade do homem ligado a idéia informada científico-empiricamente:
“Nem só informação científica, nem só sentimento de agradabilidade (sentimento de justiça). Mas ambos: por conseguinte, ideia científico-empírica a informar o sentimento de justiça – e este parece ser o critério menos inseguramente racional e justo para a caracterização do direito e de sua espécie contestante, o direito alternativo” (SOUTO, Cláudio Souto, 1997: p.105).
Por trás do sentimento de agradabilidade diante do que se considera justo e de desagradabilidade diante do que se considera injusto, existe algo que é inerente ao ser humano que é o impulso de conservação individual e, sobretudo, o impulso de conservação da espécie, pois o indivíduo sozinho não poderá se reproduzir e fatalmente morrerá (SOUTO, Cláudio Souto, 1997: p.44).
Embora essa lei biológica (auto-preservação da espécie) não tenha sido respeitada ao longo da história da humanidade, é a partir dela que Cláudio Souto constrói a sua definição de direito.
O impulso de conservação é o impulso de ser, pois é inerente ao homem, enquanto tal, o sentimento de luta pela sobrevivência e conservação da espécie. O impulso de ser constitui, ao mesmo tempo, o dever ser[1], ou seja, uma pauta de conduta para que todos possam sobreviver e viver harmonicamente:
“É o impulso de ser e que constitui ao mesmo tempo o dever ser fundamental, isto é, a pauta de conduta mais geral básica – limite extremo da realidade animal onde ser e dever ser se confundem em unidade de infra-estrutura” (SOUTO, Cláudio, 1997: p. 44).
Esse impulso de conservação está no homem e, portanto, no direito, que é produto humano:
“O impulso de conservação individual e da espécie, impulso do ser (e, evolutivamente, o impulso de ser cada vez mais complexamente, mais profundamente) está no homem e portanto no seu produto fundamental que é o direito. Não é apenas subjacente ao direito: lhe é subjacente e componente – ou seja, lhe é componente infra-estrutural básico, como pauta fundamental que é para o comportamento da animalidade. É-lhe, assim, o comportamento alfa (A)” (SOUTO, Cláudio Souto, 1997: p. 44/45).
Dessa forma, é possível concluir que o direito, para Cláudio Souto, é composto pelo impulso de conservação individual e da espécie e pelo sentimento de agradabilidade (S+) informado por ideia de acordo com a ciência empírica (SOUTO, Cláudio Souto, 1997: p.106).
“Direito seria então o sentimento humano normal de agradabilidade (que tem como “infra-estrutura” o impulso de conservação individual e da espécie) informado de conhecimento geral empiricamente comprovável (conhecimento científico-empírico, no caso das sociedades civilizadas).”
É direito tudo aquilo que não for contrário ao sentimento-ideia de preservação da espécie humana[2], favorecendo a aproximação, a coesão, a integração humana:
“É jurídico tudo que for favorável à subsistência e ao desenvolvimento do indivíduo humano e todos os homens (pois o impulso se refere a qualquer individuo e à espécie humana); é preferencialmente jurídico o que favorecer a subsistência e o desenvolvimento da totalidade humana (pois é preferível a subsistência e o desenvolvimento da espécie); não é jurídico tudo que prejudique a subsistência e o desenvolvimento do indivíduo humano e de todos os homens (sobretudo de todos os homens)” (SOUTO, Cláudio, 1997: p.48/49).
Não será direito justo tudo aquilo que for contrário à preservação da espécie humana, ainda que expresse valores e costumes de um povo ou de sua comunidade (por exemplo, o apedrejamento da mulher adúltera como cultura islâmica; o linchamento de uma pessoa por causa de um assalto; a extirpação do órgão sexual feminino em muitos países da África do Norte não são direitos justos, ainda que representem valores culturais de uma determina região do mundo):
“A lei do Estado ou o costume, por exemplo, são essencialmente formas de imposição a abrigar conteúdos contraditórios e instáveis – conforme épocas, lugares e grupos sociais de que sejam instrumentos. Desse modo, mesmo o apego ao costume porque costume (seja qual for o seu conteúdo) não é senão formalismo” (SOUTO, Cláudio, 1997: p. 39).
Da mesma forma, não será direito justo, ainda que expresse a vontade do legislador no âmbito estatal, caso seja contrário ao sentimento-ideia de preservação da espécie humana:
“Essa não-juridicidade alcança quaisquer indivíduos ou grupos sociais ou estatais que atentem contra a subsistência e o desenvolvimento de todos os homens. Esses grupos desviantes do jurídico podem apresentar considerável coesão interna, mas são descoesivos quanto ao todo humano e assim não são jurídico, embora possam ser extremamente legalizados (e até “divinizados”)” (SOUTO, Cláudio Souto, 1997: p. 48).
Nesse sentido a escravidão, a inquisição, o holocausto, as cruzadas, por exemplo, todas essas catástrofes históricas tinham a sua base em um ordenamento jurídico estatal, derivados de um ideia cultural, mas, segundo Cláudio Souto esses casos podem ser considerados direito sob o aspecto formal, mas jamais representarão o direito com o conteúdo de justiça, pois em todos esses casos a ideia cultural sobre o que deve ser justo está em desacordo com a ideia universal de preservação da espécie humana.
Não há direito que se possa afirmar com exclusão da conservação da espécie. A espécie humana é representada por “todos os indivíduos humanos, independentemente de quaisquer distinções, pois todos mantêm entre si semelhanças básicas, como seres da mesma espécie” (SOUTO, Cláudio, 1997: p. 120).
O impulso de conservação da espécie humana está pautado, portanto, no sentido do ser de todos, tanto quanto seja isso possível[3], implicando na evolução humana na medida em que é também “impulso de ser cada vez mais profundamente”. Essa ideia de “ser de todos (cada vez mais profundamente)” implica a integração, a coesão da espécie. (SOUTO, Cláudio, 1997: p. 121).
A educação e a socialização precisam atuar no sentido de afirmar a preponderância das semelhanças entre os homens sobre as dessemelhanças[4], uma vez todos são seres humanos com diferenças físicas e intelectuais, mas que precisam ser encaradas como pontos secundários em relação ao que apresentam em comum (SOUTO, Cláudio, 1997: p. 124).
Nesse sentido, Cláudio Souto (1997: p.127/128):
“Dentro da mesma espécie se formam dessemelhanças entre dominantes e dominados, com o estabelecimento de privilégios, mas não na extensão e intensidade com que a inteligência humana tem criado essas dessemelhanças, a ponto de uns indivíduos viverem em nababesca opulência e muitos outros morrerem em extrema miséria. Há um forte consenso de que isso não é razoável (e não sendo razoável, não é justo), pois todos são fundamentalmente humanos.”
A partir dessas ideias de Cláudio Souto é possível afirmar que o autor é um defensor ardente da dignidade humana culminando, assim, a sua teoria, em um universalismo, pois apenas aceita como direito justo aquilo que estiver de acordo com a ideia de preservação da espécie humana, ou seja, que não cause mal ou prejuízo à dignidade do ser humano. Sendo assim, valores e costumes de um povo ou de sua comunidade ou a vontade do legislador no âmbito estatal que contrariem essa ideia de preservação da espécie não poderá, segundo Cláudio Souto, ser conceituado como direito justo.
Nesse sentido, Cláudio Souto se afasta completamente do relativismo cultural que defende que cada povo, com seus próprios costumes e moralidade, devem ser aceitos como tais, independentemente de respeito a valores universais como os direitos humanos.
Por outro lado, é possível afirmar uma aproximação da obra de Cláudio Souto com o multiculturalismo, na medida em que este último implica em reivindicações e conquistas das minorias, no reconhecimento das suas diferenças, na redução das desigualdades, na redistribuição de recursos e nas propostas de inclusão.
2.2 A APLICAÇÃO DO CONCEITO DE DIREITO DE CLÁUDIO SOUTO NO CASO CONCRETO: SOLICITAÇÃO DE REFÚGIO PELOS CAMARONESES PM E HT[5]
O presente tópico tem como objetivo apresentar um caso concreto de solicitação de refúgio no Brasil que traz como discussão a questão do relativismo cultural, da necessidade de reconhecimento da cultura do outro e, por outro lado, o princípio da dignidade da pessoa humana e o conceito apresentado pelo professor Cláudio Souto de direito justo como o direito que visa à preservação da espécie humana.
O refugiado é definido pela Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiado como a pessoa que, em razão de fundados temores de perseguição devido à sua raça, religião, nacionalidade, associação a determinado grupo social ou opinião política, encontra-se fora de seu país de origem e que, por causa dos ditos temores, não pode ou não quer regressar ao seu Estado[6].
Os refugiados são forçados a fugir de seu país de origem em virtude de um receio maior quanto a sua vida e liberdade e, em grande parte das situações, essas pessoas se vêem obrigadas a abandonar sua casa, família e bens na busca de um futuro incerto em um outro Estado.
O Brasil é um país que tem tradição na concessão de abrigo e proteção a pessoas perseguidas por motivos políticos, raciais e sociais. O instituto jurídico do refúgio no Brasil é regulado pela Lei 9.474/1997 que define os mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados no Brasil. A lei nacional ampliou as cláusulas de concessão de refúgio apresentadas pela Convenção das Nações Unidas para incluir também a questão da violação de direitos humanos como caracterizadora da condição de refugiado[7].
O Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) é o órgão nacional de deliberação, no âmbito do Ministério da Justiça, encarregado de tomar decisões em matéria de refúgio. É competência do CONARE, como primeira instância, analisar o pedido e declarar o reconhecimento da condição de refugiado e decidir também acerca da cessação e da perda dessa condição[8].
A discussão que se pretende levantar é quando, em um caso concreto, o solicitante de refúgio apresenta como motivo de perseguição um dado cultural ou legal do seu país de origem que, por outro lado, no Brasil, representa uma violação de direitos humanos.
O caso concreto a ser analisado trata de uma solicitação de refúgio recebida pelo CONARE de um casal de camaroneses PM e HT[9]. O casal solicitou refúgio no Brasil porque, conforme tradições de Bali Nyonga, a mulher teria de ser circuncidada (LEÃO, Renato Zerbini Ribeiro Leão, 2009: p.36).
A mutilação genital feminina é uma prática tradicional em algumas regiões da África. Através dela, meninas têm parte de sua genitália removida como ritual de passagem para a idade adulta. Em geral, é praticada por curandeiras tradicionais, sem condições adequadas de higiene, provocando uma dor intensa e uma série de graves seqüelas físicas e psicológicas (LEÃO, Renato Zerbini Ribeiro Leão, 2009: p.37).
No Ocidente essa prática é considerada uma violação aos direitos humanos e nos países que a praticam já gera muita controvérsia: em muitos países africanos esta prática é proibida por lei, ainda que os Estados, pela tradição popular, sejam incapazes de erradicá-la (LEÃO, Renato Zerbini Ribeiro Leão, 2009: p.37).
Para aqueles que defendem um relativismo cultural a solução para o caso narrado seria o indeferimento do pedido de refúgio por entender que o fato não configura uma perseguição, pois representa um dado a cultural de um outro país. Para os relativistas cada povo, com seus próprios costumes e moralidade, devem ser aceitos como tais, não devendo haver imposições de uma cultura sobre as outras. Sendo assim, conceder o refúgio por entender que no caso concreto houve uma violação de direitos humanos seria uma forma de impor a sua cultura, os seus valores e costumes desrespeitando as regras e a cultura do outro Estado.
Cláudio Souto conceitua o direito, conforme apresentado no tópico anterior, como tudo aquilo que não for contrário ao sentimento-ideia de preservação da espécie humana. Ainda que representem valores culturais de uma determina região do mundo ou expresse a vontade do legislador no âmbito estatal, não será direito justo se não for favorável à subsistência e ao desenvolvimento da espécie humana.
Nesses termos, é possível concluir que para Cláudio Souto o caso narrado, apesar de apresentar a mutilação do órgão genital feminino como valor cultural de uma determinada região, jamais poderá ser considerado como direito justo, uma vez que viola a ideia universal de dignidade humana ao submeter as mulheres a um procedimento violento, doloroso e que pode, inclusive, causar seqüelas físicas, psicológicas e até mesmo a sua morte.
De acordo com o conceito de direito apresentado por Cláudio Souto não há o que se falar em violação ou desrespeito a um direito do outro país, uma vez que tal prática cultural não é direito justo.
Sendo assim, no presente caso a concessão do refúgio, compromisso internacional assumido pelo Estado brasileiro, é imperiosa como forma de resguardar e proteger a dignidade da pessoa humana.
3. A NECESSIDADE DE READAPTAÇÃO A UMA CULTURA DIFERENTE: OS PROBLEMAS SOCIAIS QUE SURGEM APÓS A CONCESSÃO DO REFÚGIO
Os problemas enfrentados pelos refugiados não cessam após serem reconhecidos como tais e acolhidos em um país que se comprometa a garantir a sua proteção. Após a concessão do refúgio essas pessoas se vêem obrigadas a se adaptarem a um país diferente, sob pena de viverem isoladas e não alcançar os meios adequados para a sua subsistência. Por outro lado, é interesse também do próprio Estado promover a adaptação dessas pessoas em seu território não só por uma questão humanitária, mas também como forma da garantir a manutenção do equilíbrio do seu sistema social.
Esse capítulo utilizará o conceito de distância social apresentado por Cláudio Souto para explicar a importância da readaptação dos refugiados a uma cultura diferente.
3.1 O CONCEITO DE DISTÂNCIA SOCIAL
O homem é considerado um ser social por natureza. O ser humano precisa socialmente (importância dos contatos sociais para se desenvolver enquanto homem) e biologicamente (importância dos cuidados com a saúde) da vida em sociedade como condição da sua própria sobrevivência (TORRE, M. B. L. Della Torre, 1973, p.44).
O homem vivendo em sociedade mantém-se, diante da sua própria natureza de ser social, em permanente interação com outros indivíduos. Através dessa interação social o homem passa a conviver socialmente estabelecendo relações sociais, adquirindo consciência de grupo, criando cultura (TORRE, M. B. L. Della Torre, 1973, p.44-45).
A interação social é considerada um processo básico da Sociologia, uma vez que, se não existisse interação entre indivíduos, não seria possível falar em pessoa, em sociedade ou em cultura (SOUTO, Cláudio; SOUTO Solange, 1985: p. 67).
Um dos efeitos da interação social é que os pólos interagentes movimentam-se em aproximação ou afastamento um do outro. Para explicar esses movimentos Cláudio Souto apresenta o conceito de distância social (SOUTO, Cláudio, 1974: p.21).
O conceito de distância social apresentado por Cláudio Souto está vinculado à ideia de semelhança ou dessemelhança entre os compostos SIV (sentimento, ideia, vontade) que estão interagindo: a distância social entre os compostos interagentes aumenta ou diminui, conforme aumente ou diminua semelhança entre esses compostos (SOUTO, Cláudio, 1974: p.15).
Nesses termos, Cláudio Souto conclui que a unidade de distância social entre os compostos interagentes é a semelhança; ou seja, quanto mais semelhanças entre os compostos interagentes, menor a distância social entre eles (SOUTO, Cláudio, 1974: p.15).
Não importará para o movimento de aproximação e afastamento que a ideia do que é semelhante ou dessemelhante (avaliação subjetiva feita pelos pólos interagentes) seja correta, isto é, corresponda objetivamente à realidade (SOUTO, Cláudio, 1974: p.21).
Semelhanças e dessemelhanças objetivas provocam apenas provavelmente, aproximação ou afastamento, uma vez que, uma percepção subjetiva de semelhança não corresponde de modo necessário, à semelhança objetiva; os pólos humanos em interação social podem considerar como semelhante o que é objetivamente dessemelhante, ou vice-versa[10]; ou seja, podem errar na avaliação das semelhanças e dessemelhanças (SOUTO, Cláudio; SOUTO, Solange, 2003: p. 262/263).
Importante destacar que a distância social diferencia-se da distância física. A distância social leva em consideração as semelhanças e dessemelhanças existentes entre os compostos SIV dos pólos interagentes[11], pouco importando, para caracterizar a distância social, se a interação se estabelece de modo direto através dos sentidos (fisicamente próximos) ou indiretamente como, por exemplo, por cartas, telegramas e outros meios de comunicação (fisicamente distante) (SOUTO, Cláudio, 1974: p.22).
A distância social não é também, como afirmam alguns autores, medida pela semelhança/diferença das posições ocupadas pelos homens no espaço social[12] (os mais próximos são os que ocupam posições sociais semelhantes, e vice-versa); nem medida pelo fato de as pessoas que estão interagindo se gostarem (estariam mais próximas) ou se desgostarem (mais distantes)[13].
É preciso considerar o composto sentimento, ideia e vontade para caracterizar a semelhança como unidade de distância social; é preciso considerar cada elemento do composto SIV como um todo[14] (SOUTO, Cláudio; SOUTO, Solange, 1985: p.77).
Segundo Cláudio Souto, quanto maior a semelhança entre os pólos interagentes, menor a distância social entre eles. Ademais, as semelhanças entre os pólos geram um sentimento de agradabilidade e, consequentemente, a relação tende a ser duradoura (SOUTO, Cláudio, 1974: p.23).
Por outro lado, quanto maior a dessemelhança entre os pólos, maior a distância social e maior o sentimento de desagradabilidade; essas relações são pouco duradoras (SOUTO, Cláudio, 1974: p.23).
Importante destacar que os homens em interação nunca se assemelham ou desassemelham de modo absoluto; a realidade social sempre combina os processos de aproximação (semelhanças) e os de afastamento (dessemelhanças) podendo ocorrer uma maior ou menor preponderância de um deles (Cláudio Souto; Solange Souto, p.91, 1985).
3.2 OS PROBLEMAS SOCIAIS QUE SURGEM APÓS A CONCESSÃO DO REFÚGIO
A questão dos refugiados é um fenômeno de ordem internacional através do qual se busca proteger e garantir os direitos fundamentais dos sujeitos que perderam a proteção no seu país de origem ou de residência. Nos termos utilizados pela autora Liliana Lyra Jubilut (JUBILUT, p.02), há uma transferência de responsabilidade de proteção do indivíduo de um Estado para a comunidade internacional.
Ao mesmo tempo, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados – ACNUR, órgão específico para tratar da questão dos refugiados no mundo, não possui um território próprio onde seja possível proteger os refugiados, por isso, a responsabilidade de proteção do indivíduo cabe à comunidade internacional, através de um de seus membros.
Faz-se necessária, portanto, a incorporação da questão dos refugiados no ordenamento jurídico de cada Estado da comunidade internacional para que esta proteção se dê da forma mais ampla possível.
O Brasil recepcionou o instituto do refúgio através da ratificação da Convenção de 1951 e do Protocolo de 1967 sobre o Estatuto dos Refugiados e também adotou uma lei específica (lei 9.474/97), elaborada pelos representantes do governo brasileiro juntamente com representantes do ACNUR, para tratar da questão.
Na lei nacional há previsão de um procedimento específico para a solicitação do refúgio no território brasileiro. O CONARE (Comitê Nacional para Refugiados) é órgão, vinculado ao Ministério da Justiça, responsável pela análise das solicitações de refúgio e pelo deferimento ou indeferimento do pedido.
A decisão do CONARE que reconhece uma pessoa como refugiada, autoriza o refugiado a gozar da proteção do governo brasileiro e a viver em território nacional legalmente.
A partir do momento em que um país defere a solicitação de refúgio e passa a acolher o refugiado em seu território surgem diversos problemas sociais decorrentes da dificuldade de adaptação dos refugiados a um país diferente do seu país de origem. Esta é uma das maiores dificuldades que os refugiados enfrentam: a necessidade de se adaptar a um modo de vida, a uma língua, a uma cultura diferente e ainda o dever de respeitar as leis e regulamentos do país de refúgio e acatar as medidas para manutenção da ordem pública[15].
Os refugiados passam a interagir com uma sociedade diferente da sua e, nesse caso, é possível falar que a distância social entre os refugiados e os cidadãos do país de acolhida é grande, uma vez que, via de regra, o composto SIV dos refugiados apresenta grandes dessemelhanças com relação ao composto SIV dos nacionais. Os sentimentos, ideias e vontades são muito diferentes quando não, a depender do caso, totalmente opostos e, como já visto anteriormente, quanto maior a dessemelhança entre os pólos interagentes, maior o sentimento de desagradabilidade e maior a distância social.
A distância social entre esses pólos interagentes pode diminuir a depender de alguns fatores como, por exemplo, se o refugiado vem de um país que fala a mesma língua ou de um país que apresenta uma cultura semelhante com a cultura do país de acolhida; mas, ainda assim, a necessidade de se adequar a um modo de vida diferente sempre apresentará dificuldades.
A distância social entre esses pólos interagentes tende a gerar situações de discriminação por parte dos cidadãos dos países de acolhida com relação aos refugiados. A falta de informação sobre a temática e de educação interna para a acolhida de refugiados leva os nacionais a enxergam os refugiados como uma ameaça à garantia de seus próprios direitos, sobretudo seus direitos sociais e, assim, pressionam o Estado a evitar ou limitar o reconhecimento do status de refugiado.
Nesse sentido explica Liliana Lyra Jubilut (2007, p.206):
“Isso ocorre porque os nacionais enxergam o refugiado como um migrante e, imediatamente associam a sua inclusão na ordem interna com a perda de empregos e benefícios, fenômeno comum no mundo globalizado.”
Essa situação de discriminação aliada à dificuldade de adaptação em uma sociedade diferente tende a gerar um isolamento social dos refugiados. Isso pode ser observado em situações nas quais são montados, dentro de cidades, campos de refugiados que acabam segregando essas pessoas, dificultando ainda mais a sua integração na comunidade e, consequentemente, tornando a distância social entre refugiados e nacionais um abismo ainda maior.
3.3 A IMPORTÂNCIA DA READAPTAÇÃO DOS REFUGIADOS PARA A MANUTENÇÃO DO EQUILÍBRIO DO SISTEMA SOCIAL DOS PAÍSES DE ACOLHIDA
O equilíbrio do sistema social também está ligado à ideia de semelhança entre os pólos SIV. Sendo assim, quando preponderante as semelhanças entres os pólos SIV o sistema pode ser definido como um sistema equilibrado[16]; por outro lado, preponderando as dessemelhanças, a distância social entre os pólos SIV será maior e o equilíbrio entre os pólos se romperá, desintegrando, assim, o sistema social (SOUTO, Cláudio; SOUTO, Solange, 1985: p.87).
Levando em consideração as proposições gerais sobre distância social, tem-se que quanto maior a semelhança entre os pólos interagentes, menor a distância social entre os pólos e, sendo assim, maior a favorabilidade ao direito. Isso ocorre porque um grupo social só é propriamente um grupo, quando os indivíduos que o compõe se consideram semelhantes e, assim, se aproximam (SOUTO, Cláudio; SOUTO, Solange, 2003: p. 264).
Uma menor distância social entre os pólos interagentes facilita a comunicação entre eles e o controle social. Nesses termos Cláudio Souto afirma que “(…) a facilidade de comunicação reforça por sua vez a aproximação inter-humana, e a facilidade de controle favorece a seu turno a atuação do direito” (SOUTO, Cláudio Souto, 1997: p. 127).
Caso as dessemelhanças preponderem sobre as semelhanças, já não é mais possível falar em grupo, uma vez que não existem mais padrões preponderantemente compartilhados. A preponderância de dessemelhanças gera o desequilíbrio do sistema de interação e, consequentemente, a sua desintegração (SOUTO, Cláudio; SOUTO, Solange, 2003: p. 265).
As interações sociais de competição e conflito (onde prepondera a ideia de dessemelhança, o sentimento de desagradabilidade e o afastamento entre os pólos interagentes) não são em geral favoráveis ao direito – em cuja composição entra essencialmente o sentimento de agradabilidade ou de justiça. Por outro lado, as interações sociais em que prepondera a semelhança entre os pólos interagentes já são em si mesmas favoráveis ao direito (SOUTO, Cláudio; SOUTO, Solange, 2003: p. 272).
Nesse sentido, Cláudio Souto (1997, p.49):
“Interações sociais de competição, conflito ou de hierarquização (todas implicado a preponderância da ideia de dessemelhança entre os interagentes), são em si mesmas, processos de afastamento no espaço social. Assim, nelas não se forma clima favorável ao direito – a não ser quando essas interações previnam afastamento ainda maior. Já as interações sociais onde prepondera a ideia de semelhança e, pois, a aproximação entre pólos interagentes, são sempre favoráveis ao jurídico.”
Sendo assim, a integração dos refugiados ao país de acolhida é de extrema importância para a manutenção do equilíbrio do sistema social. Faz-se necessário, portanto, desenvolver políticas públicas visando uma melhor acolhida dos refugiados e também a adoção das medidas necessárias para garantir, da melhor forma possível, a integração dessas pessoas na sociedade que se tornará o seu novo lar.
No Brasil a acolhida aos refugiados ocorre, com base em um acordo estabelecido com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados – ACNUR, nos escritórios das Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro e de São Paulo.
A Cáritas é uma organização não-governamental ligada à Igreja Católica que atua mundialmente em diversos projetos sociais dentre os quais, a acolhida aos refugiados que ocorre através da defesa da criação de condições favoráveis de acolhida, proteção e integração social (JUBILUT, Liliana Lyra, p. 05).
As Cáritas Arquidiocesanas de São Paulo e do Rio de Janeiro são responsáveis pelos Centros de Acolhida para Refugiados que fazem o acolhimento oferecendo proteção, assistência e solidariedade, envolvendo setores da sociedade e do poder público no apoio aos refugiados.
As Cáritas garantem assistência provisória como ajuda humanitária ao refugiado que ainda não apresenta as condições econômicas e mesmo psicológicas, que viabilizem a sua inserção no mercado de trabalho brasileiro e prestam uma ajuda imediata, com auxílio moradia, alimentação, saúde e educação (JUBILUT, Liliana Lyra, 2007: p. 177).
Tais organismos visam ainda promover a integração local do refugiado garantindo a sua inserção no convívio nacional, inclusive no mercado do trabalho. Para isso atuam prestando auxílio para a revalidação de títulos educacionais, proporcionando acesso ao ensino de todos os graus e cursos profissionalizantes; bolsas universitárias; cursos de português; políticas de emprego, com o fim de capacitar o refugiado, torná-lo auto-suficiente e com seus direitos plenamente respeitados (JUBILUT, Liliana Lyra, 2007: p. 176).
Para alcançar todos os seus objetivos na proteção e integração dos refugiados as Cáritas estabelecem diversas parcerias com a sociedade civil, como entidades de classe, organizações não-governamentais, agências internacionais, empresas privadas e públicas[17].
Todavia, existe ainda a possibilidade de o refugiado não se adaptar no país de acolhida, não conseguindo se integrar na nova comunidade. Nesses casos a solução apresentada é o reassentamento que, segundo Liliana Lyra Jubilut (2007, p.197):
“consiste na prática de um Estado acolher, em seu território refugiados já reconhecidos como tais, pelo ACNUR e/ou por outro Estado, mas que não tiveram toda a proteção necessária fornecida pelo país que lhes deu acolhida (seja por necessidade de proteção jurídica e física, seja pela necessidade de cuidados médicos específicos,seja por uma condição especial – como a de crianças e adolescentes, de idosos, de mulheres em situação de risco ou de famílias separadas) ou por total falta de integração local.”
Os países de reassentamento são considerados uma espécie de segundo país de acolhida para os refugiados que não conseguem ou não puderam permanecer no primeiro país que os acolheu (JUBILUT, Liliana Lyra, 2007: p. 197). Nesse sentido, o reassentamento é também considerado um instrumento que visa à manutenção do equilíbrio do sistema social, pois impede que o refugiado permaneça em um país no qual não se identifica e não consegue se adaptar evitando assim, situações de conflito e de isolamento social.
A proteção internacional dos refugiados trabalha com a busca de soluções permanentes para estes indivíduos. A solução vista como ideal é a repatriação dos mesmos, isto é, auxiliá-los a retornar ao seu país de origem, pois assim, o indivíduo não será privado da sua origem.
Todavia, é importante destacar a grande importância da integração local dos refugiados, pois na maioria dos casos não tem como prever quando a situação de perseguição ou de violação dos direitos humanos que motivou a busca por refúgio irá terminar ou mesmo se irá um dia terminar (JUBILUT, Liliana Lyra, 2007: p. 154).
A repatriação nem sempre se apresenta como uma solução possível e então, nesses casos, os governos dos países de refúgio deverão atuar para que seja garantida a auto-subsistência dos refugiados através da integração local ou, apresentando problemas de integração neste país de acolhida, como visto acima, deverá haver auxílio para a transferência do refugiado para um terceiro Estado que seja mais adequado para atender as suas necessidades (JUBILUT, Liliana Lyra, 2007: p. 154).
4. CONCLUSÃO
O presente artigo teve como objetivo analisar a possibilidade da aplicação da teoria de Cláudio Souto no Direito Internacional dos Refugiados e, para tanto, foram utilizados como fundamento o conceito de direito justo e o conceito de distância social, ambos apresentado nas obras do referido autor.
O objetivo do trabalho se mostrou possível, uma vez que Cláudio Souto, conforme os conceitos apresentados ao longo do artigo, apresenta-se como um pacifista, forte defensor da dignidade da pessoa humana, o que se coaduna perfeitamente ao Direito Internacional dos Refugiados que é considerado uma vertente do Direito Internacional dos Direitos Humanos e, por isso, faz parte de um elenco de direitos universais, indivisíveis, interdependentes, inter-relacinados e essenciais ao ser humano, que devem ser respeitados independentemente de seus fundamentos.
Segundo Cláudio Souto, apenas pode ser conceituado como direito justo tudo o que não for contrário ao sentimento-ideia de preservação da espécie humana. Não será direito justo, portanto, tudo aquilo que cause mal ou prejuízo à dignidade da pessoa humana, ainda que expresse valores e costumes de um povo ou de sua comunidade
As ideais de Cláudio Souto, por um lado, se afastam completamente do relativismo cultural e, por outro lado, se adequam a ideia de um universalismo que defende a existência de valores universais que devem ser respeitados em toda e qualquer cultura do mundo, este valor é a dignidade da pessoa humana.
Esse posicionamento de Cláudio Souto está de acordo com a proteção internacional dos refugiados, sobretudo com a legislação brasileira que ampliou as cláusulas de concessão de refúgio apresentadas pela Convenção das Nações Unidas de 1951 para incluir também na sua legislação interna a questão da violação de direitos humanos como caracterizadora da condição de refugiado.
Sendo assim, situações como a demonstrada no caso concreto apresentado, que determina como valor cultural a extirpação do órgão sexual feminino, não é direito justo, pois representa uma ideia contrária ao sentimento-ideia de preservação da espécie humana, uma violação a direitos humanos, sendo, portanto, motivação suficiente para a proteção dessas mulheres através da concessão do status de refugiado.
O conceito de distância social apresentado pela teoria de Cláudio Souto também se adequou perfeitamente ao estudo do Direito Internacional dos Refugiados.
A partir do momento em que um país defere a solicitação de refúgio e passa a acolher o refugiado em seu território surgem diversos problemas sociais decorrentes da dificuldade de adaptação dos refugiados a um país diferente do seu país de origem, uma vez que os refugiados passam a interagir com uma sociedade diferente da sua e, nesse caso, é possível falar que a distância social entre refugiados e cidadãos do país de acolhida é grande: o composto SIV dos refugiados apresenta grandes dessemelhanças com relação ao composto SIV dos nacionais
Como forma de evitar situações de discriminação por parte dos cidadãos dos países de acolhida com relação aos refugiados e, consequentemente, o isolamento social dos refugiados, faz-se necessário desenvolver políticas públicas que garantam a integração dessas pessoas no país de acolhida, ou seja, buscar soluções para aproximar os pólos SIV dos refugiados aos pólos SIV dos cidadãos como forma de assegurar não só o equilíbrio do sistema social, mas também e, sobretudo, o bem estar dessas pessoas que se encontram em situação tão vulnerável.
Advogada; Mestranda em Direito Público pela Universidade Federal de Alagoas
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