Resumo: Com a Constituição da República de 1988 os Direitos Fundamentais passam a gozar de uma possibilidade de aplicação e valoração nunca antes alcançada. Neste novo panorama jurídico a aplicação dos Direitos Fundamentais nas relações entre privados tem ganhado espaço e reconhecimento nas decisões do Judiciário e na Doutrina. Este estudo buscará por meio de revisão bibliográfica analisar tal possibilidade.
Palavra-chave: Direitos Fundamentais; relações privadas; Constituição.
Sumário: 1. Introdução. 2. Uma nova inspiração Constitucional. 3. Os princípios e os Direitos Fundamentais. 4. Direitos Fundamentais e relações privadas. 5. Conclusão.
1) INTRODUÇÃO
Com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988, apelidada de ‘Constituição Cidadã’ pelo então presidente do Congresso, Deputado Ulisses Guimarães, além da redemocratização do país, que superou o governo militar, instituído pelas Cartas Políticas de 1967 e 1969, foram estabelecidos novos paradigmas de Justiça e de Direito. O sistema jurídico passa a ter como vigas mestras a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais, a livre iniciativa e o pluralismo político (BRASIL, 1988).
A Carta Magna inaugurou um panorama estrutural de Estado, nos moldes do Estado Social e Democrático de Direito, abrindo espaço, em paralelo à livre iniciativa e concorrência, ao ideário de igualdade, proporcionalidade e razoabilidade nas ações estatais (COELHO, 2008).
2) UMA NOVA INSPIRAÇÃO CONSTITUCIONAL
Com o fim do período de autoritarismo, veio à tona o respeito ao homem que, finalmente, tem resgatado seu lugar, como razão e fim do Estado Democrático de Direito. Nesse passo, a nova dinâmica Constitucional consagrou o princípio da dignidade pessoa humana (NUNES, 2008), como fundamento hermenêutico que dá coesão ao ordenamento jurídico vigente desde então.
Na atualidade, a luta pela concretização dos preceitos constitucionais encontra-se na dependência da forma pela qual o Poder Judiciário e os demais poderes atuam no sentido da aplicação da nova sistemática Constitucional.
No caso do judiciário, as regras de interpretação da norma em sua evolução, quase que dogmática, passou pela superação do jusnaturalismo moderno, considerado metafísico e anticientífico, (embora não se possa negar sua contribuição para a conquista das liberdades civis e políticas do Estado moderno (CAPELLETTI, 1992), pelo positivismo no século XIX, que, por sua vez, perdeu terreno após a segunda grande guerra.
A superação do movimento positivista, em grande parte justificada pelo declínio do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha, foi o ponto de partida para o reconhecimento da dignidade da pessoa humana nas Constituições Européias, conforme destacado anteriormente. Tal iniciativa foi muito relevante para reaproximar o Direito da ética e da moral, reavaliando a interpretação das normas no arcabouço jurídico da sociedade (SILVA, 2007).
Inaugura-se o chamado ‘pós-positivismo’ (STRECK, 2003), corrente teórica que busca estabelecer e definir a relação entre valores, princípios e regras. Privilegia de forma nunca antes vista a doutrina dos princípios (FREITAS, 2007), que passam então a ter forte influência na interpretação das normas aos casos concretos (JACINTHO, 2006).
De maneira explícita, a Constituição de 1988, fortemente calcada no princípio da dignidade da pessoa humana, dá lugar ao novo sistema interpretativo alicerçado em normas de sentido aberto e em fundamentos principiológicos norteadores da interpretação e decisão dos litígios levados ao judiciário. Em outras palavras, a teoria dos princípios (STRECK, 2008) passou de elemento meramente inspirador de aplicação de regras para a sua efetivação como norma posta no caso concreto.
Cumpre acrescentar que, sob influência do pós-positivismo, que privilegiava a teoria dos princípios, as constituições modernas passam a ter normas de caráter abstrato, com sentido amplo e instigantes ao exercício de interpretação de seu aplicador ao caso concreto. Eros Grau (2006) reforça essa inferência ao afirmar que “a interpretação do direito deve ser dominada pela força dos princípios; são eles que conferem coerência ao sistema”.
Conforme entendimento de Juarez Freitas (2007) “os princípios aparecem como diretrizes peculiares, geradoras de direitos individuais”.
Como resultado do novo ‘status’ atribuído aos princípios, o método de interpretação clássica no formato subsuntivo – fundada no processo silogístico no qual a premissa maior é a lei, premissa menor é o fato e a conclusão é a sentença -, bem como a hermenêutica tradicional, principalmente para o direito privado (MARTINS, 2008), mostra-se insuficiente para o alcance da pretensão constitucional.
Luis Roberto Barroso (2004) leciona que a nova interpretação constitucional não importa em abandono do método subsuntivo ou dos elementos tradicionais da hermenêutica – gramatical, histórica, sistemática e teleológica -, que continuam a ter papel relevante na solução do caso concreto. O que ocorre segundo o autor, é que eles se tornaram insuficientes.
Seguindo essa linha de análise, não se trata, portanto, de uma ruptura ou de se abandonar a interpretação clássica subsuntiva ou de negar a hermenêutica tradicional, que continua com aplicação no terreno das regras (VIEIRA, 1999), mas de se pensar em uma nova forma de interpretar a Constituição.
Trata-se também da possibilidade de aplicação de princípios que resgatem o mundo prático (faticidade) (STRECK, 2008), negada até então pelo positivismo. Conferindo relevo aos princípios, procura-se superar o distanciamento entre Direito e realidade, preponderante sob o manto do positivismo.
Com essa evolução, os princípios servem de bússola para que se possa perseguir os ideais morais, éticos e justos no Direito.
Ao tratar da importância dos princípios da atual organização constitucional, Clèmerson Merlin Clève (2009) afirma que há no direito constitucional contemporâneo duas correntes doutrinárias: a primeira chamada de dogmática da razão do Estado e a segunda dogmática constitucional emancipatória.
Cabe destacar que a primeira assume uma visão positivista do Direito e leva em consideração apenas a dimensão política do Direito Constitucional. A segunda busca o Direito como efetivação da dignidade da pessoa humana, que se realiza por meio da aplicação dos princípios na realidade existencial (CLÈVE, 2009).
Abordando o tema, Lenio Streck (2008, p. 275) saliente que os princípios passam a ter um novo papel no sistema de interpretação da norma:
“Os princípios passam a ter uma função antitética aos velhos princípios gerais de Direito; enquanto estes tinham a função de assegurar/incrementar o exercício da discricionariedade interpretativo-judicial, aqueles vêm para “fechar” as “possibilidades advindas da abertura semântica dos textos”, a partir da introdução do mundo prático no direito. Assim, se tanto o positivismo (em suas variadas faces) como o pós-positvismo aposta(va)m nos princípios, essa aposta acontece em pólos opostos, isto é, de um lado, reforçando a delegação em favor dos postulados solipsistas, e, de outro, institucionalizando um (providencial) grau de autonomia para o direito, agora preocupado com o “mundo da vida”.”
A evolução do sistema interpretativo encontra especial relevância nas doutrinas de Ronald Dworkin e Robert Alexy. Este último confere ênfase ao que designou como ‘colisão de direitos fundamentais’ (ALEXY, 1998) estabelecendo um sistema interpretativo baseado na ponderação (ALEXY, 2007) que busca relacionar os princípios em debate com o caso concreto, de forma a encontrar a regra mais justa de aplicação dos princípios ao fato jurídico. Como se depreende, o autor em tela defende que a aplicabilidade dos princípios é realizável mediante a ponderação dos princípios na adequação ao caso concreto.
3) OS PRINCÍPIOS E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Inobstante a valiosa e inquestionável decisão pela ponderação como meio de solução da colisão de direitos fundamentais, esta orientação perderá sentido quando estiver em discussão o princípio da dignidade da pessoa humana (JACINTHO, 2006). Cabe sublinhar que a Constituição de 1988 elevou o dito princípio ao nível de norte hermenêutico e princípio fundamental (art. 1º, III, CRFB/88) que dá coesão e sistematiza o ordenamento constitucional. A Carta Maior concedeu um ‘plus’ à dignidade da pessoa humana, criando um ‘superprincípio’, segundo o qual deve ser visto todo o arcabouço normativo.
Elevado a princípio superior e de imperativa interferência no sistema valorativo das normas constitucionais, soa controverso que uma possível colisão entre este princípio e outro qualquer, colocado a teste pela referência da ponderação possa resultar na contrariedade ou prevalência deste sobre aquele. Em outras palavras, o princípio da dignidade da pessoa humana atua como ápice no novo sistema hermenêutico Constitucional. Assim, não é possível a sua ponderação frente a qualquer outro, como de fato parece ser a posição do Tribunal Constitucional Federal Alemão (MARTINS, 2008).
Decorre dessa premissa a relevância de que se estabeleçam mínimos elementares para a configuração do princípio da dignidade da pessoa humana. Tal análise acredita-se requer obrigatoriamente a definição e delimitação de seu alcance, estabelecendo-se o que se poderia chamar de núcleo essencial (BARCELLOS, 2005) que deve compor os elementos configurativos de sua área mínima de atuação.
Analisando o princípio da dignidade humana, Jacintho (2008, p. 148) assim define o seu núcleo essencial:
“a dignidade humana como direito material apresenta um núcleo essencial cujos elementos integradores são – sem exclusão de outros que possam ser assim apresentados – a liberdade de crença, e os direitos à saúde, educação, moradia e alimentação.”
Nessa acepção, o núcleo essencial da dignidade da pessoa humana repousa na liberdade de crença e nos direitos à saúde, à educação, à moradia e à alimentação.
Pode-se inferir que o desatendimento a qualquer desses direitos constitui violação ao princípio da dignidade humana e, portanto, não haveria, ao menos em tese, possibilidade de ponderação que obtivesse como resultado a sua inaplicabilidade.
O Supremo Tribunal Federal, ao analisar a Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 319-4, que trata de pedido da Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino – CONFENEM para declarar inconstitucional a Lei 8.039, de 30 de maio de 1990, que dispõe sobre critérios de reajuste das mensalidades escolares e dá outras providências, acabou por analisar a ordem constitucional econômica, conferindo-lhe fortes traços sociais, realçando o respeito aos direitos fundamentais, em especial à dignidade da pessoa humana. Como exemplo, é pertinente refletir sobre o voto do Ministro Moreira Alves (STF, 1993), expresso nos seguintes termos:
“Ora, sendo a justiça social a justiça distributiva – e por isso mesmo é que chega à finalidade da ordem econômica (assegurar a todos existência digna) por meio dos ditames dela -, e havendo a possibilidade de incompatibilidade entre alguns dos princípios constantes dos incisos desse art. 170, se tomados em sentido absoluto, mister se faz, de que, em conformidade com os ditames da justiça distributiva, seja assegurado a todos – e, portanto, aos elementos de produção e distribuição de bens e serviços e aos elementos de consumo deles – existência digna. (…)
Ademais, entre os novos princípios que estabelece para serem observados pela ordem econômica, coloca o da defesa do consumidor (que ainda está, como direito fundamental, no art. 5º, inciso XXXII) e o da redução das desigualdades sociais.”
O Acórdão aqui mencionado demonstra a necessidade de nova abordagem hermenêutica das questões que envolvam direitos Constitucionais, como a educação e a saúde, reforçando o entendimento esboçado anteriormente sobre a questão do núcleo essencial do princípio da dignidade da pessoa humana.
Para se entender a força motivadora promovida pela dignidade da pessoa humana nas Constituições contemporâneas, é necessário destacar parte do voto proferido pelo Tribunal Constituição Federal Alemão no famoso caso Wilhelm Elfes (MARTINS, 2008, p. 456):
“Ignora-se, porém, neste ponto, que o Poder Legislativo, segundo a Grundgesetz, está submetido a limites mais severos do que estava sob a vigência da Constituição de 1919 [da República de Weimar]. Na época, não apenas diversos direitos fundamentais estavam realmente “esvaziados” pela reserva legal geral, à qual qualquer lei constitucionalmente promulgada correspondia; o legislador podia superar a qualquer momento, também no caso concreto e por meio de uma lei promulgada pela maioria necessária para a emenda constitucional, qualquer limitação constitucional que se lhe opusesse. Por sua vez, a Grundgesetz estabeleceu uma ordem axiológica que limita o poder público. Por meio dessa ordem, a autonomia, a responsabilidade pessoal e a dignidade humana devem estar garantidas no Estado (BVerfGE 2 , 1 [12 et seq .]; 5, 85 [204 et seq.]). Os princípios superiores dessa ordem de valores são protegidos contra emendas constitucionais (Art. 1, 20, 79 III GG). Rompimentos com a Constituição não são [mais] possíveis; a jurisdição constitucional fiscaliza a subordinação do legislador aos parâmetros constitucionais. Assim, as leis não são “constitucionais” somente por terem sido produzidas formalmente de acordo com a ordem constitucional. Elas têm de estar materialmente de acordo com os valores básicos superiores da ordem democrática livre, mais do que da ordem de valores constitucional, bem como corresponder aos princípios constitucionais elementares não escritos e às decisões básicas da Grundgesetz, especialmente ao princípio do Estado de direito e do Estado social. Sobretudo, as leis não podem, por isso, ferir a dignidade humana, que é o valor maior da Grundgesetz, mas também não podem restringir a liberdade humana intelectual, política e econômica de forma a atingir tais liberdades em seu conteúdo essencial (Art. 19 II, Art. 1 III, Art. 2 I GG). Daí resulta que ao cidadão está constitucionalmente reservada uma esfera de vida privada, existindo, portanto, um último âmbito intangível de liberdade humana que não se submete à ação do poder público como um todo. Uma lei que interviesse no aludido último âmbito nunca poderia ser elemento da “ordem constitucional”; teria que ser declarada nula pelo Tribunal Constitucional Federal. Disso resulta que uma norma jurídica, somente quando atende a todas essas exigências, e também quando se torna elemento da “ordem constitucional”, limita efetivamente o âmbito da capacidade de ação geral do cidadão. Processualmente isso significa: Qualquer um pode, por meio da Reclamação Constitucional, alegar que uma lei que limite sua liberdade geral de ação não faz parte da ordem constitucional, porque estaria se chocando contra certas disposições constitucionais (na forma ou conteúdo) ou princípios constitucionais gerais. Em sendo assim, [também] seu direito fundamental previsto no Art. 2 I GG estaria sendo violado.”
Além disso, cabe destacar a posição defendida por Ingo Sarlet (2007, p. 57):
“Os direitos fundamentais, que o art. 5º da Constituição Federal de 1988 considera invioláveis, são inerentes à dignidade da pessoa humana, neles se traduzem a concretizam as faculdades que são exigidas pela dignidade, assim como circunscrevem o âmbito que se deve garantir à pessoa para que aquela se torne possível…
A dignidade da pessoa humana foi pela Constituição concebida como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais. E, como tal, lança seu véu por toda a tessitura condicionando a ordem econômica, a fim de assegurar a todos existência digna (art. 170).”
Como já foi salientado, a nova hermenêutica constitucional elevou os princípios à categoria de normas e como tal podem e devem ordenar o arcabouço jurídico (VIEIRA, 2006).
Sob esse aspecto, Lenio Streck (2008) alerta que os princípios na nova acepção implantada pelo sistema jurídico constitucional tem função diversa daquela apresentada pelos princípios gerais de Direito, vez que, enquanto estes asseguravam e incrementavam o exercício da discricionariedade do magistrado, aumentando sua liberdade, a nova função dos princípios é “fechar” as “possibilidades advindas da abertura semântica dos textos, a partir da introdução do mundo prático no direito”.
É o pós-positivismo, que tem na relação entre valores, princípios e regras (ÁVILA, 2008) a busca do ideal normativo para aplicação no caso concreto. Dito de outra maneira os princípios passam a ser considerados como normas.
Neste sentido, os princípios Constitucionais estão na mais alta escala normativa, tornando-se, como destaca Gesta Leal (2000, p. 166), a “normas da normas”:
“De tal sorte, como lembra Paulo Bonavides, os princípios estatuídos nas Constituições – agora princípios constitucionais -, postos no ponto mais alto da escala normativa, eles mesmos, sendo normas, tornam-se, doravante, as normas supremas do ordenamento, servindo de pautas ou critérios, por excelência, para avaliação de todos os conteúdos constitucionais e infraconstitucionais. Acrescente-se que os princípios, desde sua constitucionalização, recebem, como instância máxima, ‘status’ constitucional, rodeados do prestígio e da hegemonia que se confere às normas inseridas na Lei das leis. Com esta relevância adicional, os princípios se convertem, igualmente, em normas das normas.”
Em outras palavras, princípios como estes fazem transparecer uma superlegalidade material, tornam-se fonte primária do ordenamento e se apresentam como efetivos valores elegidos pela comunidade política local e, enquanto tais, afiguram-se como a pedra de toque ou critério com que se aferem os conteúdos constitucionais em sua dimensão normativa mais elevada.
Se são normas e tem aplicação efetiva, estes devem ser aplicados sempre que possível (ALEXY, 2007), vez que traduzem, por meio de normas abertas, o espírito e o ideal buscado pelo texto Constitucional (QUARESMA, GUIMARÃES, 2006).
Esta questão ganha relevo, pois como se sabe os direitos fundamentais foram concebidos como direitos de defesa do cidadão em face da ação estatal (CITTADINO, 2006), pensado na acepção de um recente Estado Liberal. Tal concepção tinha fé na crença que somente o Estado poderia lesar o particular, já que nas relações inter-privadas vigeria a igualdade entre as partes, o que poderia ser auto-regulado pela autonomia da vontade. Situação relacional que começa a se alterar durante o Estado Social de Direito (MINARDI, 2008).
4) DIREITOS FUNDAMENTAIS E RELAÇÕES PRIVADAS
De fato com a evolução social, a massificação do consumo (TEPEDINO, 2006), o desenvolvimento tecnológico, pode-se verificar que o poder não está apenas nas mãos do Estado, mas disperso na sociedade como um todo. Não é somente o Estado que detém o poder, este também pode estar nas mãos de particulares. A relação inter-privada se tornou desigual e em razão disso os direitos fundamentais (ZAIDAN DE CARVALHO, 2006), especialmente em razão do império da dignidade humana, devem regular e equilibrar também as relações privadas (NEVES, 2006).
A temática tem sido motivo de debates entre os doutrinadores (LIMA, 2009), bem como na jurisprudência, criando teorias que expliquem a chamada eficácia dos direitos fundamentais na órbita do direito privado.
Sobre a questão, Canotilho (2008, p. 181) leciona que:
“É crescente o número de trabalhos dedicados às relações entre o direito constitucional e o direito civil. (…) Haja vista o problema da eficácia dos direitos fundamentais na ordem jurídica privada (Drittwirkung), o problema da privatização de funções e procedimentos públicos, o problema da renúncia a direitos fundamentais, o problema da responsabilidade patrimonial dos entes públicos. Poderemos afirmar, com relativa segurança, que, hoje, um dos temas mais nobres da dogmática jurídica diz respeito às imbricações complexas da irradiação dos direitos fundamentais constitucionalmente protegidos (Drittwirkung) e do dever de proteção de direitos fundamentais por parte do poder público em relação a terceiros (Schutzpflicht) na ordem jurídico-privada dos contratos.”
Analisando o tema, Canaris (2003, p. 09) entende que a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais seria bastante facilitada se pudessem ser respondidas três questões:
“Em primeiro lugar: quem é o destinatário dos direitos fundamentais – apenas o Estado ou também os sujeitos jusprivatistas? Em segundo lugar: de quem é o comportamento objeto do exame realizado com base nos direitos fundamentais – o comportamento de um órgão público ou o de um particular? E, por fim: em que função se aplicam os direitos fundamentais – como proibições de intervenção e direitos de defesa contra o Estado (Abwehrrechte) ou como mandamentos (deveres) de proteção?”
O mesmo autor esclarece que estas questões são o pano de fundo da discussão entre eficácia externa mediata e eficácia externa imediata. A eficácia externa por si considerada quer significar a eficácia em relação a terceiros, no caso entre os sujeitos do direito privado. Significando, por sua vez, a expressão ‘imediata’ que os direitos fundamentais teriam como destinatário não só o Estado, mas também o ente privado. Tal vinculação, na acepção de Canaris (2003), contraria a própria concepção do direito privado, nega os séculos de evolução e põe fim à autonomia privada, o que contradiz, em última análise, os próprios direitos fundamentais, razão pela qual esta teoria não pode ser admitida.
Por outro lado, a eficácia externa mediata (CANOTILHO, 2008) admite que o único destinatário dos direitos fundamentais é o Estado, mas simultaneamente reconhece que eles produzem efeitos também nas relações (inter)privadas, e, por tal razão, o Estado é obrigado a proteger o cidadão contra outro cidadão nas suas relações.
Para Tepedino (2006) na era da massificação do consumo e da globalização pouca serventia têm os direitos fundamentais se as políticas públicas e a atividade econômica ficarem fora do seu espectro de efetividade. Ainda destaca que várias agressões à dignidade humana têm sido registradas devido à insuficiência da legislação infraconstitucional e à tacanha menção que a magistratura tem feito na relação entre direitos fundamentais(FARIA, 2005) e o direito privado. Nesse sentido, é valiosa a lição de Sarlet (2000, p. 148) que analisando detidamente o tema, expõe:
“Das considerações tecidas até o presente momento, já se poderia, salvo melhor juízo, sustentar que uma vinculação direta dos particulares aos direitos fundamentais, à exceção das hipóteses nas quais o destinatário precípuo das normas (e do direito subjetivo nelas embasado) é o poder público, ainda que se possa partir da premissa de que o modus vinculanti e o papel do legislador, assim como o do Juiz, seja diverso, de acordo com o caso concreto.”
E ainda completa:
“Com efeito, tal conclusão se impõe seja em virtude da existência de norma de direitos fundamentais, sem em razão de que estas normas integram o rol das “cláusulas pétreas”, ao menos, no que diz com o seu conteúdo em dignidade humana. Para além disso, resulta evidente que a dignidade humana não se encontra sujeita apenas às agressões oriundas do Estado, mas também dos particulares, já que, em verdade, pouco importa de quem provém a “bota no rosto do ofendido.”
Canaris (2003) salienta que na Alemanha esta questão tem tal relevância que existe um recurso constitucional que busca assegurar a inviolabilidade dos direitos fundamentais, pouco importando se o caso vem da esfera civil ou não, vez que mesmo as decisões de última instância (Supremo Tribunal Federal) em matéria civil podem ser submetidas à reapreciação daquele Tribunal Constitucional Alemão.
Para reforçar a posição acima, Canaris cita um famoso caso apreciado pelo Tribunal Constitucional Alemão e que serviu de paradigma para várias outras decisões de mesma espécie, o chamado caso ‘Luth’, quando o Tribunal Constitucional entendeu que as normas de direitos fundamentais podem ser aplicadas nas relações entre os particulares.
Em julgamento histórico (STF, 2006), o Supremo Tribunal Federal, ao analisar a situação de um compositor que foi desligado dos quadros da União Brasileira dos Compositores – (UBC), entendeu que se tratava de relação entre privados (pessoa física e pessoa jurídica de direito privado). Nesse aspecto, a grande discussão que se travou naquele que ficou conhecido como “caso UBC” foi no sentido de existir a possibilidade de que os direitos fundamentais do compositor afastado fossem efetivos em sua relação com outra pessoa jurídica de direito privado, ou seja, a possibilidade de que os direitos fundamentais fossem aplicados e efetivos nas relações entre privados.
Gilmar Mendes (STF, 2006), em seu voto-vista, ensina que a discussão sobre a efetividade dos direitos fundamentais nas relações privadas (eficácia horizontal dos direitos fundamentais) é tema complexo e tormentoso ocupando boa parte do discurso jurídico na Europa e nos Estados Unidos da América. Ainda, segundo ele, mesmo no período o Estado Social os direitos fundamentais tinham nítido caráter de proteção contra os atos do Estado.
O mesmo Ministro afirma também em seu voto vista que a ideia segunda a qual os direitos fundamentais imporiam uma limitação à autonomia das partes é bastante necessário, se imaginar que o particular teria um campo de atuação livre de qualquer atuação do Estado, poderiam se criar situações contrárias à própria ordem jurídica vigente. Por tal motivo, sustenta que também os direitos privados estão vinculados aos direitos fundamentais.
Já, Joaquim Barbosa (STF, 2006), em seu voto, entende que a aplicação dos direitos fundamentais na órbita privada decorre de vários fatores, entre eles a supremacia da Constituição e a chamada constitucionalização do direito privado com a queda das barreiras que separam o direito público do privado.
Por sua vez, Celso de Mello (STF, 2006), acompanhando o entendimento de Barbosa e Mendes, entende que também a autonomia privada encontra limitações na ordem positiva constitucional.
Na apreciação do caso, o Supremo Tribunal Federal (2006) decidiu da seguinte forma:
“SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais. III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL.APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO. As associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não-estatal. A União Brasileira de Compositores – UBC, sociedade civil sem fins lucrativos, integra a estrutura do ECAD e, portanto, assume posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras. A vedação das garantias constitucionais do devido processo legal acaba por restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88). IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO.”
Para Gaio Júnior (2009) o Supremo Tribunal Federal reconheceu claramente que os direitos fundamentais podem e devem ser aplicados nas relações entre particulares e incidir não somente no âmbito das relações jurídicas processuais, mas em qualquer ambiente onde esteja presente a violação dos mencionados direitos.
O Tribunal Federal Constitucional Alemão(MARTINS, 2008) parece ter entendimento bastante similar, no sentido de que o conteúdo normativo dos direitos fundamentais também se desenvolve no âmbito do Direito Privado.
A Constituição Portuguesa, por sua vez, em seu art. 18, n. 1, determina expressamente que os direitos fundamentais sejam aplicados às relações privadas.
5) CONCLUSÃO
Não é objetivo do presente estudo negar a autonomia privada ou afirmar que os princípios funcionarão como uma limitação a tal autonomia, mas com fundamento no que foi exposto é de se entender que os princípios de direitos fundamentais que buscam efetivar a dignidade da pessoa humana produzem eficácia nas relações entre os particulares, posto que os direitos fundamentais como expressão da dignidade humana atuarão como elementos de concretização dessa dignidade sempre que ocorrer a sua violação.
Sendo assim, parece perfeitamente coerente a aplicação e adoção da teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais no sistema jurídico brasileiro.
Informações Sobre o Autor
Wesllay Carlos Ribeiro
Doutorando em Direito pela PUC Minas, Mestre em Direito pela UNESA, Professor Assistente da Universidade Federal de Alfenas – Campus Varginha UNIFAL-MG